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Três Tipos Puros de Poder Legítimo
Max Weber
Tradutor:
Artur Morão
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Três Tipos Puros de Poder Legítimo∗
Max Weber
Índice
Legitimidade do poder; razões de legitimidade
Poder legal
Poder tradicional
Poder carismático
1
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4
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Legitimidade do poder; razões de legitimidade
O poder, isto é, a possibilidade de encontrar obediência a uma ordem determinada, pode assentar em diferentes motivos de acatamento:
pode ser condicionado apenas pela situação de interesses, portanto, por
considerações teleológico-racionais das vantagens e desvantagens por
parte de quem obedece. Ou, além disso, mediante o simples “costume”,
pela habituação monótona à acção tornada familiar; ou pode ser justificado pela tendência puramente afectiva, simplesmente pessoal do
governado. Um poder que se baseasse apenas em semelhantes fundamentos seria relativamente lábil. Nos governantes e nos governados,
o poder costuma antes assentar internamente em razões jurídicas, razões da “sua legitimidade”, e o abalo desta fé legitimadora costuma ter
consequências de vasto alcance.
∗
Tradução de Artur Morão. O ensaio, encontrado no espólio do autor, foi postumamente publicado por Marianne Weber nos Preußischen Jahrbücher, Vol. CLXXXVII, 1922, pp. 1-12, com o subtítulo: Um estudo sociológico.
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Nas “razões de legitimidade” do poder há, numa forma de todo
pura, apenas três, das quais – no tipo puro – cada uma está ligada a
uma estrutura sociológica radicalmente diversa do corpo administrativo
e dos meios da administração.
Poder legal
I. O poder legal em virtude de estatuto. O tipo mais puro é o poder
burocrático. A ideia fundamental é que, através de um estatuto arbitrário formalmente correcto, se podia criar qualquer direito e alterar
[opcionalmente o existente]. A associação de poder é ou escolhida ou
imposta; ela própria e todas as suas partes são empresas. Uma empresa (parcial) heterónoma e heterocéfala deve ter o nome de autoridade(s). O corpo administrativo consiste em funcionários nomeados
pelo senhor, os súbditos são membros da associação (“cidadãos”, “camaradas”).
Não se obedece à pessoa, em virtude do seu direito próprio, mas da
regra estatutária que determina a quem e enquanto se lhe deve obedecer. Quem ordena obedece também, ao promulgar uma ordem, a uma
regra: à lei ou ao “regulamento”, a uma norma formalmente abstracta.
O tipo daquele que ordena é o “superior”, cujo direito governativo é
legitimado pela regra estatutária, dentro de uma “competência” objectiva, cuja limitação se funda na especialização segundo a teleologia objectiva e segundo as pretensões profissionais de desempenho do ofício.
O tipo do funcionário é o funcionário especializado instruído, cuja situação de serviço assenta no contrato, com salário fixo, gradual de acordo
com a categoria do ofício, não segundo a medida do trabalho, e com o
direito a reforma segundo regras fixas da promoção. A sua administração é trabalho profissional em virtude da obrigação oficial objectiva;
o seu ideal é ordenar, “sine ira et studio”, sem qualquer influência de
motivos pessoais ou interferências emocionais, sem arbítrio e imprevisibilidade, sobretudo “sem acepção da pessoa”, de um modo rigorosamente formalista, segundo regras racionais e – onde estas falham –
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segundo pontos de vista de praticabilidade “objectivos”. A obrigação
de obedecer é gradual numa hierarquia de ofícios com a submissão dos
inferiores aos superiores e com processos de recurso regulamentados.
A base do funcionamento técnico é: a disciplina empresarial.
1. No tipo do poder “legal” inclui-se, naturalmente, não só a estrutura moderna do Estado e da comunidade, mas também a relação
de domínio na empresa capitalista privada, numa associação de fins
ou união de qualquer espécie, que dispõe de um numeroso corpo administrativo e hierarquicamente articulado. As modernas associações
políticas são apenas os representantes mais proeminentes do tipo. O
poder na empresa capitalista privada é, sem dúvida, parcialmente heterónomo: o ordenamento é, em parte, estatalmente prescrito - e, em
relação ao corpo coercivo, inteiramente heterocéfalo: o corpo judicial
estatal e o corpo policial cumprem (normalmente) estas funções - mas
são autocéfalos na sua organização administrativa cada vez mais burocrática. Que a entrada na associação de pioder se siga formalmente de
um modo livre em nada altera o carácter do poder, pois a notificação é
também formalmente “livre”, e isto sujeita normalmente os governados
às normas empresariais, devido às condições do mercado de trabalho;
a afinidade sociológica do carácter do poder com o moderno poder estatal tornará ainda mais saliente a discussão dos fundamentos económicos da dominação. A validade do “contrato” como base inscreve a
empresa capitalista num tipo proeminente da relação de poder “legal”.
2. A burocracia é o tipo tecnicamente mais puro de poder legal.
Mas nenhum poder é só burocrático, isto é, gerido apenas mediante
funcionários contratualmente recrutados e nomeados. Tal não é possível. As cúpulas mais altas das associações políticas são ou “monarcas”
(governantes carismáticos por herança, cf. adiante) ou “presidentes”
eleitos pelo povo (portanto, senhores carismáticos plebiscitários, cf.
adiante) ou eleitos por uma corporação parlamentar, onde, em seguida,
os seus membros ou, melhor, os líderes, mais carismáticos ou mais notáveis (cf. adiante), dos seus partidos predominantes, são os senhores
efectivos. Também quase em nenhum lado é, de facto, o corpo adminis-
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trativo puramente burocrático, mas nas mais variadas formas, em parte
os notáveis, em parte os representantes de interesses costumam participar na administração (sobretudo, na chamada auto-administração).
Decisivo é, porém, que o trabalho contínuo assente de modo preponderante e crescente nas forças burocráticas. Toda a história da evolução
do Estado moderno se identifica, em especial, com a história do funcionalismo moderno e da empresa burocrática (cf. adiante), tal como
toda a evolução do moderno capitalismo avançado se identifica com a
crescente burocratização da empresa económica. A participação das
formas burocráticas do governo aumenta em toda a parte.
3. A burocracia não é o único tipo de poder legal. O funcionalismo por turnos, por sorte e por escolha, a administração parlamentar
e por comissões e todas as espécies de corpos colegiais de governo e
administração aqui se inscrevem, na suposição de que a sua competência se baseia em regras estatutárias e o exercício do direito governativo
corresponde ao tipo da administração legal. Na época da emergência
do Estado moderno, as corporações colegiais contribuíram de modo
muito essencial para o desenvolvimento da forma legal de poder, e a
elas deve o seu aparecimento sobretudo o conceito de “autoridade”. Por
outro lado, o funcionalismo por eleição desempenha um grande papel
na pré-história da moderna administração por funcionários (e também
hoje nas democracias).
Poder tradicional
II. Poder tradicional, em virtude da fé na santidade dos ordenamentos
e dos poderes senhoriais desde sempre presentes. O tipo mais puro é a
dominação patriarcal. A associação de poder é a agremiação, o tipo de
quem manda é o “senhor”, o corpo administrativo são “servidores”, os
que obedecem são os “súbditos”. Obedece-se à pessoa por força da sua
dignidade própria, santificada pela tradição: por piedade. O conteúdo
das ordens é vinculado pela tradição, cuja violação inconsiderada por
parte do senhor poria em perigo a legitimidade do seu próprio poder,
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que assenta apenas na sua santidade. Criar um novo direito em face
das normas tradicionais surge, em princípio, como impossível. Na realidade, tem ele lugar mediante o “conhecimento” de uma proposição
como “valendo desde sempre” (através da “profecia”). Pelo contrário, fora das normas de tradição, a vontade do senhor está vinculada
apenas por limites que o sentimento de equidade traça no caso singular, portanto, de modo extremamente elástico: o seu poder divide-se,
pois, numa região estritamente cimentada pela tradição e noutra da livre graça e arbítrio, em que ele governa segundo o agrado, a afeição,
a aversão, e sobretudo também mediante favores pessoais a pontos de
vista influentes. Mas na medida em que à administração e à arbitragem
de conflitos estão subjacentes princípios, são eles os da sensatez ética
material, da justiça ou da praticabilidade utilitarista, não os de natureza formal, como no poder legal. De igual modo procede o seu corpo
administrativo. Consiste este em dependentes pessoais (elementos ou
funcionários domésticos) ou em parentes ou amigos pessoais (favoritos) ou naqueles que estão obrigados pelo vínculo pessoal de fidelidade
(vassalos, príncipes tributários). é inexistente o conceito burocrático
da “competência” enquanto esfera de responsabilidade objectivamente
delimitada. O âmbito do “legítimo” poder de mando dos servidores individuais rege-se segundo o bel-prazer singular do senhor, ao qual eles
estão de todo sujeitos relativamente à sua aplicação nos papéis mais
importantes ou de categoria mais elevada. Na realidade, rege-se em
grande parte por aquilo que os domésticos se podem permitir em face
da obediência dos súbditos. Não é a obrigação nem a disciplina oficiais efectivas que regulam as relações do corpo administrativo, mas a
fidelidade pessoal dos servidores.
Entretanto, há que atender, no tipo da sua posição, a duas formas
caracteristicamente diferentes:
1. A estrutura puramente patriarcal da administração: os servidores estão na total dependência pessoal do senhor, ou são recrutados de
modo puramente patrimonial – escravos, servos, eunucos – ou extrapatrimonial a partir de estratos não de todo desprovidos de direitos: fa-
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voritos, plebeus. A sua administração é inteiramente heterónoma e heterocéfala; no seu ofício, não há nenhum direito próprio dos que administram, mas também não qualquer selecção especializada e nenhuma
honra do funcionário em virtude da sua condição social; os meios administrativos objectivos são inteiramente controlados para o senhor na
sua própria gestão. Na dependência plena do corpo administrativo em
relação ao senhor falta toda a garantia contra o arbítrio senhorial, cuja
extensão possível é, aqui, máxima. O tipo mais puro é o poder sultânico. Todos os verdadeiros regimes “despóticos” têm este carácter,
no qual o domínio é tratado como um vulgar direito de propriedade do
senhor.
2. A estrutura segundo ordens [estamentos]: os servidores não são
servidores pessoais do senhor, mas pessoas independentes, de valor e
proeminência social em virtude da sua própria posição; são agraciados
(realmente ou segundo uma ficção de legitimidade) com o seu ofício
por privilégio ou concessão do senhor, ou têm mediante uma transacção legal (compra, penhor, renda) um direito seu, não arbitrariamente
dirimível, ao cargo por eles apropriado [adquirido], a sua administração é correlativa, embora limitada, autocéfala e autónoma, os meios
objectivos de administração encontram-se sob o seu controlo, não do
senhor: domínio de ordens. – A concorrência dos detentores do cargo
em torno da esfera do poder dos seus ofícios (e das suas receitas) condiciona, em seguida, a delimitação recíproca, quanto ao conteúdo, das
suas esferas administrativas e está no lugar da “competência”. A articulação hierárquica é, muitíssimas vezes, furada pelo privilégio ([de]
non evocando, non apellando). Falta a categoria da “disciplina”. A
tradição, o privilégio, as relações feudais ou patrimoniais de fidelidade,
a honra ligada à ordem e a “boa vontade” regem as relações globais.
O poder dos senhores está, portanto, dividido entre o senhor e o corpo
administrativo por apropriação e privilégio, e esta divisão do poder por
ordens estereotipa em grau elevado a natureza da administração.
O domínio patriarcal (do pai-de-famílias, do chefe de clã, do “pai
do povo”) é apenas o tipo mais puro do poder tradicional. Todo o tipo
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de “governo” que reclama com êxito uma autoridade legítima, unicamente em virtude do costume implantado, pertence à mesma categoria
e só não apresenta um cunho tão claro. A piedade instilada pela educação e pelo costume na relação da criança ao chefe de família é o
mais típico contraste, por um lado, com a situação de um trabalhador
contratualmente assalariado numa empresa, por outro, com a relação
emocional de fé de um membro da comunidade a um profeta. E a associação doméstica é também, de facto, uma célula nuclear das relações
tradicionais de poder. Os “funcionários” típicos do Estado patrimonial e feudal são funcionários domésticos com tarefas ligadas apenas
à manutenção da casa (mordomo-mor, camareiro, marechal, copeiro,
senescal, regente).
A coexistência das esferas fortemente ligadas pela tradição e das esferas livres da acção é comum a todas as formas tradicionais de poder.
No seio destas esferas livres, a acção do senhor, ou do seu corpo administrativo, deve ser comprada ou alcançada através de relações pessoais. (O sistema de taxas tem aqui uma das suas origens.) A ausência
decisivamente importante do direito formal e, em vez dele, o domínio
de princípios materiais na administração e na arbitragem dos litígios é,
de igual modo, comum a todas as formas tradicionais de poder e tem,
em especial, consequências de longo alcance para a relação com a economia. O patriarca, tal como o soberano patrimonial, governa e decide
segundo os princípios da “justiça do cádi”: por um lado, ligada fortemente à tradição, mas na medida em que esta vinculação permite uma
liberdade, segundo pontos de vista informais e irracionais de equidade
e de justiça do caso singular, e decerto também “em consideração da
pessoa”. Todas as codificações e leis do soberano patrimonial respiram o espírito do chamado “Estado de benefícios”: uma combinação
de princípios ético-sociais e de princípios utilitarístico-sociais domina
e imbui toda robustez formal do direito.
A separação entre a estrutura patriarcal e a estrutura por ordens
de poder tradicional é fundamental para toda a sociologia do Estado
da época pré-burocrática. (No seu âmbito total, o contraste só se torna
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compreensível em conexão com a sua ulterior vertente económica, ainda
a discutir: separação do corpo administrativo dos meios materiais de
administração ou apropriação dos meios objectivos de administração
pelo corpo administrativo.) A questão plena de se e que “ordens” houve
como portadores dos bens culturais ideais está assim, em primeira linha, historicamente condicionada. A administração por meio de dependentes patrimoniais (escravos, servos), como se encontra no Próximo
Oriente e no Egipto até ao tempo dos Mamelucos, é o tipo mais extremo e, aparentemente (nem sempre de facto), o mais consequente do
domínio puramente patriarcal, sem quaisquer ordens. A administração
por meio de plebeus livres encontra-se relativamente perto do funcionalismo racional. A administração por letrados pode, quanto ao seu
cunho, ter um carácter muito diferente (contraste típico: os brâmanes
frente aos mandarins e, por seu turno, ambos frente aos clérigos budistas e cristãos). Mas aproxima-se sempre mais do tipo de ordens [estamentos]. Este é representado, com toda a clareza, pela administração
aristocrata, na forma mais pura pelo feudalismo, que põe a relação de
fidelidade inteiramente pessoal e o apelo do cavaleiro agraciado com
o ofício à honra da sua ordem no lugar da obrigação oficial objectivamente racional.
Todos os tipos de domínio das ordens, baseada na apropriação mais
ou menos fixa do poder administrativo, se encontram numa situação
mais próxima do patriarcalismo e do domínio legal do que aqueles que,
em virtude de garantias, rodeiam os poderes dos privilegiados, têm o
carácter de um “título legal” muito particular (consequência da “divisão do poder” das ordens), ausente nas formas patriarcais com as suas
administrações inteiramente sujeitas ao arbítrio do senhor. Por outro
lado, a apertada disciplina e o inexistente direito próprio do corpo administrativo no patriarcalismo acercam-se mais, tecnicamente, da disciplina oficial da dominação legal do que a administração das formas
das ordens, repartida e, portanto, estereotipada mediante a apropriação,
e a utilização de plebeus (juristas) no serviço dos senhores na Europa
tornou-se justamente o predecessor do Estado moderno.
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Poder carismático
III. Poder carismático, mediante a dedicação afectiva à pessoa do senhor e aos seus dons gratuitos (carisma), em especial: capacidades mágicas, revelações ou heroísmo, poder do espírito e do discurso. O eternamente novo, o fora do quotidiano, o nunca acontecido e a sujeição
emocional são aqui as fontes da rendição pessoal. Os tipos mais puros
são a autoridade do profeta, do herói guerreiro, do grande demagogo.
A associação de domínio é a agremiação na comunidade ou o séquito.
O tipo daquele que ordena é o chefe. O tipo de quem obedece é o “discípulo”. Obedece-se, com toda a exclusão, de modo puramente pessoal
ao chefe por mor das suas qualidades pessoais, fora do habitual, não
por causa da posição estatutária ou da dignidade tradicional. Portanto,
também só enquanto estas qualidades lhe são atribuídas: o seu carisma
preserva-se mediante a sua demonstração. Quando ele é “abandonado”
pelo seu deus, ou despojado da sua da força heróica e da fé das massas
na sua qualidade de chefia, desvanece-se o seu poder. O corpo administrativo é escolhido segundo o carisma e a dedicação pessoal: não,
por contraste, segundo a qualificação profissional (como o funcionário), nem segundo a ordem (como o corpo administrativo estamental),
nem segundo a dependência doméstica ou outra dependência pessoal
(como, por contraste, o corpo administrativo patriarcal). Está ausente
o conceito racional da “competência” e também o conceito de “privilégio”, peculiar às ordens. Para o âmbito da legitimação do seguidor ou
discípulo indigitado é determinante apenas a missão do senhor e a sua
qualificação carismática pessoal. à administração – na medida em que
este nome é adequado – falta toda a orientação por regras, quer estatutárias quer tradicionais. Caracteriza-a a revelação imediata ou a criação
imediata, a acção e o exemplo, a decisão de caso a caso, portanto –
avaliada segundo o critério dos ordenamentos estatutários – irracional.
Não está ligada à tradição: para os profetas vale o “está escrito, mas
eu digo-vos”; para os heróis guerreiros esbatem-se os ordenamentos
legítimos frente à nova criação em virtude do poder da espada; para
o demagogo, graças ao “direito natural” revolucionário por ele proclawww.lusosofia.net
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mado e sugerido. A forma genuína da carismática norma jurídica e da
arbitragem dos conflitos é a proclamação da sentença pelo senhor ou
pelos “sábios” e o seu reconhecimento pela comunidade (de armas ou
de fé), que é obrigatório, no caso de não surgir uma norma concorrente
de outro com a pretensão à validade carismática. Neste caso, ocorre
uma luta de chefes a decidir, em última análise, só mediante a confiança da comunidade; nela o direito só pode existir num lado, e no
outro, a injustiça sujeita à reparação.
a) O tipo do poder carismático foi desenvolvido, de modo brilhante,
primeiro, por R. Sohm no seu direito eclesiástico para a comunidade
cristã primitiva - ainda sem saber que se tratava de um tipo puro − a
expressão foi, desde então, utilizada de muitos modos, sem o conhecimento do alcance. - O passado mais antigo, além de enunciados menores de poder “estatutário” que, sem dúvida, de nenhum modo estão
de todo ausentes, conhece a divisão do conjunto de todas as relações
de domínio em tradição e carisma. Ao lado do “chefe económico” (Sachem)1 dos índios, uma figura essencialmente tradicional, encontra-se
o chefe guerreiro carismático (que corresponde ao alemão “Herzog”)
com o seu séquito. As expedições de caça e de guerra, que exigem
um chefe munido pessoalmente de qualidades fora do habitual, são os
lugares da chefia mundana, a magia é o lugar “espiritual” da chefia
carismática. Desde então, o poder carismático sobre os homens atravessa os séculos com os profetas e os chefes guerreiros de todas as
épocas. O político carismático –“demagogo”– é o produto da cidadeEstado ocidental. Na cidade-Estado de Jerusalém emergiu ele apenas
na indumentária religiosa, como profeta; a constituição de Atenas, pelo
contrário, foi, desde as inovações de Péricles e Efialtes, inteiramente talhada para a sua existência, e sem ela a máquina estatal não funcionaria
um só instante.
b) O poder carismático assenta na “fé” no profeta, no “reconhecimento” que o herói guerreiro carismático, o herói da rua ou o demagogo
1
Título de um chefe dos Indios norte-americanos , sobretudo do chefe de una
confederação das tribos algonquinas da costa atlântica do Norte. [N.T.]
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pessoalmente encontra e que com ele se desvanece. De igual modo,
não deriva a sua autoridade, por exemplo, deste reconhecimento pelos
governados. Mas, ao invés, a fé e o reconhecimento surgem como obrigação, cujo cumprimento o carismaticamente legitimado para si exige,
e cuja infracção ele vinga. O poder carismático é, decerto, um dos
grandes poderes revolucionários da história, mas, na sua forma mais
pura, é de carácter plenamente autoritário, dominador.
c). é evidente que a expressão “carisma” se usa aqui num sentido
de todo axiologicamente neutro. O acesso de raiva do “berserker”2
nórdico, os milagres e as revelações de qualquer profecia evasiva, os
dons demagógicos de Cléon são, para a sociologia, um “carisma” tão
bom como as qualidades de Napoleão, Jesus, Péricles. Pois, para nós,
é apenas decisivo se eles apareceram e agiram como carisma, isto é,
se encontraram reconhecimento. Para tal, o pressuposto fundamental
é a “comprovação”: pelo milagre, pelo êxito, pela prosperidade do séquito ou dos súbditos deve o senhor carismático comprovar-se como
“por graça de Deus”. Só surge como tal enquanto pode. Se o êxito
lhe é recusado, vacila o seu domínio. O conceito carismático da “graça
de Deus” teve, onde ele existiu, consequências decisivas. O monarca
chinês estava ameaçado na sua posição logo que a seca, a inundação,
o insucesso no campo de batalha ou outras desgraças deixavam transparecer como incerto se ele estava na graça do céu. Auto-acusação e
penitência públicas, em desgraças persistentes: ameaçavam-no a deposição e, eventualmente, a imolação. A abonação pelo milagre é exigida
a cada profeta (ainda a Lutero pelos habitantes de Zwickau).
Também a existência da maior parte das relações de poder, legais
segundo o seu carácter básico, assenta, tanto quanto na sua estabilidade
se expressa a fé legitimadora, em fundamentos mistos. O costume tradicional e o “prestígio” (carisma) coadunam-se com a fé - em última
análise, também implantada - no significado da legalidade formal: o
2
Termo derivado do norueguês antigo “berserkr”, para indicar um guerreiro escandinavo que em plena batalha se entregava a acessos de rancor e era considerado
invulnerável. [N.T.]
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abalo de um deles por exigências inabituais, em face da tradição, feitas
aos governados, por um infortúnio extraordinário que aniquila o prestígio, ou pela infracção da correcção legal formal habitual, faz vacilar
em igual medida a fé legitimadora. Mas em todas as relações de poder é decisivo, para a consistência incessante da obediência efectiva
dos governados, sobretudo o facto da existência do corpo administrativo e da sua acção incessante, dirigida à execução dos regulamentos
e à coacção (directa ou indirecta) da sujeição à autoridade. A garantia
desta acção, que leva a cabo o domínio, é o que se pretende dizer com
a expressão “organização”. Por seu turno, para a lealdade ao senhor,
tão importante em toda a parte, do corpo administrativo é decisiva a
sua solidariedade de interesses com o senhor - tanto do ponto de vista
ideal como material. às relações do senhor com o corpo administrativo
aplica-se, comummente, esta proposição: que, em geral, em virtude do
isolamento dos membros desse corpo e da solidariedade de cada membro com ele, o senhor é o mais forte frente a todo o indivíduo que se
opõe, mas é, em seguida, o mais fraco em face de todos no seu conjunto, quando eles - como por vezes fizeram numerosas categorias de
pessoal do passado e do presente - se associam. Mas necessita-se de
uma aliança planeada dos membros do corpo administrativo para, graças à obstrução ou à medida oposta consciente, se paralisar a influência
do senhor sobre o agir associativo e, deste modo, o seu domínio. E
igualmente se necessita da criação de um corpo administrativo próprio.
d) O poder carismático é uma relação especificamente inabitual,
uma relação social puramente pessoal. Na existência contínua, mas
não mais tarde do que com a remoção do portador pessoal do carisma,
a relação de domínio - no último caso, então, se ela se não extingue de
imediato, mas de qualquer modo persiste e, portanto, a autoridade do
senhor passa para os sucessores – tem a tendência para se banalizar:
1. Mediante a tradicionalização dos ordenamentos. Em vez da nova
criação carismática incessante no direito e nos decretos administrativos pelo portador do carisma ou pelo corpo administrativo carismatica-
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mente qualificado surge a autoridade dos preconceitos e das precedências, que eles criaram ou que lhes foram atribuídos;
2. Mediante a transição do corpo administrativo carismático, o discipulado ou o séquito, para um corpo legal ou de ordens, pela aceitação
de direitos governativos internos ou apropriados por privilégio (feudos,
prebendas);
3. Através da remodelação do sentido do próprio carisma. Para
tal é decisivo o tipo de solução da questão candente do problema da
sucessão a partir de razões ideais e (muitas vezes, sobretudo) materiais.
Esta é possível de modos diferentes: a simples espera passiva da
emergência de um novo senhor carismaticamente acreditado ou qualificado costuma ser substituída pelo procedimento activo em vista da sua
obtenção, sobretudo quando o seu aparecimento se faz esperar e fortes
interesses, seja qual for a sua natureza, estão ligados à persistência da
associação de domínio.
a) Pela demanda de características da qualificação carismática. Um
tipo razoavelmente puro: a busca do novo Dalai Lama. O carácter
fortemente pessoal, inabitual, do carisma converte-se numa qualidade
determinável segundo regras.
b) Pelo oráculo, pela sorte ou por outras técnicas da designação. A
fé na pessoa do carismaticamente qualificado transforma-se assim em
fé na técnica em causa.
c) Pela designação do carismaticamente qualificado:
1. Pelo próprio portador do carisma: designação dos seguidores,
uma forma muito frequente, tanto nos profetas como nos chefes guerreiros. A fé na legitimidade própria do carisma muda-se assim em fé na
herança legítima do poder, em virtude da designação jurídica e divina.
2. Pelo discipulado ou séquito carismaticamente qualificado sob
a adição do reconhecimento por parte da comunidade religiosa e/ou
militar. A concepção como direito de “escolha” ou de “eleição preliminar” para este procedimento é secundária. Este conceito moderno
deve de todo evitar-se. Segundo a ideia originária, não se trata de uma
“votação” acerca dos candidatos à eleição, entre os quais existe uma
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escolha livre, mas de um estabelecimento e reconhecimento do senhor
“genuíno”, do senhor chamado à sucessão enquanto carismaticamente
qualificado. Uma “falsa” escolha era, portanto, uma injustiça a expiar.
Eis o postulado essencial: deveria ser possível intentar a unanimidade,
o contrário seria um erro e uma fraqueza.
Vigorava então, em cada caso, a fé, não já na pessoa só enquanto
tal, mas na pessoa do senhor “genuína” e “validamente” designada e
(eventualmente entronizada) ou, aliás, indigitada para o poder, à maneira de um objecto de posse.
3. Pelo “carisma hereditário” na concepção de que a qualificação
carismática residia no sangue.
O pensamento, óbvio em si, é sobretudo o de um “direito hereditário” ao poder. Esta ideia só se tornou predominante no Ocidente, na
Idade Média. Muitíssimas vezes, o carisma é inerente apenas ao clã e
somente o novo portador imediato deve ser estabelecido de modo particular: segundo uma das regras e dos métodos mencionados em a)-c).
Onde, relativamente à pessoa, existem regras fixas, estas não são uniformes. Só no Ocidente medieval e no Japão é que se impôs de um
modo inteiramente unívoco o “direito de primogenitura” na coroa, em
grande parte para o aumento da estabilidade do domínio local, pois todas as outras formas levam a conflitos internos.
A fé já se não põe então só na pessoa enquanto tal, mas no “legítimo” herdeiro da dinastia: o carácter só imediato e extraordinário
do carisma é transformado de um modo muito fortemente tradicionalizante e altera-se também de todo, no seu sentido, o conceito da “graça
de Deus” (= senhor por pleno direito próprio, não em virtude do carisma pessoal reconhecido pelos governados). A pretensão dos senhores é, em seguida, totalmente independente das qualidades pessoais.
4. Por meio da banalização ritual do carisma: a fé de que existe uma
qualidade mágica transferível ou gerável por uma espécie determinada
de hierurgia: unção, imposição das mãos ou outros actos sacramentais.
A fé já se não põe, então, na pessoa do portador do carisma –pelo
contrário, a pretensão de domínio (como se levou a cabo de modo es-
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pecialmente claro mediante o princípio católico do carácter indelével
do sacerdote) é de todo independente das suas qualidades– mas põe-se
na eficácia do respectivo acto sacramental.
5. O princípio carismático da legitimidade interpretado autoritariamente segundo o seu sentido primário pode reinterpretar-se de modo
anti-autoritário. A validade efectiva do poder carismático assenta no
reconhecimento da pessoa concreta enquanto carismaticamente qualificada e comprovada pelos governados. Segundo a concepção genuína
do carisma, este reconhecimento é devido ao pretendente legítimo, porque qualificado. Esta situação pode, entretanto, ser facilmente reinterpretada de maneira que o livre reconhecimento pelos governados seja,
por seu lado, o pressuposto da legitimidade e o seu fundamento (legitimidade democrática). Em seguida, o reconhecimento torna-se “escolha” e o senhor, legitimado em virtude do carisma próprio, torna-se um
detentor do poder pela graça dos governados e por força do mandato.
Tanto a nomeação pelo séquito como a aclamação pela comunidade
(militar ou religiosa), como o plebiscito, assumiram muitas vezes, historicamente, o carácter de uma selecção levada a cabo por votação e
fizeram assim do senhor, escolhido segundo as suas pretensões carismáticas, um funcionário escolhido pelos governados somente segundo
o seu bel-prazer.
Desenvolve-se igualmente o princípio carismático de que uma norma
jurídica carismática da comunidade (comunidade de armas ou comunidade religiosa) deve ser promulgada e por ela reconhecida; e, portanto,
a possibilidade existente de normas diferentes e antagónicas entrarem
em competição e de, em seguida, se chegar à decisão por meios carismáticos, em última análise, pelo acolhimento que a comunidade faz da
norma correcta, facilmente se converte na concepção - legal - de que
os governados decidem livremente, através da manifestação voluntária,
sobre o direito que deve vigorar, e que o número dos votos seja para tal
o meio legítimo (princípio da maioria).
A diferença entre um chefe eleito e um funcionário eleito fica a ser,
então, simplesmente a do sentido que o próprio eleito dá e – segundo as
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Max Weber
suas qualidades pessoais – pode dar, frente ao pessoal e aos governados,
à sua conduta; o funcionário comporta-se inteiramente como mandatário do seu senhor, aqui, portanto, dos eleitores, o chefe comporta-se
como exclusivamente atido à responsabilidade própria; este, portanto,
enquanto reivindica com êxito a sua confiança, agirá inteiramente segundo a discrição própria (democracia de líderes) e não, como o funcionário, de harmonia com a vontade expressa ou presumida (num “mandato imperativo”) dos eleitores.
Nota doTradutor
Este texto aparece no volume Max WEBER, Três tipos de poder e
outros escritos, Tribuna da História, Lisboa, 2005. O leitor poderá aqui
encontrar ainda: “O sentido da neutralidade axiológica das ciências
sociológicas e económicas” (1917), “O Socialismo” (1918), “A política
como vocação” (1919). – As obras de Max Weber em alemão estão, em
parte, disponíveis no seguinte electro-sítio:
• Max Weber. Ausgewählte Schriften
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Três tipos de poder legítimo