Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Bruno Brant Sotto Mayor De brasas que atravessam o fogo: alguma antropologia entre os Tchokwe de Angola Rio de Janeiro 2010 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 2 Bruno Brant Sotto Mayor De brasas que atravessam o fogo: alguma antropologia entre os Tchokwe de Angola Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Carlos Fausto PPGAS-MN/UFRJ Rio de Janeiro 2010 3 Sotto Mayor, Bruno Brant De brasas que atravessam o fogo: alguma antropologia entre os Tchokwe de Angola. Rio de Janeiro, 2010 195 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de PósGraduação em Antropologia Social/Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. Orientador: Prof. Dr. Carlos Fausto 1. Guerra 2. Política 3. Cosmologia 4. Tchokwe (Angola) I. Fausto, Carlos (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro III. De brasas que atravessam o fogo: alguma Antropologia entre os Tchokwe 4 Bruno Brant Sotto Mayor De brasas que atravessam o fogo: alguma antropologia entre os Tchokwe de Angola Banca Examinadora: ______________________________ Prof. Dr. Carlos Fausto – orientador PPGAS-MN/UFRJ ______________________________ Prof. Dr. Moacir Palmeira PPGAS-MN/UFRJ ______________________________ Prof. Dr. Fernando Rabossi IFCS-UFRJ 5 Ao fim da guerra. 6 RESUMO SOTTO MAYOR, Bruno Brant. De brasas que atravessam o fogo: alguma Antropologia entre os Tchokwe de Angola. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social – PPGAS/MN/UFRJ: Rio de Janeiro, 2010. A dissertação visa discutir certas formas políticas exercidas na longue durée entre os Tchokwe, mediante estratégias de fuga e guerra que tiveram no tchilombo (quilombo) seu fundamento. Pretende-se, em seguida, mostrar à luz da etnografia como a terra, a genealogia, o tempo e a circulação se constituem em uma aldeia do alto Kassai (Angola). 7 ABSTRACT SOTTO MAYOR, Bruno Brant. De brasas que atravessam o fogo: alguma Antropologia entre os Tchokwe de Angola. Master’s Degree thesis on Social Anthropology – PPGAS/MN/UFRJ: Rio de Janeiro, 2010. The Master's Thesis aim to discuss some political forms practiced in the longue durée by the Tchokwe, through escape's and war's strategies that had in tchilombo (quilombo) their main expression. The intention, thereafter, is to point out how land, genealogy, time and circulation are organized in one village of Kassai's river (Angola). 8 INDICE Introdução Algumas apresentações ..............................................................................9 De campo, caminhos e chegadas...............................................................14 A aldeia e o branco: entrando no jogo.......................................................20 Parte I: Tchilombo..................................................................................27 Os quilombos do planalto central..............................................................28 Versões de tchilombo entre os Tchokwe do alto Kassai............................45 Em Estado de tchilombo............................................................................81 Parte II: Tchihunda.................................................................................96 Genealogia, política e terra........................................................................97 Magia e umbanda.....................................................................................135 Luisa e luchiho.........................................................................................166 Circulação de valor, moral e imaginações...............................................175 Conclusão: Em torno de alguma antropologia dialética....................189 Glossário..................................................................................................190 Bibliografia.............................................................................................192 9 Introdução Algumas apresentações O interesse pela África Central emana de diferentes fontes ao longo da vida. A música1, poder-se-ia afirmar, foi o mote de muitos estímulos por reconstruir e transmitir ao longo do tempo memórias contadas por gerações dos que eram escravos e passaram a compor e produzir a urbanidade carioca e outras tantas. É do Rio de Janeiro, dos sambas de muitas décadas, de sua alegria contida e explosiva, da urbanidade fragmentada, de suas tantas genealogias, que prossigo, tentando abrir um caminho que possa servir de estímulo para outros tantos antropólogos que um dia se proponham e se interessem por esses imensos geraes centro-africanos, por terras de ngola-congo e além, muito além daqui e de lá. Como estudar um continente conturbado por guerras intensas e longas, ainda abertas ou de passado recente? Mais especificamente, como estudar um povo bantu repartido entre Angola e o Congo-Kinshasa, frente a duas complexas formações estatais pós-coloniais? Comecemos por Angola. Fomentar as condições para se realizar pesquisa de campo no interior do continente seria o primeiro passo. Embora haja ligações históricas, reconhecidas e exaltadas entre Brasil e Angola, são poucos os canais institucionais disponíveis a um pesquisador. Em Angola, ainda inexiste um Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Por meio de contatos estabelecidos diretamente junto ao Ministério da Cultura de Angola e ao Museu Nacional de Antropologia (MNA), esta instituição me acolheu como Investigador-Visitante durante março de 2009 e março de 2010. Por sua vez, foi de igual e fundamental importância o suporte financeiro do CNPQ e do convênio Capes-Cofecub, os quais me permitiram a longa estadia em Angola. 1 Algumas obras musicais em especial: Clara Nunes, Jorge Ben Jor, Tim Maia, João Gilberto, Chico Science, Bezerra da Silva. Obras que pensaram e repensaram a África a partir daqui, do Brasil. Afinal, como dizia um poeta popular "a memória é uma ilha de edição". 10 Em Luanda permaneci uma semana antes de seguir ao leste, com fins de obter as cartas de recomendação ao Governador do Moxico e aos Diretores Provinciais de Cultura do Moxico e da Lunda Sul. Retornaria ainda três vezes durante o campo, seja para pesquisar na biblioteca do MNA e organizar os dados coletados, seja ainda para me recuperar de uma malária, totalizando com isso cerca de dois meses e meio. Luanda fascina quem vem de uma urbanidade como o Rio de Janeiro ou outras urbanidades congêneres, e por si só pode ser vista como outro campo que, entretanto, não será explorado nessa dissertação. A pesquisa se concentrou, sobretudo, em aldeias Tchokwe do interior, na província do Moxico e da Lunda-Sul, fronteiriças com o Congo-Kinshasa e a Zâmbia, em aldeias ao longo do alto rio Kassai e afluentes. Em nove meses de trabalho de campo transitei entre diferentes aldeias, permanecendo, em grande medida, na aldeia Sakanha e ainda em curtas estadias na aldeia Vieira, de um renomado ngombo de umbanda. Optei por não ficar junto aos grandes mianangana (chefes), ao menos como primeira viagem de campo, pois que os mais antigos morreram e os que lhes sucederam são demasiado jovens. Isso não me impediu de por diversas vezes render-lhes visitas e conversar durante longas horas. A opção se baseou no fato de que a aldeia de um muanangana sempre possui dimensões maiores, ainda mais com a política atual do Governo de aglutinar diversas aldeias em uma grande aldeia. Preferi permanecer em aldeias pequenas, onde a aproximação com todas as famílias seria mais fácil, o clima mais tranqüilo e a possibilidade de empreender etnografia mais fértil. Giramente e Vieira – meus principais informantes – falavam português, embora a maioria das pessoas se expresse nas aldeias apenas em Utchokwe. As tantas conversas nos terreiros já me permitiram uma primeira aproximação dessa língua bantu que, não obstante, deverá ser apenas aprofundada no decorrer da pesquisa e das estadias de campo. Preferi seguir as redes sociais que interligam essas diferentes aldeias como estratégia de etnografia. Circular em campo é preciso, já que pessoas, histórias, idéias, valores, circulam incessantemente nesse pós-guerra, entre aldeias, rios e 11 cidades. Cada pessoa circula por sua própria rede de parentesco e de amizade. Esse trânsito não é apenas vivido pelas pessoas, mas o foi pelo antropólogo, e disso advém o esboço dessa etnografia durante o percurso do mestrado. Um primeiro sobrevôo. 12 (Mapa dispersão dos Tchokwe; Wastiau, 2006) 13 (Mapa Angola, fonte: Nações Unidas) 14 De campo, caminhos e chegadas No pequeno centro urbano as casas e armazéns permanecem desbotados pelo tempo. As construções antigas foram ocupadas à saída dos portugueses, quando os Tchokwe se apropriaram dos casarios, prédios, armazéns e ruas, e do Estado que passava a ser domínio político dos povos de Angola. A cidade se tornara indígena, engolida e transformada em sua planta colonial por aldeias que passavam a compô-la e a se lhe sobrepor, com formas e substância, impondo a nova arquitetura social de terreiros sombreados, casas sem muros, sociabilidades à fogueira, e ruas de terra. As aldeias se expandiam assim como as topologias de parentesco, constituindo sobre a antiga dicotomia de enclaves urbanos e yfutchi (domínios políticos matrilineares e segmentares) um contínuo a interligar aldeias rurais e urbanas – aldeias, sobretudo. Fugindo dos quilombos de guerra que se alastravam pelo interior, as famílias chegavam cada vez mais, deixando tudo para trás, vidas, lembranças, lavras, casas, parentes, dor. Traziam com elas as aldeias que passaram a figurar na outrora pequena urbanidade colonial. Parentes e amigos que chegavam fugidos da guerra formavam aldeias dentro de aldeias, conjugando na cidade comum histórias e vidas de diferentes aldeias e territórios (yfutchi) das matas longínquas. O pequeno enclave de ruas asfaltadas se tornava assim cada vez mais restrito e pequeno, à medida que a terra ao seu redor mesclava povos e famílias. As construções às margens logo se tornavam centros continuados por outras margens. Do pequeno centro, logo chego à dita rua, atravessando por tantas outras labirínticas, com suas casas ausentes de muros dispostas frente às cozinhas e mediadas, como sempre, por um terreiro de areia batida sombreado por grande árvore, onde o sol se amansa, mulheres sentadas trançam seus cabelos e conversam, os homens tomam cerveja gelada sentados em seus próprios cantos onde as conversas se alongam. A música ressoa nas rodas marcadas por gênero. Dos terreiros, as famílias se vêem e se falam, as crianças cruzam limites que inexistem, traçando seus próprios caminhos e amizades entre tantas casas e 15 famílias. Diante da dita casa na rua de terra já havia muitas pessoas: homens, mulheres, crianças, alguns mais velhos. Chegaram de certo há algumas horas, o caminhão Kamaz, relicário russo dos tempos de combate à guerra contrarevolucionária, tinha sua caçamba já repleta de mercadorias para a viagem de regresso ao interior, às aldeias (yhunda) do alto Kassai, que as famílias agora seguiriam depois de alguns dias na cidade negociando suas mercadorias, reencontrando parentes, amigos, trazendo lembranças e trocando mojimbos (saudações). Os mais velhos transparecem alguma apropriação do personagem colonial, vestindo calças de linho e blazers. As mulheres portam panos, amarrados da cintura até os pés e outros trançados às costas com os filhos, ou ainda adornando a cabeça. Por sua vez, os jovens e adultos se inspiram em novos personagens que passaram a povoar o mundo a partir das ficções cinematográficas (telenovelas e filmes). Nas praças financeiras, imensas bolsas de valores onde mercadorias são negociadas a céu aberto, as barracas de roupas européias abundam, estilos que reproduzem seus valores à medida que circulam e são apropriados nas aldeias e personagens do leste de Angola. Olhado de todos os cantos, o branco causa espanto, incomum não é adjetivo que baste, talvez inesperado e improvável melhor reflita a situação de espanto geral, comentários ao pé do ouvido e curiosidade que muitos tiveram. "De onde veio esse branco?". De longe, um longe comum, penso hoje ao escrever. É final de tarde quando adentro o terreiro da casa de Nelson no Saurimo. O ruído ensurdecedor do gerador de energia, logo se contém quando Nelson me convida, ainda demasiado espantado e surpreso, para sua casa. Me oferece um Scotch que estava sobre a mesa, os yankees chamariam de caubói, não sei se cabe o termo, desce quente e refrescante. "Sou Antropólogo, vim fazer uma pesquisa entre os Tchokwe, sobre suas expressões, a guerra, as histórias. Soube que o Kamaz avançaria para o Alto Kassai, seguirei para o Cazage, numa aldeia que já conheço, foram as próprias pessoas que conheci há alguns meses por lá que me disseram desse caminhão". A conversa se desenrola um pouco, enquanto suas filhas vêem Xica da Silva na TV. Pergunto-lhe desde quando faz esse trajeto. - "Já nos anos 90". Mesmo durante a guerra? "Sim, seguíamos atrás das colunas 16 armadas do Governo que levavam suprimentos até Luena, por vezes só os caminhões". Trajeto sempre imprevisível, como as matas em suas margens. Seguimos em pouco tempo para fora da casa, seus ajudantes, equipe multiatarefada de mecânicos pau-pra-toda-obra que acompanha todo o percurso da viagem, vêm avisar que tudo já está pronto para a partida. O terreiro cheio a pouco tempo atrás está por completo vazio, contrastando com a caçamba do Kamaz entupida de gente para todos os lados, sobrepostas à carga que lhes serve de assento improvisado. A cabine, normalmente ocupada por alguns dos mecânicos, se torna meu lugar ao longo do trajeto a convite de Nelson. As luzes do pequeno centro urbano de Saurimo ficam logo para trás. Uma dessas luas cheias brancas ilumina fracamente o caminho antes de ser engolida por nuvens num breu intenso. Seguimos apenas 40 minutos até o asfalto findar e de Nelson, cansado e levemente embriagado de Scotch, parar no meio de uma estrada de terra esburacada para descansar. "- É normal", me dizem os mecânicos, "o chefe vai descansar um pouco antes de seguirmos viagem", e logo o vejo repentina e estrategicamente colocando o colchão entre o chão frio de terra vermelha e o motor quente, lugar privilegiado numa noite gélida nesses campos gerais do leste, cerrados de altitude que se prolongam continente adentro. As mulheres e crianças na caçamba se enrolam com panos, os homens já vestiam "casacos" (blazers elegantes), jovens vestem gorros, calças jeans e casacões de neve contra o frio da noite. Passadas algumas horas, no meio da madrugada, Nelson desperta novo em folha. A viagem prossegue devagar na estrada esburacada do interior de Angola. Nelson se alonga em conversas, enquanto fuma seus cigarros, dá uns tragos no Scotch, e varia a música. Depois de longas sessions de Sassa Tchokwe – grupos musicais que nas últimas décadas se apropriaram de conhecimentos mágicos e rituais e os transpuseram das conversas das aldeias para a música –, o bom Reggae relaxa a mente, fazendo lembrar inequivocamente dos rastros de Sir Robert Marley que desde o Zimbabwe e Etiópia se espalharam pelo continenteberço da humanidade. Mas logo a música se desdobra de relampejo em Roberto Carlos, Leandro e Leonardo, Zezé de Camargo e Luciano. "É música brasileira, 17 comprei na praça". A música reflete um pouco do pós-guerra no leste de Angola, onde o amor romântico – por vezes cafajeste –, o ritmo e a paz se tornam gêneros dos mais apreciados. A alvorada logo despontaria no horizonte, mostrando o imenso leste de paisagens de perder de vista – campos abertos de altitude com capim seco e amarelado, entremeados de matas cerradas e de alagados, cortados pelos muitos rios afluentes do grande Kassai cujo curso d'água se dirige desde Angola até o norte, já em floresta tropical do Congo. Com o fim da guerra, as pessoas voltam a circular de forma intensa nas estradas de terra. Os caminhos voltam a ligar aldeias, yfutchi, cidades. No tempo dos quilombos de guerra, os territórios permaneciam fragmentados. Seguir para o alto Kassai não seria possível por quase vinte anos, os que conseguiam fugir da guerra, tinham muitas vezes que seguir a pé, semanas até chegar a Saurimo ou a algum ponto da estrada onde os caminhões se arriscassem a levar cargas e pessoas. Algumas paisagens continuarão mortas, entretanto, ao menos onde o conflito se passou diretamente, as matas altas sendo sinalizadas de vermelho pintado em grossos troncos, para trazer à memória os artefatos que persistem com o tempo. As tantas minas da guerra deixarão algumas matas crescerem e continuarem ainda tempos sem vida, fechadas com suas mortes. Nas margens da estrada vê-se um verdadeiro Museu de Guerra a céu aberto: caminhões pesados tornados ferro retorcido, carcaças separadas muitos metros de suas cabines, tanques virados ao avesso. "A Unita destruiu tudo, tudo, tudo...Eles só destruíram", repete Nelson algumas vezes ao longo do caminho. A guerra foi forte, destruidora, mas ficou para trás, embora não suas histórias. Alguns trechos reavivam lembranças em Nelson, filho de comerciante português e mulher Tchokwe, mulato dizem, que há mais de 10 anos faz esse trajeto entre Saurimo (sede Provincial) e as aldeias do alto Kassai. Mesmo a guerra dos anos 90, o retorno às armas decorrente do fracassado acordo de paz, não o afastou da estrada, seguia nesses tempos em coluna de caminhões sob risco constante de emboscadas. O risco torna-se inerente à economia. A pequena vila urbana de Lukapa, a norte de Saurimo, era importante 18 centro diamantífero no leste de Angola, seja para financiar a guerrilha ou os próprios negociantes. Os armazéns da vila, fundamentais para que os suprimentos chegassem aos garimpos artesanais, encomendavam alimentos de Saurimo. Eram comerciantes malianos e senegalenses, que vieram há tempos do Congo-Kinshasa e outras partes da África Central. Numa ocasião, Nelson seguia com outros caminhões até Lukapa, quando foram surpreendidos pela guerrilha nas matas. Conseguiram escapar ilesos a um ataque de metralhadora que perfuraria partes da carroceria. Os caminhos eram sempre imprevisíveis, haviam de contar com a sorte e fazer do risco lucro. Levavam suprimentos, trazendo consigo cartas, histórias e pessoas que fugiam das zonas de conflito. Ao sul, na direção do alto Kassai, seguiam para comprar peixe seco e mandioca, extremamente escassos em Saurimo durante a guerra. Caminhões que por conta própria conseguiam "furar” determinado caminho antes tido por arriscado, logo se faziam acompanhar de outros que seguiam juntos, antecipando e combinando as datas para que as famílias nas aldeias colhessem a mandioca. No alto Kassai havia quilombo da Unita, o que tornava a viagem e certos caminhos sentença de morte. Em decorrência da guerra, muitos caminhos ficaram assim fechados por muitos anos. A viagem prossegue com as narrativas de guerra. À margem da estrada, já se avistava de longe um tanque tombado de cabeça para baixo, memória de guerra, dessa insana e moderna guerra que com facilidade ímpar destrói o que se encontra pela frente com seus artefatos. O tanque guiando uma coluna do Governo seguia para Luena no final dos anos 90 levando suprimentos, alimentos e armamentos, não esperava deparar-se com uma potente mina terrestre, capaz com sua força de levantar e retorcer muitas centenas de quilos de aço em emboscada silenciosa e invisível. O imponente tanque abatido na estrada e revirado como brinquedo era a clara imagem do que se passara. "A Unita veio com os sulafricanos e chegaram até o Moxico, tomaram tudo, vinham logo até o Saurimo. Mas aí chegaram os cubanos", enuncia Nelson alguns comentários geopolíticos dos tempos de guerra. A viagem ainda seguiria. Antes de chegar à sede municipal do Dala, Nélson se refere à carcaça de um caminhão que destoa imóvel e 19 silenciosa na margem da estrada, já um pouco coberta pelo mato. Fazia parte da "coluna" de caminhões de Nelson que voltava de uma arriscada viagem ao interior nos anos 90, trazendo carga das aldeias. Em determinada altura, um caminhão passara o Kamaz de Nelson e guiava a linha de veículos, quando logo a frente explodiu em uma mina terrestre. Nelson lembra com amargura os berros do motorista em sua dor incontida diante da guerra traiçoeira que o atingira. O caminho seguiria em silêncio, apenas com as músicas e os pensamentos. Bastavam. A guerra em Angola é passado que se deseja cada vez mais enterrado no passado longínquo. Os caminhos novamente se fazem circular de pessoas, valores, idéias, histórias, emoções. Famílias voltando depois de muitos anos afastadas a suas aldeias, muitas vezes alijadas de quaisquer contatos durante a guerra, reencontrando parentes, escutando o que se passara no interior isolado durante décadas. Antigas aldeias localizadas próximas dos conflitos deixaram de existir, destruídas, abandonadas ou reconstruídas pelas famílias em outros lugares. São poucas as aldeias que permaneceram ao longo das estradas, verdadeiras linhas de combate. As colunas armadas seguiam com até uma centena de carros de combate, caminhões com tropa e mantimentos, carros de comando e tanques, deixando um longo rastro de destruição às suas margens. Fugindo das linhas de combate, as famílias seguiam para as matas altas das cabeceiras dos rios, antes despovoadas. Lá reconstruíam suas vidas, deixando campos minados para trás, cuja cartografia está longe de ser desconhecida das famílias que permaneceram no interior durante a guerra. 20 A aldeia e o branco: entrando no jogo Há uma semana vivendo na aldeia Samuconga às margens do alto Kassai, a desconfiança é geral. Ninguém entende de onde surgiu aquele branco, nem o porquê dele estar ali morando. Algumas pessoas se apresentam completamente fechadas ou indiferentes, desconfiados do que o branco quer. Afinal, o que o branco sempre quis e fez todos sabem. Crianças aterrorizadas com as histórias de branco contadas pelos mais velhos logo saem correndo, muitas chorando, ao ver o branco na aldeia. Adultos que cresceram durante a guerra são indiferentes, frios. O muanangana2 me recebera em sua aldeia a pedido do Secretário Municipal de Cultura, sob ordem do Administrador Municipal, mandado pelo Governador, solicitado pelo Ministério da Cultura e pelo Museu Nacional de Antropologia em Luanda. Informaram-lhe que ficaria lá por alguns meses a fazer "pesquisa" sobre a "cultura" Tchokwe. Como cultura é traduzido nas aldeias por "Tchokwe", pouco de lógico e concreto se fazia transparecer na inusitada e inesperada chegada do branco. Havia 30 anos que nenhum branco pisava por lá – se pisasse durante a guerra além de Luena teria a cabeça cortada e exibida por um movimento contrarevolucionário que se revestia ideologicamente de nacionalismo étnico e racismo no leste de Angola. Hospedo-me provisoriamente na casa de Sagegê, única com um quarto livre, a pedido do muanangana. Pessoas de outras aldeias acorrem quando tomam conhecimento, algumas falam português. Quem é esse branco? Veio fazer o quê? Perguntas que logo se tornariam recorrentes. Desconstruir a imagem do branco é o primeiro passo para se fazer pesquisa de campo no leste de Angola, ao menos para mim. Entremos no jogo, então. Sagegê, sempre cortês e sorridente, com seus olhos rubro-negros surpreende-se quando lhe peço fumo. Nega veementemente, desconfia de que por 2 Chefe de um domínio político matrilinear e segmentar. 21 detrás dessa atitude insólita e inesperada está a tentativa de lhe "grampearem", se Bezerra da Silva me permite, já que o branco chegara mediado pelo Estado. Me mostra makanha, não a de seus olhos vermelhos e tranqüilos, mas a "fraca". Peçolhe "forte", ele nega, diz que não tem além daquela. Paciência. Passam-se dois dias solitários em que não me resta nada a fazer senão escrever, ler e pensar. A aldeia durante o dia é domínio das crianças ainda assustadas e dos mais velhos receosos de tantas experiências históricas com e contra os brancos. Os adultos permanecem nas lavras, lugar que só com meses teria chance e convite de conhecer. Numa manhã logo cedo, Sandonje chega à casa de Sagegê: há 20 km de distância sua aldeia já recebera a notícia que havia um branco nas redondezas. Ele se surpreende ao ver uma bola de futebol nova, seus olhos brilham de fascínio, exige que eu vá ter com eles na aldeia Satchihela, refundada e renomeada de Pensamento durante a guerra. Uma peça de pensamento na verdade, que por tempos me acompanharia. Acordo apalavrado, seguiria dia seguinte até a aldeia. Sandonje veio ao meu encontro trazendo outra bicicleta, conforme combinado. Antes de seguir, Sagegê me diz em tom sereno, "- Fale com Sandonje, ele tem o que você quer". O caminho de areia branca é longo, cruzando mata baixa de cerrado. Antes de entrarmos na aldeia Pensamento, um grande campo gramado se mostra imponente. Campo marcado numa lateral pelo capim alto e amarelo de luchiho (o tempo seco), na lateral oposta emoldurado por fileiras de altas bananeiras, enquanto o fundo atrás do gol era sombreado por enormes mangueiras. Avançamos de bicicleta. No terreiro de Sandonje na aldeia, são muitas dezenas de pessoas que vêm me saudar, surpresos e já sabidos da visita. A aldeia se mostrava mais receptiva. Antes do jogo, Sandonje me chama para o cercado (tchipaka) da pequena lavra anexa de sua casa onde cultiva banana, cana e pimenta. Lá no meio, logo vejo deitado sobre a terra um pé de fumo recém-colhido. "- Só tem cabeça, nenhuma semente", me diz Sandonje empolgado e se gabando com o começo da safra. O pequeno pé de cabeças verde-rosas e cristalizadas incensava o ar. Sandonje saca o papel e logo aperta um cone. Me fala, "uma passada antes do 22 jogo", antes de me passar o baseado aceso na mão. Digo, "no dois, a gente fala, no dois". Cada qual com seus códigos, em comum só a makanha. Seguimos então ao campo para jogar bola, as pessoas já aguardavam. De fato, o campo começava aos poucos a se abrir, a perspectiva mudara. O grande campo logo me suscita à mente, de forma inusitada e intensa, a capa de um LP conhecido, "um campo grande, um campo grande", que já estava cheio, havia muita gente, de outras aldeias também. Na lateral estavam os que entrariam somente no decorrer do jogo; no centro alinhavam-se os chamados "selecionados". A divisão dos times é simples, faz-se uma fila ao centro do campo com os "selecionados", cada jogador pula para o time da esquerda ou o da direita, alternadamente, até a fila cessar. Times feitos, bola rolando. Sandonje se posiciona como líbero que gosta de sair driblando meio time, de "fintar", e se enlouquece ao tomar do branco uma bola debaixo das pernas. "Afinal, o branco joga bola", diz ele correndo e em sátira corrosiva depois do drible, insano para recuperar a bola. "Rasch, rasch", grita ele constantemente durante o jogo com meio time. A bola tinha que rolar no chão (rasch) e não ser bicada para o alto. Na lateral, surge uma figura inusitada que narrava a partida como um radialista free style, alternando português e Utchokwe. Narrava as jogadas, os jogadores, os dribles e toques, satirizando por vezes e fazendos gargalhar as pessoas sentadas na lateral. As narrações são uma tônica das partidas de futebol nas aldeias, sempre aparece alguém a cumprir esse papel, apropriando-se os Tchokwe dos rádios portugueses que outrora narravam os jogos clássicos dos brancos. O jogo é disputado, Sandonje é um driblador nato, não chega a ser o ponta de lança africano entoado nas letras da obra África Brasil de Jorge Ben Jor, embora seja um líbero de grandes avanços e dribles, ao contrário do branco que prefere distribuir o jogo de dons e contra-dons, avançando em linha de passe, seja para botar alguém na cara do gol ou abrir para dar um chute forte. Logo após a partida, Sandonje me oferece um almoço em sua casa, já é tarde, 16:30, e ainda tenho que regressar de bicicleta para a aldeia, não sem antes ser surpreendido por Sandonje, que me presenteia com com um pequeno embrulho de makanha, um dom do Pensamento. 23 É quase noite quando chego à aldeia. Sagegê estava na cozinha fechada, com a fogueira a lumiar bem baixo. Sigo cansado para dentro da casa. No meu quarto deito para descansar um bocado da partida e da bicicleta. Após algum tempo deitado e em silêncio, reparo o vermelho intenso que corta o breu da noite e a fumaça que adentra por todas as frestas da porta. Levanto num pulo e saio assustado da casa, a cozinha defronte arde em chamas. Logo chegam as primeiras pessoas e o terreiro se enche de gente. Sagegê não se faz presente, o que me preocupa, já que ele aparentava estar dentro da cozinha como de costume. Ninguém sabia de Sagegê. As pessoas nada podem fazer diante da cozinha que se consome rapidamente em chamas. Sagegê chega de repente. "- Sagegê! que bom te ver, pensei que você estivesse dentro da cozinha, que susto, o que aconteceu?; Também não sei, fui comprar pilha pra lanterna numa casa lá no fundo quando vi as chamas e voltei correndo. Como pegou fogo?, - Não sei, estava dentro do quarto quando o lado de fora começou a ficar vermelho como brasa e a fumaça entrando por todos os lados da porta". Há poucos dias em campo compreendia poucas palavras em Utchokwe, mas o suficiente para ter uma primeira e vaga idéia do que ocorrera. Sagegê se desespera e começa a discutir com todos os presentes, pois muitos de seus pertences e alimentos estavam dentro da cozinha. Apenas decodifico wanga (magia/feitiço) e nganga (feiticeiro) durante as discussões que se alongam em tom áspero. Suas acusações recaíam sobre o muanangana, como me explicaria depois em português, "- Foi o muanangana, foi feitiço dele, aquele velho é um nganga”. Quando as labaredas baixam, os ânimos se acirram: diante das acusações as pessoas vão saindo aos poucos, o muanangana não estava presente, ficara vendo o fogo de seu terreiro distante algumas dezenas de metros da casa de Sagegê. Difícil dormir num dia desses, a noite se alonga em claro. Logo cedo, antes do alvorecer, o muanangana convocava todos os homens para uma mulonga, conversa entre os homens adultos onde tudo teria que ser esclarecido. As acusações de Sagegê de que se tratava de feitiço são negadas e contrapostas pelo muanangana, que o acusa de ter deixado o fogo aceso. Não foi isso, de fato, pois que toda a noite e em todas as cozinhas de todas as famílias as 24 fogueiras são deixadas acesas mesmo de noite quando se dorme, e as labaredas não conseguem chegar ao teto alto a mais de três metros de altura. "- Ele que vá ao ngombo3 para provar o contrário", diz o muanangana, depois de abrir a conversa a quem quisesse se pronunciar, embora a última palavra da mulonga depois de todos falarem seja sua própria prerrogativa. Digo em português, logo traduzido em Utchokwe, que escutara de dentro do quarto um barulho estranho, um barulho que à primeira vista me fazia lembrar um tambor de latão se movimentando sobre o chão. O barulho fora muito claro e eu havia pensado nele durante toda a noite. Minha fala, porém, não apenas foi desconsiderada pelo muanangana como se tornou motivo de chacota, "- De onde surgiria um tambor na aldeia?" Seu veredito já estava bem encaminhado e pensado à altura, dado o desaforo da acusação da noite anterior. A culpa fora de Sagegê que se ausentara, deixando a fogueira acesa na cozinha. Ele próprio que devia ser responsabilizado por todos os seus prejuízos, ponto. Sagegê insistiria ainda por muito tempo que fora feitiço, "esse velho é nganga, foi dos últimos que fez mungonge, ele possui tchixixi4". A casa de Sagegê estava há tempos sob disputa. Seu irmão havia se casado com a sobrinha do muanangana e se mudado para Saurimo. Os laços de parentesco, inclusive os firmados entre famílias por meio de alianças matrimoniais, se constituem como vetor por meio do qual os feitiços podem ter notável e reconhecida eficácia. Cada muanangana exerce wanga contra quaisquer famílias de seu domínio político, visto que estas se reproduzem na terra de seus malemba (antepassados). A casa que Sagegê habitava, fora deixada de presente por seu irmão, embora o 3 Mestre de umbanda que realiza divinações. 4 Os yxixi (sg. tchixixi) são pequenas figuras antropomorfas e de madeira, cujo conhecimento mágico era transmitido no mungonge, iniciação masculina à magia, posterior a mukanda e de caráter não obrigatório, proibida segundo os informantes nos anos 50 pelo Governo Colonial a pedido dos missionários. Todo grande muanangana possui tchixixi, cujos conhecimentos ainda continuam a ser transmitidos nas genealogias e na umbanda, com os quais consegue "olhar além", contra-atacando feitiços para proteger-se em seu próprio domínio político-genealógico e mesmo efetuando feitiço contra outras famílias, quando julgar necessário. 25 muanangana reivindicasse que fosse de sua sobrinha e que, portanto, seria sua de direito. A questão se alongava há algum tempo e Sagegê já concordara em pagar o necessário para encerrar o assunto, mas ainda não efetivara a quitação da dívida. "Vários já foram os que fugiram daqui por causa de feitiços feitos por esse muanangana. Essa aldeia era grande antigamente", me diz ainda inconformado no dia seguinte. Diante da cozinha queimada, Sagegê volta, no entanto, a sorrir largo ao me oferecer um pouco da galinha que, presa na cozinha durante o fogo, virara churrasco levemente tostado, sendo resgatada já assada e pronta no meio às cinzas. Sentados em seu terreiro olhamos a cozinha que outrora fora seu recinto, onde permanecia horas a fumar e pensar, a cozinhar e receber amigos. Sagegê se lamenta antes de se levantar. "- Perdi tudo, comida, panela, dinheiro, sementes, documentos, galinhas e duas cabaças cheias de fumo. Tudo queimou". "Afinal, o cabra tinha mesmo o tal fumo, penso eu...". Não apenas. Sagegê estava regado de fumo, pois poucas semanas antes estivera na outra margem do Kassai, reconhecida pela qualidade insuperável de sua makanha, nome Tchokwe e de outros povos do leste para designar fumo, seja fraco seja forte, a diferenciação sendo feita mais por reconhecimento tácito entre parceiros do que de forma expressa e direta. Levara na ocasião uma galinha para saudar seu cunhado. O dom espera-se que seja retribuído nas relações de parentesco. Ao visitar uma irmã casada, o irmão deve levar um presente sob a forma de um produto agrícola ou um animal, permanecendo alguns dias na aldeia até o dom ser reciprocado pelo cunhado. A estratégia de troca de Sagegê requer que se espere o tempo certo, para que as plantas estejam grandes e possam ser cortadas e secas. Das aldeias na outra margem, ele voltaria com não menos do que três quilos de makanha fresca, visto que luchiho, o tempo seco, chegara, quando a makanha fica pronta e cristalizada, apenas com as tão afamadas cabeças (mitwê wa makanha). Trazia consigo dois pés que seu cunhado lhe plantara e preparara especialmente nos meses anteriores já aguardando sua visita habitual, outro pé sendo presenteado por Giramente quando Sagegê passava por sua aldeia ao longo do caminho. Sagegê, Sandonje e Giramente foram iniciados juntos quando jovens na mukanda wa Tchokwe e a amizade firmada no ritual dos homens é assim como as relações de parentesco um 26 laço forte que atravessa o tempo e a distância. "- Perdi tudo com o fogo", se lamenta Sagegê, antes de se levantar e seguir para a mata buscar lenha. No regresso traz algumas frescas mitwe wa makanha, para meu total espanto. Essas eram da "reserva", me explica Sagegê, das cabaças cheias que ficaram, como sempre ficam desde os antigos, escondidas e enterradas em algum esconderijo na mata. Estratégia de longa data contra ladrões que se achem espertos demais e se aproveitem da ausência do dono da casa durante o dia de trabalho para invadi-la na calada. "Esses malanjinhos (pequenos ratos) gostam de fumar, mas não gostam de trabalhar a própria lavra. Por isso escondo na mata". O branco entrava aos poucos no jogo, adentrava o campo, deixando de ser o branco que eles imaginavam. Fumando na aldeia, a imagem que no princípio me fora atribuída por muitos, senão todos, ainda receosos do histórico poder maléfico associado ao branco português durante o período colonial, passava progressivamente a ser desconstruída, pois que ninguém tinha ainda visto um branco fumar mutwe wa makanha como e com os Tchokwe. Muitas das manhãs seguintes seriam ao pé da fogueira acesa logo ao alvorecer para espantar o frio e aquecer as primeiras batatas-doces nas brasas, enquanto fumava-se makanha e conversava-se até que o orvalho da manhã secasse e a maioria dos homens seguisse com as famílias às lavras. As manhãs passavam a ser de prosa, seja com Sagegê ou com outros que aos poucos vinham me saudar. O "campo" se iniciara. 27 Parte 1: Tchilombo Pretende-se nessa parte explorar sob certa perspectiva uma genealogia política dos Tchokwe, expondo em linhas gerais como a política foi se constituindo e sendo exercida ao longo do tempo sob o conceito de tchilombo. Parto da tese clássica de Miller (1978) sobre os quilombos5 no planalto central angolano do século XVII, não para buscar a origem do tchilombo, sim para explorar por meio de dados coletados entre os Tchokwe do alto Kassai no presente as muitas versões e transformações desse conceito ao longo do processo histórico. Apresentando narrativas de tchilombo e suas derivações em diferentes contextos, procuro definir alicerces diacrônicos que permitam relativizar a guerra moderna. Relativizar implica aqui o pressuposto de que inexiste uma visão total da guerra que sempre é sentida e pensada de forma parcial. São essas tantas parcialidades que se fazem presentes nas narrativas ainda enunciadas no cotidiano das aldeias, quando muitos Tchokwe lembram dos ylombo (pl. de tchilombo) recentes do MPLÁ e da Unita, mas não somente. Debruçando-se sobre tantas versões de se fazer política o presente capítulo pretende desconstruir a perspectiva sincrônica sobre a guerra recente a partir do modo diacrônico dos próprios Tchokwe conceberem o tchilombo como plano conceitual no qual a política sempre se efetuou. As diferentes versões de tchilombo não expressam simplesmente modos de se fazer política, mediante acampamentos de fuga, resistência e confrontos, senão iluminam alguma antropologia propriamente Tchokwe sobre a terra e o trabalho que ameaçada ao longo do tempo seria reafirmada pela política de tchilombo. 5 Os Tchokwe não utilizam o prefixo e o fonema ki-, presente entre os povos do planalto central de Angola, ao invés do que fazem uso do fonema tchi- (como o -ci em italiano). 28 1.1) Os quilombos do planalto central No começo havia apenas Yanvwa Ngombo ou máma nyaweji, a grande serpente que criou todas as coisas do mundo, assim como o fogo e a água. Foi ela que fez todo o mundo, criou os braços e as pernas, é ela que vê tudo e não é vista por ninguém. Yanwa Ngombo se casou com Nzagi, o trovão. Este foi ao céu onde permanece com seus filhos: Tangwa (sol), o fogo de Nzagi que caminha do leste ao oeste; Kakweji (lua) que todos os dias perfaz o mesmo trajeto, nascendo e morrendo; e também Tongonoshi (estrelas). Nzagi comanda a mvula (chuva), pois se trata de sua urina, que faz crescer as árvores e sementes. Yanvwa Ngombo permanece sobre a terra, ela é a proprietária de todas as coisas: nascentes, rios, todas as águas e coisas no interior da terra (kalunga6). Os primeiros homens foram Namuthu e Samuthu7, nascidos de Yanvwa Ngombo, eles eram irmão e irmã e se casaram. Tiveram dois filhos chamados Kondi ya Matete e Yala que vieram a se casar. Deste casamento nasceram Mwako e Kakweji que também se casaram e tiveram dois filhos: Yala Mwako e Kondi que, por sua vez, também se casaram. Uma criança deste casamento teve um filho chamado Yala Mwako8, assim como seu avô. Yala Mwako teve então três 6 Kalunga é descrito não apenas como o mundo subterrâneo, mas como o mundo dos mortos e o primeiro homem (o prefixo ka- podendo se posicionar ora como singularização, ora como algo muito grande, -lunga significa homem). A origem de kalunga é descrita na mitologia como anterior a tudo, algo tão distante que não pode ser mensurado. Alguns mitos de kalunga apresentam outra versão: Kalunga tendo criado o sol e a lua e o tempo, atribui ao homem a vida breve e aos astros suas periodicidades. Muanangana Kanhengue (comunicação pessoal) ofereceu-me uma versão alternativa remetendo a origem genealógica dos Tchokwe do Moxico a Tumba-Kalunga, Tchitu tcha Kalunga e Tembo-Kalunga que teriam vindo do leste. 7 Muthu significa pessoa, ser humano (Barbosa, 1989). Os prefixo Sa- e Na- indicam respectivamente "pai e mãe dos humanos". 8 Uma versão desse mito fornecida por muanangana Sayassu (comunicação pessoal) afirma que se trata aqui de Lweji ya Mwako que teria como filhos Kondi, Nassóli, Nakabundu, Muambumba, Nama e Salukunda. 29 crianças chamadas Tchinguri, Tchinyama e Lweji ya Kondi. Yala Mwako era o chefe de todos os miata Tubungu9, visto que Yala Mwako era quem possuía a precedência da posse do lukano10 máximo, bracelete da genealogia política lunda. Tchinguri e Tchinyama eram considerados como pessoas sem caráter, quer devido às orgias que praticavam ou ao fato de administrarem a justiça de maneira arbitrária, ordenando mortes injustas. Yala Mwako já bastante idoso não podia deter os abusos de seus dois filhos. Embora não estivessem de acordo com os atos de Tchinguri e Tchinyama, os Tubungu os respeitavam por tratar-se dos possíves sucessores da genealogia política de Yala Mwako, também detentores de lukano, e porque ambos possuíam muitos partidários. Um dia Yala Mwako cai doente e seus dois filhos, entrando em sua casa enquanto o pai bebia água de uma cabaça, lhe perguntam se ele estava bebendo vinho de palma. Como seu pai não lhes responde, Tchinguri e Tchinyama o espancam até deixá-lo quase morto. Lweji ya Kondi cuida de seu pai, que antes de sua morte, decorrente das agressões sofridas pelos dois filhos, convoca todos os Tubungu e lhes comunica sua vontade: Lweji deve lhe suceder. Os Tubungu aceitam essa idéia, pois consideram Lweji amiga de todos, uma filha sagaz e com capacidades de governar. A despeito das oposições de Tchinguri e Tchinyama e também de outros Tubungu que recusam que uma mulher assuma o poder no lugar de um dos irmãos, Lweji é consagrada no poder e recebe a posse ritual do lukano. Após a morte do velho Yala Mwako e a instalação de Lweji no poder, os Tubungu tomam medidas administrativas e, sobretudo, de segurança, não apenas para proteger a vida de Lweji contra seus inimigos, notadamente os dois irmãos e seus partidários, mas também com fins de assegurar a vida social do povo, pois Neste caso, Kondi como o primogênito é quem continua a matrilinhegam tendo Lueji ya Kondi, Tchinguri e Tchinyama como filhos 9 Chefes de domínios político-territoriais matrilineares e segmentares. 10 O lukano era feito de osso do tendão de uma vítima humana, sacrificada quando da consagração do novo chefe supremo dos Tubungu. Os Lunda realizavam sacrifício humano quando da morte de algum muata tubungu e da consagração de seu sobrinho matrilinear, produzindo um novo lukano e enterrando a vítima junto ao muata. Tais práticas seriam prosseguidas pelos Tchokwe até a colonização. 30 Lweji ainda era nova e inexperiente. Com as medidas tomadas, a vida dos Tubungu se desenrola em normalidade, apenas conturbada de tempos em tempos por desordens causadas por Tchinguri e Tchinyama que jamais aceitaram o afastamento do poder. Lweji, porém, não tinha marido e os Tubungu defendiam que ela devia se casar para que sua linhagem política tivesse descendentes. Um dia chega ao território Tubungu um grupo desconhecido de caçadores. Traziam arcos e flechas, além de grandes machados, armas até então desconhecidas pelo povo Lunda. À sua chegada são interpelados quanto ao que faziam. Um dos caçadores de pronto responde que era Tchipinda Ilunga, caçador que possuía sangue nobre, e que viera de longe atrás dos animais de caça. Já ao pôr do sol e avisada da presença do grande caçador, Lweji manda-lhe informar que será recebido no dia seguinte. Tchipinda Ilunga escolhe então um lugar sob uma árvore, onde passa a noite. Ele faz uma fogueira, guardando próximo de si suas magias de caça (ytumbu). Dorme com a cabeça apoiada em uma termiteira e com um pequeno machado à mão, os pés posicionados em direção ao rio11. Logo cedo, Tchipinda Ilunga é recebido por Lweji na aldeia. Reconhecendo os atributos do grande caçador estrangeiro, Lweji o convida a permanecer entre os Tubungu, pois em seu território havia abundância de caça e Tchipinda, sendo um grande mestre de arco e flecha e possuindo forte magia poderia ensinar as novas técnicas a seu povo. Tchipinda aceita o convite. Passado um tempo e tendo consultado o ngombo, Lweji se convence que 11 Tchipinda é descrito na mitologia ora como trazendo consigo armas de caça até então desconhecidas entre os Lunda, ora como personagem dotado de instrumentos mágicos como o tchimbuya (machado cerimonial), que se torna posteriormente um dos atributos de domínio político. Tchipinda dorme com os pés virados para o rio, a despeito da presença massiva de grandes crocodilos nos rios dos cerrados centro-africanos, pois está protegido com objetos mágicos (ytumbo). A cabeça apoiada sobre uma pequena termiteira (tchifika) pode ser lida à luz dos relatos de Turner (1962) entre os Lunda-Ndembu, povo que afirma ter migrado do território Lunda trazendo consigo os cultos de caça, com a magia e as armas ensinadas por Tchipinda. Entre os LundaNdembu, quando um grande caçador (chamado de Tchipinda ou Tchiyanga) morre, seu corpo é queimado, depois enterrado em posição sentada, permanecendo a cabeça para fora, sobre a superfície, apoiada em uma pequena mfika (em Tchokwe tchifika), para que permaneça na floresta, sua "casa" mais do que a própria aldeia, a observar a caça, como leões. 31 fora seu pai quem enviara esse grande caçador a sua aldeia. Apaixonada por Tchipinda, Lweji comunica aos Tubungu o desejo de casar-se. A maior parte dos conselheiros concorda, visto que Tchipinda era tido por muitos como homem útil devido à magia e à técnica de caça que trouxera aos Lunda. Outros, como Tchinyama, Tchinguri e seus partidários, fazem oposição ao casamento, visto se tratar de um estrangeiro que não tinha direito ao domínio político. Por fim, Lweji se casa com Tchipinda, que se torna então o chefe dos Tubungu12. Diante do ocorrido, Tchinyama e Tchinguri conduzem outros Tubungu a se revoltarem contra a usurpação do poder por um estrangeiro, mas não prosperam. Eles então decidem partir da terra dos Lunda, levando consigo magia e técnicas, inclusive a magia de caça trazida e ensinada por Tchipinda. Tchinguri seguirá em direção ao oeste em uma longa marcha que o leva aos Mbundu e Imbangala do planalto central, enquanto Tchinyama parte em direção ao sul, logo se tornando o grande chefe dos Luvale. Cada qual se faz acompanhar de diversos miata. É na longa marcha ao oeste empreendida por Tchinguri que alguns miata13 se tornam os grandes Mianangana (chefes) Tchokwe cujas genealogias políticas ainda se fazem em grande medida presentes (Lima, 1971). Passando pelo alto Kassai, ocorre uma transformação estrutural importante que passava a permitir ao grupo de Tchinguri e dos miata contornar a rígida estrutura social matrilinear, inserindo novas pessoas e famílias à medida em que transpunham territórios e aldeias. Uma narrativa mitológica explica tais transformações sociológicas, da perspectiva dos Tchokwe do alto Kassai: 12 Há diferentes versões para este trecho, entre as quais o fato de Lweji não poder deter o lukano durante os ciclos menstruais, o que causaria sério risco ao povo. Temendo que o lukano seja tomado por um de seus irmãos, ela o concede a Tchipinda. Outra versão afirma que Tchipinda se apropria ele próprio do lukano (Lima, 1971). 13 As versões destoam quanto aos miata Tubungu que acompanham Tchiyanga e Tchinguri, antes deles se separarem e seguirem direções próprias na localidade de Muriege, extremo leste de Angola. Lima (1971), a quem deve-se a recolha da versão, informa tratar-se de Ndumba wa Tembwê, Mwakandala, Mwatshudi, Mwatshamba, Mwakawewê, Nandonge, Muzumbo wa Tembwê, Mwamoxico dentre outros. Miller (1978) oferece outra lista dos miata: Katende, Saluseke, Kandala, Kanyka ka Tembo, Tchissengue, Ndumba, Mbumba, Kapenda, Kasanje e Kaita. 32 Uma das mulheres no grupo de Tchinguri estava prestes a dar à luz quando eles chegaram à margem do rio Kassai. Isto irritou Kanyka ka Tembo, um companheiro de Tchinguri que tinha proibido qualquer contato sexual para evitar atrasos causados por nascimentos e pela presença de crianças pequenas. O nascimento impunha dificuldades ao deslocamento do grupo que nessa altura passava fome e precisava manter-se em movimento para adquirir alimentos em novos territórios. Mesmo as técnicas e a magia de caça de Tchinguri mostravam-se ineficazes. O grupo é forçado a adiar a travessia do rio Kassai até a mulher dar luz. No entanto, ambos morrem, a mãe e a criança. Kanyka ka Tembo, o tio da mulher falecida, censura violentamente o marido quando soube das mortes, batendo-lhe severamente por ter violado a sua regra contra o contato sexual com as mulheres ao longo da viagem desde os Lunda. Por fim, ordenou ao homem que enterrasse a esposa e o bebê, o que seria feito próximo à margem do rio. Ali, o marido avistou um grande bando de pássaros que voou do topo de uma árvore, conseguindo matar um dos pássaros, logo em seguida retirando-lhe as vísceras e encontrando em sua goela sementes de massango. A estreiteza do Kassai naquele ponto permitia ao grupo transpor o grande rio em apenas um salto. Mas cada vez que alguém tentava saltar o rio, as águas subiam abruptamente e engoliam qualquer um que tentasse atravessar. A magia de Tchinguri mostrava-se ineficaz para transpor o rio. Por fim, um muata do grupo, chamado Ndonje, constrói uma ponte em madeira de muiombo, o que permite a todos atravessar o rio Kassai e procurar a aldeia próxima que continha a plantação de massango. O grupo avançaria posteriormente para oeste, levando consigo famílias e pessoas da aldeia que os acolhera. Kanyka ka Tembo não seguiria caminho, optando por se estabelecer no alto Kassai (Miller, 1978). A contínua negação de Kanyka ka Tembo quanto aos princípios da matrilinhagem se expressara, clarividente, na proibição ao nascimento de crianças. Tal posição se desdobra em um momento de ruptura, quando o princípio de descendência se quebra e passa a ser negado no interior das relações sociais: Kanyka, recusa ele próprio a genealogia como princípio social, ao furtar-se à obrigação de tio materno em realizar os procedimentos funerários, ordenando que o marido fizesse sozinho o enterro da criança e da mulher. No entanto, uma contradição se opera e se desdobra em dois acontecimentos sucessivos. Entre os Lunda como entre os Tchokwe, os malefícios são atribuídos à insatisfação e à predação dos antepassados em relação aos vivos, cabendo ao ritual restabelecer as relações positivas entre vivos e mortos. A quebra de uma obrigação vinculada à 33 descendência matrilinear se desdobra na constatação de que havia uma aldeia próxima que logo resolveria a fome que se abatia sobre todos devido à escassez de caça. Isso conduz o grupo de Tchinguri a atravessar o rio Kassai que nesse trecho seria estreito o suficiente para se poder transpô-lo em um simples pulo. A contradição se reverbera quando o rio se torna prontamente intransponível. A construção da ponte de muiombo indica a mediação ritual, pois o muiombo entre os Lunda, os Tchokwe e os Mbundu é uma árvore plantada ritualmente logo da constituição de uma nova aldeia. No muiombo, os antepassados matrilineares se incorporam. Restabelecendo as relações genealógicas entre vivos e mortos, o muiombo permite que as águas baixem e todos atravessem o rio. Após a estadia na aldeia, contudo, novas famílias passam a seguir com Tchinguri. A negação da genealogia ocorrera, de fato, deixando de ser a filiação matrilinear o princípio constituivo e exclusivo de pertencimento ao grupo de Tchinguri. Nas aldeias por onde passavam, Tchinguri realizava sacrifícios humanos aos antepassados, reforçando a magia inerente a sua genealogia política. Os relatos de chefes Tchokwe ou Imbangala são ainda claros ao recordarem como Tchinguri se levantava apunhalando com sua faca mágica as costas de duas pessoas que permaneciam agachadas próximas de si, posição ainda hoje corrente e esperada de saudação e reconhecimento quando se trata de dignatário cuja posição política ou mágica se faz evidente. Tais práticas sacrificiais de Tchinguri deixavam o grupo em constante situação de hostilidade, na medida em que requeria vítimas humanas nas aldeias por onde passavam, deixando um rastro de destruição e apropriando-se de alimentos e pessoas. Os Pende, que atualmente vivem no sul do Congo, a norte dos Lunda, habitavam outrora as terras a oeste e ainda hoje relatam as guerras que os levaram ao norte, sendo forçados a migrarem por Tchinguri e progressivamente pelos chefes Tchokwe que se instalavam em seu antigo território (Miller, 1978). Com a centralização do poder em Tchinguri, os miata perdem progressivamente sua força política frente a um grupo que, ao abrir uma brecha no princípio de descendência, incorporava novos grupos de parentesco ao longo da marcha. A recusa de Kanyka ka Tembo em prosseguir com Tchinguri reafirmando 34 a genealogia como princípio das relações sociais, antecipara um movimento que levaria ainda outros miata a abandonarem o grupo de Tchinguri ao longo do trajeto que, passando pelo Kassai, atravessaria diversos rios dos cerrados centroafricanos até o planalto central de Angola. Em muitos desses rios, os miata se estabeleceram como mianangana Tchokwe, constituindo seus próprios domínios políticos que até fins do século XIX manter-se-iam atrelados à genealogia política Lunda. Negando Tchinguri, os mianangana passavam a incorporar e reconhecer Tchipinda Ilunga em suas genealogias políticas, cujas estatuetas tornar-se-iam um objeto ritual tchokwe (Figura 1). Na longa marcha do grupo ocorrera, entretanto, uma transformação cosmológica bem além da quebra da descendência como princípio social. A predação incontida de vítimas humanas concedia a Tchinguri uma magia até então desconhecida. Entre os grandes miata, sejam os Lunda ou os que vieram a se estabelecer como mianangana Tchokwe e reproduziam a cosmologia Lunda, o sacrifício humano se dava em ocasiões rituais e direcionados aos antepassados. Com Tchinguri os sacrifícios se tornavam recorrentes. O grupo mantinha sua estratégia nômade, permanecendo em um território até esgotar os estoques de alimentos e grande caça. Os sacrifícios humanos de Tchinguri exigiam que o grupo entrasse recorrentemente em guerra com povos que se mostrassem hostis a tais práticas. Isto os conduzia à migração progressiva até o planalto central de Angola – algumas centenas de kilômetros distante do domínio dos Lunda de onde partiram inicialmente. O planalto desde muito fora domínio dos Mbundu, cuja dispersão territorial e organização política segmentar levaram Tchinguri a se deparar com a guerra crescente e organizada contra seu grupo e suas práticas sacrificiais. Os Mbundu detinham técnicas de fundição de ferro até então desconhecidas pelos Tchokwe e pelos Lunda14, o que lhes conferia uma ampla vantagem guerreira. 14 Ainda entre os Tchokwe do alto kassai, a origem da fundição de ferro remete à Ngola Tchiluanji que há alguns séculos teria migrado do planalto central até o leste. 35 (Figura 1, Tchipinda Ilunga; Wastiau, 2006) 36 Segundo as narrativas, o enfraquecimento da matrilinearidade e a centralização política e mágica operada por Tchinguri mediante práticas sacrificiais se desdobram em uma profunda ruptura cosmológica, na medida em que Tchinguri e seu grupo passam a adotar práticas antropofágicas em seus acampamentos guerreiros, que os povos do planalto central viriam a denominar "quilombos". O grupo passava a encontrar na guerra e na antropofagia ritual os princípios ontológicos de sua reprodução social, o que o diferenciava dos Mbundu e demais povos contra os quais os quilombos de Tchinguri lutavam no planalto central. Os fundamentos dos quilombos que passavam a adotar a endoantropofagia remetiam às yjila – práticas promulgadas por Temba Ndumba, filha do muata Ndonje que acompanhara Tchinguri desde a partida do domínio político dos Lunda. As yjila ainda eram profundamente lembradas e enunciadas pelos Mbundu durante a pesquisa de campo de Miller (1978): "Temba Ndumba proclamou as suas novas leis durante as cerimônias mais terríveis de que os Mbundu tinham memória. Primeiro, mandou buscar a sua própria filha ainda bebê, pegou na criança e lançou-a num grande almofariz, usado normalmente para reduzir os cereais à farinha. Depois, Temba Ndumba agarrou num pilão (...) e reduziu o bebê a uma massa informe de carne e sangue. Adicionou aos restos humanos certas raízes, ervas e pôs a ferver toda a mistura, para obter um unguento a que chamou maji a samba. Untando com o maji a samba o seu próprio corpo e o dos seus mais próximos apaniguados, ela apelou ao seu povo para uma nova campanha de terror e destruição. Após ter devastado todas as terras ao seu alcance, ordenou aos seguidores que pegassem nos seus próprios filhos, os cortassem em pedaços, e comessem o que daí restava (Miller, 1978; p.161) ". Todos os guerreiros do quilombo passavam a deter forte magia produzida ritualmente pelo maji a samba. Os guerreiros se tornavam assim sobrehumanos, pois ritualmente ascendiam à perspectiva dos antepassados, detendo seus atributos exclusivos: a predação e a antropofagia ao longo da própria descendência 37 (endoantropofagia). As yjila extinguiam as relações entre mulher e filho – o fundamento das genealogias matrilinhares preeminente entre os Lunda, os Tchokwe e os Mbundu. Assim, o pertencimento aos quilombos de Tchinguri passava a se dar não mais por nascimento, mas por iniciação15. Os quilombos aumentavam seu contingente de guerreiros ao capturar cativos em aldeias Mbundu, incorporando mulheres, crianças e jovens ao grupo. Os homens ao crescerem eram iniciados ao ritual maji a samba. A transformação cosmológica operada por maji a samba desdobrara-se, não apenas se restringindo ao ritual endoantropofágico de iniciação ao quilombo, mas passando a conjugar rituais de exoantropofagia mediante os quais os guerreiros do quilombo produziam sua condição sobrehumana tanto quanto sua diferença coletiva frente a povos vizinhos, matando e sacrificando inimigos capturados que já adultos e circunscisados em seus povos de origem não podiam ser iniciados e incorporados ao quilombo. Quando capturados vivos, permaneciam como cativos a serem mortos na comensalidade antropofágica16 anterior à guerra. Miller (1978) afirma que os quilombos de Tchinguri enfrentavam forte resistência e oposição guerreira dos povos Mbundu que detinham o monopólio da produção de armas de ferro. Os quilombos permaneciam assim em constante instabilidade frente aos confrontos com os Mbundu e aos sacrifícios exigidos por Tchinguri que na ausência de cativos inimigos capturados em guerra exercia sua prerrogativa política praticando a endoantropofagia com membros do quilombo, mantendo com isso sua diferença política quanto à predação ritual. As dificuldades enfrentadas frente à guerra inimiga e a onipresença da predação de Tchinguri conduzem os miata que haviam migrado desde os Lunda e permanecido até então junto a Tchinguri a planejarem sua morte. 15 Muanangana Kanhengue (2010) do Moxico enuncia parte sintetizada dessa narrativa afirmando que o grupo de Tchinguri faria contato em sua expansão com povos Mbundu do alto Kwanza. Do encontro, surgiriam os quilombos, cujo pertencimento não se dava por filiação, senão por nascimento. 16 Cavazzi (1685) relata ainda que na ausência de crianças nascidas no quilombo para o ritual maji a samba, a iniciação de novos guerreiros podia ser realizada no interior do quilombo mediante a morte sacrificial, fabricação de ungento e antropofagia ritual e comensal de guerreiros inimigos tornados cativos de guerra. 38 A pessoa de Tchinguri era, não obstante, dotada de forte magia e sua genealogia política ainda se fazia respeitar. Com a transformação cosmológica, Tchinguri assumia em vida a posição dos antepassados, a saber, um predador sobrehumano temido e respeitado. Contam as histórias dos povos do planalto central (Imbangala, Mbundu, Songo) que os miata Lunda (Munjumbo, Kandonda, Ndumba e Ndonje) levaram Tchinguri à ilha fluvial Mbola na Kasaxe, onde, à maneira das grandes armadilhas para leões e leopardos haviam cavado um profundo buraco tampado com folhas, paus e areia, sobre o qual estenderam a esteira em que Tchinguri se sentava em ocasiões cerimoniais. Levado ao local pelos miata, Tchinguri cairia na armadilha, morrendo e sendo enterrado como grande predador. Os miata que planejaram a morte de Tchinguri seguiriam então para o leste, estabelecendo seus próprios domínios políticos17. Entretanto, o quilombo de Tchinguri não findara, mas se reproduzia na sucessão de sua morte, a partir da fragmentação do corpo de guerreiros que, sob diferentes chefes, dispersaram-se em quilombos ao sul e leste do planalto central, atingindo até os vales do litoral atlântico ao sul de Luanda. Os quilombos passavam a ser denominados de Imbangala18, sendo largamente discutidos nos relatos coloniais (Miller, 1978). A colonização iniciada no século XVI se depara com grupos dispersos de Imbangala ao sul e a leste de Luanda, onde os portugueses mantinham-se entrincheirados em pequeno enclave fortificado. Eram muitas as dificuldades do projeto colonial em avançar ao interior e se impor politicamente sobre povos do planalto central, dominado majoritariamente pelos Mbundu19. Por sua vez, os Imbangala largamente dispersos mais ao sul de Luanda continuavam irredutíveis às trocas propostas pelas caravelas portugueses que percorriam a costa em busca 17 Ainda hoje Mwandonje detêm seu domínio político-genealógico próximo do rio Kwango, na Província do Malanje, segundo Miller (1978) e Kanhengue (2010). 18 Os Imbangala remetem sua própria genealogia e origem às histórias da migração de Tchinguri desde os Lunda. 19 Muanangana Kanhengue também os chama de Mbundu, embora os portugueses passaram a chamá-los de Kimbundu. 39 de cativos. Os registros de governadores denotam que os Imbangala próximos de Luanda passaram progressivamente a aceitar a troca de mercadorias por seus cativos de guerra, o que sem dúvida dotava e tornava os quilombos Imbangala partes inerentes do empreendimento colonial, da circulação de mercadorias e da produção de escravos para o Novo Mundo. Mas não apenas, pois o estabelecimento de relações de troca com os Imbangala permitia aos governadores coloniais avançarem nas estratégias de subjugação dos povos Mbundu dispersos em diferentes domínios políticos Ngola20 no planalto central, e que continuavam a resistir insubmissos, contrapondo-se ao avanço militar português, aos missionários e às trocas de mercadorias por pessoas. Com as relações estabelecidas a partir da costa atlântica, os portugueses procediam à construção de fortes militares no interior, próximos a quilombos Imbangala já contatados, estimulando a obtenção de cativos para serem negociados por mercadorias. Dessa forma, os portugueses reforçavam a guerra de quilombo dos Imbangala contra os Mbundu, em estratégia que se mostraria eficaz sobre os Ngola Mbundu das bordas ocidentais do planalto. A subjugação implicava, grosso modo, na obrigação de cada Ngola Mbundu em reconhecer o domínio português e lhe fornecer tributos sob a forma mão-de-obra para trabalhar nas construções portuguesas, no exército, no carregamento dos portos, na construção de caminhos e na abertura de fazendas. Segundo Miller, "os interesses de portugueses e Imbangala pelos cativos adquiridos nessas razias completavam-se perfeitamente: os Imbangala preferiam guardar os rapazes mais novos como recrutas para o kilombo, ao passo que os europeus comprariam os homens e mulheres adultos, de que os Imbangala não necessitavam (Miller, 1978; p.195)". A partir do pequeno forte militar de Ambaca construído mais ao interior, os portugueses começavam progressivamente o domínio sobre o planalto central de Angola, tendo os quilombos Imbangala como ponta de lança, praticando guerra e razias contra os Ngola Mbundu insubordinados e fornecendo cativos de guerra que logo se tornariam, em grande 20 Ngola era a posição política máxima de uma matrilinhagem territorial. 40 medida, escravos no tráfico atlântico para o Brasil e a América espanhola. Adotando a antropofagia ritual em suas guerras, os guerreiros de quilombos Imbangala se posicionavam como grandes predadores sob a perspectiva dos Mbundu21, por outro lado, tais práticas de guerra demarcavam e afirmavam certas coletividade e ontologia distintas em relação aos Mbundu. De fato, as transformações operadas por Tchinguri e seu grupo na formação dos quilombos denotavam aos olhos de outros povos bantu uma clara descontinuidade e ruptura cosmológica. Se os Mbundu temiam a sobrehumanidade do nganga (feiticeiro) em sua potência de metamorfose em grandes animais predadores – temor compartilhado pelos Tchokwe e outros povos bantus, sejam dos cerrados ou das florestas centro-africanas –, os guerreiros Imbangala que há tempos lhes faziam guerra em várias frentes continham incomparável magia que os transformava a todos em agentes humanos capazes de ascender à condição sobrehumana durante a guerra, matando e comendo presas humanas – os próprios Mbundu. Diante do fato de que os quilombos Imbangala aliados dos portugueses apoderavam-se de armas de ferro européias, os Mbundu se viram cada vez mais pressionados em seus domínios políticos. Diante de tal ameaça, uma grande Ngola dos Mbundu denominada Jinga passa, então, a adotar o quilombo como estratégia guerreira. Evocando Tchinguri e Temba-Ndumba, Jinga executa ritualmente sua própria filha recém-nascida e fabrica o ungento maji a samba. Adotando o ritual maji a samba, os Mbundu que permaneciam insubmissos ao empreendimento colonial incorporavam a estratégia e a antropofagia do quilombo como forma de resistência aos Imbangala já cooptados pela circulação de valores europeus e que praticavam a partir de Ambaca guerras recorrentes por cativos. Dos missionários capuchinos que viveram anos junto ao quilombo de Jinga, ora sendo expulsos ora sendo aceitos de regresso, emergem as descrições etnográficas mais precisas sobre 21 "A utilização que eles (os Imbangala) faziam do canibalismo usava as analogias que os Mbundu viam entre canibais e animais ferozes ou feiticeiros, todos seres não-humanos que se alimentavam de carne humana (Miller, 1978; p.240)". 41 os rituais de iniciação ao quilombo. Segundo Cavazzi (1685): "Quando o chefe do quilombo, que é ordinariamente o comandante militar, quer conceder este privilégio, determina o dia da função. No intervalo de tempo precedente à data, os pais, que são sempre numerosos, suplicam insistentemente a concessão desta graça, persuadidos de que os seus filhinhos, antes da admissão, são abominados pela autora da lei, e que só depois de purificados serão benzidos por ela. O dia é de grande festa, com o concurso de muitos homens armados e enfeitados o melhor possível. Aparecem na praça em boa ordem e com muito decoro os cofres em que se conservam os ossos de algumas pessoas principais e que são guardados nas suas casas por pessoas qualificadas22. Depois aparecem os cofres com os ossos dos antigos chefes do quilombo e dos seus parentes. Todos são colocados sobre uns montões de terra, na presença do povo, rodeados por guardas e por uma multidão de tocadores e dançarinos, que festejam e honram os ossos daqueles falecidos. Por fim chega o comandante com a sua favorita, chamada tembanza, ou 'senhora da casa', festejados pela música e pela comitiva de seus familiares. Ambos untam os seus corpos e as suas armas e se sentam, ela à esquerda e ele à direita dos ditos cofres. Então, todos os presentes, divididos em grupos, fingem uma batalha, acometendo-se furiosamente. Acabada a batalha e as danças, que são bastante demoradas, até todos perderem o fôlego, saem de algumas moitas predispostas as mães que nelas estavam escondidas, com os meninos, e, mostrando-se muito preocupadas, com mil gestos vão ao encontro de seus maridos, indicando-lhes o lugar em que cada menino está escondido. Então eles correm para lá com os arcos frechados e, descobrindo a criatura, tocam levemente nelas com a seta, para demonstrar que não a consideram como filho, mas como preso de guerra, e que, portanto, a lei não fica violada. Depois, usando uma perna de galinha (...) untam a criança com aquele unguento (mazi a samba) no peito, nos lombos e no braço direito. Desta maneira, os pequenos são julgados purificados e podem ser introduzidos pelas mães no quilombo na noite seguinte (Cavazzi, 1685; p.182)". 22 Segundo Cavazzi, "a lei manda que os Jagas (denominação da época para os Imbangala, como comprova Miller) sejam enterrados no seu ventre. Com efeito, eles comem as carnes dos inimigos, dos escravos, dos parentes e até dos próprios filhos (...) Por vezes, os cadáveres dos ricos são fechados em cofres de madeira, cobertos com peles de feras , com panos ou com chapas de prata. Estes cofres, chamados mussete, são guardados pelos Jagas como objetos religiosos e de vez em quando são expostos à veneração pública, com incensações e outras cerimônias idolátricas. Pela lua nova, quando lhes é permitido iniciar ou acabar algum empreendimento, se não chover, recorrem aos defuntos, para o que preparam cuidadosamente diversas comidas nas covas correspondentes à cabeça dos cadáveres, sacrificando para isso homens e animais (Cavazzi, 1685; p.185)". 42 A iniciação dotava o quilombo de capacidade ilimitada de crescimento, condicionado apenas pela intensidade das guerras que os Mbundu passavam a fazer contra aldeias e povos submetidos aos portugueses e, naturalmente, contra os quilombos Imbangala. Os guerreiros Mbundu avançavam para a guerra em pumbo, pequenos "esquadrões" segundo o vocabulário de Cavazzi. O pumbo traçava as estratégias de ataque e então retornava ao quilombo para a realização do ritual que precedia a guerra, ocasião durante a qual o Ngola matava um cativo no interior do quilombo e os guerreiros mais renomados matavam quatro cativos em seguida, dois no interior do quilombo e dois fora. "Misturavam a carne das cinco vítimas humanas com carne de cinco bovinos, cinco cabras e cinco cães, mortos dentro do quilombo, e carne de mais cinco, de cada espécie já mencionada, sacrificadas no exterior do quilombo (Miller, 1978; p.241)". Mediante a comensalidade antropofágica os guerreiros eram dotados de condição sobrehumana e exortados à guerra23. Os inimigos mortos nos confrontos eram marcados pelos guerreiros do quilombo com golpes secundários ainda no campo de guerra, tornando possível a identificação das mortes efetuadas por cada guerreiro. Os corpos eram trazidos de volta ao quilombo, colocados de cabeça para baixo até que o sangue enchesse as cabaças e fossem bebidos in natura por cada guerreiro. Na comensalidade exoantropofágica posterior à guerra, cabiam ao chefe e aos guerreiros mais renomados os corações e as cabeças – fontes de princípio vital. Procedendo dessa forma, os guerreiros do quilombo se apropriavam dos inimigos mortos e elidiam o potencial de vingança das vítimas. Havia nos rituais a clara "necessidade de cada guerreiro subjugar os espíritos de todos os adversários que ele tinha morto, reivindicando e comendo seus corpos (Miller, 1978; p.243)". A comensalidade ritual de cativos praticada antes e depois do ataque guerreiro marcava e reforçava a diferença cosmológica entre os Mbundu e seus inimigos, entre a condição de 23 Cavazzi afirma que os guerreiros depois do ritual antropofágico seguiam à guerra vestindo pinturas corporais, peles e garras de animais, penas e ossos. A descrição superficial, no entanto, não permite maior análise da metamorfose ritual envolvida. 43 predador e a de presa, entre a sobrehumanidade dos guerreiros e a humanidade dos inimigos. Quando Jinga emerge como grande Ngola do planalto central liderando os Mbundu na guerra contra o avanço do domínio colonial, os quilombos dos Mbundu passam a atrair e incorporar os Imbangala que permaneciam recusando contato com os portugueses. Os Mbundu se tornavam Imbangala ao adotarem maji a samba, entretanto, os Mbundu não haviam recusado a descendência como princípio de segmentação política. Tal contradição entre genealogia e quilombo se expressava assim, evidenciando o que já havia conduzido outrora diferentes miata a abandonarem Tchinguri. Se os quilombos Mbundu durariam décadas ainda eficazes e guerreiros ante o avanço português e à guerra crescente dos Imbangala de Ambaca por cativos, os Mbundu não resistiriam à contradição maior de no limite a adoção dos quilombos negar seus próprios domínios políticos baseados na descendência. A endoantropofagia do quilombo permitia aos Mbundu se contraporem à guerra crescente ao conceder aos guerreiros a transformação ritual que, sob certo ponto de vista, equiparava as forças, visando a manutenção da autonomia política, mas a guerra onipresente de décadas se mantinha em total contradição com as genealogias políticas que ainda vigoravam. No final do século XVII, após décadas de conflitos, Jinga e os portugueses realizam acordo de mútuo reconhecimento político (Miller, 1978). O acordo passava a respaldar o domínio português e, por conseqüência, implicava na cessão obrigatória de pessoas por cada grande chefe Mbundu, seja para compor o exército colonial ou trabalhar em obras e fazendas, seja ainda para compor as caravanas dos Imbangala que, cada vez mais sedentarizados e tendo se tornado negociantes de escravos e mercadorias a partir de Ambaca, serviam aos interesses de grandes comerciantes portugueses dos armazéns instalados em Luanda. As caravanas de ambaquistas (Imbangala) passavam a cruzar o planalto central angolano, levando mercadorias e as negociando por cativos e outras mercadorias, tendo ainda o direito de exigirem a cada chefe Mbundu pessoas para 44 lhes servirem de carregadores nas longas e extensas caravanas 24 que desde Ambaca adentravam continente adentro, enquanto os portugueses permaneciam quase exclusivamente enraizados em Luanda. Fortalecia-se assim o projeto colonial de enclaves mercantis mediante o fomento da circulação de mercadorias em territórios subjugados e mais além, numa troca incessante de mercadorias por pessoas que, quando negada, resultava em razzias. Não obstante, todo o leste do planalto central permanecia além do domínio direto da Ngola portuguesa, desconhecido dos agentes coloniais que só com muito esforço ao longo de dois séculos haviam conseguido subjugar os Mbundu do planalto central e estabelecido o fluxo de mercadorias por cativos, cabendo, no entanto, aos próprios nativos empreenderem as longas caravanas ao leste longínquo. Tal circulação, empreendida inicialmente por ambaquistas, logo seria apropriada pelos próprios Mbundu em suas estratégias de reprodução social, tendo Luanda como origem e destino da circulação. De armazéns portugueses partiam mercadorias: animais domésticos, panos, sal, utensílios, armas, miçangas, bebidas. À Luanda retornavam pessoas que enviadas ao Brasil e às Américas, se tornavam escravas 24 Segundo Heintze (2004), os próprios Mbundu passariam a imitar os "Ambaquistas" – negros que haviam virado branco, vestindo-se como brancos e agindo como brancos, isto é, negociando mercadorias européias e empreendendo caravanas desde Luanda e Ambaca até o leste. 45 1.2) Versões de tchilombo entre os Tchokwe do alto Kassai Os quilombos iniciados por Tchinguri haviam se exaurido, mas não os quilombos entre os Tchokwe e outros povos do leste. E essas histórias ainda hoje são contadas nas aldeias, embora não estejam presentes na literatura. Em uma tarde de dezembro de 2010, o muanangana Kanhengue chegando em moto ultramoderna nas ruas asfaltadas do pequeno centro urbano de Luena, me encontrou em um café do Hotel Kwango, onde me contou algumas histórias e versões de tchilombo entre os Tchokwe: Tchipinda Ilunga e Lweji ya Kondi tiveram dois filhos, o primeiro chamado Yanvwa que mais tarde se tornaria Muatiyanvwa, o grande chefe dos Lunda, cujo nome ainda se transmite ao longo da linha de descendência. Após algum tempo, Tchipinda resolve voltar à terra de origem, entre os Luba do Congo. Lweji discorda, levando Tchipinda a fugir com os dois filhos crescidos que, antes de partirem, destróem os objetos rituais de Lweje ya Kondi. Regressando com seus filhos aos Luba, Tchipinda encontra seu povo em período de severa fome. Afirmando que no oeste de onde vinha havia muita fartura de caça, Tchipinda organiza então uma expedição guerreira à terra dos Lunda. Diante das ameaças de invasão Luba, os miata Tubungu evocam a guerra. Os miata que haviam se estabelecido ao longo da marcha de Tchinguri em novos domínios políticogenealógicos ainda reconheciam a genealogia política de Lweji como precedente, à qual deviam ajuda quando fosse necessário. Tchinguri estava longe e mesmo recebendo mensagem de Lweji para que retornasse aos Lunda diante da ameaça de guerra, negara ajuda. A guerra tem lugar no rio Kassasse Muaji, os guerreiros conjugados de diversos miata Lunda, mianangana Tchokwe e miangana25 Luvale avançariam em estratégias de tchilombo até alcançarem o local do confronto. Lá chegando e se posicionando para o combate que se anunciava, ao perceberem que os Luba já se encontravam acampados à outra margem do rio, os guerreiros fazem magia de nevoeiro. Ao amanhecer, inicia-se o confronto em linha de frente comandada por Tchikuza e Kalelwa, dois personagens sobrehumanos mascarados (maquixe), armados de facas e machados e extremamente 25 Muata/miata, muanangana/mianangana, muangana/mianangana (singular/plural) são termos análogos que se referem à posição política máxima em uma matrilinhagem territorial, denominada ao longo da dissertação de domínio político-genealógico. 46 violentos, e sendo seguidos pelos guerreiros. Muitos Luba, quando confrontados por maquixe cuja magia eles desconheciam por completo, fogem diante de seres que aparentavam sobrehumanidade; outros são derrotados e mortos, e os sobreviventes são feitos tupindji (pessoas em relações de dívidas) que seriam repartidos entre os territórios de Tchinyama, Salunda, Nakapamba, Ngoma e Lweji ya Kondi. Mwatyanvwa, filho de Lweji e Tchipinda, regressaria posteriormente aos Lunda para junto de sua mãe, Lweji, vindo com o tempo a assumir o poder político do conselho dos Tubungu e assim reafirmando e continuando sua própria genealogia política entre os Lunda. Com essa magia, os chefes retornam, avançando até o alto Kassai, conhecido como Luma-Kassai – atualmente sendo domínio dos Mianangana Tchikuza, Katchinga e Hamba. Em Luma-Kassai os miata que venceram os Luba dividiram entre si o poder (magia, rituais, feitiço) 26, os grupos migrando para sul e estabelecendo novos domínios político-genealógicos. Kanyka ao abandonar o grupo de Tchinguri participara da guerra contra os Luba e da divisão de poder. As matas do Moxico eram habitadas então apenas pelos kamissekeles 27 que são obrigados a migrarem para as matas do sul do Moxico. onde ainda hoje se fazem presentes. Os Tchokwe estabelecem contato com os Luchazi, os Mbunda e os Nganguela 28 (muanangana Kanhengue, 2010). Tchikuza e Kalelwa são maquixe (personagens mascarados e sobrehumanos) que ainda hoje invadem as aldeias Tchokwe do alto Kassai 26 O relato de "divisão do poder" parece evidenciar aqui uma das origens mais remotas da intensa circulação que nos séculos seguintes tomou parte dessa ampla região do leste de Angola e partes do Congo-Kinshasa, Zâmbia e Botswana. Entre esses povos (Tchokwe, Luvale, Luchazi, Mbunda, Nganguela) sempre circularam pessoas, rituais, personagens (maquixe) e mercadorias. 27 Povo caçador-coletor e nômade, de ascendência não-bantu e pele mais clara e avermelhada. Possuem aldeias compostas cada qual exclusivamente por uma família extendida. As cabanas de palha permitem-lhes rápida fixação e deslocamento territorial. Se alimentam de mel e carne de caça, além de alimentos coletados na mata, ignorando no passado quaisquer práticas agrícolas. Permanece obscura a origem das técnicas de produção de mel tão difundidas entre os Tchokwe que habitam as matas do alto Kassai e do Moxico, bem como entre os Luchazi, povo que mais ao sul possui proximidade com as matas ainda habitadas por grupos kamissekeles, sobretudo pelo fato de inexistir qualquer etnografia referente aos kamissekele, o que torna nebulosa a história de trocas e conflitos ocorridos com povos bantu que migrariam para suas terras. 28 Os Nganguela do sudeste de Angola atribuem a Kanyka a origem do personagem Tchikuza, o qual eles transformaram em Tchizaluki em sua mukanda (Bastin, 1983). Em grande medida isso se deve ao fato de que Kanyka migraria ao extremo sul, onde se apresenta em uma frente de migração e de contato dos Tchokwe com os Nganguela, introduzindo consigo o personagem Tchikuza. 47 durante os rituais de mukanda29, saindo das matas com sua indumentária e máscaras, facas e machados, obrigando todos da aldeia a correrem de sua aparição inesperada, com exceção do muanangana que permanece sentado, observando a reaparição desses personagens que lhe devem respeito30 (Figura 2). Até antes da guerra recente em Angola, grandes mianangana sentavam-se sobre cadeiras exclusivas (ngunji), esculpidas em madeira bruta por especialistas rituais (sonji) – os mesmos que ainda detêm o monopólio e os atributos para fabricar objetos rituais da umbanda e do muanangana. Abaixo do assento, cada plano era decorado com cenografias diversas. O ritual da mukanda, a traição e sua resolução, o nascimento, o cotidiano da aldeia, batuques e mercadorias valiosas eram representados na madeira talhada. No encosto figurava Tchikuza (Figura 3). Se outrora a morte de quem não corresse desses personagens violentos era sancionada pelo muanangana, tendo o nganga mukanda (chefe da mukanda) que pagá-la caso se efetuasse e se confirmasse durante a intervenção ritual na aldeia, os adultos ainda hoje correm desses maquixe, na certeza de que se não o fizerem podem ser legitimamente agredidos. 29 Ritual masculino de iniciação à fase adulto. 30 Segundo Baumann, quando de sua pesquisa de campo no alto Kassai, nos anos 1930, Tchikuza invadia a aldeia tendo às mãos uma faca e uma arma de fogo (Baumann apud Bastin, 1983). 48 (Figura 2, Tchizaluke, Tchikuza, Kalélwa e Tchihéu; Wastiau, 2006). 49 (Figura 3, ngunji wa muanangana; Wastiau, 2006) 50 Tchikuza e Kalelwa são personagens de guerra, cuja aparição ritual se faz de forma inusitada, repentina e intimidadora, obrigando todos da aldeia a fugirem ou permanecerem longe e à espreita como platéia. Trata-se de personagens que apresentam e controlam a violência exacerbada, restrigindo-a ao plano ritual da realidade expandida, onde deve permanecer explicitada e imanente. Violência, cuja perspectiva pode, não obstante, ser apropriada pelos próprios humanos frente ao processo histórico, como as histórias do tchilombo enunciam. Personagens que tiveram nos palcos de guerra sua invenção e intervenção. Na violência transposta e construída em ficções rituais, os fatos tornam-se atos encenados e os atos encenados tornam-se fatos, na medida em que permanecem desdobráveis como performance eficaz na guerra. Trata-se em tchikutza e kalelwa31 não apenas da construção expandida e ritual da realidade que passa a ser povoada de personagens sobrehumanos – condição que a mukanda compartilha com a umbanda, senão em inter(in)venções que se mostram preeminentes das traduções Tchokwe entre cosmologia, experiência social e processo histórico. Tchikuza e kalelwa inscrevem assim a memória de certa e profunda genealogia Tchokwe que tem no tchilombo a expressão de estratégias políticas. Muanangana Kanhengue permite depreender em suas narrativas a longa história do tchilombo entre os Tchokwe, cuja polifonia permanece viva nas aldeias e entre gerações. Tchilombo sempre consistiu entre os Tchokwe na construção rápida e temporária de casas de capim e arbustos, formando um acampamento provisório na mata alta que, tornando-se duradouro, originaria novas aldeias. Não simplesmente acampamentos, mas expressões de fuga e guerra. De suas tantas versões fragmentadas, dispersas e sobrepostas em um mesmo conceito semântico, os Tchokwe se posicionaram e exerceram a política ao longo do processo 31 Há tantos outros maquixe da mukanda em performances apresentadas em aparições rituais diante da platéia nas aldeias por onde passam, conformando diferentes gêneros de discurso: a loucura, a violência, o sarcasmo, etc. Na medida que cada povo possui seus próprios maquixe, há certa antropologia nas invenções de personagens nos povos que possuem a mukanda como cosmologia dos homens. 51 histórico. Não se trata de analisar os Tchokwe exclusivamente a partir da história da costa atlântica, visto que os Tchokwe mais orientais, em especial os do CongoKinshasa, se viram também diante de movimento oriundos da costa leste africana. Os povos bantu centro-africanos foram confrontados por diferentes processos históricos que tiveram nas longas caravanas mercantis sua estrutura comum. Da costa índica, a língua Swahili se difundiu continente adentro através das caravanas árabes à procura de marfim, chifres de rinocerontes, pedras preciosas e pessoas. Desde a costa leste africana da Somália, Quênia e Tanzânia, passando pelos grandes lagos (Uganda, Ruanda) até os cerrados do sul do Congo, o Swahili se tornou língua franca à medida que as caravanas comerciais foram penetrando os cerrados do interior. Os primeiros viajantes e cartógrafos europeus encontrariam negociantes árabes já baseados em entrepostos mercantis ao longo do alto rio Congo no século XIX. Alguns chegaram até Benguela no sul de Angola (Heintze, 2004), cruzando o continente de costa a costa no século XIX, como viajantes portugueses também fariam em sentido inverso, de Angola a Moçambique. Os caminhos da costa índica seriam trilhados pelos missionários cirstãos durante a colonização européia que se inicia em meados do século XIX. Os missionários buscavam na língua Swahili amplamente difundida continente adentro a base de uma língua geral que pudesse servir ao projeto colonizador que se iniciava (Fabian, 1983). Um dos limites da expansão mercantil de ambas as costas africanas se constitui justamente entre os cerrados do leste de Angola e do sul do CongoKinshasa. Nas aldeias do alto Kassai, ainda há falantes de Swahili. A história dos Tchokwe em relação ao leste e a própria dispersão de seus domínios políticos até Kolweji no atual Congo-Kinshasa, em proximidade direta com os Luba e os Lunda, podem refletir, sem dúvida, outra dinâmica de circulação entre os Tchokwe mais orientais. Não obstante, pretende-se aqui analisar os Tchokwe sob o pano de fundo próprio das circulações que tiveram início na costa atlântica, cujo impacto seria vivenciado nas relações de troca, nos regimes de valor e nas estratégias de tchilombo à medida que as caravanas de ambaquistas e Mbundu se 52 dirigiam às aldeias Tchokwe em busca de cativos – seja trocando-os por mercadorias, ou impondo razias a fim de capturá-los. As histórias das caravanas ainda reverberam profundamente entre os Tchokwe do leste de Angola, suas histórias sendo transmitidas ao longo das genealogias e seus personagens sendo ainda hoje incorporados na umbanda. Os estudos sobre "escravidão" na África Central ainda carecem de fontes etnográficas que se somem ao imenso material bibliográfico de fontes coloniais que tem permitido a quantificação do envio de cativos para as Américas, bem como identificações de proveniência étnica. Com relação à Angola, toma-se por pressuposto que antes do projeto colonial, a escravidão já se mostrava consolidada entre diferentes povos. As trocas de mercadorias européias a partir da costa teriam servido apenas como um mediador, capazes de intensificar o fluxo de cativos, à medida que penetravam o continente. A ausência de etnografias modernas junto a povos de Angola que lidem explicitamente com a memória da escravidão fez com que a história escrita se tornasse hegemônica e mesmo monofônica, descrevendo os Tchokwe como negociantes de escravos (Henriques,1997), sem, entretanto, contrastar as próprias narrativas e memórias Tchokwe sobre a escravidão frente às fontes escritas coloniais. Miller (1978) explicita que a recusa às mercadorias e ao projeto colonial se fizeram preeminentes no planalto central entre os Mbundu e que mesmo os Imbangala recusavam em grande parte a transformação de cativos em mercadorias. Embora Cavazzi (1685) e os primeiros cronistas portugueses em Angola reconhecessem a existência de "escravos" nas aldeias e sirvam como fontes etnográficas mais remotas, na medida em que viveram anos entre os Mbundu e os Kongo, não está de modo algum claro em que consistia tal relação social de "escravidão". Cavazzi chega a afirmar que a "escravidão" poderia ser temporária e por dívida, as dívidas podendo ser quitadas por mercadorias muito valorizadas – peles e dentes de grandes animais predadores ou panos de fibra produzidos por outros povos. Resta, no entanto, a lacuna de como as relações sociais de dívida se constituíam entre pessoas e que legalidade e moralidade passaram a vigorar na circulação de pessoas e mercadorias com o advento do 53 sistema colonial, visto que, no planalto central, demorariam quase dois séculos para que a circulação fosse estabelecida pela lei das armas e por força de tributos obrigatórios sob a forma de pessoas. Entre os Tchokwe do alto Kassai, as narrativas de tchilombo descrevem as estratégias políticas frente às caravanas escravagistas e às mercadorias européias. Nesse sentido, é do planalto central angolano após a submissão de Mama Jinga e o início das caravanas de negociantes Ambaquistas e Mbundu que as políticas de conversão de pessoas por mercadorias foram sendo impostas e contrapostas dialeticamente ao longo da história. As mercadorias européias interviam no regime de valor, na medida em que logo se tornavam fetiches e categorias de troca altamente valorizadas na circulação e nas relações sociais de dívidas entre famílias Tchokwe. Fetiches no sentido clássico da Economia Política de Marx, em que o valor das mercadorias em circulação remete às determinações da imaginação mais do que das condições de produção. Fetiches, não obstante, que vieram a sobreporse aos preexistentes. Cabe, então, delinear a luz da etnografia como as relações sociais de dívidas se constituem em aldeias Tchokwe. Pretende-se, com efeito, pensar a partir de um corte sincrônico a diacronia de tais relações e do fluxo de mercadorias envolvido. Entre os Tchokwe do alto Kassai, as dívidas entre pessoas e famílias possuem na morte por wanga (feitiço/magia) seu princípio e fundamento. As mortes de recém-nascidos e de crianças ainda pequenas, sem capacidade de andarem ou falarem – características que definem a condição plena de pessoa (muthu) – são causadas pela predação de malemba e mahamba (entidades, agentes sobrehumanos) sobre o mbunge (coração, alma, consciência). Por sua vez, as mortes de idosos são decorrentes de causa natural. No entanto, a morte ocasional de jovens e adultos possui no parentesco o vetor causal e maléfico, em ambos os casos dando ensejo ao longo processo de acusações e disputas entre famílias relacionadas. São mortes causadas por feitiço (wanga), sob a forma de doença fulminante ou demorada, cujos tratamentos da umbanda32 ou 32 Traduzido durante o período colonial como medicina tradicional (vide capítulo 2). 54 do Estado se mostram ineficazes33. O wanga se torna eficaz, em grande medida, através das relações de parentesco e das alianças matrimoniais que passam a relacionar famílias distintas. Quando da morte ocasional de um adulto, encadeiam-se acusações de feitiçaria que passam a rondar todos os parentes. Cabe à longa divinação xamânica do ngombo (mestre de umbanda) junto a seus malemba e mahamba predizer a origem do vetor maléfico e dos agentes atuantes34. Já faziam alguns meses que estava vivendo na aldeia Sakanha, quando numa tarde um mojimbo (saudação) tem lugar no terreiro da casa de Giramente, onde estava hospedado. Dois jovens relataram que a filha de Sanenê da aldeia Samuconga havia morrido. Há alguns meses doente, ela já havia se mudado da aldeia de seu marido, retornando para junto de sua mãe, para tratar da doença na farmacologia da umbanda. Após sua morte, seu pai Sanenê fora ao encontro de um ngombo, cuja divinação apontou a família do marido como responsável pela morte da esposa. Sanenê retorna à aldeia, onde manda um emissário chamar o marido da filha morta na aldeia distante. A mulonga (audiência) de Sanenê e seus cunhados exige que a reparação seja de duas cabeças de gado. Após negociações, acorda-se o pagamento de uma cabeça de gado que não irá, contudo, para Sanenê, senão para a matrilinhagem de sua esposa, sendo repartido entre os tios maternos da filha morta. O gado é de longe a criação mais valorizada nas aldeias Tchokwe, uma cabeça chegando a valer o equivalente a 1.000US$, contra 60US$ do cabrito ou do porco ou 180US$ de uma ovelha35. Se estes três animais só adentram as aldeias 33 Hospitais e postos de saúde classificam as enfermidades não diagnosticadas pela medicina dos brancos como doença tradicional, cujos sintomas a pessoa deve tratar na Umbanda. Disso advém a tradução de Umbanda utilizada pelos Tchokwe em Angola como "medicina tradicional". Questionados se Umbanda seria religião, muitos são enfáticos ao afirmar que não. 34 Turner (1968;1975) analisa com rara destreza etnográfica esse processo social numa aldeia Ndembu, povo que compartilha com os Tchokwe rituais e origem comum: os Lunda. O corte sincrônico de suas etnografias (1968, 1975) não permite, entretanto, entrever certa lógica social mais profunda e duradoura, presente nas dívidas sociais por wanga. 35 Os animais domésticos (ovelhas, cabras, porcos) são introduzidos a partir do domínio português na costa 55 Tchokwe e se tornam animais domésticos a partir da colonização atlântica e das caravanas mercantis que passavam a trazer tais animais para o interior, o Gado, por sua vez, sempre foi criado entre povos bantu dos cerrados centroafricanos, existindo há tempos no alto Kassai e alto Zambeze. O gado desde tempos remotos se constitui como valor-de-troca em casos de dívidas sociais. A pessoa endividada – no caso, o marido – não possuía alternativa ao se confrontar com a alta dívida a ser paga, senão contrair altas dívidas com vizinhos, amigos e familiares, o que o deixará anos com relações sociais de dívida (mukuli) a serem pagas. Nesse mesmo dia do relato sobre Sanene, Giramente me contou que, do outro lado do rio Kassai, há cerca de um ano, o filho do muanangana Tchivumbo morreu fulminado por wanga da noite para o dia. Uma morte estranha que só podia ter sido causada por wanga, cujo vetor admite outras formas além das relações de parentesco, entre as quais os venenos oriundos da tradicional farmacologia e etnobotânica dos Tchokwe, motivo pelo qual a comensalidade nas aldeias Tchokwe sempre é restrita e exclusiva aos domínios familiares e aos amigos de mukanda, mesmo vizinhos as recusam no cotidiano. Todos que passaram pelo mungonge36 possuem conhecimentos de práticas de wanga, pois foram iniciados na magia dos Tchokwe, de fabrico de objetos rituais e de remédios-veneno. O wanga pode, muitas vezes, não ser letal, mas se desdobrar em pequenas doenças que se arrastam, deixando a pessoa magra, período no qual o nganga (mago, feiticeiro) preda seu mbunge (coração, alma, consciência) para se alimentar de sua carne e de seus princípio vital. Considera-se que os mais velhos, pelo fato de serem longevos, são tidos por grandes nganga. Ademais, são eles os que, de fato, fizeram mungonge. Diante da morte fulminante de seu filho, o muanangana Tchivumbo enviaria três emissários de sua família a um ngombo, o qual veio a confirmar que tinha sido uta wa wanga (arma mágica) e que o agente-nganga era o professor da atlântica Alguns virariam maquixe, como ngulu (porco) ou mpembe (cabra). Antes da colonização, só existiam galináceos e bois. 36 Ritual masculino de iniciação à magia posterior à mukanda, de caráter secreto. Proibido nos anos 1940 por pressão dos missionários junto à Administração Colonial, o mungonge ainda persiste em parte na umbanda. 56 aldeia. Toda acusação de wanga dá direito à contraprova e o professor dirigiu-se então, ele próprio, a um ngombo diferente e distante que confirmou em sua divinação a prática de wanga e que o próprio professor havia causado a morte do filho do muanangana. Recai sobre a família do morto a definição do valor das indenizações pelas mortes por wanga. Assim, após o óbito, os tios maternos e avôs se reuniram e determinaram o valor a ser pago pelo nganga: duas cabeças de gado cujo pagamento não poderia passar de dois anos, senão o preço subiria. O professor que havia casado na aldeia de Tchivumbo logo se mudaria para uma aldeia distante, nas proximidades de Luena (sede provincial). A alta dívida (mukuli) contraída em decorrência das práticas de wanga foi, em parte, convertida em outras mercadorias (cabritos, aparelho de som, gerador e moto), outra parte sendo efetivada em dinheiro. A obtenção de valores-de-troca implicou ao nganga no estabelecimento de duradouras relações sociais de dívida com parentes e amigos próximos, sem as quais o montante dificelmente seria levantado. A mukuli se desdobra assim em relações sociais de dívida que podem perdurar anos, assumindo diferentes configurações. O nganga ao utilizar todos seus animais para pagar parte da mukuli e levantar o restante em suas relações sociais permanecerá anos tendo que trabalhar para pagar as dívidas contraídas. A fissura social decorrente das práticas de wanga aprofunda ainda mais as dificuldades, na medida em que pode impelir a pessoa nganga e sua família a mudarem de aldeia, o que exige que construam nova casa e lavras. Por algum tempo, o valor de seu trabalho será revertido no pagamento das dívidas. Depreende-se, com efeito, um pouco da antropologia econômica subjacente à criação de animais domésticos, desde sua inserção entre os Tchokwe no século XIX. Mesmo diante da variação de alimentos e sua notória escassez durante a passagem de luisa (tempo chuvoso) a luchiho (tempo seco), os animais não são abatidos. Matar um cabrito na aldeia exige que boa parte da carne seja redistribuída, pois caso contrário torna-se alvo de wanga. Mesmo o caçador (tchiyanga) quando abate um grande animal, redistribui a carne entre as famílias da aldeia. Em momentos de escassez, entretanto, se o caçador abate uma caça pequena, eles tende a retalhar a carne na própria mata, secando-a e escondendo-a, 57 retornando apenas à noite com um pedaço para consumo de sua família. Recorrentemente Giramente reclamava à beira da fogueira, que Zé devia ter carne de caça, mas a estava escondendo de todos. Ao mesmo tempo, diante da escassez de peixe seco e de caça em plena estação chuvosa, Giramente, que tinha sob domínio de sua família cerca de cinco cabritos, de modo algum pensava em matálos. Os animais constituem reserva de valor fundamental, preferindo-se sempre vender para pessoa de outra aldeia que os necessite por motivo de festa, tornandoo, assim, uma reserva de valor sob a forma dinheiro. Giramente afirma que, antigamente, uma pessoa com mukuli por causa de wanga deixavam temporariamente um sobrinho na família que reivindicava a dívida, enquanto juntavam o valor acordado para quitar a mukuli. A permanência em uma família alheia não implicava, contudo, mera extração de sobretrabalho. O kapindji – pessoa deixada temporariamente como força de trabalho – adentrava a outra família, trabalhava nas lavras como os demais membros e participava da comensalidade, podendo inclusive se casar na aldeia, caso o tempo de permanência fosse longo, seus filhos perdendo a condição de kapindji. Deixado ainda jovem, seu tio lhe afirmava se tratar da casa de um "parente", onde ele moraria por algum tempo. Quando seu tio obtivesse a mercadoria acordada na relação de dívida, retornava para efetuar a kukúla37, pondo fim à dívida e levando seu sobrinho de volta à aldeia. Segundo Giramente, os mazo wa ndjamba38 (dentes de elefante) eram extremamente valorizados e os Tchokwe organizavam longas viagens para áreas de caça, nos cerrados abertos, o que juntado com as outras mercadorias exigidas (bebidas de mel ou milho, makanha em pó, peles) lhes permitia proceder à kukúla, seja em relação à família enfeitiçada ou aos parentes e amigos, com os quais dívidas foram contraídas, de modo a pagar a mukuli e ainda se evitar a cessão temporária de um sobrinho como kapindji. No café do Hotel Kwango em Luena, o muanangana Kanhengue já 37 Kukúla kapindji significa "pôr fim as relações de dívida", a pessoa podendo então retornar a sua aldeia de origem. 38 Os dentes de elefante (mazo wa ndjamba) eram extremamente pesados sendo carregados em caravanas, cada pessoa conseguindo transportar apenas um dente de marfim sobre as costas. 58 afirmara na longa conversa a existência antiga de outra modalidade de kapindji. Alguma mercadoria rara e muito desejada, como os panos europeus que começaram a chegar de povos vizinhos do planalto central e circular como nova categoria de troca antes mesmo dos ymbali (caravanas dos Mbundu), podia ser obtida assumindo uma relação temporária de mukuli, período durante o qual um sobrinho permaneceria na respectiva família. O kapindji retornava para sua aldeia e família tão logo as mercadorias acordadas fossem obtidas e trocadas. Kapindji se constituía assim como força de trabalho temporário e familiar, pelo fato de inexistir extração ou imposição de sobretrabalho que diferenciasse a pessoa kapindji de outros membros da família no trabalho da lavra. Com exceção dos casos de dívida por feitiço, em que as fissuras sociais decorrentes tendiam a afastar as famílias, a troca de mercadorias por pessoas entre aldeias e famílias diferentes e mesmo distantes conduzia, na verdade, ao estabelecimento de relações sociais positivas entre as partes. Neste caso as alianças matrimoniais e as trocas de mercadorias por mulheres desempenhavam um papel privilegiado. Na aldeia Sakanha, Sadonje – um mais velho respeitado por ter feito mungonge – ainda escutava de seus tios e avôs na tchóta, casa dos homens ao centro da aldeia em que as conversas, histórias e conhecimentos se dão de geração para geração, sendo comum a um homem ao qual se atribui muitos conhecimentos a afirmação de que "ele cresceu na tchóta"39, que os Tchokwe do alto Kassai empreendiam antigamente longas viagens até Kolwéji, atual limite oriental da terra ocupada pelos Tchokwe em proximidade dos Luba e dos Lunda, já nos cerrados ao sul do Congo-Kinshasa. Levavam consigo pacotes de makanha (fraca) pilada e tostada em rapé, cada qual do tamanho de um antebraço. À época, os Tchokwe efetuavam trocas por marfim, o que na ausência podia ser revertido como mukuli, levando-se kapindji que mais a frente no tempo seriam retrocados pela mercadoria acordada. Preferiam-se, sobretudo, mulheres, o que nesse caso 39 Atualmente a tchóta existe em muitas aldeias, embora esteja em reconstituição depois do impacto da guerra que obrigaria aldeias a migrarem, o que aos mais velhos tinha o sentido da morte, pois não tinham mais como empreenderem longas caminhadas. Também devido à guerra, muitos que foram combater não voltariam mais, o que em grande medida criou uma quebra genealógica na transmissão de conhecimentos e técnicas. 59 tornava a relação de mukuli em aliança matrimonial, a mulher era tornada esposa e as famílias passavam a deter laços de parentesco de longa distância. Mediante trocas de mercadorias, os Tchokwe seguiam rotas não apenas para leste como para sul, expandindo suas relações sociais e assim tornando as topologias de sua tissemuka (família, genealogia) cada vez mais extensas e dispersas em termos geográficos, em cuja estrutura circulavam não apenas mercadorias, mukuli e pessoas, senão rituais e magia40. Trocando mercadorias os Tchokwe produziam valor por meio da circulação, pondo fim às mukuli – dívidas temporárias por feitiço ou fetiche. Havia, por fim, outros casos de mukuli. Quem roubava e era descoberto se tornava kapindji da pessoa roubada, só deixando de sê-lo quando seus familiares pagassem o montante estabelecido durante a mulonga (audiência). Por sua vez, o muanangana exigia que todo o visitante que passasse no território (tchifuti) de sua aldeia devia se aproximar e fazer o mojimbo (saudação), após o que se ofertava ao visitante uma cabaça pequena de cerveja de mel (ndoka) ou outra bebida em sinal de agrado e dom. Se durante o encontro, a cabaça fosse quebrada acidentalmente e a pessoa com isso não se mostrando respeitosa diante do muanangana, ficava em relação de dívida e se não tivesse o montante exigido pela falta de polidez tinha que deixar sobrinho ou neto como força de trabalho temporária até que retornasse com mercadorias acordadas para saudar a mukuli com o muanangana. De modo análogo, se por acaso a cadeira do muanangana (ngunji) quebrasse o pé acidentalmente quando a conversa se desenrolava na tchóta, a pessoa visitante era acusada e ficava em relação de dívida por feitiço. Em todos os casos, nota-se, existia a possibilidade aberta de kukula kapindi, isto é, reverter a relação de dívida temporária, pagando as mercadorias acordadas e tirando seu parente ou a própria pessoa da condição de kapindji. Não obstante, uma transformação na estrutura da dívida e das relações 40 Não apenas outrora como atualmente, quando os parentes são relatados a muitas centenas de quilômetros, ou quando diferentes ngombo são chamados no Congo-Kinshasa para realizarem divinações xamânicas e kutisa wa wanga (retirada de feitiço) há muitas centenas de quilômetros de distância, trazendo consigo inovações rituais e mágicas. 60 sociais se opera radicalmente com a chegada de novos fetiches europeus. As categorias de troca exigidas em relações de mukuli passaram a incorporar sal, panos e animais domésticos, mercadorias que não eram produzidos pelos Tchokwe, mas que precisavam ser adquiridos, direta ou indiretamente, na circulação de valores que avançava desde o planalto central de Angola. O sal logo assumiria papel similar ao detido pelos animais atualmente, se constituindo logo como importante e fundamental reserva de valor em caso de dívidas por feitiço. As caravanas de yimbali (os Mbundu) que passavam a alcançar o leste de Angola interviam, sobremaneira, nos regimes de valor entre os Tchokwe. Tchimbali é a definição Tchokwe referente aos negociantes de origem Mbundu que haviam virado branco, passando a se vestir e a agir como branco. Tchimbali ainda hoje traz consigo essa conotação dupla no alto Kassai, expressando ora os brancos e ora os Mbundu41. As caravanas de ymbali (pl. tchimbali) partiam, sobretudo, de Ambaca, aonde armazéns de Luanda enviavam emissários com as mercadorias necessárias para as caravanas seguirem desde as bordas ocidentais do planalto central de Angola até o leste em viagens arriscadas por territórios que permaneceriam além do poder colonial até finais do século XIX. Utilizando-se de armas de fogo, muitas caravanas adotavam as razias como estratégia de obtenção de cativos em territórios que permaneciam autônomos, devastando com isso aldeias inteiras ao longo dos trajetos percorridos desde o planalto central angolano ao interior do continente. Cameron, viajante inglês que acompanhava uma caravana escravagista no século XIX permanece como a única fonte escrita do período em relação ao alto Kassai, descrevendo a viagem de ida que desde o Huambo, parte sul do planalto central angolano, cruzaria todo o território Tchokwe e o alto kassai, avançando até os Luba do sul do Congo-Kinshasa e findando em estadia de trocas junto a 41 Segundo Heintze (2004) as caravanas podiam variar de quase uma centena a cinco centenas de carregadores, o que chegava a quadruplicar quando do regresso com as pessoas trocadas por mercadorias ou capturadas em razias. Diante de ameaças frequentes ao longo de certos caminhos por onde atravessavam, várias caravanas podiam se juntar no regresso ou mesmo na ida, evitando ataques de emboscada e saques. 61 Muatyanwa, o grande chefe dos Lunda42. Cameron não acompanha o retorno da caravana à Ambaca, embora afirme que ao final das trocas a caravana detinha marfim, borracha e cerca de 600 cativos. Cameron se refere em sua etnografia às práticas da caravana, em pormenor a um grupo de escravas, amarradas em grupos de dezessete ou dezoito, entre as quais: “algumas tinham uma criança no braço, outras estavam no fim da gravidez e todas carregavam pesados fardos de mercadorias roubadas. Os seus pés esfolados, as estrias e as cicatrizes em todo o corpo testemunhavam o tratamento implacável e cruel que estas infelizes criaturas tinham de suportar nas mãos do monstro que se dizia seu dono (...) Para conseguir estas cinquenta e duas mulheres, tinham sido destruídas pelo menos dez aldeias, com cem a duzentos habitantes cada, ou seja com um total de cerca de mil e quinhentos habitantes (...) Devastavam todos os campos cultivados, mais severamente do que uma praga de gafanhotos, arrancando, depois de pousarem a carga, as plantas de amendoim e de batata com as raízes e espizinhando o milho verde por pura maldade (...) O seu sistema de viver à custa da região que atravessavam tinha como consequência o facto de nas aldeias abertas não encontrarmos nem mulheres ou crianças nem cabras, porcos ou galináceos. Só ficavam uns poucos homens que esperavam proteger as suas cubatas dos intrusos, sem que a sua presença pudesse impedir a pilhagem ( Cameron apud Heintze, 2004; p.221-2)". Heintze (2004) explora as biografias deixadas por ambaquistas letrados e os relatos dos primeiros viajantes europeus que percorrendo o interior do continente em missões científicas ou visando cartografia geopolítica se utilizavam, eles próprios, dos ymbali como guias e carregadores. Se em meados do século XIX a mussumba – aldeias fortificada de Muatyanvwa entre os Lunda – já se tornara destino final e entreposto de muitas caravanas que seguiam ao leste, além do domínio político português, a chegada das caravanas parece recuar bastante no tempo. Ao menos nessa época, as mercadorias já haviam 42 Designação da maior posição política do povo Lunda. Entre os Tchokwe, os chefes de domínios políticogenealógicos vieram a ser denominados de muanangana (pl mianangana), enquanto entre os Luvale prevaleceu o termo muangana (pl miangana) à medida que os miata foram se dispersando e abandonando o grupo de Tchinguri. 62 transformado as categorias de troca entre os Tchokwe, gerando conflitos e apropriações. Quando as mercadorias começavam a chegar entre os Lunda – povo localizado a leste dos Tchokwe, no atual Congo-Kinshasa, é certo que já haviam se dispersado também ao longo do caminho, sendo trocadas e constituindo novas categorias de troca a vigorar nas relações de dívidas. Os próprios Tchokwe começaram a sentir essa transformação nas relações de mukuli. Segundo Heintze (2004; p.309), "quando nesta região se adquiriam tecidos em troca de escravos ou cera, os ditos tecidos não eram geralmente utilizados no vestuário próprio, mas investidos noutros negócios ou empregue no resgate de familiares". Diante das primeiras caravanas que seguiam ao leste cruzando domínios marcados por vegetação de campos abertos de cerrados, muitos foram os mianangana estabelecidos que se mantiveram contrários, barrando a travessia das numerosas caravanas nos rios de seus territórios (tchifutchi) e exigindo altos pagamentos, quando não as atacando na ida ou no retorno, saqueando as mercadorias (Heintze, 2004). As armas de fogo, desconhecidas no interior do continente, logo apresentariam todo o inerente poder maléfico, tendo papel preponderante nos confrontos e razias praticados progressivamente pelos ymbali contra aldeias Tchokwe. As caravanas capturavam pessoas que nunca mais voltariam às suas famílias e aldeias, à diferença das relações sociais de mukuli entre famílias Tchokwe, pois os tupindji (pl. de kapindji) se transformavam em escravos para o comércio atlântico, a troca assumia assim o caráter de compra inalienável, ao menos a partir do ponto de vista dos ymbali, os Mbundu que haviam se tornado brancos, acostumados com as demandas de Luanda e Ambaca. Os ymbali predaram desse modo e continuamente, por muitas gerações, a tissemuka (família, genealogia) Tchokwe. Incidindo diretamente sobre a reprodução das famílias, as razias escravagistas expressavam a potência predadora e mágica (armas de fogo) dos ymbali, a qual, não obstante, seria em parte domesticada ritualmente. O fato dos ymbali persistirem como mahamba (entidades, agentes sobrehumanos) na umbanda entre os Tchokwe, ainda povoando o cosmos e predando as mulheres e a reprodução das famílias Tchokwe 63 do alto Kassai, denota, sem dúvida, a profunda memória dos tempos das caravanas escravagistas a partir do ponto de vista dos Tchokwe (vide umbanda, Parte 2). Tchimbali e kapindji são mahamba que, ao serem incorporados na umbanda, sempre se fazem acompanhados um do outro durante o travestimento da cena ritual, expressando na estética da possessão, por um lado, as relações sociais outrora estabelecidas entre os ymbali e os que foram feitos presa, por outro, a própria transformação histórica do sentido de kapindji, preeminente na moral das trocas iniciada pelos ymbali em aldeias Tchokwe, trocas que, ao serem negadas progressivamente pelos Tchokwe, dariam ensejo a outras estratégias ao longo dos percursos que levavam as caravanas de Ambaca a mussumba de Muatyanvwa. As razias escravagistas onipresentes levavam os Tchokwe a migrarem cada vez mais para o sul43, fugindo das caravanas que varriam aldeias em busca de cativos, seguindo para áreas de mata cerrada do alto Kassai e do Moxico, fundando quilombos que logo se tornariam aldeias fora das rotas dos ymbali. Na verdade, as caravanas que seguiam pelo alto Kassai eram raras, "já que mais para o interior o medo dos assaltos dos Chokwe minava quaisquer planos de longo prazo (Heintze, 2004; p. 347)". Os ambaquistas e os ymbali sofriam e conheciam há tempos as estratégias Tchokwe de ataques às caravanas. Somente com as mudanças no mercado mundial que implicavam, grosso modo, na transformação dos regimes de valor e de categorias de troca, as demandas dos armazéns portugueses em Luanda passam a se orientar por produtos como a borracha e a cera de mel, que atingiam alta cotação e pelos quais as caravanas logo seguiriam novas rotas pelo leste, adentrando as matas fechadas e densas do interflúvido alto kassai / alto zambeze. Com efeito, a caravana que Cameron acompanharia em meados do século XIX já se acostumara com o 43 A história das caravanas parece explicar um pouco da longa migração dos Tchokwe ao sul, área de mata cerrada e alta, ao contrário dos cerrados abertos que perfazem o caminho entre Saurimo e o planalto central. 64 comércio triangular, obtendo cera de mel44 e marfim junto aos Tchokwe do alto Kassai e seguindo até Muatyanvwa onde trocavam o restante das mercadorias e obtinham cativos e borracha45. Não obstante, as caravanas não deixavam de empreender razias escravagistas em aldeias Tchokwe ao longo dos trajetos, já que o tráfico de pessoas às Américas ainda se constituía como altamente rentável e um dos objetivos primeiros das caravanas, concomitante às mercadorias nativas. As razias, no entanto, geravam fortes e contínuas estratégias de contra-ataques por partes dos Tchokwe. Os que guiavam o caminho já possuíam experiências anteriores e os trajetos eram sempre modificados, na medida em que as histórias das caravanas retornadas à Ambaca relatassem áreas perigosas e de ataques recentes. Se escolhessem o alto kassai como rota, passavam apenas na ida, quando realizavam trocas e razias. Retornavam pelo norte, evitando retaliações das aldeias atacadas na ida e percorrendo a rota mais segura quando a caravana estivesse carregada de mercadorias e cativos. Desse modo, as razias efetuadas na ida, não poderiam ser retaliadas quando do regresso. Os Tchokwe, não obstante, também possuíam suas estratégias frente às caravanas. No alto Kassai, Saúda afirma que diante da aproximação de caravanas de ymbali, por vezes já percebida com antecedência nas proximidades de algum rio46 a ser atravessado, havia fuga para as matas e as pessoas se refugiavam em tchilombo provisório que podia durar semanas. Por se tratar de área de mata 44 No século XIX a demanda por cera de abelha para indústrias européias que a empregavam no fabrico de sabão faz com que as caravanas tragam cada vez mais cera do leste, os Tchokwe passando a deter lugar privilegiado, pois de suas matas saíam o mel e a cera de melhores qualidades. 45 A borracha vinha da área mais ao norte, levando os Tchokwe e outros povos (Bena-Mai, Lunda) a avançarem até o sul do Congo na área dos Pende para obtê-la. Os cativos eram oriundos de razias e demandas de Muatyanvwa junto aos miata ou mesmo por comércio triangular que os Lunda começavam a monopolizar em relação ao interior mais remoto do Congo-Kinshasa, competindo com os negociantes árabes que vinham da costa leste africana em busca de cativos. 46 A quantidade de rios nos cerrados do leste de Angola obrigava às caravanas a atravessarem em áreas povoadas, de outro modo não obteriam o já custoso e imprescindível transporte de canoa. Nos mojimbos, as notícias de caravana logo se espalhavam. 65 fechada, as aldeias ficavam protegidas em relação às caravanas. Saúda afirma que os ymbali vieram pelo oeste, tentando avançar a partir do alto Tchikapa que corre bem próximo do alto Kassai, território há muito tido como terra originária dos Tchokwe e da repartição de poder entre os povos do leste. Saúda nasceu nas duas primeiras décadas do século XX, tendo realizado mungonge47 e crescido escutando as histórias dos mais velhos, decerto muitos que haviam vivido os conflitos e fugas do século XIX. Ele afirma, com ênfase, que os ymbali ao tentarem vir pelo oeste rompendo com suas caravanas as matas cerradas a partir de Quirima até o alto Tchikapa, faziam "quata-quata" invadindo as aldeias, capturando as pessoas e as levando como tupindji. Os ymbali vinham com "mauser" (arma de fogo caçadeira) e os Tchokwe respondiam com seus arcos de diferentes flechas com pontas de ferro afiadas e retalhadas, cuja arte ferreira dominavam. Impunham ainda seus kanhangulu48, abrindo fogo contra fogo. Os ymbali não conseguiriam se impor pelo oeste, os caminhos nas matas cerradas eram perigosos e suscetíveis a ataques inesperados e ostensivos. Os Tchokwe combatiam as caravanas no alto Kassai adotando estratégias de tchilombo, seja de fuga ou de ataque, quando fosse o objetivo surpreender alguma caravana que se aproximava. Os ymbali somente se impuseram no alto Kassai a posteriori com os Puthu (portugueses), chegando pelo norte a partir do Dala, um tempo que se no discurso de Saúda aparece contínuo, possui clara descontinuidade, pois que só depois de 1890 os Puthu conseguiriam se impor sobre os Tchokwe, derrotando a estratégia de guerra de tchilombo de grandes mianangana que resistiram fortemente contra a subjugação colonial até as primeiras três décadas do século XX. 47 À sua época, ainda se praticava o mvula musazu, literalmente "raios das tempestades". No princípio de luisa quando os raios e trovões se aproximam em demasia das lavras e aldeias, os raios perfazendo o horizonte das nuvens pesadas e não raras vezes tocando o chão, os homens pintavam no peito círculos concêntricos com mpemba (pó branco e medicinal), símbolo da chuva caindo sobre poças d'água, e saíam em grupos diante dos raios e trovões, visando controlar o poder de mvula. 48 Reprodução das armas de fogo dos ymbali, fabricadas pela arte ferreira Tchokwe, a pólvora sendo obtida na circulação de valor. 66 A própria narrativa de Cameron em meados do século XIX indicara que nas aldeias, mulheres, jovens e crianças – cativos potenciais – se faziam por completo ausentes, haviam de certo se refugiado longe quando as caravanas passavam, denotando que a estratégia de tchilombo já se mostrava preeminente. Do tchilombo, ataques eram realizados pelos Tchokwe. Giramente conta em Sakanha uma história que muitas vezes escutara de seu pai, sendo transmitida ao longo de sua genealogia. As caravanas eram atacadas e surpreendidas por guerreiros armados, tendo Tchikuza em linha de frente avançando violententamente, como uma aparição mágica, com suas armas de ferro cortantes e de fogo. Tchikuza bebia sangue de cabra do mato, antes, como parte inerente de sua transformação ritual em personagem sobrehumano que intervia diante de todos, avançando e sendo logo seguido pelos guerreiros. A magia dos Tchokwe era temida pelos ymbali, já aocstumados com as histórias de outros ataques a caravanas que logo se espalhavam em Ambaca. Nos ataques relatados por Giramente, os membros da caravana abandonavam as mercadorias e os animais, fugindo com medo diante de Tchikuza e dos tiros e flechas que vinham das matas, dando ensejo em seguida ao espólio e ao roubo que os Tchokwe efetuavam sobre quem outrora lhes havia levado parentes como escravos. Tchikuza e seus atos de guerra, desdobráveis como uma espiral de atos e fatos, viria a ser continuado nas intervenções da mukanda. Tais versões de tchilombo denotam que a escravidão como tal foi por muitas décadas contraposta não apenas por ylombo de fuga às rotas escravagistas, mas por resistência e contra-ofensivas. Muitos ylombo nas matas vieram a se estabelecerem como novas aldeias, na medida em que haviam se mostrado protegidos e fora do alcance das rotas escravagistas. Na verdade, o tchilombo expressou entre os Tchokwe do alto Kassai e além, a contínua afirmação política de suas relações genealógicas quanto à terra e ao trabalho que estavam sendo ameaçadas pelos ymbali, na medida em que as razias escravagistas incidiam diretamente sobre a reprodução social e genealógica das famílias. O fato dos ymbali terem sido elevados pelos Tchokwe à condição sobrehumana, mahamba sendo por vezes traduzidos como "santos", expressa o modo profundo como os Tchokwe viram e reconheceram a magia e a potência 67 predadora dos ymbali que cabia ao ritual estabelecer a mediação ritual. Dos domínios político-genealógicos Tchokwe mais ocidentais, uma estatueta de Tchipinda Ilunga coletada nas décadas finais do século XIX inscreve em sua iconologia a incorporação cosmológica que os Tchokwe procederam em relação aos ymbali: Tchipinda Ilunga – objeto ritual-genealógico de muanangana Tchokwe passa a figurar não mais com os atributos da inerente e constitutiva magia de caça Luba (Figura 1), senão em posse da magia cuja predação os Tchokwe haviam domesticado e se apropriado: as armas de fogo. Tchipinda se apresenta figurando com seus duplos cosmológicos transformados ritual e dialeticamente em quase-parentes: os mahamba ymbali que passavam a compor a tissemuka Tchokwe e a pessoa do próprio muanangana (Figura 4). 68 (Figura 4, Tchipinda Ilunga e seus mahamba wa ymbali; Wastiau, 2006) 69 Se a predação dialética se constituiu e se mostra preeminente entre os ymbali e os Tchokwe no plano ritual, não deixa de ser sintagmática da cosmologia que permeia as relações sociais entre os Tchokwe e agentes predadores ao longo do processo histórico. Não se trata de reduzir a cosmologia ao plano ritual, se esta atravessa a própria experiência das relações sociais. Trata-se no plano sociológico também de estratégias de apropriação e domesticação, na medida em que os Tchokwe, eles próprios, passam a constituir dialeticamente longas caravanas mercantis levando marfim, cêra de mel e borracha diretamente para o planalto central em circulações inversas e intensas de trocas entre fetiches – dos Tchokwe e dos ymbali (Heintze, 2004). Retornam das aldeias ymbali trazendo armas, pólvora, sal e panos, cujos valores haviam se tornado as principais categorias de troca nas dívidas sociais (mukuli) entre pessoas e famílias. Apropriação que se fazia concomitante à expropriação dos ymbali, no sentido em que em caravanas inversas, nos ylombo armados e nos rituais de umbanda a predação devia ser controlada ao longo do tempo de forma a produzir continuamente as relações sociais entre os Tchokwe e os ymbali, reafirmando, no entanto, a diferença irredutível da tissemuka (genealogia, família) quanto aos negociantes de escravos. Os Tchokwe continuam a negar a escravidão na circulação de mercadorias, expressando com isso as dialéticas parciais da circulação de valores e a autonomia de seus domínios político-genealógicos sobre a terra e o trabalho. Não obstante as relações contraditórias entre os Tchokwe do alto Kassai e os ymbali, há tempos as caravanas haviam se acostumado a uma rota segura que só se concretizara, de fato, mediante acordo celebrado entre os ymbali e Muatyanvwa49. Em sua mussumba, aldeia fortificada com paliçadas e troncos que a deixavam protegida contra ataques, havia se constituído uma pequena colônia 49 Heintze (2004) empreende minuciosa análise das fontes históricas de viajantes europeus, agentes coloniais e biografias de ambaquistas letrados. O perído coberto decorre de 1850 a 1890, embora as caravanas há tempos já haviam se constituído. É do mesmo período que emergem as primeiras referências aos Tchokwe na literatura. 70 permanente dos ymbali e ambaquistas. Negociantes tinham se instalado, estabelecido alianças matrimoniais e famílias, mantendo lavras próprias e construído entrepostos mercantis avançados. Muatyanvwa lhes assegurara a permanência na mussumba, o estabelecimento das rotas comerciais com o planalto central e a garantia de tupindji. As caravanas que lá chegavam podiam ficar muitos meses até que as mercadorias fossem todas trocadas por tupindji, marfim, cera e borracha. Os próprios Lunda não permitiam que o interior do continente fosse adentrado, cabendo a eles próprios tal monopólio comercial, por meio do qual avançavam ao sul do Congo, realizando expedições de captura de escravos e obtendo marfim e borracha. Dotados de armas de fogo, os Lunda empunhavam o poder durante o século XIX nos cerrados do sul do Congo, reivindicando o direito de exigirem marfim e tupindji dos miangana Luvale e mianangana Tchokwe. Direito este que se fundava no reconhecimento dos Tchokwe e Luvale da precedência político-genealógica de Muatyanvwa, mas que logo passaria a se tornar ilegítimo consoante o ritmo ditado pela demanda das caravanas dos ymbali. Segundo Glückman (1983), os Lozi do sul da Zâmbia gozavam de semelhante domínio político sobre um vasto território. Em ambos os casos, a política de valor agia diretamente sobre a estrutura da troca. O marfim só se tornava mercadoria para os grandes chefes, seja dos Lunda ou dos Lozi, os quais impunham a exclusividade sobre tal circulação de valor em seus domínios político-genealógicos. Desse modo, o marfim se constituía como um valor-detroca pelo qual o caçador e o muanangana local adquiriam prestígio, enquanto Muatyanvwa obtinha a própria mercadoria, assim como hoje desempenham papel análogo as peles de leopardos e leões caçados no território de um muanangana, cuja circulação constitui seu privilégio exclusivo. Na medida em que a mercadoria marfim sofre fundamental transformação no tocante ao regime de valor em sua esfera de circulação mundial, possuí-lo se torna condição para aquisição das mercadorias que cada vez mais circulavam com as caravanas de ambaquistas e ymbali até a mussumba de Muatyanvwa. Por decorrência, Muatyanvwa passa a exigir dos mianangana Tchokwe uma crescente 71 quantidade de marfim, tanto nos cerrados a oeste (atual Angola), quanto nos cerrados à leste (atual Congo-Kinshasa)50, e a expansão dos Tchokwe para leste parece estar estritamente vinculada à caça de elefante (Heintze, 2004). O não-fornecimento de marfim acarretava na exigência do envio de tupindji (pl. kapindji) para a mussumba51, os mesmos a serem negociados nas caravanas dos ymbali, o que, negado continuamente pelos Tchokwe, daria ensejo a retaliações sob a forma de razias escravagistas praticadas pelos Lunda em aldeias do alto Kassai. Afinal, não se tratava mais de tupindji, mas de parentes que seriam tornados escravos e não mais voltariam. Para se contraporem às imposições, os Tchokwe passam a se apropriar das caravanas, redirecionando o marfim para negociações diretas no planalto central, mediante as quais obtinham armas de fogo, pólvora, panos e sal. Dessa forma, os Tchokwe passam, por um lado, a conter e domesticar a predação dos ymbali e, por outro, a negar a legitimidade das demandas de Muatyanvwa. Saúda afirma que os "quata-quata" (razias) de cativos praticados pelos Lunda nas aldeias seriam substituídos progressivamente por tributos em sal e demais mercadorias que os Tchokwe obtinham em suas próprias caravanas ao planalto central. Isso se torna revelador do modo pelo qual as obrigações sociais quando 50 Com a repartição da África Central em finais do século XIX entre portugueses, ingleses e belgas, a partir de "acordos escritos" com chefes locais (Wesseling, 1998), diversos povos veriam seus domínios políticogenealógicos divididos entre, e submetidos a, diferentes Estados Coloniais. A mussumba de Muatyanvwa foi inserida no outrora Congo Belga. Os Lunda e os Tchokwe tiveram seus territórios divididos entre Angola e Congo-Kinshasa, enquanto os Ndembu, os Luvale, os Mbunda e os Luchazi fotam conformados parte em Angola, parte na Zâmbia. 51 Vellut (1972) afirma que entre os Lunda havia não apenas o que ele denomina "esclavage familial (household slavery)" mas "un esclavage 'd'Etat', utilisé en vue d'augmenter la production agricole, et permettant d'assurer à l'oligarquie l'accès aux biens de prestige étrangers (p.77)". Não cabe no presente trabalho discutir as diferenças entre ambos os tipos de escravidão, cujo esforço bibliográfico está além das possibilidades de uma dissertação de mestrado. A partir dos Tchokwe, no entanto, torna-se claro que as relações sociais de dívida não constituem escravidão, antes uma forma de ampliar topologias de parentesco e de estabelecer relações sociais entre famílias, aldeias e yfutchi. Que os Tchokwe atacariam sistematicamente as caravanas de ymbali não deixa de ser sintomático de que a escravidão era prática contraditória na circulação de pessoas e bens. 72 impostas e vistas como imorais – isto é, que não se respaldam na moral precedente – podem dar lugar a estratégias políticas contrárias e de recusa. Com efeito, as contradições crescentes frente a Muatyanvwa no tocante ao modo de se relacionar com as caravanas escravagistas, as exigências em tupindji, marfim e tributações dos Tchokwe, conduzem diversos mianangana a recusarem, de fato, a precedência e prerrogativa político-genealógica dos Lunda, preparando uma longa e derradeira ofensiva de guerra. Os guerreiros seguiriam semanas avançando em tchilombo, até prepararem o cerco final ao redor da mussumba de Muatyanvwa, que se localizava bem além do rio Kassai, a leste. Do tchilombo, eles atacariam a mussumba durante longos e intensos quatro meses, até invadi-la subjugando Muatyanvwa e fazendo cerca de três mil cativos, os quais seriam trocados ao norte, ao leste e ao sul, por marfim e borracha (Heintze, 2004). Por meio das estratégias de tchilombo, seja contra os ymbali ou Muatyanvwa, os Tchokwe reafirmavam seus próprios domínios político-genealógicos: as famílias e as aldeias, recusando as práticas escravagistas e a precedência politica dos Lunda52 . No final do século XIX, os Tchokwe se deparam com o avanço colonial português cuja marcha militar para o leste tinha por fim assegurar nas armas o que a cartografia política já legitimara sobre os papéis, alhures 53. Muatissengue54, que em grande medida negociara junto a outros mianangana a guerra contra os Lunda, ofereceria longa resistência às tropas portugueses na virada do século XX. Os cerrados e matas do leste de Angola estavam em guerra e as frentes militares dos 52 Henrique de Carvalho, general Português que empreendeu longa viagem pelo leste de Angola, estabelecendo "acordos escritos" com alguns mianangana e traçando parte da cartografia de guerra posterior empreendida por tropas portuguesas deixaria, não obstante, minuciosa etnografia de sua viagem de mais de quatro anos pelo leste. Na mussumba ficaria muitos meses, presenciando ele próprio os ataques dos Tchokwe. Parece que sua presença – uma caravana militar de brancos no leste de Angola – tem sido subestimada como estopim do confronto entre os Tchokwe e os Lunda, o que somente o aprofundamento da pesquisa de campo entre os Tchokwe de Angola e do Congo-Kinshasa poderá evidenciar. 53 A África Central fora repartida por cartógrafos europeus que desenhavam sobre o mapa as linhas máximas de avanço militar de cada Estado, referendadas na Conferência de Berlin em 1885. 54 Nessa primeira etapa de pesquisa de campo, não foi possível coletar relatos junto a Muatissengue, cujo domínio político viria a abrigar a cidade do Saurimo. 73 brancos (os ymbali) vinham de diferentes fronts, algo até então desconhecido, tanto pelo poderio bélico quanto pelos uniformes de guerra. Enviando guerreiros e preparando tchilombo nas proximidades dos principais rios que limitam seu território, Muatissengue conteria o avanço dos inimigos, criando linhas de confronto de longa duração, posto que ambos os lados contavam com armas de fogo e pólvora, os guerreiros Tchokwe lutando em estratégia de tchilombo, com com arcos e flechas, mas também com kanhangulu adquirido na circulação de valores ou que já eram fabricados por eles próprios a partir da arte metalúrgica, a pólvora sendo obtida na circulação de valores. Segundo Fontinha (1983), era diante dos myombo wa mushima55 de grandes chefes Tchokwe como Muatissengue e Mwandumba, que os guerreiros se ungiam para se tornarem invisíveis e conclamados a seguirem à luta até a vitória final56. Nos confrontos perderam-se muitas vidas, ao ponto dos lugares de batalha serem pensados e lembrados como kalunga – terra dos mortos. A derrota de Muatissengue teria impactos distintos. Ao norte, outro mianangana Tchokwe ainda fariam guerra contra o avanço militar dos brancos, recusando seu domínio político, os últimos confrontos de tchilombo remetendo à década de 1920. Ao sul do rio Kassai, a notícia de que Muatissengue fora derrotado após longo confronto, leva os mianangana Muamoxico e Kanhengue a seguirem até as matas ao sul do Moxico, onde, do outro lado do alto rio Kwanza, as tropas portuguesas já preparavam uma ofensiva visando a tomada do leste e a imposição política do domínio português, além de estabelecerem as fronteiras já acordadas com cartógrafos geopolíticos ingleses, na conferência de Berlin de 1885. 55 Lá no Altar ritual onde os antepassados malemba da genealogia política se fazem presentes, personificados em objetos esculpidos, diante dos quais sacrifícios são realizados. 56 Dos rituais de guerreiros Tchokwe antes da guerra, ainda pouco se sabe. Os dados de Fontinha (1983) não permitem maior aprofundamento. Nesse sentido, não está claro que tipo de substância caracterizou o ungimento dos corpos antes das batalhas nos ylombo, nem a transformação ritual decorrente. No decurso da primeira etapa de campo, não foi possível coletar relatos juntos a Muatissengue ou aos demais mianangana que ao norte fariam guerra contra o avanço português. 74 Kwanza, os acordos de paz foram efetivados e os ymbali/yndeli57, viriam a se estabelecer nos domínios de Muamoxico. Primeiro as tropas, em seguida os missionários cristãos. Só algumas décadas posteriores, a administração colonial far-se-ia presente, de fato. Sob certo ponto de vista, a dominação portuguesa revive e aprofunda a posição que outrora fora negada a Muatyanvwa. O projeto colonial se inicia em diferentes gradações, embora recorrente quanto ao emprego de práticas de trabalho forçado, sendo exigido de cada muanangana tributos de guerra: o envio de tupindji para as obras que os Puthu (portugueses, como os Tchokwe viriam a chamá-los) iniciavam em diferentes yfutchi (domínios políticos matrilineares), a começar pela de Muatissengue, reconhecido como grande muanangana e que à diferença do norte já havia sido derrotado nas armas. Em seu domínio, veio a se constituir um povoamento dos Puthu, a vila Henrique de Carvalho58. Diante das práticas escravocratas trazidas pelos portugueses, muitas são as famílias que partem em fuga, seguindo para as matas do alto Kassai, do alto Tchikapa e do Moxico onde a colonização ainda não se fazia presente. Muanangana Sakalubuana fugira de tchifutchi mais ao norte, justamente diante do risco de se tornar kapindji quando os Puthu iniciaram a prática de trabalho forçado na construção das cidades e estradas. Era ainda novo quando sua família e outras partiram em fuga em direção ao sul. Procuravam a mata alta, próximo das cabeceiras de rios secundários do alto Kassai, onde pudessem construir aldeias em acampamentos provisórios: ylombo (quilombos). De Sakalubuana (2010), afinal, provêm os primeiros relatos mais pormenorizados do tchilombo. Procuravam as matas altas e um local próximo das cabeceiras dos rios. Quando encontravam um lugar apropriado, construíam em dois ou três dias as 57 No Moxico e mesmo em partes do alto Kassai, o branco possui a dupla denominação: tchimbali e tchindeli, o que expressa diferentes formas de aproximações coloniais ao longo do processo histórico, seja indireta ou direta. Tchindeli e tchimbali são entidades nos cultos de Umbanda , respectivamente dos Luvale e dos Tchokwe (Whyte, 1948; Lima, 1971). 58 Atual cidade do Saurimo. 75 casas de capim. Se fossem muitas famílias, cada grupo de famílias relacionadas construía um tchilombo. Os primeiros meses eram exclusivamente de caça e coleta, só com o tempo as primeiras lavras podiam ser iniciadas em locais que tivessem terra vermelha e escura, mais forte para as plantações, o que podia implicar em mudança de local quanto à escolha de onde as casas e cozinhas definitivas seriam construídas. O tchilombo na mata sempre tinha uma fase inicial em que as casas eram simples, podendo mesmo ser apenas um telhado de capim sem paredes, se os primeiros meses fossem de luchiho, quando certos trechos da floresta de terra branca e arenosa já limpos em um grande terreiro podiam bastar como locais de dormir junto de uma fogueira. Após os primeiros meses e nas condições e locais ideais para iniciarem as lavras é que as famílias procediam à construção definitiva de casas (zuwo) e cozinhas (tissambwê). O trabalho coletivo para construções definitivas, capazes de durarem anos, sempre exigiu maior esforço entre os Tchokwe, em especial no tocante aos telhados, cujo capim mais resistente só podia ser obtido das nascentes dos rios quando as águas baixassem e o capim secasse em luchiho, sem o qual os telhados não agüentariam muitos meses de chuvas forte em luisa. Precisavam ser construídos de forma a manterem firmes e secas as paredes de madeira e capim ou de pau-a-pique. Depois de um tempo inicial, com as casas e as lavras, as aldeias passavam a ser no meio da mata, os caminhos ligavam-nas por pequenas trilhas. Cada tchilombo (quilombo) se tornava uma tchihunda59(aldeia). 59 O mesmo processo parece acompanhar a expansão dos Tchokwe fugindo das caravanas escravagistas e seguindo para as matas cerradas e altas que ainda ocupam em boa parte do atual Moxico. Lima (1971) esteve no limite sul da terra dos Tchokwe, localizado na atual província do Kuando-Kubango há centenas de quilômetros do alto Kassai. Entrevistando um muanangana, foi-lhe afirmado que os primeiros Tchokwe lá chegaram em meados do século XIX. Se as matas do Moxico eram ocupadas apenas por kamissekeles, resta a questão: se os Tchokwe, Luchazi, Nganguela, Luvale, Mbunda, Ndembu compartilham os mesmos rituais (umbanda, mukanda, mungonge), o que afinal define seus etnônimos? Quais as genealogias que os aproximam? Miller (1978) chega a afirmar que uma das genealogias dos Lunda remete a Luchazi como origem. Os Nganguela do Kuando-Kubango também se utilizam do termo tchilombo para definir acampamentos na mata que precedem a construção de um limbo (aldeia) e que foram usados como estratégias de fuga à chegada dos portugueses e diante da exigência de trabalho forçado nas aldeias, ainda no início do 76 Por meio da estratégia de tchilombo, a história política dos Tchokwe pode ser pensada na longue durée. Sendo construído nas matas em estratégias de fuga, resistência e autonomia, cada tchilombo se tornava com o tempo uma aldeia, de onde os ataques às caravanas escravagistas podiam ser efetivados, de modo a contrapor o risco de a aldeia sofrer razias. Uma aldeia ameaçada se desdobrava em fuga e na construção de um tchilombo mais profundo na mata fechada, de onde podiam permanecer protegidos das rotas das caravanas ou em posições privilegiadas de fuga e ataque. Em caso de confronto distante, a construção de tchilombo detinha vida efêmera, um acampamento simples e provisório na mata, de onde os ataques planejados seriam efetivados, seja contra os Luba, a mussumba de Muatyanvwa ou frente às caravanas de ymbali que se aproximavam da travessia dos rios na marcha para o leste. O tchilombo se mostra, assim, uma forma organizacional e um conceito preeminentes na história política dos Tchokwe. Tendo se consolidado no leste de Angola por força militar e subjugado os mianangana Tchokwe, os Puthu constituíram os alicerces de uma nova estrutura de poder. Surgiram pequenos enclaves urbanos e as primeiras estradas. Entretanto, muitas áreas permaneceram isoladas, com aldeias dispersas na extensa mata fechada longe do contato com o branco. Elas assim se mantiveram, malgrado o lento avanço do Estado Colonial, de missionários, de empresas madeireiras e da ferrovia. Os Puthu dividiam em comunas os imensos domínios dos denominados "povos indígenas". As sedes comunais eram construídas, sobretudo, junto aos mianangana que não oferecessem mais resistência, ou em áreas de missões cristães a serem estabelecidas. O projeto português se fez acompanhar desde o início pelo avanço militar e missionário que se fundem e se tornam partes inerentes do Estado colonial. Cabia aos missionários sobrepor a cosmologia dos século XX, segundo relatos um próprio Nganguela que com a guerra veio morar no Dala, área dos Tchokwe. São questões que permanecem em aberto e não respondidas pela bibliografia. Afinal, até onde se limitam os povos bantu centro-africanos que adotavam estratégias políticas de tchilombo? 77 Puthu aos "ídolos e demônios" dos Tchokwe, embora a recusa fosse onipresente, em especial nas matas fechadas e inalcançáveis no alto Kassai e no Moxico, as mesmas que permitiam a muitos mianangana permanecerem afastados de qualquer presença branca. A guerra se desdobrava, com efeito, em outro plano: a cosmologia do Estado e das missões. Foi então após algumas décadas de imposição do Estado Colonial e da subjugação dos Tchokwe, da apropriação de territórios ancestrais, da memória do trabalho escravo e de clivagens cosmológicas, que guerrilheiros chegaram pelo leste, cruzando as fronteiras da Zâmbia e do Congo-Kinshasa e adentrando as matas do Moxico, onde ainda hoje se afirma "a guerra começou e terminou". No princípio dos anos 1960, nas aldeias ainda dispersas nas matas do leste, os guerrilheiros instam a recusa em bloco do domínio político português, afirmando que todos os povos de Angola tinham que lutar juntos para expulsar os Puthu de suas terras. Nas matas, as aldeias ainda guardavam vivas as histórias e conhecimentos de tchilombo de muitas gerações, como ainda hoje ocorre. Com os guerrilheiros, muitas são as famílias que abandonam as aldeias e seguem para a mata fechada, deixando lavras e animais para trás. As aldeias ficam vazias e as notícias dos ylombo correm na velocidade e dispersão das conversas. Diante do esvaziamento progressivo das sedes comunais e das aldeias contatadas, os Puthu tomam conhecimento dos acampamentos na mata profunda. As poucas aldeias ainda povoadas têm sua população removida às pressas em caminhões e reunidas próximo às sedes municipais e provincial, numa tentativa de conter a guerrilha de tchilombo. A estratégia do Estado Colonial não se resumiria a tais ações, mas seria prosseguida por incursões na mata. As ações armadas dos Puthu passam a ser contrapostas pelas armas AK que chegavam da Zâmbia e passavam a municiar os ylombo. Não eram mais os kanhangulu ou as caçadeiras mauser, mas metralhadoras de fabricação russa, trazidas pelos guerrilheiros. Os ylombo deslocam-se periodicamente pelas matas, numa estratégia de fuga constante e de acampamentos provisórios e sempre móveis, comunicando-se entre si. O domínio territorial que antes parecia claro aos Puthu, mostra-se agora 78 como uma exceção restrita aos pequenos enclaves urbanos. As matas estavam ocupadas por ylombo, e as incursões armadas das tropas coloniais na busca de desmantelar alguns acampamentos causavam mortes e contra-ofensivas. Os ylombo sempre se modificando de lugar, com pequenas plantações e vivendo da caça e da coleta se mantinham fora do alcance das tropas coloniais. As matas do Moxico são demasiado extensas e bem conhecidas pelos Tchokwe, Mbunda, Luvale, Luchazi que passavam a constituir a guerrilha revolucionária em diferentes e muitos quilombos. Entrementes, as infrutífetas incursões na mata pelas tropas coloniais se tornam progressivamente sobrevôos de "avionetas" e bombardeios indiscriminados de napalm60, ataques de helicópteros que vasculhavam as matas em busca de tchilombo levando consigo metralhadoras de corrente para desmantelar os acampamentos da guerrilha dos Tchokwe no alto Kassai. As mortes e bombardeios levam muitos a abandonarem os ylombo, mas não a retornarem para a subjugação aos Puthu. As famílias seguiam em longas caminhadas que perduravam semanas: os ylombo passam a ser de fuga até a fronteira com a Zâmbia – Estado já independente, aonde muitos Tchokwe do Moxico viriam a se refugiar. As histórias de tchilombo ainda persistem e são transmitidas nas aldeias. De manhã logo cedo, antes do dia nascer e com o terceiro canto do galo no terreiro, estou fora da casa com Giramente a preparar as bicicletas. Findamos o cigarro antes de seguir o longo caminho, ainda molhado de orvalho e frio da estação seca, até a aldeia de Tozê há cerca de 20 km, local em que havia outrora um tchilombo do MPLÁ61. Seguindo pelo alto Kassai, a paisagem sempre alterna pequenas baixas de capim amarelado e alto e matas de cerrado. Partindo antes do dia raiar, assisto as cores do céu mudar à medida em que o sol rompe o horizonte dos cerrados centro-africanos até despontar radiante.. Chegamos bem cedo na aldeia de Tozê, ele ainda estava na cozinha de uma 60 As guerras portuguesas na África deram ensejo assim como no Vietnã a bombardeios de napalm. 61 Movimento pela Libertação de Angola, fundado em 1956. 79 das mulheres, aquecendo o corpo junto à fogueira. Ao nos avistar, logo sai para o terreiro. Pede que sua esposa traga algumas cadeiras de dentro da casa para fazermos a saudação, enquanto retorna à cozinha para apanhar a folha de konono62 que ainda verde e fresca secava próximo da fogueira. Ele volta com seu pequeno pilão, a socar a folha já seca até deixá-la num leve pó verde, retirando cuidadosamente os pequenos ramos do caule, antes de pegar uma brasa incandescente da fogueira e deitá-la cuidadosamente sobre o pó pilado que em poucos segundos fica extremamente fino e amarelado, no ponto ideal que os mais velhos apreciam antes da alvorada, capaz de, ao ser cheirado, refrescar olhos, espírito e pensamento. Sentamos todos em sua varanda, onde sua mulher já dispusera as cadeiras e logo em seguida traria uma garrafa de katchipembe (aguardente de milho). Trata-se da primeira, como se diz em referência ao começo da destilação, que estava sendo feita em sua cozinha, as espigas de milho já secas do tempo seco dotam o leve aguardente de extrema qualidade. Após a saudação, em que falo da viagem de bicicleta, da saúde e do que tinha me trazido logo cedo, peço-lhe que me fale um pouco sobre o tchilombo contra os Puthu que existiam nessas matas. Havia muitos ylombo nas matas. Aqui no Kassai, tchilombo Pc-Bandeira, tchilombo Tsombo [atual aldeia do Muanangana Ndumba], tchilombo Caueuê [atual aldeia de Tozê], tchilombo Mufupo [atual aldeia do Muanangana Mufupo], tchilombo Patchanga e tchilombo Muacthifungo. No Mukwalongo [tchihunda de Muanangana homônimo, no outro lado do Kassai], os Puthu haviam colocado tropa para proteger os armazéns de comerciantes e de lá faziam incursões na mata, procurando os ylombo Mufupo e Patchanga. Foram muitas incursões, mas havia contato entre os ylombo daqui e os de lá pelo rio, sempre se deslocavam para não serem encontrados pelas tropas, e quando os Puthu mataram Patchanga e outros numa emboscada, prenderam alguns, embora muitos conseguiram fugir e foram para o rio, atravessaram para os ylombo daqui. No tchilombo, estavam todos juntos, famílias inteiras, crianças pequenas, mais velhos que haviam já feito tchilombo, na época em que os Puthu chegaram e exigiram tupindji nas aldeias. Não havia animais ou cachorros, para não fazer barulho e atrair as tropas. Caçavam com armadilha e faziam pequenas lavras. As casas eram de construção rápida. Quatro estacas de pau, 62 Um espécie de makanha (fraca), das mais apreciadas e potentes para fazer rapé. 80 fazendo um quadrado, um pau no meio de cada lado. Paredes feitas até o chão de molhos de capim seco tirado das baixas dos rios e amarrados com corda de casca de árvore. O telhado também era assim. Em luchiho (tempo seco) dormiam em esteiras ou no chão limpo, próximo do fogo. Podiam fazer buracos no chão, sendo tampados com palha ao nível do chão, quando os Puthu chegavam próximos e na ameaça imanente o tchilombo se dividia em muitos. Todos os homens tinham AK. Ficavam semanas ou até dois meses em cada tchilombo. Havia emboscadas quando os Puthu avançavam pelas matas. O tchilombo aguentou oito, dez, doze anos. Em 72, as avionetas bombardearam tudo, vinham de helicóptero e metralhadora. Não tinha como aguentar com arma na mão, morreu muita gente, os que viveram fugiram em retirada, caminhando semanas pelas matas até chegar à Zâmbia (Tozê, 2010). Pergunto a Tozê se havia tchilombo da Unita63 nas matas, logo sendo respondido de forma direta e enfática: "Você pensa o quê?! Eu sou do MPLÁ". De fato havia poucos, "eles chegaram depois, não queriam se unir, lutavam de caçadeira e porrete". Refugiados na Zâmbia, os Tchokwe retornariam quando da Independência que seria outorgada por Portugal em 1975. No Moxico, onde a guerra havia começado por meio dos ylombo, o Estado angolano é fundado. A luta havia acabado, os Puthu tinham ido todos embora, as casas de vilas e cidades foram apropriadas, assim como o Estado que passava a ser ocupado no Moxico pelos Tchokwe e outros povos do leste. A vida voltava a ser, em grande medida, nas yhunda (aldeias) reconstruídas nas matas onde os ylombo (quilombos) haviam por anos exercido sua política. As famílias recomeçavam as lavras, construíam as casas, voltavam a viver nos terreiros e no tempo próprio de luchiho e luisa. 63 União pela Independência Total de Angola, fundada em 1966. 81 1.3) Em Estado de tchilombo A independência é conquistada em 1975 e o principal movimento guerrilheiro anti-colonial, denominado MPLÁ, declara o Estado Socialista em Angola. Nos meses seguintes, a África do Sul invade unilateralmente Angola a partir do sul, no atual Cunene e Kuando-Kubango,64 declarando guerra contra o Estado Socialista, temerosa de que a revolução de espalhasse ao sul, a começar pela Namíbia que então constituía província sulafricana fronteiriça com Angola. Armados com aviões de caça franceses, carros de combate e Land-Rovers camufladas britânicas e armamentos pesados estadunidenses, o exército sulafricano avança sobre o sul de Angola. Vieira, um dos personagens conhecidos em campo (vide Parte II), comandava uma tropa do MPLÁ com mil homens provenientes de diferentes povos, muitos Tchokwe, armados até os dentes com AK, mais nada. Foi a frente de guerra das mais difíceis e dramáticas, em campos abertos e suscetíveis a ataques e bombardeios aéreos sulafricanos, as perdas sendo incomensuráveis. Vieira pouco conversa sobre a guerra, como muitos Tchokwe aliás. "Das mortes não se deve lembrar". O exército sulafricano logo recebe em suas fileiras o apoio da Unita, movimento anti-colonial fundado dez anos após o MPLÁ e do qual os Tchokwe não possuem boas lembranças desde o tempo da lura armada nos anos 60. A Unita, ao recusar o Estado Socialista declarado pelo MPLÁ, se dirige com seus porretes e suas caçadeiras para o sul e leste de Angola, onde celebra acordos com os sulafricães, como o escritor Pepetela carinhosamente se refere às tropas sulafricanas que invadiram Angola em nome do Apartheid e de certa arquitetura pós-colonial. O exército sulafricano e a Unita passam a lutar juntos, compartilhando as armas e a comensalidade da guerra, tomando o poder e ocupando progressivamente sedes provinciais e municipais no sul e leste de 64 A Namíbia à época não era independente, mas uma província sulafricana fronteiriça ao sul de Angola. 82 Angola, numa ofensiva fulminante que pretendia avançar até Luanda e impor um golpe de Estado. Congo-Kinshasa, então Zaire, precursor da luta de libertação anti-colonial na África Central, já havia tombado num golpe militar financiado por EUA e Europa, pequenas e reverberantes crônicas do que Glauber Rocha já enunciava na cinematografia política de sua epopéia centro-africana: O leão de sete cabeças (1970). No entre-atos, contudo – diante dos atos, poder-se-ia melhor afirmar – o nascente Estado angolano obtém apoio das forças armadas revolucionárias de Cuba, de modo a conter a invasão sulafricana e a tomada progressiva das províncias. Rússia e China enviam armamentos na escalada dos conflitos, permitindo que as forças sejam equiparadas. Uma longa e embrutecida guerra de conotação mundial toma conta de Angola por quase 30 anos. Por ter uma vegetação de mata fechada e estar próximo às fronteiras, o Moxico se torna um palco principal de guerra que, não obstante, logo se espalha progressivamente por diversas províncias. A guerra seria marcada novamente pela estratégia de tchilombo em ambas as frentes. Os Tchokwe ao se referirem aos confrontos, descrevem-nos precisamente como uma guerra de tchilombo na mata, tchilombo contra tchilombo. Se as sedes provinciais logo se tornam seguras e ausentes de conflitos, motivo pelo qual passam a receber famílias oriundas das aldeias no interior cada vez mais violento, as sedes municipais permanecem expostas ao conflito, sujeitas a ataques e contra-ataques, ocupações da Unita e retomadas pelo Estado. Nos yfutchi mais afastados dos enclaves urbanos, a Unita constrói seus ylombo. Dos que lutaram nas linhas de frente, a escalada da guerra no pós-independência não poderia ter sido mais insana, "uma guerra de angolano contra angolano, irmão contra irmão", tão contraditória em relação aos ylombo da guerrilha revolucionária em sua pragmática política. Os ylombo da Unita invadiam aldeias, nas maiores entravam descarregando a metralhadora para conter reações, queimando as casas e matando quem oferecesse resistência à captura de jovens, o motivo maior dos ataques. Quem fugia, como Giramente e sua família, deixava tudo para trás, tudo – feridos no chão, amigos e parentes mortos, casas queimadas, lavras perdidas, tiros para todos os lados, passado, lembranças, 83 lugares e vida. Os jovens capturados eram levados aos recém-formados ylombo da Unita na mata alta, onde eram treinados para a guerra e mortos no caso da recusa ou da tentativa de fuga. Dos ylombo da Unita, preparavam-se ataques às sedes comunais e municipais a fim de capturar mais jovens para as linhas de guerra e roubar armamentos e alimentos. A partir das histórias que me contou Giramente, torna-se claro que uma perspectiva total sobre a guerra implica e só se faz possível na sobreposição monofônica e na perda das experiências vividas, contrastes entre uma visão macro e outra micro, um ponto de vista estrutural a partir dos estados em conflito, outro fenomenológico a partir da experiência das pessoas, pois a guerra sempre é vivida de diferentes formas, parciais e fragmentadas. Isso implica, por conseguinte, que uma visão total da guerra, quando formulada a posteriori faz perder de vista como ela é sentida e vivida nas relações sociais e nas biografias pessoais. Vista desta última perspectiva, a guerra fragmenta e se fragmenta. Muitos Tchokwe preferem, hoje, esquecê-la por completo, liberando de si algo que não deve ser lembrado. Apenas a vida, sim, deve ser continuada de forma intensa em seu ritmo cotidiano e presente. Questionados sobre a guerra, muitos se limitam a afirmar em português pausado e amargurado, "guerra!? Não vale a pena, morreu muita gente. Não vale a pena. Não vale a pena". Após o massacre e a destruição pela Unita da aldeia onde crescera, fizera mukanda65 e se casara, Giramente seguiu com a mulher e o filho pequeno para Luena, a sede provincial que permanecia como um bunker seguro durante a guerra. Alistando-se nas tropas do Estado, Giramente seria treinado por instrutores russos e cubanos que protegiam Luena dos ataques da guerrilha contrarevolucionária. Giramente combateu no início dos anos 80, permanecendo cinco anos entre as Fapla66. Seria enviado por vezes aos fronts na comuna do Cangumbe, poucas dezenas de quilômetros distantes de Luena, onde em suas 65 Ritual de iniciação masculino. 66 Forças Armadas pela Libertação de Angola, constituída pelo MPLÁ após à invasão sulafricana, passando a conformar as forças armadas do Estado. 84 matas altas e terreno montanhoso permaneciam importantes ylombo da Unita. Os freqüentes ataques à sede comunal obrigavam o Comando em Luena a enviar colunas para retomar Cangumbe – posição estratégica para impedir ataques fulminantes sobre a sede provincial. As colunas davam ensejo a violentos conflitos ao longo do caminho, quando a guerrilha mantinha-se à espreita em total silêncio na mata baixa há poucas dezenas de metros da estrada, pronta para abrir fogo no momento oportuno e fatal, explodindo os caminhões-tanques da coluna e impondo longos combates de trincheira. Quando surpreendidos, os soldados das Fapla corriam em velocidade para fora dos caminhões que os transportavam, jogando-se ao chão e com a pequena pá que carregavam, cavando rasas trincheiras de 50 cm de altura, o suficiente para não morrerem e conseguirem contrapor o fogo cruzado que durava por vezes um dia inteiro ou mais, antes da guerrilha se dispersar silenciosa mata adentro. Trincheiras rasas que muitas vezes se tornavam simples covas. Após um desses confrontos, em que a sede comunal abandonada pela guerrilha seria novamente ocupada, Giramente seguiria em coluna ao rio Lungevungu, para formar um tchilombo e avançar meses adentro nas matas fechadas. Cada coluna avançava com até cem carros, tanques e caminhões de combate levando consigo um ou dois batalhões com cerca de mil combatentes cada. Os caminhões russos mais pesados e de tração nas seis rodas rompiam matas adentro, até encontrarem um lugar onde o tchilombo seria fundado e disposto em dois círculos concêntricos. No círculo interno e menor permanecia o comando e os suprimentos, sendo rodeado por casas de palha construídas rapidamente, com três combatentes em cada "caserna", permanecendo entrincheirados. No círculo externo, maior, a tropa se dispunha em centenas de casas de palha ao redor da trincheira externa. Grupos de 10 a 20 soldados saíam em diferentes direções, avançando até uma semana pela mata, procurando vestígios de tchilombo da Unita. Quando retornavam sem nada encontrarem, o tchilombo avançava como um todo para um ponto mais profundo na mata, onde o procedimento seria repetido, permanecendo por oito meses na mata, em avanços sucessíveis, 85 percorrendo todos os rios e cantos até encontrar o tchilombo da Unita. Giramente me narra um ataque demasiado duro nas matas de Cangumbe, do qual preferira esquecer, deixando bem enterrado em sua memória, só ao final de semanas de conversa se recordando, como se a memória funcionasse em ocasiões extremas como um seletor de imagens e acontecimentos, preferindo muitas vezes o esquecimento sistemático de experiências impactantes. Seu quilombo procedera então então a um ataque fulminante contra o quilombo da Unita que fora descoberto próximo de um rio, ataque que obedecia à lógica da guerra, do "viu e assustou, mete na cara, senão leva". Não havia alternativa no encontro de ylombo, ou matava-se ou morria-se no intenso fogo cruzado. Na estratégia de ataque do tchilombo das Fapla, havia normalmente dois fronts, um que chegava atacando pela frente, outro que já seguia pela retaguarda, antecipando e evitando a fuga generalizada e, posteriormente, a vingança silenciosa e mortal dos que se refugiassem nas matas. Após a violenta e tensa tomada do tchilombo da Unita em Cangumbe, Giramente sentara no meio do acampamento vencido e diante da carnificina presente da guerra. Um de seus amigos, que vasculhava as casas de palha para ver se alguém se escondera, logo encontra uma imensa cabaça de makanha, trazendo-a para Giramente que, há meses na mata, não tinha mais fumo. Ele enche os bolsos da calça e do casaco de makanha, e logo acende um charuto grande e silencioso. Giramente permanecia só, em si próprio, pensando no meio de uma mata insólita e de uma guerra sem fim. O comandante logo pergunta quem estava a fumar, já que ele ainda não havia dado a autorização para tanto. Giramente de pronto responde: "Sou eu, comandante, Giramente. Estou fumando para colocar uns pensamentos na cabeça". Quem viveu a guerra nas linhas de combate prefere esquecê-la, deixando suas lembranças profundamente enterradas e fechadas, pois o poder de destruição da guerra moderna "não vale a pena, não vale a pena". 86 Do palco da guerra: teatro de inter(in)venções Duas imagens parecem bem refletir o Moxico dessa guerra recente: a explosão do riso contido e as mortes incabíveis. Contexto Léua, pequena sede municipal, foi o palco. Depois dos anos de combate em tchilombo nas matas, Giramente passa a morar nesta vila urbana que ainda criança era domínio dos Puthu. Sakazemba, a aldeia onde crescera com seus pais, e constituíra casa e lavra havia sido destruída pela Unita, ainda no final dos anos 70. Ao regressar dos ylombo do Estado, preferira morar em outro lugar e recomeçar sua vida, malgrado a aldeia Sakazemba ter sido em parte rehabitada por alguns de seus parentes. A memória dos acontecimentos e do quê ficara para trás, destruído, permanecia viva. Em Léua, Giramente trabalhava no Partido, no setor de militância junto aos jovens. Nas cercanias da sede, cultivava sua lavra. Léua se encontrava no meio do conflito e era alvo potencial dos ylombo da Unita, que viam nos ataques a possibilidade de roubar armamentos e alimentos, além de capturar jovens para suas fileiras. Enquanto outras sedes municipais já haviam sido atacadas, Léua permanecia em estado de constante incerteza e a vida havia de seguir seu ritmo. Ato 1: A explosão do riso contido Celebrava-se o 14 de abril, dia da Juventude Angolana. Léua há mais de uma década fora apropriada pelos Tchokwe, ao redor as aldeias já redesenhavam a arquitetura colonial. Diante da imensa praça de chão batido em areia branca e sombreada por eucaliptos altos, o Estado se fazia presente na tribuna de honra, a mesma que nos dias normais virava esconderijo de crianças ou dava lugar a rodas de conversas. Não era o caso naquele momento. A tribuna era composta pelos 87 membros do Estado, do Partido, os mianangana, o Representante das Fapla67. Ao fundo, na ampla praça ocupada por milhares de pessoas que vinham também das aldeias próximas, a orquestra de batuques Tchokwe (ngoma) se apresentava em uma de suas formações completas: ngoma wa xina, ngoma wa kasaswilu, ngoma wa mukhundu, ngoma wa kasumbi, cada ngoma possuindo uma sonoridade correspondente a seu tamanho e suas batidas exclusivas. Uma orquestra em formação completa é impactante em sua sonoridade acelerada. Diversos maquixe (personagens mascarados) surgem no terreiro, vindo de vários cantos da pequena cidade. Ngulu, tchihongo, mwana pwo realizam suas performances e provocam a platéia. Diante da tribuna de honra e da imensa platéia, o poder do Estado se plasma e se afirma como esfera que emana também dos Tchokwe68. Em meio à guerra, os maquixe se faziam assim presentes, no grande palco em que se transformara a praça, personagens que capturavam a imaginação da platéia com enunciações corporais. Giramente já escutara que Samoni viria à festa. Era um dos maiores mestres de mukanda que ele já conhecera, possuindo a arte de fazer cada muquixe (sg de maquixe) e a sabedoria de inventá-los. Giramente, entretanto, não tinha como saber se Samoni estava no terreiro já composto por diferentes maquixe. De fato não estava e Giramente logo perceberia, não se esquecendo desse espaçotempo que permanece vivo em sua memória. Foi a primeira e única vez em sua 67 Forças Armadas pela Libertação de Angola que junto às Forças Armadas Revolucionárias de Cuba (Farc) asseguravam o domínio de Luena e outras sedes municipais, até o acordo de paz do início da década de 1990, quando tropas sulafricanas e cubanas se retiram do País como parte das negociações entre MPLÁ e Unita. A derrota de Savimbi nas eleições de 1992 levaria a Unita novamente para os ylombo na mata, buscando apoio com mercenários ruandeses que passavam a reforçar seus quilombos nas matas, sendo pagos em diamantes, cujas minas no leste eram em grande parte dominadas pela Unita. 68 Agradeço aqui aos comentários instigantes trazidos por Lygia Sigaud (in memoriam) na primeira reunião do círculo africanista no Museu Nacional ainda em 2008, em que a antropóloga já discutia o modo como danças, personagens e performances culturais passam a se constituirem como substrato de sentido e simbologia no Estado Pós-Colonial, ultrapassando o contexto das aldeias e se tornando também manifestas em rituais do Estado. 88 vida que como muitos outros presentes presenciaram o muquixe wa kévu-kévu. O rinoceronte se tornava sobrehumano, passava a compartilhar a humanidade dos Tchokwe, surgindo no terreiro ensandecido com seu chifre e performance provocadora e incontida, enquanto os outros maquixe dançavam ao centro da praça. Aproxima-se da orquestra de ngoma, já quente ao sabor das horas e do katchipembe que corria no sangue e pulsava os corações, imprimindo o ritmo musical que saía das almas. Kévu-kévu se apresenta à orquestra e à platéia, logo em seguida começando a subir o eucalipto próximo dos batuques, para espanto de todos que nada entendiam. O muquixe enlouquecera, acharam muitos – inclusive Giramente. Kévu-kévu sobe o eucalipto ausente de galhos, com as pernas entrelaçadas, até alcançar uma posição alta, acima da platéia, do Estado, dos maquixe e da orquestra contorcida. Retendo a física de seu corpo com as pernas entrelaçadas e rijas junto ao eucalipto, Kévu-kévu deixava livre seu tronco, cintura e braços que dançavam no ritmo dos batuques, antes de mostrar-se como enfurecido e perigoso rinoceronte em revolta contra os humanos a bater ferozmente com seu chifre contra o eucalipto – atitude inerente diante da guerra acuante dos humanos segundo a perspectiva de kévu-kévu, alternando ambos os movimentos, fazendo da loucura performada o riso explodido da platéia incrédula, como Giramente se recorda, em memória viva, da cenografia em que Kévu-kévu faria sua breve e potente aparição e invenção69 em provocativas intervenções de arte diante do calar momentâneo das armas na insanidade da guerra dos humanos. Ato 2: Cenografias de guerra Desde que voltara do front em meados dos anos 80, Giramente trabalhava 69 Tchikuza e Kalelwa, cuja genealogia remete aos primeiros ylombo de alguns séculos atrás, dão mostras do papel atribuído à construção de personagens e ficções rituais entre os Tchokwe. A questão da inventividade exige, entretanto, estratégia outra de pesquisa junto aos Samuquixe, os grandes artesões de personagens, e aos mestres de mukanda. Strother (1998) explora com maestria a história dos maquixe entre os Pende do CongoKinshasa mostrando as muitas invenções de personagens e gêneros de performance ao longo do século XX. 89 na pequena vila do Léua, construída e disposta em paralelo a certa extensão da linha férrea. Suas matas, entretanto, são altas e fechadas à medida que se dirige às comunas e às yfutchi. Num dito dia, Giramente havia trabalhado na sede do Partido, localizada no interior da vila, próximo à sede do Governo, do Posto Médico e do campo de futebol. As ruas todas de terra e de casarios coloniais viveram a guerra em relativa paz, diferente de outras sedes municipais próximas da fronteira com a Zâmbia. Naqueles tempos de guerra, cada homem adulto podia possuir uma AK dada pelo Estado, para que ataques da Unita pudessem ser contrapostos. Na madrugada, um então desconhecido tchilombo da Unita avança ao Léua numa ofensiva que pretendia ser fulminante. Em silêncio, os soldados alinham-se ao longo da linha férrea, de frente para a vila, em diferentes posições. Às três da manha, os morteiros começam a cair de forma sucessiva sobre as casas e as ruas, acordando todos e matando outros durante o sono. O tiroteio se inicia de forma intensa, rajadas traçantes na noite escura vindo de todos os lados. Giramente estava numa casa no interior da vila. De lá, tenta chegar ao Comando. Seguia apenas com "arma ligeira" (uma AK). Protegendo-se escorado nas paredes das casas, Giramente dava rajadas de AK para tentar atravessar as ruas estreitas em correria. Já eram muitos os mortos caídos ao chão. A resistência se compunha, sobretudo, no Comando, onde a artilharia podia enfrentar em igual condição o ataque intenso inimigo, respondendo com morteiros, RPG7 e metralhadoras de tripé e corrente70. O fogo cruzado é incessante. As paredes do Comando servem em parte de proteção, mas a Unita mirava os morteiros também para seu interior. As posições permanecem entrincheiradas, armadas até os dentes. Uma grande explosão dá a dimensão dos conflitos. O trem que saíra pouco antes de Luena, carregado de combustível em direção ao Luau, na fronteira com o CongoKinshasa, explode violentamente ao passar em velocidade através das rajadas do intenso fogo cruzado. As chamas às alturas fazem com que logo à alvorada, a 70 RPG7 equivale a uma bazuca. Morteiros possuem o mesmo potencial bélico, com a diferença do projétil ser lançado ao alto, de certa distância mais protegida e em retaguarda, perfazendo um trajeto em semi-círculo. 90 fumaça seja vista há muitas, muitas dezenas de kilômetros. Com parte dos confrontos se transladando às ruas, o Comando das Fapla no Léua manda que as pequenas casernas repletas de munições e camufladas no interior de casarios sejam explodidas com RPG7, impedindo sua tomada pelas frentes da Unita que já avançavam para o interior da vila. O governo provincial em Luena recebe por rádio a informação sobre a invasão. Logo dois Migs decolam de Luena e em poucos minutos sobrevoam em rasante o Léua, retornando em seguida para o ataque. As Fapla lançam um sinalizador luminoso ao céu, para indicar sua posição e delimitar o raio de ataque dos Migs. No entanto, a Unita lança sinalizador similar. Diante da incerteza das posições, os Migs retornam a Luena sem efetuar quaisquer disparos. O Comando manda um rádio e confirma a posição da guerrilha ao longo da linha férrea. Os Migs retornam com a certeza que faltava, lançando mísseis destruidores sobre o front da Unita. Em seguida, helicópteros chegam com as metralhadoras, desmobilizando por completo as tropas da Unita que logo se dispersam em retirada. Giramente lembra com amargura o desfecho do conflito que durara quase sete horas de fogo intenso. Nas ruas, o ar carregado e irrespirável de morte e pólvora, dezenas de pessoas tombadas ao chão sem vida e com sangue, as casas destruídas e as paredes com buracos de grosso calibre. Caminha pelas ruas, cansado da guerra que destrói vidas, famílias, caminhos, cidades, lembranças, futuros – esse estado de guerra permanente. Sua família estava na ocasião no Sakazemba junto a parentes e, por isso, permaneceu a salvo. Certeza, Giramente tinha apenas uma, outra vida ficara para trás atropelada pela guerra. Seguiria nos dias seguintes para aldeias às margens do rio Kassai, recomeçar sua vida numa tchihunda. Em algumas semanas já tendo se estabelecido em Sakanha receberia a notícia distante de que Sakazemba havia sido novamente destruída pela Unita. Os conflitos entre os ylombo em Angola terminariam mais de uma década depois. Tendo fugido de seu principal tchilombo na serra da Ndjamba no Moxico, 91 alguns ylombo do MPLÁ tomam conhecimento de que o Galo Negro 71 estava nas matas do Lucusse, ao sul do Léua e de Luena. A aproximação seria das mais duras da guerra, pois a Unita conseguia contrapor-se ao avanço dos muitos ylombo do MPLÁ que vinham em frentes distintas, aguardando o ataque há poucos metros em total silêncio. A mata tranqüila se transformava muitas vezes em armadilha mortal. Aqueles que participaram desses ylombo de cerco final preferem esquecêlos. Savimbi estava protegido por um feroz comando, de jovens capturados que quando iniciados haviam sido castrados, dizem "para não sentirem", só matarem. 90°, um soldado que participou dos últimos ylombo do MPLÁ e que vim a conhecer no caminhão do Saurimo ao alto Kassai, só afirmara que já botara tudo aquilo para fora de si e que agora só desejava passar coisas boas, de dentro de si, para os outros. Diria, contudo, que nenhum filme de guerra jamais conseguirá expressar o que fora o cerco de tchilombo e a morte do Galo Negro – o que viria a por fim à longa guerra em Angola. Só quem a sentiu de perto, quem a viveu no cotidiano, a conheceu em toda sua insanidade, em seu rastro de destruição que jamais se esgota no espaço-tempo do efêmero, senão se fragmenta e se materializa em cada vida que foge de sua morte. Longe de fazer do presente um mero resultado da guerra recente, trata-se de evidenciar como a política foi se constituindo ao longo do tempo entre os Tchokwe em seus tantos ylombo contra os Luba, as caravans escravagistas, os Lunda, o avanço das tropas portuguesas, a guerrilha anti-colonial. Os muitos contextos que evocaram a estratégia de tchilombo realçam um fundo comum em que a arbitrariedade imposta sobre domínios políticos Tchokwe devia ser contraposta. Tal a política de tchilombo, a política das aldeias Tchokwe ao longo do processo histórico. Se nos ylombo revolucionários ocorreu a luta pelo Estado que se pretendia passasse a ser não mais dos Puthu, mas de todos os povos de Angola, a luta pelo domínio politico-genealógico dos próprios yfutchi Tchokwe que fora negado pela 71 Pseudônimo reivindicado por Savimbi, líder da guerrilha contra-revolucionária, em seus discursos em que cantava e batia os braços em alusão a um galo negro, símbolo da Unita. 92 arbitrariedade das práticas coloniais de trabalho escravo e apropriação de terras ao longo das décadas, a escalada de conflitos no começo ou no fim da guerra contrarevolucionária serviria de justificativa e disposição para muitos se alistarem na luta pelo Estado e pelos domínios político-genealógicos Tchokwe. As aldeias estavam sendo atacadas de forma arbitrária pelos ylombo da Unita, e o Estado recém-constituído que colocora fim ao domínio dos Puthu sobre seus yfutchi estava sob fogo cerrado da Unita/África do Sul que queriam se impor e derrubálo. Lutando a guerra nos quilombos do Estado, muitos Tchokwe se tornam também angolanos, além de Tchokwe; identificam-se com o Estado e reconhecem a perspectiva política cuja razão seria assegurar a paz aos Tchokwe e outros povos de Angola, reverberando os preceitos e a pragmática política dos ylombo revolucionários dos anos 60. No entanto, cabe trazer à tona um certo modo Tchokwe de se relacionar com a guerra contra-revolucionária, preeminente nos anos de conflito, um ponto de vista além da constituição e do Estado, senão a partir das aldeias. Embora o Estado fosse reconhecido como domínio político constituído e fundado pelos próprios Tchokwe e outros povos de Angola,as famílias que permaneceram nas aldeias do alto Kassai nos tempos de conflitos e viveram a guerra, reafirmavam e confrontavam suas próprias perspectivas políticas frente às arbitrariedades de ambas as frentes que passaram a adentrar as aldeias capturando jovens para os ylombo de uma guerra cada vez mais embrutecida e ensandecida que consumia vidas incessantemente. Nas aldeias do alto Kassai, jovens fugiam do alistamento obrigatório e se refugiavam nas matas, logo à chegada dos caminhões das tropas do Estado que vinham de surpresa às aldeias fazer "quata-quata72" para os próximos ylombo das Fapla, diante da recusa crescente das famílias enviarem seus filhos aos conflitos. Arbitrariedade que também se mostrava preeminente quando nas aldeias próximas 72 Invasão de aldeia para capturar jovens. Trata-se de um termo antigo, já utilizado para descrever as razias praticadas pelas caravanas escravagistas dos ymbali. 93 de seus ylombo recém-formados, a Unita instalava o silêncio absoluto, proibindo a circulação entre aldeias e cidades, para que as informações de sua localização não fossem transmitidas em mojimbo e chegassem ao conhecimento do Estado, roubando ainda animais e exigindo comida, roubando instrumentos musicais73 e proibindo festas. Não foram poucos os que se recusaram a entregá-los e foram mortos sumariamente, sendo levados e nunca voltando, tendo a cabeça cortada e o corpo deixado sem identidade ao longo nos caminhos como sinal da moral que se impunha sobre os domínios políticos das aldeias, outros tinham as pernas quebradas a porrada e eram jogados aos rios para nunca mais serem vistos, outros pendurados em árvores e queimados como iconografias da guerra a permanecerem pelos trajetos entre as aldeias. A proibição de circular entre aldeias impedia por completo as ancestrais caravanas de luchiho (tempo seco) quando os Tchokwe seguem às aldeias Luvale negociar peixe seco necessário a sua dieta alimentar. Impedia ainda o acesso a alguns bens como sal e sabão que desde as caravanas de mercadores dos ymbali já se tornavam cotidianos. Os "quata-quata" da Unita em aldeias de diferentes rios tinham dotado os ylombo de ampla tropa e as pontes e caminhos permaneciam sempre vigiados. Com efeito, a simples circulação de pessoas entre aldeias ou o reconhecimento de vestígios de sal quando alguns tropas chegavam de surpresa e exigiam comida nas aldeias, em ambos os casos a ida às cidades se evidenciava, o que se tornava motivo de repreensão exemplar: a morte. A imoralidade do poder quando vista e sentida como arbitrária fez ainda com que outras estratégias fossem adotadas e/ou reafirmadas. Tamanha arbitrariedade não deixava de ser contraposta pelos Tchokwe, muitas vezes 73 Muitos instrumentos roubados produziram em muitos artesões Tchokwe o desgosto de fazê-los no pós-guerra e são poucas as aldeias, ao menos no alto Kassai, que ainda possuem a formação completa da orquestra de quatro batuques: ngoma wa xina, ngoma wa kasaswilu, ngoma wa mukhundu e ngoma wa kasumbi, cada qual com toque e potência acústica inerentes. Alguns instrumentos não mais são encontrados no alto Kassai, como a ndimba (pequeno xilofone com quatro ou seis cabaças servindo de caixas acústicas), o mukhupiela (batuque de duas bocas) e o tchikuvu (tambor trapezidal). 94 expressando seu humor sarcástico, quando diante das notícias de chegada nos yfutchi próximos de algum tchilombo da Unita e da certeza do furto sistemático de animais a logo se instalar, faziam os Tchokwe nas aldeias verdadeiras orgias alimentares, matando os animais na mesma rapidez que fosse possível comê-los em churrascos incontidos e escondendo o restante já seco no mato, a exemplo das cabaças de makanha. Os animais eram propriedade das famílias, as quais com a chegada dos ylombo ficariam meses e, por vezes, anos nostálgicos do sabor de carne que não fosse da caça escassa, em decorrência das restrições de deslocamentos. Se os da Unita quisessem fumar, que plantassem, se quisessem carne que caçassem. A despeito das proibições, os Tchokwe sempre foram mestres da mata e grupos de homens seguiam em "fura-fura", furando as matas, a guerra e as proibições arbitrárias, andando de noite e dormindo de dia, atravessando os rios fora das pontes com água até o pescoço e a carga na cabeça, pulando quando passavam os caminhos primários e secundários de areia branca para não deixarem qualquer faro ou vestígio para esses "lobos da Unita". Quando ouvissem botinas a marchar e caminhar com seus passos duros, paravam e permaneciam em silêncio esperando as tropas irem embora. Seguiam em grupos, cruzando diferentes yfutchi por dias e semanas, até alcançarem Luena, ou mais rápido, alguma sede municipal. Levavam makanha e algumas bolas de mandioca pré-fermentada e pilada, cujas cotações em Luena subiam às alturas, enquanto o preço do sal continuava baixo. Na volta, o sal circulava entre as aldeias, em trocas presentes ou futuras. Em outros "fura-fura", seguiam para os Luvale, às aldeias às margens do rio Luena, ainda em áreas de mata, com o sal e a makanha eram recebidos com euforia incontida pelos pescadores sendo cercados para se tornarem parceiros de troca exclusivos, voltavam com peixe seco, o suficiente para a família que já não podia contar com as longas caravanas. A circulação de valores não cessa de modo algum, adquirindo, entretanto, nova dinâmica nas caravanas fura-fura pelas matas e nas estratégias de reprodução social, capazes de se posicionarem frente a arbitrariedades normativas que, do dia para noite, da noite para o dia, tornaram a 95 circulação antes imoral do que ilegal sob a perspectiva dos Tchokwe. Nestes casos, as famílias e as aldeias se mostravam preeminentes e além do Estado, como aliás nunca deixaram de ser ou deixarão. Das mortes não se deve lembrar, e é no sarcasmo que os Tchokwe preferem pensar e lembrar a guerra vivida e incontida, conversando ao redor da fogueira. 96 Parte 2: Tchihunda Nesta segunda parte, procuro analisar como a terra, o tempo e a circulação de valor se constituem em uma aldeia Tchokwe do alto Kassai. Explorando certas relações sociais (tais como o parentesco, a amizade, a vizinhança) preeminentes no cotidiano, pretende-se mostrar como elas constituem diferentes domínios: zuwo (família), tchihunda (aldeia), tchifutchi (território matrilinear). Tais domínios se mostram assim, a saber, variando conforme os pontos de vista relacionais e contextuais em que são acionados, reconhecidos e vividos como unidades e posições políticas. Pretende-se evidenciar as estreitas relações entre política e magia. A noção privilegiada de tissemuka (parentesco) permite em seguida explorar a topologia genealógica entre os Tchokwe abordando e iluminando a moral subjacente às estratégias de circulação entre parentes que, a partir das famílias e das aldeias, atravessam domínios políticos mais amplos do Estado (municípios, províncias), desde que as cidades foram apropriadas por aldeias Tchokwe no leste de Angola. 97 2.1) Genealogia, política e terra Sakanha é uma tchihunda (aldeia) Tchokwe do alto Kassai. Sua história remete aos anos 80, quando Kalambula acusado de praticar wanga (feitiço) contra o muanangana (chefe) Ulemba Khonde é expulso do tchifuti (território). Após a kutisa wa wanga (retirada de feitiço), Kalambula segue com seus parentes para o tchifutchi de outro muanangana deixando a aldeia vazia. Sakanha resolvera permanecer com suas três mulheres. O feitiço não lhe dizia respeito. Depois da guerra em Luena onde servira às Fapla, Sakanha voltara à terra de seus malemba (antepassados), onde nascera e crescera nos ylombo contra o domínio português. Muanangana Khonde acolhe seu pedido e o autoriza a construir em seu território uma nova aldeia com a família. Sakanha escolheria um novo lugar para plantar as primeiras árvores e construir sua casa. A aldeia antiga com casas queimadas e destruídas pelos que haviam partido logo viraria mato. As notícias de que Sakanha estava morando em sua própria e homônima tchihunda logo chegam a seu irmão, Giramente, no Léua. Após os últimos ataques da Unita à sede municipal, Giramente resolve partir com sua família para a outra margem do Kassai. A viagem seria longa e arriscada, pois tinha em seu caminho diversas barreiras da Unita. Em duas barreiras montadas, suas "guias de caminho" – autorização da Unita para cruzar territórios ocupados – foram requisitadas. Na ausência dos documentos e desconfiados de que se tratava de um tropa das Fapla, Giramente quase é morto, não fosse a intervenção de um sobrinho que já há tempos capturado pela Unita trabalhava em um dos postos de controle. Atravessando o Kassai, Giramente logo chega em Sakanha com seus filhos pequenos e mulher, permanecendo na casa do irmão antes de fazer uma casa provisória de capim para os primeiros meses. Sendo ainda luisa (tempo chuvoso), a construção da casa definitiva ainda aguardaria o fim das chuvas e o calor de meados de luchiho (tempo seco). Por ora, a acomodação na casa de seu irmão já 98 era suficiente. Giramente recomeçava então outra vida, desde a destruição de Sakazemba ele não retomara a vida numa aldeia. Os locais das lavras logo seriam escolhidos, visto que as chuvas finais de luisa permitiam que campos de mandioca fossem plantados, embora somente no próximo tempo chuvoso conseguiria completar suas lavras, a ponto de garantir a reprodução social da família. Sakanha, seu irmão, o acolhe durante o período de entressafra, com casa e comida. Seus filhos e sobrinhos logo cresceriam e com o tempo constituiriam as próprias famílias (zuwo). No entanto, uma tchihunda não se faz apenas de parentes. Pessoas de prestígio social como caçadores, mestre de umbanda e akaká (mais velhos) chegariam ao longo dos anos, solicitando à Sakanha o direito de viverem na aldeia com suas respectivas famílias. Outras pessoas ainda habitariam em Sakanha mediante alianças matrimoniais que ao fomentarem relações de parentesco logo permitem que novas famílias venham viver onde os parentes já moram. As famílias fugidas da guerra que se alastrara e se embrutecera procuravam em aldeias ao longo do alto Kassai, longe das estradas e dos caminhos principais recomeçar a vida, reconstruindo seus próprios mundos destruídos pela guerra. O calor de final de luchiho (tempo seco) logo se faz notar, os caminhos de areia fina e branca margeados de campos cerrados de se perder de vista com capim já demasiado alto e amarelado formando composição em aquarela com o forte contraste do céu azul e branco das primeiras nuvens, silenciosas que não estrondam raios ou fazem cair água. As matas ao longo do caminho servem de sombra e amansam a areia que queima ao pisar. Há cinco meses sem chuva, o trabalho e atividades sociais seguem a própria ecologia, as famílias permanecem na aldeia, nos terreiros sombreados. Quando saem às lavras, seguem logo cedo antes do sol se fazer sentir, apenas indo pegar alimentos nas lavras já grandes e prontas. As espigas de milho do final da safra ainda fornecem as fontes para a produção de aguardente (katchipembe), as abelhas a atormentarem incessantemente a aldeia indiciam que seu mel lhes foi roubado por experientes caçadores que dominam como poucos a arte de produzir mel, espalhando dezenas de colméias artesanais na mata, em diferentes árvores consoante a floração, 99 permitindo que grandes cabaças grandes sejam enchidas de mel e água até produzirem na fermentação do sol diário a preciosa cerveja de mel (ndoka), muito apreciada. Poucos são os que se arriscam ao sol quente, as lavras não precisam mais de trabalho e o momento é de descanso até luisa (tempo chuvoso) chegar com as chuvas e a reprodução social ser reiniciada em seu tempo ecológico. As pessoas preferem as sombras das frondosas árvores (mangueiras, abacateiros, goiabeiras, laranjeiras) que se sobrepõem aos terreiros, as conversas entre parentes e vizinhos na própria aldeia, as muitas rodas de katchipembe, ndoka e makanha (fraca ou forte) que se oferecem às relações sociais. As mulheres sentadas trançam-se os cabelos, várias gerações, mais velhas, mulheres, jovens, crianças, contando histórias, sátiras, bebendo em sua própria roda. Tecendo conversas e cabelos em formas geométricas. Quando marido e mulher bebem juntos é, sobretudo, de manhã cedo ainda na tisambwê (cozinha). Durante o dia os homens permanecem em animadas rodas, conversas entretidas pelas cabaças que não deixam de circular e os convites recíprocos na seqüência de rodas que vão passando de terreiro a terreiro na sequência do tempo, começando com os largos copos de ndoka, até avançarem ao "quente" katchipembe. Do bolso da calça, os homens sempre hão de sacar um pouco de makanha para apertar um cigarro enquanto a conversa flui, outros tantos já possuem pequeno receptáculo de rapé – "cigarro do nariz" dizem, interrompendo a conversa a fim de cheirarem um bocado de rapé. A vida nas aldeias quando ausente da labuta diária ou em dias de chuvas fortes e longas é inseparável das sociabilidades das cabaças e conversas, as pessoas circulando entre diferentes terreiros familiares, o que não deixa de evidenciar certo modo em levar a vida com tantas alumiações cotidianas de pensamentos, alternando os fortes períodos de trabalho que variam conforme o tempo ecológico. Bohannan (1998) já notara entre os Tiv, povo bantu dos cerrados alagados do norte da Nigéria que "as the swamps rose even higher, all activities but one came to an end. The women brewed beer from maize and millet. Men, women, and children sat on their hillocks and drank it. People began to drink at dawn. By midmorning the whole homestead was singing, dancing and 100 drumming. When it rained, people had to sit inside their huts: there they drank and sang or they drank and told stories ( p. 28)". Antes do sol se pôr, a música começara a tocar e as pessoas dançavam, alguns mais velhos ficavam apenas a observar, um dos quais chegara de outra aldeia e logo se dirigiria a mim, por total surpreso de ver um tchindeli (branco) na aldeia, algo raro senão impossível na maior parte das aldeias Tchokwe durante o período colonial e a guerra. "Tome um Scotch!", "Quer um pouco de makanha?", me oferece sucessiva e pausadamente o mais velho sacando do bolso ora o pequeno sachê de Whisky, ora o tabaco já seco de sua lavra. Já cansado lhe respondo cortês e duplamente, "Não, obrigado". Consciente, o mais velho retira dos pensamentos a seguinte frase direta e a tira-cara: "Por que, és Padre?". De certo que não. O sarcasmo enunciado, entretanto, teria que ser contraposto com tamanha frase, calando e contendo o riso imanente, de modo a desconstruir a imagem histórica do tchindeli. "Eu não bebo, só fumo tabaco forte, você tem?". O mais velho me olha incrédulo e em silêncio confuso, para logo depois no virar dos segundos sorrir largamente. Só tendo na aldeia, me afirma que viria logo cedo, bem cedo, na manhã seguinte, sem falta, me trazer um pouco de fumo, já pronto. Do riso incontido se desfazia o tchindeli74. A primeira chuva de luisa seria demasiado forte, sendo precedida nos dias anteriores por nuvens cada vez mais pesadas e o vento alternando diferentes temperaturas, estrondos e trovões. Desde o começo da noite até altas horas da madrugada, a chuva foi incessante. O tempo do trabalho nas lavras recomeçara. Acordando logo cedo junto com Giramente e sua família, seguimos à lavra antes do despontar do sol, caminho longo por áreas que há alguns anos foram lavras e que agora davam lugar às matas baixas. As crianças procuravam os primeiros cogumelos que ao cair das chuvas proliferam e são degustados na alimentação diária. Faixas da matas anteriormente cortadas, secas e queimadas sob o forte 74 Tchindeli e tchimbali denominam o branco nas aldeias do alto Kassai. A cena reflete o modo como a presença de um antropólogo tchindeli entre os Tchokwe do alto kassai pressupõe ao longo da pesquisa de campo a desconstrução da imagem e dos atributos que historicamente se viram associados aos brancos. 101 calor de luchiho, dariam lugar agora às novas lavras de luisa. O trabalho do dia consistiria em remexer a terra amolecida pela chuva, de modo a permitir a disposição de grandes montículos de terra fofa com 1,5m de diâmetro e 0,5m de altura, em linhas paralelas. Giramente e Nakameia plantavam as primeiras lavras de luisa, colocando em cada montículo já pronto ramos de mandioca, sementes de pimenta, abóbora e makanha75. As lavras de cada família são próximas e contíguas, dispersas numa grande clareira cercada ao fundo e aos lados por mata alta. A chuva, no entanto, apenas começara e o calor forte da tarde logo conduziria todos de volta à aldeia. Giramente se alonga um pouco mais, iria ainda à mata, onde a makanha colhida em grande quantidade no princípio de luchiho estava guardada e enterrada, como os antigos já faziam. Trazendo um pouco de makanha da "reserva", Giramente me encontraria depois em seu terreiro sombreado por grande abacateiro. Nakameia estava com as filhas numa roda de mulheres a trançar o cabelo e beber cerveja de mel em um terreiro ao fundo da aldeia. Giramente se dirige até a cozinha para acender um cigarro junto às brasas da fogueira. Enquanto fumamos e conversamos sobre luisa, a prosa se alonga. Na semana anterior um longo incêndio teve que ser contido na baixa do rio Kassai. Zé e Sajúlia resolveram queimar o capim já alto e amarelado de fins de período seco, apenas iniciando o fogo e deixando que ele próprio se findasse. Giramente estava nas lavras de cima com Nakameia, sua esposa, e as filhas pequenas, foram logo cedo catar cestos de mandioca e levar ao rio para bumbicar alguns dias antes de secar ao sol. Fidel, seu filho, logo vai ao seu encontro, ainda no meio da manhã, avisá-lo que o fogo se alastrava com o calor forte e o vento 75 Makanha será referida majoritariamente sem as distinções entre fraca (tabaco) e forte (tabaco forte, cannabis sativa), por um lado por expressar a própria dubiedade presente entre os Tchokwe cujas diferenciações nominais transparecem as aproximações classificatórias quanto às variedades e potências de cada fumo. Por outro lado, o texto busca reproduzir um pouco da dubiedade expressa no próprio código social da makanha, só ensinado em seus segredos e diferenciações quando da iniciação à vida adulta, em que os jovens aprendem a distinguir o que é makanha (forte) e serem ensinados que alguns conseguem domá-la, outros não e que cabe a cada um decidir. Não são todos que fumam makanha (forte), nem muitos nem poucos. 102 que soprava incessantemente. Giramente retorna correndo e invocado, já que sua horta na baixa do rio poderia ser queimada se estivesse na linha do fogo. De fato o foi, mesmo tentando por horas conter as muitas frentes de incêndio com os demais da aldeia, o vento e o forte calor não permitiam que o fogo fosse facilmente vencido. Giramente perdera com isso toda a horta plantada nas várzeas do rio Kassai: milhos já crescidos, batata doce, tomate, pimenta, cana-de-açúcar, couve e makanha, muita makanha que já próximo do ponto seria colhida e garantiria a ecologia do trabalho a ser iniciado no tempo chuvoso. Irritado com Sajúlia e Zé, Giramente convocou uma mulonga – reunião dos homens mais velhos e adultos organizada com fins de mediar os conflitos entre os diferentes domínios familiares (zuwo) e restabelecer as relações sociais. Todavia, não há moral na aldeia que regule os conflitos além dos casos de roubos, adultérios, agressões e feitiços, quando então cabe a mulonga estabelecer os procedimentos e ressarcimentos. A situação remetia e opunha três famílias devido ao descuido e ao acaso, nada podendo ser feito quanto ao incêndio além do protesto enfático de Giramente diante de todos, mostrando toda a irritação decorrente do prejuízo posto à sua família por descuido de Zé e Sajúlia que, não obstante, afirmaram seguramente que não tiveram culpa, havia sido o vento o causador de tudo. Em seu terreiro, Giramente cultiva sua revolta passada contra Zé e Sajúlia entre algumas tragadas no cigarro, "- Deixa as chuvas chegarem com mais força, vou semear muito nesse ano, perdi toda a makanha lá, produtos já prontos e crescidos, alimentos para as crianças por esse fogo que eles botaram, acabando com o trabalho dos outros. Eles vão desconseguir de me acompanhar, você vai ver, abrirei aquela lavra de cima, vou semear muito". Entrementes, a música tocava alto no terreiro de Zé, o estoque de mel garantido, permitia a circulação de cabaças sempre cheias de cerveja. Giramente afirma com ironia de sua cozinha distante, "você está ouvindo o som do Zé? Muito baixo, nem se ouve direito daqui. Ele não aguenta meu aparelho, quando eu ligo aqui fica cheio, a aldeia inteira vem pra cá". Findado o cigarro e o assunto, seguimos ao terreiro de Zé para escutar um pouco de música e conversar. 103 Nas aldeias Tchokwe, a família (zuwo) 76 constitui um domínio político fundamental, detendo lavras próprias e um terreiro disposto entre a casa e a cozinha. Em casos de conflitos, cada família se posiciona de forma igualitária como unidades política na aldeia. A casa (zuwo) se torna apenas local de dormir, perdendo quaisquer outras utilidades, enquanto a cozinha e o terreiro se tornam locais de intensa sociabilidade da família. A casa se relaciona com a noite, a cozinha e o terreiro com o dia e a ecologia de luchiho e luisa condiciona seus usos. As lavras são trabalho familiar visando à reprodução social do domínio político familiar. Trabalhos coletivos ocorrem, sobretudo, mediante troca entre famílias, seja para cortar a madeira grossa de novas lavras, para capinar a aldeia e seus caminhos quando o capim grande em fins de luisa dificultam os acessos, ou ainda para construção ou reformas de casas em luchiho. Por seu turno, a aldeia é o domínio político cotidiano dos Tchokwe. Pessoas se relacionam no interior de uma aldeia mais do que com parentes e amigos que vivem em aldeias distantes, embora tais relações possam ser assumidas como preponderantes em casos de viagens, migrações e feitiço (wanga). Na aldeia as diferentes famílias convivem e mantêm relações sociais fundadas no parentesco, na amizade e na vizinhança: no cotidiano das sociabilidades dos terreiros, nos mojimbos (saudações), no trabalho das lavras próximas umas das outras, nas trocas coletivas de trabalho. Relações sociais que podem atravessar aldeias próximas, estabelecendo vínculos entre domínios familiares, embora cada família seja associada ao domínio político mais amplo da aldeia à qual pertence. O parentesco (tissemuka) relaciona domínios familiares em uma topologia genealógica que atravessa aldeias, territórios matrilineares, vilas e cidades. Tissemuka abarca o parentesco entre os Tchokwe, sendo o conceito nativo que mais se aproxima daquilo que Evans-Pritchard denominaria de linhagem entre os 76 Família se traduz em Tchokwe por tissemuka, embora tal termo abarque família, parentesco genealogia – diferentes segmentos políticos que se desdobram em sobreposições. Ao invés de utilizar o termo tissemuka wa zuwo (família da casa), apenas zuwo servirá de referente à família nuclear como domínio político. 104 Nuer, dos cerrados ao norte da floresta do Congo. Entre os Tchokwe, uma família sempre pode se mudar para aldeias em que há parentes, vindo a se estabelecer e a constituir seu domínio político (zuwo), tendo direito pressuposto à terra e à reprodução. Como indica Champagne (1975) as relações sociais numa aldeia não se circunscrevem ao território ocupado. Não se deve pressupor uma aldeia como totalidade social ou unidade absoluta e isolada, senão reconhecer que a aldeia enquanto unidade só se constitui como tal por oposição a outras aldeias. São as relações que constituem as unidade e não o contrário, como já apontara LéviStrauss em sua crítica ao estrutural-funcionalismo britânico. Esse fato se reverbera, decerto, no tocante aos próprios domínios familiares inseridos em cada aldeia. É nas oposições e relações, como o pequeno conflito enunciado por Giramente, que os domínios familiares se mostram claros e diferenciáveis. De modo semelhante, Bourdieu (1970) ressalta as relações sociais entre os Kabyle do norte africano, em que a Maison (família extendida) se constitui como forma política fundamental nas relações sociais, embora se mostre claro o englobamento da Maison em domínios maiores: a aldeia, o bairro, a vila, o povo. Embree (1935) já expressa em sua etnografia no Japão rural, a coexistência de diferentes unidades políticas (família, aldeia, bairro), reconhecidos e assumidos segundo o ponto de vista relacional em questão: a situação define o posicionamento e o pertencimento político da pessoa e de sua família a tais unidades. Sakanha é uma aldeia, um domínio político Tchokwe sobre a terra, a reprodução social e a moral. A aldeia possui seu próprio tchifutchi (território matrilinear), que a distingue e a limita com os territórios de outras aldeias. No interior do tchifutchi de Sakanha, a terra cultivada é segmentada em diferentes domínios familiares (zuwo). O trabalho de cada família (zuwo) visa suprir a reprodução social baseada na agricultura itinerante de lavras e hortas nas matas e baixas, na ampla coleta (mel, cogumelos, insetos, raízes, ytumbo – plantas mágicas e medicinais), na caça com arcos e armadilhas em matas altas e na pesca com cestos em rios e lagos. 105 A cartografia política do território não se funda na divisão matemática e fixa da terra em parcelas vitalícias e imóveis, senão no direito de cada domínio familiar (zuwo) poder cultivar lavras consoante sua força de trabalho e estratégias de reprodução social, a terra sendo cultivada em parcelas móveis, alienadas na medida em que deixam de ser cultivadas, a posse familiar se constituindo assim em caráter relativo e temporário, as matas, rios e lagos sendo de direito coletivo e simétrico a cada família que pode realizar caça, pesca e coleta. A partir dos Tiv e de outros povos africanos, Bohannan (1967) salienta, a propósito, a inexistência da concepção de propriedade privada quando os direitos à terra e à reprodução social são transmitidos ao longo da genealogia e de sua moral, e não baseados na propriedade imóvel, inalienável e privada da terra. Em Sakanha, pode-se notar que a emergência da propriedade privada em outros contextos refletiria, assim, a instituição do monopólio sobre a terra e a acumulação, tendo como princípio fundamental em sua moral, a exclusão e a assimetria absolutas e inalienáveis de direitos e domínios políticos entre famílias. Embora o chefe-fundador da aldeia – nomeado de mukuluana/muata77 – passe a tê-la como domínio político-genealógico, na medida em que seus sobrinhos matrilineares o seguirão na posição de chefe, cada domínio familiar (zuwo) também se constitui ele próprio como político-genealógico, visto que a genealogia legitima o direito de qualquer pessoa ou família a se estabelecer como domínio político (zuwo) em uma aldeia onde já existam parentes, denotando com isso que a inclusão se sobrepõe à exclusão como princípio político sobre a terra. Assim como outras aldeias, as famílias em Sakanha não se relacionam apenas por parentesco. Pessoas de prestígio social (mestres de umbanda ou mukanda, caçadores, mais velhos) obtêm o direito de constituírem seus domínios familiares, independente da presença prévia de parentes na aldeia. Desse modo, numa aldeia 77 Daqui em diante utilizo apenas o termo mukuluana. O termo muata (pl. de myata) emerge dos Lunda, como se depreende da migração dos antigos myata junto à Tchinguri. Alguns grandes chefes Tchokwe, como Muatissengue ainda reverberam em seu nome o termo muata. Não obstante, muanangana (pl. mianangana) veio a se consolidar entre os Tchokwe como a designação dos chefes de grandes domínios políticogenealógicos. 106 as relações sociais de parentesco e vizinhança se mostram complementares e preponderantes. Não obstante, Sakanha se constitui como unidade política relativa, na medida em que é um conjunto de diferentes domínios políticos familiares (zuwo) e está inserida como outras aldeias no interior de um domínio político mais amplo: o território do muanangana Ulemba Khonde. Cada muanangana pode desempenhar uma condição relativa e segmentar quanto a outros mianangana. Assim, Ulemba Khonde possui laços de parentesco com muanangana Galhata, muanangana Mufupo e muanangana Maiaia, estabelecidos em territórios ao longo do Kassai. Nota-se certa diferença entre mianangana refletida, sobretudo, na profundidade genealógica que conforma certa precedência política sobre a terra, que remete aos malemba (antepassados matrilineares) seu fundamento. A condição pioneira define assim o domínio político-genealógico de um muanangana sobre o a terra quese baseia no princípio da inclusividade e na distribuição simétrica e igualitária de direitos de reprodução social e constituição de domínios políticos familiares a parentes e pessoas de prestígio, de modo algum a precedência política do muanangana em seu tchifutchi, ou de forma análoga do mukuluana em sua aldeia se legitimando no monopólio absoluto que tornaria a terra propriedade privada e exclusiva78. Assim sendo, a política agrária se reverbera em diferentes escalas e a denominação comum de tchifutchi (território) a ambos os domínios políticos mais amplos, seja de muanangana ou de mukuluana, expressa de forma mais clarificada a qualidade relativa e segmentar que os domínios políticos assumem entre os Tchokwe. Embora um muanangana defina sua aldeia como nganda, esta não se diferencia em tamanho de uma tchihunda chefiada por mukuluana, apenas demarca nominalmente que lá vive o muanangana de um tchifutchi (território matrilinear) amplo, em cujos limites geográficos se dispersam diferentes aldeias, 78 Esse tema merece aprofundamento além das possibilidades da presente dissertação. Grosso modo, trata-se de explorar as comparações entre distintas concepções de política agrária: a genealogia e sua segmentariedade política em claro constraste ao monopólio excludente que se propaga a partir da noção capitalista de indivíduo e propriedade privada da terra. 107 cada qual com seu próprio tchifutchi. A nganda é uma tchihunda, na medida em que a disposição da aldeia em domínios familiares (zuwo) se mostra análoga em ambos os domínios. A distribuição de direitos à terra em um tchifutchi não se restringe aos parentes do muanangana ou mukuluana, visto que não são apenas seus malemba (antepassados matrilineares) que conformam o território. O muanangana, a exemplo do mukuluana, reconhece pessoas de prestígio social que se refiram à profundidade genealógica dos próprios malemba que desde muito viveram no tchifutchi, reivindicando assim o direito a estabelecerem um domínio familiar (zuwo) ou mesmo uma aldeia no território em que viveram outrora seus malemba. Entre os Nuer, povo pastoril que ocupa os cerrados ao norte da floresta do Congo, mostra-se evidente a preeminência da segmentariedade como princípio constitutivo dos domínios políticos sobre a terra. O pertencimento às unidades políticas (casa, aldeia, linhagem terciária, linhagem secundária, linhagem primária) se apresenta segmentar ao expressar o caráter relacional de cada unidade que se constitui consoante a situação e as oposições com outras unidades (EvanPritchard, 1940). Entre os Tchokwe, a qualidade segmentar da política se torna saliente, na medida em que a topologia genealógica atravessa e relaciona famílias (zuwo), aldeias e territórios de mianangana. Não obstante, a família (zuwo) e a aldeia (tchihunda) se constituem como os domínios políticos fundamentais entre os Tchokwe, seja no cotidiano das relações sociais ou nas estratégias de reprodução social. A segmentariedade se apresenta no interior de uma tchihunda ao relacionar e opor domínios familiares por laços de parentesco, amizade e vizinhança. Na verdade, a mesma qualidade relativa e segmentar se apresenta no interior de qualquer território. Com efeito, um muanangana se relaciona perante outros mianangana que lhe precedem no domínio político-genealógico do território de forma análoga como se comporta um mukuluana em relação a outros makuluana de uma mesma aldeia ou em relação ao muanangana, cujo território mais amplo engloba a aldeia. Os malemba relacionam os mianangana e atribuem a suas genealogias conotações e diferenças políticas. Logo, o tchifutchi (território) de um 108 muanangana contém, por um lado, diferentes yfutchi segundo as aldeias que compartilham seu território, por outro lado está contido no interior do tchifucthi de outro muanangana que lhe precede em termos de domínio políticogenealógico. A política agrária age, assim, de forma segmentar, simétrica e inclusiva. A família (zuwo) realça, notadamente, o fundo comum a todos os yfutchi, constituindo a unidade política fundamental sobre a terra, o direito irredutível de uma família poder cultivar a terra e se reproduzir socialmente junto a parentes vivos e aos malemba (antepassados matrilineares). Simetria que também se reverbera, naturalmente, na zuwo do muanangana ou do mukuluana que cultivam a terra e se reproduzem socialmente na intensidade do próprio trabalho familiar. Todo mukuluana na medida em que morre bem idoso passa a ser chamado, ele próprio, de lemba (sg. de malemba), o tchifutchi em que viveu sendo referência de extensa topologia genealógica relacionando famílias aparentadas de diferentes aldeias, que por pressuposto sempre terão direito à terra onde seus malemba viveram e continuam a povoar o cosmos. O fato marcante de numa aldeia o homem de todo zuwo ser denominado, ele próprio, com a profundidade temporal, de mukuluana reflete, assim, o caráter saliente e irredutível da simetria a um só tempo relativa e absoluta entre os zuwo de um tchifutchi, o que torna as famílias o fundamento da política agrária entre os Tchokwe79. De noite a lua cheia se impõe com força no céu, alumiando o chão de areia branca e fina que se torna reflexo e brilhante, dando espaço como de costume às rodas de xombe, em que músicas antigas convivem com inovações em versos contemporâneos, quando mesmo compostos na hora. Rodas de 5 a 10 jovens que batendo palmas repetem o refrão diversas vezes, antes que alguém enuncie outra música. Sob a cadência das palmas uma pessoa entra no meio da roda, dança sua 79 A articulação se mostra preeminente ao longo da etnografia. De sua importância entre os Tchokwe advém o argumento e a defesa do emprego concomitante das noções de segmentariedade e perspectiva. Enquanto a genealogia segmentar pressupõe noções de centro (muanangana, mukuluana), a presença da perspectiva impõe a simetria relativa e absoluta a partir de cada família (zuwo). É nessas dilatações e contrações que se estabelece a política. 109 performance e segue de encontro a outra, se aproximando em demasia, em geral encontros marcados por gênero, sem tocar os corpos recíprocos, apenas dando ensejo a que outro(a) assuma o lugar na roda, apresentando-se ao centro antes de escolher o próximo a dançar. Fico a olhar, a lua cheia irradiante faz da noite dia, dando luzes à aldeia, às matas e aos baixios. À medida que outros jovens e crianças chegam, outra roda é formada. As músicas se sucedem no tempo e no espaço. Elia se aproxima, vindo ao meu encontro. "O xombe bom é o de adulto, não o de crianças". Na verdade, o xombe de adulto é dançado na ocasião de festas de casamento ou nascimento, quando muitos já estão alegres, e os encontros da roda podem ser mais diretos, ultrapassando o limite e tocando ao menos leve e provocativamente o corpo do outro a entrar na roda. Elia me chama para seu terreiro, comprara gasolina de manhã junto a uma caravana de bicicletas que vinha desde a sede municipal há algumas dezenas de quilômetros trazendo bidons cheios para vender combustível ao litro nas aldeias ao longo do caminho. O terreiro ainda está vazio no momento em que ele dá partida no seu moderno propulsor de eletricidade. Uma única luz à porta permanece acesa sobre a mesa já disposta, não se precisa de mais, tamanha a brancura da noite de lua. Entrando rapidamente em casa, ele volta com um possante e imponente Sony Mega Bass e suas quatro caixas difusoras de musicalidades, recém-adquiridos na praça financeira de Luena. Elia se vestia propriamente para a noite de música que logo encheria seu terreiro, no frio de meados de luisa se portava com uma calça jeans e um blazer azul marinho impecável. Percebo depois de muitos meses de campo o quão maltrapilho o antropólogo se apresenta, sem blazer – uma temeridade em noites frias na aldeia, apenas de bermuda e camisa simples já surradas de serem lavadas e socadas repetidamente no rio, na labuta semanal. A vida há de ser com estilo e fetiches na aldeia. Ligado ao propulsor, o Mega Bass se reverbera com potência por todos os cantos e terreiros a tocar Sassa Tchokwe, de pouco em pouco atraindo as pessoas que começam a chegar: jovens e adultos, casados e solteiros, mulheres dançam próximas de si e homens contrapostos, elas sempre a exibir a beleza em panos 110 novos e amarrados à cintura, imprimindo requebrados corporais que os fazem sacolejar em relampejos à medida que o som adentra a alma, rebolando de costas e provocando os homens que em contrapartida fazem suas performances das danças tissela e de tchianda já há muito e por muito aprendidas nas iniciações masculinas (mukanda) e femininas (mukanda wa pwo), com suas inerentes cadências corporais que mimetizam performances sexuais precisas ao ritmo da música e sob a perspectiva de cada gênero. A noite não é apenas de jogos provocativos. Vencidas as crianças abarcam no terreiro vindo das rodas de xombe, meninas tentando acompanhar e aprender a dança das mulheres e os meninos o jingado dos homens imitando o rebolado frontal e cadenciado, antes de gerarem risadas no terreiro já cheio. Entrementes, uma casa não muito distante resolve também acender seu propulsor de energia e em poucos minutos põe a cantar o poderoso Sharp Simba, outrora hegemônico e logo reconhecido nas praças pela imagem de leão rugindo que emoldura sua caixa, só de tempos recentes sendo vencido e sobreposto pela potência superior do Sony Mega Bass. Os terreiros competem entre si, cada qual cheio e vibrante com inerente proposta musical, até o éter efêmero puder alimentar os propulsores de eletricidade e suas festas. O Sassa Tchokwe se apresenta em diferentes versões, sejam os grupos de Angola ou do Congo-Kinshasa, onde o movimento musical homônimo se iniciou nos anos 80, substituindo as orquestras Tchokwe de batuques por guitarras elétricas que reproduzem e mixam o toque de cada ngoma80. Destoando do Sassa Tchokwe, na música Luvale também escutada nas 80 O vocábulo ngoma se traduz por batuque, tambor cavado em tronco de madeira e tampado na extremidade mais larga com pele de animal que antes de ser tocado deve ser esquentada junto à fogueira para dilatar-se e poder produzir a sonoridade esperada. As formas e formações orquestrais de batuques variam de povo para povo. Entre os Tchokwe há duas formações que se consolidaram: a orquestra de quatro batuques (xina, kasaswilu, mukhundu, kasumbi), ora alternada com mukhupiela (batuque de duas bocas) que compete com o ngoma wa xina – maestro que intervêm na orquestra apontando os sentidos. Somente a primeira e potente formação foi vista em campo. No cotidiano dos terreiros, contudo, o som elétrico veio a substituir as orquestras que continuam absolutas nos rituais de mukanda e umbanda, sendo ainda mantidas em sua 111 aldeias do alto Kassai, a ausência de guitarra faz com que a orquestra de batuques seja das mais frenéticas, o que no limite da dança não permite que os pés saiam do chão, apenas a cadência de rebolados e a jinga da cintura e tronco dão movimentos ao corpo em paralelo à estrutura musical. Só quem já morou entre os Luvale ou as mulheres Luvale que se casaram com os Tchokwe ou mesmo os mais velhos que foram ensinados a dançar nas festas ao som exclusivo e original dos batuques Tchokwe conseguem acompanhar o ritmo no terreiro quando a música Luvale se inicia. O terreiro já cheio ainda daria lugar a longas sessions musicais de kuduro, ritmo musical oriundo de Luanda e ainda em formação, cuja dança demasiado inovadora continua exclusiva dos jovens. O kuduro faz a pessoa assumir gestos, posições e contorcimentos corporais que aparentam a incorporação de almas outras, apresentados em provocação momentânea logo desfeita para dar seqüência a outra performance. De fato, o efeito da música se reverbera. No pós-guerra, os discursos musicais do "Estado-Maior do kuduro" conformam audácias e clivagens geracionais, em que apenas os jovens conseguem acompanhar a estrutura musical de seu ritmo81. formação completa por grandes mianangana, podendo vir inclusive a serem tocadas em casamentos e nascimentos como outrora. Os Luvale possuem formações diferentes, sendo a mais afamada uma verdadeira jam session, formada por oito batuques, duas formações Tchokwe alinhadas e tocadas por apenas uma pessoa que caminha freneticamente ao longo da linha, enquanto uma roda com pessoas dançando o circunda. O termo ngoma se faz presente para designar batuque em todos os povos bantu ao sul do Sahara, o que denota tão antigas são sua fabricação, uso e circulação, tendo originado em sua longa dispersão experimentações, invenções e convenções. 81 Sobre o kuduro. A guerra é passado, mas seus motivos permanecem abertos em Luanda, na medida em que o Estado procede a políticas de concentração de renda e exclusão social, fazendo conviver mundos urbanos cada vez mais afastados entre si e procedendo à demolição de bairros inteiros que cresceram durante a guerra, buscando na Cidade-Estado um porto seguro, fazendo-a crescer dos cerca 600.000 a 6.000.000 de habitantes em 30 anos. Visando não apenas obras de infra-estrutura, mas a construção de condomínios de luxo em áreas centrais, cujo solo há décadas é ocupado por milhares de famílias, o Estado procede à demolição dos agora renomeados "bairros anárquicos", despejando as famílias para casas de lona na periferia distante de Zango, gerando revolta, por vezes os tratores do Governo e das construtoras sendo expulsos a tiros de AK de cano 112 Após algumas sequências musicais, Elia me chama para um canto mais afastado do terreiro, acendendo um grande charuto de makanha de sua "reserva". Giramente logo chegaria para participar da roda dos homens. Seu filho estava no terreiro dançando, já denotando relativo domínio e familiaridade com as danças Tchokwe. Castro há alguns anos foi morar com seus tios maternos na sede municipal, para estudar e avançar na escola, o que seus irmãos não puderam fazer em grande medida devido às restrições de circulação impostas pela guerra, tanto quanto Giramente já que nos tempos coloniais "os pretos só podiam estudar até a quarta classe". Giramente comenta sobre seu filho que com certa desenvoltura dança no terreiro ao som de Sassa Tchokwe. "- Estou a pensar em colocar Natanel na mukanda, ele já está pronto, próximo da idade". A mukanda inicia os jovens à idade adulta, os tornam homens. O ritual de cortado que se mantêm no poder de famílias, como poder diante do Estado, mesmo depois do massivo desarmamento. O exemplo do Morro Bento como outros são sintagmáticos dos conflitos urbanos na Luanda contemporânea e dos desafios do aprofundamento real do Socialismo Democrático em Angola. O kuduro nasce do gueto, dos tantos bairros agora tidos por anárquicos, grupos de ex-pequenos-bandidos ou apenas jovens que com a música enunciam discursos políticos e críticas sociais posicionadas contra a marginalidade de pequenos furtos, a violência do Estado e da polícia. Grupos de kuduro passam a fazer filmes sendo eles próprios os protagonistas, filmando nas vielas e terreiros dos bairros anárquicos e remetendo para o campo da sobrerealidade ficcional a produção da violência exacerbada de assaltos e formação de grupos armados a dominar territórios urbanos em revolta contra a exclusão, em diálogo profundo com as imagens que chegam do Brasil por meio do impactante e ainda comentado "Cidade de Deus", enunciando assim por meio de cinematografias a crítica política às raízes da desigualdade social cada vez mais gritante e inexplicável no pós-guerra de tantas riquezas. Violência ficcional e sobrereal, porque demasiado incipiente na contemporaneidade e realidade de Luanda, ainda contida pela imagem e lembrança da brutalidade insuperável da guerra de tantas mortes que abalaram todas as famílias expulsas das aldeias nas últimas décadas e, por outro lado, pelas amplas redes de parentesco na Cidade-Estado por onde as riquezas escassas são redistribuídas ao limite máximo da reciprocidade e da pobreza, cada vez mais insuficientes e insustentáveis às novas gerações que não viveram a guerra e são confrontadas ao mundo de fetiches onipresentes e inalcançáveis com o próprio trabalho produzido na circulação de valores que domina todas as ruas e bairros de Luanda. É nesse contexto, em provocação aos generais de guerra, cuja legitimidade de poder finda em tempos de paz, que surge o auto-institulado Estado-Maior do Kuduro, difundindo suas sonoridades e imagens até as aldeias do alto Kassai. Como enunciam os Lamba, "quando o cano das armas cala, o kuduro também fala, porque a voz tem mais força que a bala". 113 iniciação perdura de quatro meses a um ano, quando se trata de mukanda wa Tchokwe. Durante esse período, os jovens passam a viver em um acampamento na mata homônimo, cujo acesso é restrito aos homens já iniciados. Lá são ensinados pelo Nganga mukanda – o mestre de mukanda – que lhes transmite as técnicas de caça, os conhecimentos na mata, as histórias e mitos, ética e moral dos adultos, o jogo tchiela82, conhecimentos farmacológicos de plantas, como fazer lavras e construir casas e cada dança Tchokwe (tchianda, tissela, ihongo, kachingá, xombe), performadas, ensinadas e aprimoradas diariamente ao som dos batuques, cujos toques específicos são aprendidos por cada iniciado (kandandji). Os maquixe (personagens mascarados) que os jovens conheciam apenas quando das intervenções inesperadas na aldeia permanecem no interior do acampamento da mukanda. É na mukanda que a fabricação das máscaras e a transformação ritual desses personagens sobrehumanos são aprendidas. Dos acampamentos, os maquixe invadem as aldeias, cada qual com seu gênero de performance, desaparecendo em seguida pelas matas. A quantidade e variedade de maquixe que se fazem presentes na mukanda dependem, por um lado, dos conhecimentos detidos pelos homens adultos na aldeia – ou pelo renomado nganga mukanda (mestre ritual), por outro, dos gêneros de performance que desejam sejam ensinados durante a mukanda. Cada máscara traz consigo historicidades próprias, codificando estilos não apenas estéticos como teatrais (Strother, 1998) a serem apresentados e realçados aos kandandji e ao público que os vê nas aldeias: violência (tchikuza e kalelwa), loucura (ngondo), sarcasmo (ngulu), mulher heroína e bela (Muana Pwo), caçador (Uteno) entre tantos outros que variam conforme o território e suas invenções de maquixe ao longo do tempo83. Nas aldeias do alto Kassai, tchikuza e kalelwa, 82 O tchiela é jogado sobre a areia em fileiras de montículos e pedras, em estratégias de ataques e recuos. Sua dispersão se faz presente em toda a África e Fontinha (1983) denota sua presença nos territórios da Palestina, expressando o quão antigas são as circulações no continente africano. 83 Em um segundo momento de pesquisa de campo, pretende-se adentrar com maior profundidade as fases e os conhecimentos da mukanda wa Tchokwe, cujos conhecimentos ainda são restritos aos informantes, mais 114 personagens de guerra dos primeiros quilombos são onipresentes. Por meio do ritual da mukanda, os jovens são tornados adultos, os homens passam a aprender como tratarem as mulheres e se posicionarem como chefes de família. As danças e as conversas iniciam os adultos na arte sexual, por meio das danças cujos movimentos são aprendidos exaustivamente. A iniciação à sexualidade se mostra claro na mukanda, na medida em que culmina, de fato, com a circunscisão penial que torna os jovens homens, prontos para serem aceitos pelas mulheres84 e iniciarem suas famílias, vindo com o tempo a construírem as próprias casas na aldeia e formarem seus domínios familiares (zuwo). Samisselo é um dos mestres renomados de mukanda wa tchokwe no alto Kassai, tendo conhecimentos de construção de muitos maquixe, ele próprio os incorpora em performance e se torna o nganga mukanda (mestre de mukanda) nos rituais de iniciação. Samisselo ironiza quando seus sobrinhos e netos se referem aos maquixe como "palhaços" ao se expressarem em português com o tchindeli, se apropriando assim da tradução colonial, cuja história, entretanto, não viveram. Samisselo aprendeu com os mais velhos, seus mestres que também moravam no Sakazemba, a desconfiar da política de tradução colonial. "Muquixe não é palhaço", diz Samisselo em tom preciso e enfático, desenhando sobre o chão dois lusona: o mukanda e o mukhupiela, agenciando o pensamento de todos que sentados à sombra de seu telhado participavam da conversa. Os lusona formam uma profunda antropologia das imagens entre os Tchokwe, Luvale, Nganguela e Luchazi, ainda praticada nas aldeias por poucos mestres como Samisselo, os do que à etnografia do ritual, embora durante a pesquisa duas mikanda (pl de mukanda) estivessem sendo praticadas, com ngondo, uteno, kalelwa e tchikuza. 84 A mukanda wa pwo se realiza após a primeira menstruação, podendo ser mesmo de caráter individual e durar apenas algumas semanas. Nas aldeias Tchokwe as divisões e clivagens por gênero são relevantes, o que torna difícil, senão proibitivo a um homem adentrar no universo feminino, o inverso se confirmando quanto às intrusões das mulheres na mukanda dos homens nas matas. Do pouco que me foi dito por informantes, a mukanda wa pwo consiste nos ensinamentos de como a mulher deve se comportar em relação ao marido, aos filhos e à vida de família. Não há maquixe, apenas danças de conotação e movimentos sexuais, cabendo às mulheres (mãe, tias e avós) na mukanda feminina ensinarem à inicianda todos os segredos da prática e da vida sexual das mulheres. 115 detentores dos conhecimentos mais profundos85. Os lusona codificam narrativas de mitos, rituais, máscaras, objetos e histórias em uma escrita que não faz uso de convenções fonéticas, senão de estruturas matemáticas duplicáveis que se derivam e se desdobram na construção e invenção de novos ideogramas, com os quais as narrativas são codificadas e memorizadas (Gerdes, 2006). Dispondo com os dedos da mão dezenas pontos eqüidistantes e alinhados sobre o chão limpo e liso de areia, o escritor inicia uma linha cuja geometria precisa e cadenciada passará por todos os pontos até formar complexos ideogramas. A organização dos pontos e a utilização de formações geométricas simétricas e inversas, como imagens-espelho sobrepostas e desdobradas em seqüência, dotam cada sona (sg. de lusona) de extrema complexidade e estrutura algorítmica, posto que apenas um caminho torna possível ao sona ser concretizado com êxito, por vezes percorrendo caminhos tortuosos de muitas dezenas de pontos inscritos em linhas paralelas e verticais, sua arte sendo detida por poucos mestres, aprendidas como longos jogos matemáticos e de memória. De fato, os Tchokwe do alto Kassai os assemelham a jogos, lembrando que outrora existiam muitos makuluana em cada tchihunda que sabiam fazê-los, e competiam entre si enunciando narrativas matemáticas. A tchóta – casa dos homenas – constituía o lugar central e privilegiado onde os lusona eram apresentados e discutidos. Os escritores enunciavam as referências narrativas, na medida e cadência em que desenhavam os lusona que, não obstante, logo depois da enunciação e performance, eram apagados na areia. Com efeito, os que assistiam na posição de platéia conseguiam reter apenas as vagas imagens-espelhos da magia dos makuluana que se reverberavam no pensamento sem serem passíveis de reprodução. Os lusona se transmitiam outrora como hoje ao longo da genealogia. 85 Nas aquarelas pintadas por Cavazzi (1685) junto aos Mbundu, figuram os primeiros registros de lusona em línguas européias, embora quaisquer comentários além do visual tenham sido feitos. Fontinha (1983), Kubik (1987) e Gerdes (2006) compõem o quadro atual de conhecimento dos lusona , em que passam de 400 os ideogramas já coletados. 116 Discordando das noções portuguesas e se contrapondo à política de tradução colonial, Samisselo marca as clivagens que tornam os maquixe muito distantes da noção de palhaço produzida no encontro dos Tchokwe com os brancos, quando os missionários cristãos primeiro traduziram os maquixe por palhaços, para em seguida denominá-los "demônios", afirmando que as pessoas não deviam ver os maquixe quando estes vinham às aldeias, utilizando-se ainda do artifício de desmascarar, revelando certos conhecimentos rituais excluídos às mulheres, de que os maquixe eram homens incorporados de demônios, não personagens sobrehumanos. As yzulye (imagens, figuras) de maquixe e mahamba constituíam, assim, demônios que deviam ser evitados, negados e ignorados pelos Tchokwe, ao menos os que passavam a serem iniciados na mukanda wa nzambi, visto que Nzambi (Deus, segundo os missionários) quando viesse à terra queimaria a todos que respeitassem os demônios. Na política de tradução, a bíblia seria denominada mukanda wa Nzambi. Mukanda se traduz por livro atualmente, embora os Tchokwe nunca dantes conheceram livros. No ritual do livro, contudo, a escrita fonética e ocidental (sona) passa a narrar histórias ocorridas em yhunda (aldeias) próximas de Israel e do Egito, onde importantes mianangana de nomes bíblicos enunciam ensinamentos morais e tantas histórias. Da escrita dos missionários cristães, surgiria a mukanda de igreja, como subversão do ritual de circunscisão e iniciação à idade adulta, em que inexistem quaisquer maquixe, pois se tornam proibidos e denunciados como demônios na cosmologia cristã dos missionários. As danças, músicas e batuques por trazerem inscritas em si conteúdos e performances sexuais são substituídos por hinários evangélicos cantados e repetidos em coro, diariamente, no acampamento da mukanda organizado nas matas pelo pastor ou seu adjunto. As histórias e os mitos Tchokwe são sobrepostos por leituras da bíblia, do livro que se traduz por mukanda e da mukanda que se torna livro. A política da tradução se desdobra em imposições propriamente iconoclásticas86 86 Freedberg (1991) reconhece que em suas práticas e objetivos "iconoclasm may seem chiefly to spring from a general about the nature and status of images, about their ontology, and about their function (or, 117 sobre a cosmologia dos Tchokwe, agindo diretamente em relação aos personagens que povoam o cosmos, não à toa sendo desdenhada, recusada e ironizada por muitos como Samisselo, um mestre da mukanda wa Tchokwe. A constituição do Estado pós-colonial e o fim da guerra em Angola fariam, ainda, surgir e se propagar nas aldeias o que veio a se denominar como mukanda de escola, uma outra subversão da mukanda wa Tchokwe, em que dos maquixe apenas o ngondo é performado. Apresentando seus gêneros teatrais que enfatizam a loucura e o humor diante da platéia, condicionam sua aparição nas aldeias para iniciar a mukanda wa Tchokwe, na verdade, apenas para abrir o ritual e indicar que nos meses seguintes a aldeia e o cosmos serão invadidos por diferentes personagens. Apropriando-se da tradução de muquixe como "palhaço", a mukanda de escola enxerga em ngondo sua materialização exata, sendo por isso mantido à exclusão de todos os demais personagens que agenciam em seus gêneros de performance a violência, os animais-humanos, a sexualidade. O acampamento na mata dessa subversão de mukanda passa a ter na figura do professor ou de algum adjunto indicado, o mestre ritual. As danças ensinadas misturam as Tchokwe com as urbanas, em geral substituindo os batuques pelos aparelhos de som, os mitos e histórias Tchokwe dando lugar ao hino nacional e a ensinamentos de moral cívica que se utilizam da didática aprendida em livros de escola. Os mestres da mukanda de escola reconhecem e prolongam assim a tradução colonial, porquanto mantém nos livros a definição última e legítima de conhecimentos válidos e do próprio sentido transformado de mukanda. Trata-se, notadamente, de derivações da mukanda que passam a coexistir nas aldeias trazendo novos planos cosmológicos: o cristianismo e o Estado. A mukanda wa Tchokwe se torna proibitiva sob a perspectiva de pastores e professores87, por sua duração de tempo e ensinamentos se tornarem conflitivos indeed, the possibility of function) (p.390)" 87 Os professores são enviados a partir das sedes municipais e provinciais, sem terem quaisquer vínculos de parentesco nas aldeias em que passam a viver e trabalhar, embora se mostre crescente o movimento de professores que tendo estudado durante a guerra nas cidades, consigam retornar aos poucos às aldeias e territórios onde cresceram, viveram e fizeram mukanda wa Tchokwe, a terra de seus malemba. Estes 118 com a escola e a igreja, cujos conhecimentos se tornam privilegiados e fundamentais por tais agentes mediadores. Não obstante, a mukanda wa Tchokwe continua profundamente enraizada nas aldeias do alto Kassai, sendo onipresentes, como o denotam a mukanda realizada por Samisselo há alguns anos ou a que Giramente pretende fazer com seu filho e outros jovens em Sakanha. Tal hegemonia evidencia assim a posição de muitos Tchokwe frente aos conflitos de sentidos que tiveram e ainda têm lugar na cosmologia da mukanda. Se as imposições foram introduzidas ao longo do tempo pelos agentes missionários e do Estado na tentativa de imporem outras cosmologias, não deixa de ser sintagmático o modo como a mukanda wa Tchokwe ainda se sobreponha e se afirme sobre as derivações do conceito de mukanda que emergem do encontro colonial e pós-colonial e cuja genealogia não deixa de ser relembrada pelos grandes mestres nas aldeias do alto Kassai, mediante contra-traduções que não reduzem simplesmente mukanda à circunscisão ou à bíblia cristã, mas enfatizam e diferenciam mukanda wa Tchokwe, mukanda wa Escola e mukanda wa igreja. Desse modo, os lusona e a mukanda, propriamente Tchokwe, ainda se sobrepõem ao ritual da escrita e do livro. Frente às subversões impostas com o tempo, sobrepõe-se a mukanda wa Tchokwe, tão preeminente na formação social e moral dos homens nas aldeias, produzindo o cosmos povoado de personagens sobrehumanos de diferentes gêneros e profundidades históricas. A mukanda constrói relações sociais que atravessam as diferentes zuwo de uma tchihunda, os jovens iniciados (kandandji) durante os meses rituais na mata permanecem amigos toda a vida, mantendo fortes laços de confiança e reciprocidade. Entre amigos como entre parentes a comensalidade é sancionada e pressuposta. Fidel e Jaione (filhos de Giramente), Beto e Cardoso (filhos de outras famílias) fizeram juntos a mukanda wa Tchokwe em Sakanha e se tornaram professores de modo algum respaldam a mukanda de escola ou igreja, antes preferem iniciar seus filhos na mukanda wa Tchokwe. 119 amigos, ajudando-se reciproccamente na construção de suas casas e fazendo as primeiras lavras contíguas entre si, permitindo assim que o trabalho cotidiano se faça acompanhar inerentemente de rodas de makanha e conversas que se extendem das lavras aos terreiros. A amizade e o parentesco permanecem, notadamente, como relações sociais fundamentais entre os Tchokwe, capazes de atravessarem diferentes territórios onde quer que parentes e amigos estejam vivendo, perdurando toda a vida mesmo com a distância territorial. A aldeia é constituída assim por relações sociais de parentesco, amizade e vizinhança que, atravessando diferentes zuwo, ressaltam e fundamentam o domínio político mais amplo da tchihunda. As relações de vizinhança são fomentadas na sociabilidade cotidiana das rodas de conversas em terreiros e na troca de trabalho e são as únicas tendendo a se perder, na medida em que as famílias migrem a outras aldeias ao longo da vida, deixando de se relacionarem em domínios além do pertencimento a uma mesma tchihunda. Cada aldeia se mostra como domínio político ao realizar sua própria mukanda, as festas de entrada e encerramento dando ensejo a longas confraternizações em que famílias de diferentes aldeias comparecem. Giramente fora iniciado com Sagegê e Sandonje no Sakazemba, do mesmo modo que Castro será iniciado com outros jovens de famílias (zuwo) vizinhas ou aparentadas de Sakanha. As relações sociais de amizade fomentadas na mukanda sempre são lembradas e remetidas à tchihunda em que tiveram lugar. Assim que Castro se referirá aos amigos da mukanda, dos meses de aprendizado na mata, antes de seguir à Luena para concluir os estudos, visto que as últimas classes de ensino só são ofertadas na sede provincial. Castro circulará através de sua topologia genealógica, atravessando diferentes territórios: Sakanha, Ulemba Khonde, a sede municipal Lumege, a sede provincial Luena. Para Giramente, enviar Castro para estudar no Lumege e em Luena tem o sentido claro de permitir a ele se tornar um professor, vindo a ocupar um cargo remunerado do Estado e com o tempo retornando à própria tchihunda, não mais sazonalmente para passar os meses de férias, senão para se apropriar um dia dos cargos de mediação entre as aldeias e o Estado, tornando-se ele próprio o professor de 120 Sakanha, atitude que se apresenta reverberante em muitas aldeias do alto Kassai. Torna-se reflexo nas estratégias de Giramente e de outras famílias (zuwo) a progressiva apropriação efetuada pelos Tchokwe sobre as mediações. Na verdade, tal apropriação do Estado pelas aldeias e famílias consiste em recolocar a linguagem do parentesco, da amizade e da vizinhança nas posições políticas constituídas pelo Estado que, em um primeiro momento, investira pessoas sem quaisquer ligações com as aldeias, introduzindo agentes e novas posições políticas assentadas fora do âmbito das relações de parentesco. As chuvas que se iniciaram mansamente viram logo mvula – trovões fortíssimos que aproximam os céus da terra, produzindo raios paralelos e verticais ao chão, iniciando o prolongado tempo das chuvas (luisa), em que o trabalho das lavras leva as famílias e cada aldeia a se fecharem como domínios políticos fundamentais, os caminhos cada vez mais alagados deixam quase que proibitivos os deslocamentos, já de fato tornados raros diante da exigência das lavras. Logo cedo, quando as chuvas não se adiantam ao trabalho, cada família segue às lavras pelos caminhos que a partir da tchihunda fazem picadas distintas atrás das casas, conduzindo às diferentes lavras na mata que circunda a aldeia. As crianças se perdem pelo caminho, enveredando-se pelas matas para coletar os cogumelos que já em meados de luisa passam a brotar de todos os tipos, não mais conforme o acúmulo sucessivo das chuvas, mas em simultâneo88. Embrenhadas pelas lavras antigas e nas matas, elas logo chegarão ao encontro dos pais com dezenas de cogumelos enfileirados e encravados em espeto feito de arbusto, para serem cozidos no almoço, e pequenos receptáculos repletos de lagartas coloridas, saborosas quando bem refogadas, sendo alimento comum da família ao longo do tempo chuvoso. Cogumelos e lagartas são defumados sobre o calor e o fumo da fogueira na cozinha, sendo estocados para a dieta alimentar do tempo seco. Adiantando os passos, Giramente e Nakameia logo chegam às lavras 88 Os Tchokwe conhecem quase dez tipos de cogumelos comestíveis, cozinhados ou alguns comidos crus, sem caráter alucinógeno, embora suas cores e tamanhos impressionem à primeira vista, o maior chegando a inacreditável um metro de diâmetro, culimando com o final de luisa. 121 novas, deixando tudo na pequena cozinha construída próximo para se tornar abrigo das chuvas durante a labuta e preparar a comida. Algumas famílias chegam mesmo a construírem pequena casa de palha próximo das lavras, sob proteção e sombra do começo da mata, passando a morar lá ao longo de luisa, só retornando à aldeia com o fim das chuvas e as lavras já prontas. De lá, os homens seguem para as nascentes dos rios, atravessando a mata alta em um dia inteiro de caminhada e aproveitando de armadilhas para capturar pequenos peixes durante alguns dias de acampamento de pesca (mussumba). Em luisa a aldeia fica vazia, as famílias que permanecem morando em suas casas saindo logo cedo às lavras, retornando quase no começo da noite, as chuvas impedindo que os terreiros sejam esquentados com fogueiras e rodas de conversa. O fogo passa a ser exclusivamente no interior da cozinha de cada família, refletindo o fechamento da zuwo em si própria, em seu trabalho e intimidade. O trabalho das chuvas impressiona, as primeiras lavras semeadas alguns meses antes se mostram demasiado avançadas, os montículos já repletos e crescidos de milhos, abóboras, feijão, pimenta, makanha, mandioca, batata-doce, amendoim, jiló, tomate, inhame. A escassez de carne no aprofundar do tempo chuvoso é por vezes compensada, colocando-se armadilhas nas lavras mais crescidas de modo a se antecipar à nkanga (galinha do mato – galinha d'angola) que diante da fartura de alimento vêm das matas em grandes bandos, teimando em se adiantarem à colheita. Invadindo as lavras logo à alvorada ou antes do escurecer, viram refogados dos mais saborosos e esperados em luisa, regados à pimenta e molho de tomate e cogumelos. As lavras que Giramente iniciara já destoam por completo das por ainda trabalhar que ele e Nakameia se concentram atualmente. Giramente falara que plantaria muito esse ano, não apenas devido ao incêndio das hortas, mas porque há tempos trabalha por seu fetiche – uma moto "cavalo", o que implica em exceder a produção das lavras além do necessário para a reprodução social de sua própria família e a circulação de valores do tempo seco. O dia longo de trabalho que se anunciara com um brilhoso e sereno sol matinal, se desdobra em pesadas nuvens que ao horizonte já enunciam o recado de 122 mvula. Nakameia e as crianças se adiantam a retornarem à tchihunda em vista da chuva torrencial que virá na seqüência dos ventos que sopram forte. Giramente permanece mais um pouco. Depois de muitos meses em campo, conheceria a dita lavra. Seguimos mata adentro, Giramente me explicando no caminho que os pequenos pés de makanha podem continuar crescendo junto com os produtos da lavra, que não perderão a força, embora os pés de makanha (forte) merecem assim que alcançam meio metro, serem dispostos em montículos próprios, em lavras exclusivas, são plantas exigentes que se sobrepõem enciumadas e com força sobre as demais. Logo ao chegar, a seqüência de três pequenas lavras repletas de makanha impressiona o olhar. Giramente me explica que as plantas do começo de luisa já se adiantaram a fornecer mitwê (cabeças), mostrando nas lavras plantas de diferentes tamanhos e tempos. À proporção que a ecologia aprofunda a variação de chuva e sol, as cabeças vão crescendo e a makanha sendo apreciada em sabores e potência gradativas e crescentes a partir de meados das chuvas. O aparecimento de uma planta forte que tenha se adiantado às outras, deixando as folhas caírem e formando os primeiros cabelos arruivados em longas e gordas cabeças, sem quaisquer sementes, logo são provadas, mostrando clivagens profundas de sentidos e pensamentos, dando ensejo a um ritmo de trabalho mais intenso e às primeiras trocas de dons com outros agricultores celestes – se Chico Science e sua genealogia me permitem. Tornam-se cabeças amplamente discutidas pelos apreciadores que aumentam em demasia o reconhecimento social da pessoa que cultivou, de sua extrema perícia e técnica em ter plantado no momento certo, retirando as plantas iniciadas dos montículos mistos para "deitá-las" em lavras próprias, preparadas cuidadosamente com restos de fogueiras trazidos da cozinha que aumentam a fertilidade da terra em demasia, permitindo a rápida adaptação das plantas à mudança de morada, conhecimentos adquiridos desde os malemba, que diferenciam e marcam as clivagens durante luisa entre os makuluana e os homens. Giramente me mostra as plantas, retirando algumas e jogando ao mato, explicando que tais plantas adiantaram a dar "flores" e jamais fornecerão "cabeças". De outras 123 plantas de makanha já grandes, Giramente retira com a faca afiada duas mãos cheias de ramos, ainda com folhas, mas já rosadas e avermelhadas nas cabeças, antes de prosseguirmos à tchihunda, diante da chuva que se anunciara com barulho sem mostrar ainda a que veio. Na aldeia, Nakameia já preparara a fogueira deixando a panela a cozinhar os cogumelos, antes de avisar que seguiria à zuwo de Sagegê, filho de Giramente, cuja esposa havia confirmado a gravidez – momento em que todas as mulheres da aldeia se reúnem para saudá-la na gravidez e demonstrar a esperada ausência de wanga (feitiço) entre as famílias da tchihunda. Entrementes, Giramente me mostra as mudas de tangerina que deitara alguns dias atrás em pequenos viveiros adaptados por galhos em sua tchipaka – cercado de troncos de árvore e arbustos junto a sua casa onde planta as frutas. Giramente pretende terminar a tchipaka, já que ainda não está totalmente cercada de troncos, trabalho demorado nas matas até juntar a quantidade necessária. As árvores crescidas como os limoeiros, tangerineiras e laranjeiras costumam fonecer muitos cestos de frutas, sendo em parte levados de bicicleta à sede municipal mais próxima para serem negociados. Na verdade, tchipaka é comum entre as famílias de Sakanha, podendo adotar diversas formas, seja cercando diretamente as árvores frutíferas no terreiro para impedir que os animais as comam durante o crescimento, seja fazendo cercados maiores e contíguos entre a casa e a mata que circunda a tchihunda. Logo retornamos à cozinha e Giramente confere se a makanha que secava próximo da fogueira em brasas já estava pronta para ser degustada. A chuva fora, de fato, sinal falso e o vento ao mesmo tempo em que anunciou os recados de mvula os levou embora, deixando o céu limpo no meio da tarde. Sentamos no próprio terreiro, sob o tradicional abacateiro para alumiar um pouco os pensamentos e conversas. Não muito tempo depois, uma pessoa do Mualengue, tchihunda próxima à Sakanha, chega para conversar, decerto também fora enganado pela chuva e aproveitou ir saudar os outros e trocar bocado de prosa. A saudação daria ensejo à longa conversa. Mualengue tem um irmão que há tempos mora no Saurimo, foi para lá fugido da guerra, pois tendo servido nas Fapla no final dos anos 70 seria ameaçado e quase morto pela Unita, preferindo então 124 seguir à cidade a permanecer na aldeia, sob ameaça imanente de alguma invasão. Com o fim da guerra, entretanto, seguiria o caminho de muitos outros, voltando às aldeias para procurar notícias e os tantos parentes separados e afastados durante os conflitos. Os que viveram em Saurimo e Luena durante a guerra, retornam nem tanto para morar, senão para fazerem tchitaka – invenção portuguesa, traduzida por fazenda, mas que se resume atualmente a pequeno sítio cercado onde se planta frutas, sendo o plural ytaka a apropriação Tchokwe do termo português estaca (Barbosa, 1989). O irmão de Mualengue decidira deixar algumas dezenas de cabeças de boi a serem criadas por seu próprio irmão, o mukuluana da tchihunda. Mandou na ocasião alguns parentes em longa caminhada à fronteira com a Zâmbia, ir comprar os bois junto aos Luvale e trazê-los apeando em algumas semanas de viagem. Tozê, mukuluana-fundador de uma aldeia próxima, havia feito algo semelhante, com a diferença dele próprio após a guerra ter decidido voltar à terra de seus malemba e pedir ao irmão – muanangana Ndumba, a permissão para iniciar uma tchihunda onde outrora fora o tchilombo contra os portugueses em que o próprio Tozê vivera, lutara e resistira com a guerrilha até os bombardeamentos finais pelo exército colonial. Lá, Tozê chegou com parentes e amigos e fundou aldeia homônima, adquirindo cabeças de boi progressivamente ao longo dos anos e das viagens aos Luvale. Há cerca de um ano o Estado inicia o re-ordenamento territorial das aldeias, visando constituti grandes aldeias junto a cada muanangana. Somente as aldeias que tivessem título de tchitaka (fazenda) poderiam em princípio permanecer, o que de pronto levaria Tozê e o irmão de Mualengue a se dirigirem à sede comunal e municipal, a fim de tentarem obter o tal título. Após o pagamento das taxas – o equivalente a US$600, as aldeias puderam permanecer como tchitaka. Mualengue, no entanto, logo exigiu como contrapartida ao título obtido que as famílias da aldeia trabalhassem diariamente em sua tchitaka, pressupondo que havia relações de dívida pelo fato da tchihunda ter podido permanecer graças à tchitaka de Mualengue. Sob sua perspectiva e de seu irmão, a aldeia se tornara uma tchitaka e ele 125 próprio o dono. O monopólio das mediações entre a tchihunda e o Estado passava a ser absoluto, logo implicando na imposição de relações assimétricas. Quem se recusasse a trabalhar que fosse embora para a tchihunda do muanangana Ulemba Khonde, como inicialmente previsto para toda a aldeia. Não apenas Giramente se revoltara com as notícias, mas a aldeia estava em grande medida sob clima de tensão há alguns meses, o poder postulado por Mualengue não se fazia legítimo e sua imoralidade se revertia na recusa sistemática das famílias em trabalhar na tchitaka. Apenas os parentes passavam a trabalhar, o que bem denota certa transformação em que as relações simétricas e de reciprocidade pressupostas no parentesco passavam a se revestir de patronagem e imposições assimétricas. Sem ter como se sobrepor e se impor moralmente, Mualengue não conseguira extrair trabalho dos makuluana e das famílias que compunham a tchihunda, muito menos obrigá-los a sair. Mualengue mesmo tentando reverter o vislumbre efêmero de seu poder, exigindo apenas dois dias de trabalho semanais e obrigatórios em sua tchitaka, continuava sendo ignorado e criticado nas conversas em cada terreiro. Sua imoralidade em exigir trabalho como obrigação tinha rompido as relações sociais com outros domínios familiares (zuwo) que simplesmente o ignoravam, mantendo suas próprias lavras e o ritmo acelerado de trabalho do tempo chuvoso, como aliás sempre fizeram. Isso ressalta, notadamente, que o trabalho nas aldeias não existe como categoria exterior ao domínio familiar, por isso mesmo a troca se dá entre famílias e até o limite em que não comprometa ou incida sobre as estratégias de reprodução social em cada zuwo. A troca de trabalho é constitutiva das relações sociais entre as famílias (zuwo) de uma tchihunda, entretanto, não se fundamenta como venda ou reciprocidade imediata, mas se apresenta como troca mediada sempre por intervalos temporais, ações que se espera sejam inversas ao longo do tempo. As trocas de trabalho detêm assim um componente central de incerteza e de temporalidade que condicionam seu ritmo e orientação. A continuidade de trocas não se faz possível, senão mediado por reciprocidades descontínuas, sob pena das relações simétricas entre diferentes zuwo se apresentarem como assimétricas, um domínio familiar se apropriando do trabalho de outros zuwo. 126 As trocas contínuas impostas por Mualengue contradizem e se tornam contrárias à estratégia de reprodução social e à autonomia política de cada família. Mas não apenas, pois a obrigatoriedade e a atemporalidade interviam na moral das trocas de trabalho, tentando impor a servidão e a assimetria, como se o interesse desmedido e incontido travestido de dom na obtenção do título de tchitaka fosse capaz de "réduit les agents au statut d'automates ou de corps inertes mus par des mécanismes obscurs vers des fins qu'ils ignorent (p:167; Bourdieu, 1980)". Mualengue preferiu com o tempo e a recusa das famílias adotar o que fora a estratégia de Tozê. As famílias que vieram com Tozê e fundaram a aldeia deviam lhe ajudar na construção de sua tchitaka, ao menos uma vez por semana, mediante troca de alimentos por trabalho, como de costume na troca familiar de trabalho. No entanto, tais trocas sempre se constituem de forma esporádica e circunstancial (derrubar matas, terminar lavras, construir casas), e Tozê passava a inserir certa continuidade nas trocas de trabalho até que a tchitaka estivesse pronta. As famílias aceitaram, na medida em que Tozê se comportou como um zuwo perante as demais famílias, pressupondo que a troca de trabalho se operava de forma coletiva como reconhecido moralmente, esperando-se de Tozê que mais a frente os trabalhos possam ser trocados em direções recíprocas e inversas, quando necessário nas estratégias de reprodução social de cada zuwo. No caso de Tozê, a patronagem se mostra profundamente mergulhada e imbricada nas relações de parentesco, amizade e vizinhança, impondo o fluxo contínuo de trabalho por alguns meses, assumindo assim posição assimétrica na medida em que as trocas ocorrem em apenas um sentido. No entanto, a tchihunda continua como domínio político de diferentes famílias, cada qual com suas próprias estratégias de reprodução social, trabalhando as lavras na maior parte da semana. A patronagem de Tozê se apresenta revestida da moral das trocas de trabalho entre famílias ao mesmo tempo em que o título de tchitaka se justifica como dom, já que consegue impor o reconhecimento atemporal e duradouro de dívida das demais famílias perante Tozê que passam a conformar a continuidade do trabalho na tchitaka, impondo a assimetria nas relações sociais por pressuposto simétricas. Não obstante, a assimetria é limitada no tempo e no espaço até no 127 limite de quando a tchitaka estiver pronta, quando na verdade a tchitaka passa a se comportar ela própria como tchipaka, uma lavra de árvores frutíferas cercada que qualquer zuwo pode também com o tempo adotar como estratégia de reprodução social, fazendo mudas diretamente e constituindo a própria tchipaka de frutas mediante troca de trabalho por mercadorias com demais zuwo da tchihunda, inclusive com Tozê. A tchitaka (fazenda) se torna simples tchipaka (cercado). Em Sakanha ocorrera algo próximo há alguns anos. Após a guerra, Kalala vêm do Saurimo à procura do irmão Sajúlia, do qual permanecera por anos sem notícias. A mãe de Kalala e Sajúlia ao chegar na tchihunda há muitos anos fora recebida e acolhida por Sakanha. Kalala logo propôs em sua visita à aldeia abrir uma lavra com base em seus laços de parentesco e construir pequena "cantina" próxima de Sájúlia, aonde traria produtos de Saurimo para vender. As relações sociais de parentesco de Kalala com Sájúlia legitimava perante Sakanha e as demais famílias o direito à lavra e mesmo a abrir a "cantina", vista então como algo positivo por ofertar na própria aldeia mercadorias que os Tchokwe já haviam se acostumado a obter apenas nas cidades (óleo, sal, sabão). Ao constituir seu domínio político, Kalala se torna logo um vizinho, com o qual a troca de trabalho é bem vista, ainda mais quando do esforço exigido para abertura da primeira lavra. Com efeito, ao iniciar sua lavra e a construção da cantina – seguindo a arquitetura de uma casa comum, Kalala oferece aos makuluana e aos homens e mulheres de diferentes famílias a troca de trabalho por mercadorias que trouxera do Saurimo para tais fins (óleo, sal, sabão, molho de tomate, atum em lata, scotch, pilhas). Muitos aceitam as trocas, por permitirem fomentar as relações sociais de vizinhança com a nova família da aldeia. O trabalho coletivo de muitas famílias possibilitou que a lavra e a cantina findassem em pouco mais de uma semana. No entanto, pouco tempo passado, Kalala afirma que voltaria a Saurimo para buscar seu cunhado Tito – parente que passaria então a morar na aldeia e a tomar conta da cantina. Ele próprio, Kalala, permaneceria vivendo no Saurimo, vindo só de tempos em tempos para abastecer a cantina e colher os produtos da lavra. 128 "Ele acha que é bóssi89", me diz Giramente. Kalala se comporta como bóssi quando retorna alguns meses mais a frente, ainda em luisa, trazendo mercadorias e pedindo ajuda das famílias para abrir nova e grande lavra. O tempo decorrente desde a troca passada não tinha ainda sido findado com a troca inversa – diante da necessidade de uma família consertar o telhado da casa ou da cozinha, abrir ou trabalhar a lavra. Logo, a troca de trabalho novamente proposta por Kalala se mostrava simples patronagem, Kalala assumia a posição de bóssi perante as outras famílias vizinhas da tchihunda. Enquanto alguns parentes como Sajúlia e Tito o ajudavam, as demais famílias recusavam a oferta, ignorando sua presença e continuando suas próprias estratégias cotidianas de reprodução social. A posição de Kalala passa a ser contraposta não apenas pela recusa da troca de trabalho, mas também mediante a progressiva apropriação da cantina, na medida em que as famílias de Sakanha quando trocavam a produção agrícola nas praças de Saurimo e Luena logo passavam a trazer os mesmos produtos da cantina e ofertá-los em seus terreiros, pendurando as embalagens nas árvores e junto ao telhado de casa, enquanto a cantina permanecia vazia parte considerável dos meses, devido à própria sazonalidade de Kalala. Além disso, as famílias se apropriam das mercadorias trazidas inicialmente por Kalala, inserindo-as periodicamente na moral das trocas temporais, ocasionais e recíprocas de trabalho coletivo. Dessa forma, expropriavam por completo a posição de bóssi nas relações sociais entre zuwo. Em prosseguimento à conversa sobre Mualengue e Tozê que se desenrolara a partir da saudação, Giramente lembra que há alguns anos fora ao Léua visitar seu primeiro filho – Gegê, que depois da mukanda e de ter casado e separado e casado e separado de novo, resolvera morar na sede municipal. Giramente ficara junto ao filho por uma semana, no retorno à Sakanha soube então que durante sua ausência uma mulonga (reunião) com os makuluana de cada tchihunda e com os mianangana de cada tchifutchi havia sido convocada pelo muanangana Ndumba. Sakanha se dirigira à mulonga, sendo informado junto dos demais que o 89 Do inglês Boss, termo oriundo da Zâmbia 129 Estado exigia que as aldeias de mukuluana dispersas al longo do alto Kassai deviam se deslocar e se juntar à nganda (aldeia) de cada muanangana. Sakanha, Samisselo, Saguela e Sarita deviam por suas localizações se deslocar para a aldeia do muanangana Ulemba Khonde, construindo lá novas casas e abandonando as antigas já no próximo tempo seco (luchiho). O calendário de retirada das aldeias fora assim comunicado por muanangana Ndumba a todos os makuluana e miananagana de seu tchifutchi. As muitas aldeias do alto Kassai dariam lugar, assim, a poucas,grandes e povoadas aldeias. Na tchihunda concentrada de cada muanangana, o Estado pretendia colocar escolas e posto de saúde, demanda antiga de muitos makuluana. No formato da política de re-ordenamento territorial planejada e imposta pelo Estado, os territórios haviam de se tornar, de fato, apenas dos mianangana, permanecendo dezenas de quilômetros distantes entre si90. Giramente exerce política em suas posições contrárias à retirada da 90 Permanece ainda obscuro a política de re-ordenamento territorial ora em curso, na medida em que não se faz acompanhar de quaisquer técnicos ou insumos agrícolas, o que há tempos é reclamado nas aldeias, as famílias tendo que se dirigir às sedes provinciais para adquirirem algumas sementes antes de luisa, diferentemente da assistência técnica do Estado diretamente nas aldeias que existia nos anos 70 e 80 logo após a Independência, nas primeiras décadas do socialismo em Angola. Algo talvez menos obscuro, quando se atenta às prospecções minerais ora em curso no alto Kassai, efetuadas por caminhões russos em diversas partes onde haja lajes de pedra próximo dos rios. Os russos junto com a Odebrecht – empresa multinacional de matriz brasileira – já extraem diamantes em quantidade industrial em ampla concessão territorial concedida pelo Estado próximo a Saurimo. Além disso, a Odebrecht testa desde o começo da década plantações de milho, soja, laranja e capim adaptado nos cerrados do leste de Angola, trazendo tecnologia oriunda dos cerrados sulamericanos, em especial dos brasileiros. De avião chegam também as primeiras dezenas de cabeças de gado, "boi branco", espécie ainda demasiado rara, dantes por total inexistente e desconhecida nesses cerrados de Angola e logo comentada nos mojimbos que se espalham das aldeias urbanas às rurais, "o boi dos brasileiros" falado e visto próximo de Saurimo. No planalto central de Angola já há presença de fazendas brasileiras e no sul os povos pastoris e nômades se vêem cada vez mais constrangidos em seus movimentos periódicos pela chegada de fazendas de políticos oriundos de Luanda ou das sedes provinciais. Pode-se afirmar que, literalmente, os campos começam a serem cercados nos cerrados de Angola ao centro e ao sul e a dinâmica desse movimento no leste, nos territórios Tchokwe, apenas se mostra aos olhos em seu momento embrionário. 130 tchihunda, indicando de certo modo formas contemporâneas de como as relações entre Estado e aldeias passam a ser mediadas por estratégias que acionam e reconhecem diferentes domínios políticos segmentares. A retirada da tchihunda implicava que as famílias que vieram a se constituir em Sakanha fugindo da guerra que se embrutecia teriam que recomeçar tudo de novo, deixando para trás casas e lavras, histórias, lembranças e o próprio tchifutchi. Frente às ameaças, Giramente convoca uma mulonga em Sakanha, onde propõe enfático e de partida às discussões que todos os zuwo contribuíssem para que o título de tchitaka (fazenda) pudesse ser obtido coletivamente para a tchihunda permanecer. No entanto, a terra é posse temporária de cada família que a trabalha consoante suas estratégias de reprodução social e na medida do trabalho familiar. A própria concepção de terra que define a tchihunda como tchifutchi não se reduz às noções de propriedade privada nem coletiva da terra. Nesse proposta, uma família teria que formalmente deter o nome da tchitaka, o que já se mostrara demasiado conflituoso, discutido e pensado em conversas que há meses se sucediam sobre a tchitaka em Mualengue. A mulonga termina sem consenso acerca da estratégia política a ser seguida. Giramente decide, então, seguir com Sakanha diretamente ao muanangana Ulemba Khonde e em seguida ao muanangana Ndumba, cuja prerrogativa da segmentariedade política se mostrara afinal preponderante durante o processo. Muanangana Ndumba (leão) acolheu as argumentações de Giramente e de Sakanha de que as lavras e árvores já crescidas não podiam ser deixadas para trás, que todas as famílias vieram durante a guerra, reconstruindo na aldeia suas vidas e que não havia motivo justificável para abandoná-la. Ndumba afirmara, entretanto, que a decisão não lhe cabia, mas que fora imposta pelo Estado e que Sakanha e Giramente deveriam se reportar diretamente à sede comunal para tentar resolver o impasse. Cabe ressaltar que desde o fim da guerra o Estado passou a diferenciar e denominar de Regedores alguns miananagana como o próprio muanangana Ndumba, atribuindo-lhes salários e reconhecendo-lhes a prerrogativa de domínio político-genealógico sobre os demais mianangana, o que de certo modo intervém 131 diretamente sobre a segmentariedade política dos domínios, pois muitos mianangana mesmo mais antigos do que Ndumba não foram contemplados com o reconhecimento de regedores. Não obstante, o reconhecimento a todos os mianangana ainda se mostrava explícito, denotando que o Estado visava, sobretudo, fortalecê-los em seus domínios políticos91. Giramente e Sakanha seguiriam então até a sede comunal a fim de conversar com a muanangana Cassaje, cuja segmentação política engloba o tchifutchi de Ndumba. Os argumentos eram mais do que justificáveis. Cassaje afirma, no entanto, que não lhe competia mudar a decisão que fora tomada exclusivamente pela Administração comunal92. Giramente é o comitê do MPLÁ em Sakanha93. Tendo conhecimento da estrutura do Estado, Giramente resolve se reportar diretamente ao comitê central do partido na comuna, articulando a 91 Embora o Estado reconheça as práticas de wanga e de kutisa wa wanga (rituais públicos de retirada de feitiço pelo ngombo) nas sedes comunais, municipais e provinciais – alguns secretários afirmando que o Estado pretende promulgar a lei do feitiço no código criminal, tal política de reordenamento estatal ignora por completo o fato primordial de que as aldeias grandes nunca perduram no tempo, sempre constrangidas por práticas de wanga, cujas mortes e acusações rompem as relações sociais entre muitas famílias (zuwo), conduzindo cada aldeia a fragmentar-se continuamente. 92 Angola se orienta e se aproxima no mundo contemporâneo do sistema político chinês. A Constituição reconhece os princípios fundamentais de Socialismo Democrático e Economia de Mercado. A indicação do Presidente da República e dos demais cargos do poder executivo se dá por escolha interna do partido que detém maioria no poder legislativo e, no pós-guerra, o MPLÁ se mostra como maior partido político. Desse modo, o comitê central do MPLÁ ao nível de cada segmento político (Estado, províncias, municípios ou comunas) tem sob a pessoa de seu presidente o direito e prerrogativa à posição executiva máxima. A segmentariedade política do Estado se funde assim na própria segmentariedade do Partido de maioria legislativa. Os congressos do MPLÁ ocorrem periodicamente com vistas a discutir as diretrizes e propostas políticas ao nível de cada unidade política do Estado. PRS, Unita e FNLÁ são os demais partidos presentes de forma minoritária no poder legislativo, necessitando em suas respectivas estruturas políticas em grande medida de financiamento do Estado. 93 Toda aldeia possui um comitê político-partidário em Angola, fazendo-se também presente em Sakanha o comitê do PRS, partido do leste e dos Tchokwe, fundado no pós-guerra. As duas bandeiras partidárias, introduzidas antes das primeiras eleições legislativas do período de paz, realizada em 2008 permanecem hasteadas, junto com a de Angola que tremula em todas as aldeias. 132 segmentariedade política dos Tchokwe e do Estado, posicionando-se ora como comitê político do MPLÁ, ora como um mukuluana de uma tchihunda, junto a Sakanha. Constituía assim novas formas de se fazer política, articulando oposições e segmentariedades políticas mediante estratégias que partiam da aldeia até o Estado. Afirmando a posição política das famílias e da aldeia, Sakanha e Giramente exercem estratégias atravessando as unidades políticas cada vez mais englobantes e amplas constituídas pela situação – o domínio político-genealógico de muanangana Cassanje – cujo apoio foi obtido, e o segmento político-partidário da Comuna cuja prerrogativa da política de reordenamento territorial se mostrava em sua máxima segmentação e autonomia decisória. Na política segmentar, Giramente evidencia se tratar de domínios paralelos que começam a ser articulados e contrapostos: a segmentação do Estado e dos Tchokwe. Se o Estado se faz presente em todos as aldeias e segmentos políticos Tchokwe, não deixa de ser evidente que os segmentos políticos do Estado são apropriados pelos próprios Tchokwe, desdo os comitês das aldeias até a comuna, o município e a província. A partir de Giramente mostra-se claro que o Estado pós-colonial se relaciona com os Tchokwe reconhecendo a precedência político-genealógica de alguns mianangana perante os demais, não simplesmente em termos de genealogia dos malemba, mas também em decorrência da guerra, atribuindo posição diferencial (regedor) de mediação aos mianangana que durante a guerra anti-colonial e contra-revolucionária desempenharam importante papel ou que no período pós-colonial se mostram mais abertos. Mas os mianangana ainda possuem suas prerrogativas, tanto que no reordenamento territorial imposto pelo Estado, os regedores se posicionaram como mianangana, numa política entre miananagana. Não obstante, a posição de regedor ao ser remunerada pelo Estado, passa a inserir nas relações entre segmentos políticos diferenças outrora desconhecidas. Alguns atributos recentes como carros presenteados pelo Estado se tornam inerentes e exclusivos à posição de muanangana-regedor, enquanto outros como motos e aparelhos eletrônicos também são apropriados progressivamente por 133 famílias de cada tchihunda, deixando com o tempo ser privilégios dos detentores das principais posições de mediação criadas no pós-guerra: os professores e os miananagana-regedores. Os próprios fetiches (motos, aparelhos eletrônicos) passam assim a conformar as estratégias de reprodução social de diferentes famílias quanto às lavras e à produção de mais-valia na circulação de mercadorias. Voltaremos a esse ponto central de certa antropologia econômica entre os Tchokwe. Nota-se, contudo, que a política de re-ordenamento territorial em curso visa em grande medida fortalecer os mianangana em detrimento das famílias e das aldeias, refletindo em certa medida as continuidades implícitas dos projetos colonial e pós-colonial em Angola, expressa na atual junção das aldeias em bairros. Yelengi (2005) já ressaltara, a propósito, certa analogia no CongoKinshasa em que "la distinction entre chefferies et secteurs disparut, entraînant en réalité la suppression des chefferies et partant le recul de l'autorité coutumière. Les groupements, subdivision de la chefferie et du secteur, disparurent aussi du vocabulaire administratif (p.422)". A política colonial ainda se mostraria demasiado reverberante após a independência no Congo-Kinshasa, na medida em que " le pouvoir public en se fiant à l'héritage colonial a persisté dans l'erreur de n'entretenir qu'un petit nombre de chefferies au détriment des autres (p.423)", o que no entanto daria ensejo a revoltas e conflitos profundos, alguns dos quais ainda em aberto, pelo fato das estratégias do Estado em explorar economicamente o território ter se posicionado continuamente na "refus d'associer les chefs traditionels dans la prise de décision (p.424)". Algumas questões permanecem em aberto com o fim da guerra contrarevolucionária em Angola e se referem aos modos de articulação da política além da mera dicotomia colonial "poder de Estado" e "poder tradicional", expressa clarividente na escolha exclusiva dos canais de mediação sem reconhecimento à segmentariedade e à prerrogativa político-genealógica nos territórios Tchokwe do alto Kassai, o que exclui a participação política dos domínios Tchokwe mais fundamentais, como as famílias e as aldeias, instituindo e impondo aos miananagana um poder que não se assenta, de modo algum, na exclusividade e no 134 monopólio sobre a terra. Antes do que o Estado – fundado e constituído pelos Tchokwe e demais povos do leste ao longo das guerras, a segmentariedade política do território é o que notadamente se aproxima em demasia de um Socialismo Democrático, ao permitir às famílias afirmarem simetricamente suas posições e autonomias políticas, no tocante às estratégias de reprodução social de seus próprios domínios (zuwo) ao longo do processo histórico. 135 2.2) Magia e umbanda A terra se torna entre os Tchokwe meio de reprodução social estritamente relacionado com a cosmologia, pois deriva seu fundamento político dos malemba – antepassados matrilineares que povoam o mundo. Os malemba como agentes sobrehumanos incorporam no próprio muanangana a potência mágica de predação e contra-predação em seu território, em grande medida expressa na capacidade de metamorfose em animais predadores (leão, crocodilo, jibóia, jaguar), magia transmitida ao longo da genealogia e produto do parentesco longínquo, fabricado ritualmente pelos malemba com grandes predadores. A potência mágica detida pelos grandes mianangana não lhes é exclusiva, mas compartilhados pelo ngombo (mestre de umbanda)94, sendo por ambos empregados em rituais. Intercedendo junto aos malemba, os mianangana e ngombo são capazes de efetuarem a contra-predação diante dos malefícios praticados pelo nganga, humano que por iniciação à magia, a suas armas (mata) e metamorfoses se comporta como agente maléfico das relações sociais, efetuando a antropofagia sobre o mbunge (coração, alma, consciência) de parentes para se alimentar, o que no limite da predação e de apropriação do princípio vital leva sua vítima à morte, seja gradual ou fulminante. As fronteiras de magia são tênues e 94 Sob influência colonial e missionária, os Tchokwe traduzem umbanda como "medicina tradicional". A umbanda contém em si um conjunto de conhecimentos mágicos e etnobotânicos, mediando ritualmente a relação dos humanos com agentes sobrehumanos que povoam o cosmos e que emergem na própria experiência social. A umbanda será traduzida para os efeitos dessa dissertação simplesmente como umbanda. O ngombo se constitui como "mestre" de umbanda, na medida em que seus conhecimentos e capacidade divinatória remetem à iniciação ao hamba ngombo, agente sobrehumano que possui o domínio e maestria sobre as técnicas xamânicas entre os Tchokwe e outros povos aparentados: bakongo, yaka, pende, lunda, luvale, ndembu, luchazi, mbundu, nganguela. O ngombo e a umbanda (tchimbanda) se mostram técnicas cosmológicas há tempos em circulação na África Central. A análise da umbanda em suas muitas versões permanece além das possibilidades da presente dissertação. Não obstante, será um tema privilegiado no decurso da pesquisa de campo e de arquivos. 136 incertas, pois os atributos de metamorfose e potência se assemelham e se apresentam em mianangana, ngombo e nganga. No entanto, somente os miananagana e os ngombo detêm a dupla potência de efetuarem a contrapredação e a predação, o nganga sempre permanece como agente exclusivamente maléfico nas relações sociais. Baumann (1951) já afirmara que a iniciação à magia em muitos povos centro-africanos pressupõe o estabelecimento ritual de relações de parentesco entre espécies, em que leopardos (em povos da floresta e/ou do cerrado) e leões (em povos de cerrados) são mortos para se retirar-lhes os olhos, misturando-se o sangue resultante ao sangue humano que emerge de incisões sobre a pele do iniciandi. Misturando o sangue e tornando-se parentes95 mediante encantamentos rituais, os humanos passam a ascender à perspectiva mágica de animais predadores. O parentesco entre espécies atravessa as genealogias, relacionando domínios políticos de espécies distintas. Iniciando-se à magia, um nganga detém e emprega a metamorfose em suas práticas maléficas com fins de matar e comer seus parentes, predando-os nas matas e rios. Contudo, é justamente a metamorfose que permite ao ngombo e ao muanangana efetuarem a contra-predação diante do nganga, o que ressalta a permeabilidade da noção de wanga, cuja tradução e potência comportam a magia e o feitiço, a dupla atribuição de predação e contrapredação9697. 95 Os primeiros acordos estabelecidos entre belgas e povos bantu do alto rio Congo se deram ainda sob forma nativa, a partir da mistura de sangue com incisões na pele, produzindo parentesco entre grupos que deixavam de praticar guerra ou no caso específico de povos bantu que abandonavam a antropofagia guerreira em suas relações sociais. 96 A tradução de Barbosa (1989) parece restrita, ao atribuir a wanga apenas a referencialidade maléfica. Um ngombo tanto quanto um muanangana podem ser acusados de deterem wanga, ora empregado na contrapredação (proteção) ou na predação (ataque). 97 Nas aldeias Tchokwe do alto Kassai, a morte de um leão acompanhada da ocultação do corpo do animal, sinaliza para todos se tratar de leão de wanga – a saber, morto para produzir wanga. O fato foi relatado numa aldeia próxima de Sakanha e de Vieira, após a morte de um leão na aldeia Tchinanamata, tendo ocorrido em 2009. No mojimbo ainda circulava a história desse leão tanto quanto outros dois que foram mortos em armadilhas na comuna do Lhangongo, importante centro de magia Tchokwe. Em ambos os casos, o 137 Cabe ao ngombo como mestre de umbanda efetuar o ritual kutisa wa wanga (desenfeitiçar, retirada de feitiço), realizado nas aldeias em que a predação se apresenta preeminente na morte de adultos. As divinações xamânicas procedem à procura do vetor maléfico do nganga e de suas mata wa wanga (armas de feitiço) utilizadas para, então, controlá-las a partir da aplicação de plantas mágicas e de enunciações que devem ser repetidas pelo nganga em voz alta e diante de todos que permanecem no terreiro acompanhando o ritual. Trata-se de enunciados de lógica contraditória em que o nganga assume publicamente que ao cometer novamente wanga será morto pela poção de medicamentos ora ingerida. O muanangana, por possuir a prerrogativa de wanga em seu domínio políticogenealógico, não pode ter o wanga retirado pelo ngombo, a não ser em caso de mortes sucessivas e expressivas nas matas e nas baixas de seu território, quando ele próprio se mostra como grande nganga metamorfoseado em animais predadores, cabendo ao ngombo mais experiente e reconhecido por sua magia ritual praticar a kutisa wa wanga, em que o duplo predador no qual o nganga/muanangana se transforma para matar suas presas deve ser morto nas matas ou rio, seja jibóia, crocodilo ou leão. A prática de wanga a partir de animais predadores é tida como a mais potente magia entre os Tchokwe, só detida por experientes mianangana, ngombo ou nganga. Em momentos de predação incontida (fome, epidemias), cabe aos malemba Governador mandou uma comitiva para pegar os leões, oferecendo mercadorias de contrapartida. A morte já efetivada, o destino do animal seria a produção de magia e o enterro, já que a força de sua carne ao ser ingerida leva à morte, sendo por isso tabu estrito entre os Tchokwe. No entanto, o leão seria apropriado pelo Governador. Em Luena, o Governador se posiciona como grande nganga comprando wanga de quem os possui – em geral os mais velhos que fizeram mungonge e os diferentes ngombo. Um mojimbo dá mostras da potente etnobotânica dos Tchokwe: um adversário político do Governador foi convidado a um jantar. A magia aplicada em sua comida o fez desmaiar. O motorista completou a intimidação política e a afirmação de magia do Governador, ao levar o convidado desmaiado ao cemitério, deitando-o e deixando-o inconsciente entre as sepulturas, onde no meio da madrugada acordaria de um pesadelo inesquecível e aterrorizante. Os Tchokwe são mestres da magia negra e o mungonge era a principal escola. 138 do muanangana intervir para que a fertilidade da terra e das famílias (zuwo) do tchifutchi seja restabelecida. O poder diferencial de um muanangana reside, assim, na magia de incorporar seus malemba que, na cena ritual, se fundem em toda sua genealogia sob o personagem Tchikhungu (figura 5). Transformando-se em Tchikhungu, o muanangana passa a ascender o ponto de vista de seus malemba sobrehumanos, visando restabelecer ritual e eficazmente o parentesco com antepassados antropofágicos causadores da predação que ora se abate sobre o tchifutchi. A iconologia de Tchikhungu transparece em suas alegorias a potência mitológica atribuída ao protótipo de muanangana: Yanvwa Ngombo, quem criou o sol, a lua e as estrelas, como enunciado pelo mito de origem dos Tchokwe. Na grande máscara de Tchikhungu figuram o sol, a lua e as estrelas sob formas mnemônicas, inscritas não em completude ou mímesis, mas em imagens incompletas e codificadas, conhecidas e ensinadas a todos da aldeia, de modo que a aparição de Tchikhungu em performance ritual seja percebida e compreendida como uma forma de ideograma (Bastin, 1983). Os dois semicírculos laterais referem-se ao sol, os dois verticais são a lua, ao centro da máscara os pontos formam as estrelas. No plano mais externo e circundante, uma cobra demasiado venenosa e temida (yenge) é figurada em padrões geométricos e triangulares codificados mnemonicamente a partir dos desenho replicados de sua pele. Ainda nesse plano, à esquerda, a grande mancha expressa a cegonha preta dos rios e alagados se impondo sobre a cobra, cenografia que remete a mitos em que a cegonha captura a cobra, denotando a contra-predação que se espera seja efetuada pelo muananagana sobre um agente maléfico às relações sociais. A figuração por traços mnemônicos se aproxima em demasia de uma Bilderschrift (Warburg, 1998), em que camadas codificadas de sentidos se situam entre a imagem-reflexo do real e o símbolo, entre a mimesis e a escrita fonética. Por meio da Bilderschrift – escrita de imagens mnemônicas, certos conhecimentos são codificados, transmitidos e ensinados em cenografias rituais ao longo do tempo. Warburg (1988) empregaria o conceito de Bilderschrift em sua etnografia sobre os Hopi e outros pueblos ameríndios do Arizona e do Novo México em fins 139 do século XIX. Nos rituais anteriores às estações chuvosas, os guerreiros Hopi praticavam complexa dança diante de toda a aldeia, durante a qual cascavéis eram manuseadas vivas e jogadas violentamente contra o chão, sobre um restrito espaço em que um desenho de areia figurava nuvens com quatro cobras-raio a despejar-se sobre a terra. O ritual aciona a magia eficaz das cobras em se metamorfosearem em violentos raios do começo do tempo chuvoso, as cobras-raio sendo também figuradas em altares iconológicos permanentes diante dos quais sacrifícios deviam ser realizados antes das chuvas. As cobras se tornam entre os Hopi seres sobrehumanos fundamentais à reprodução social, sendo o animal do qual os humanos descenderam em suas genealogias. As cascavéis são os antepassados, dos quais dependem as chuvas, assim como entre os Tchokwe depende dos malemba a fertilidade da terra e da vida. Esse parentesco originário dos homens e dos animais, expresso entre os Hopi na transformação dos mortos em cobras e agentes sobrehumanos, deve ser reafirmado ritualmente, o que torna a iconologia da performance e dos altares imbuídos de conhecimentos cosmológicos. O ritual assim como os altares, as performances assim como os objetos iconológicos se tornam substratos de Bilderschrift, fundamentais na codificação e transmissão de conhecimentos. Warburg permite em seus desdobramentos teóricos a constituição dos alicerces de uma antropologia histórica da arte. Nesse sentido que Severi (2003), ao comparar diferentes formas da Bilderschrift, recusa a dicotomia que impôs marcos evolutivos tendo por pólos a presença ou ausência de escrita fonética. A inscrição de conhecimentos ao longo do tempo não pressupõe a escrita fonética, quando se atenta aos fatos etnográficos em que diferentes povos se utilizam de imagens narrativas complexas e paradoxais nos processos de codificação e transmissão de conhecimentos. Nessa antropologia das imagens, as formas mnemônicas se apresentam, assim, como suportes formais condensados de sentidos, cuja aparição e percepção em contextos rituais ensejam e desdobram a compreensão e transmissão de conhecimentos. Entre os Tchokwe, nenhuma pessoa senão o próprio muananagana 140 incorpora Tchikhungu em contexto ritual, quer em caso de predação incontida (epidemias e fome), de predação em sua família (zuwo) ou ainda na sucessão genealógica ao domínio político – ocasiões em que os malemba se fazem presentes. No ritual de consagração e sucessão do muanangana, Tchikhungu incorpora os malemba da genealogia e os funde à pessoa do muananagana. Assumindo o domínio político do tchifutchi o muananagana se torna assim uma pessoa composta que passa a deter o ponto de vista sobrehumano dos malemba. Pouco se sabe desse ritual, visto ainda não ter sido estudado em quaisquer etnografias. A cena ritual, contudo, contêm a aparição de Tchikhungu, o sacrifício de animais e a disposição do novo muananagana sobre sua segunda pele, o leopardo, invocando ritualmente o parentesco originário entre os malemba e os grandes predadores animais, trazendo consigo a afirmação do poder de metamorfose capaz de contrapor-se ao nganga perigoso que se metamorfoseia em leão, mas ao mesmo tempo ensejando a dubiedade do parentesco originário entre espécies e a magia obscura de sua genealogia em poder comportar-se e posicionar-se ora como nganga, transformando-se em leopardo ou em outros animais predadores e praticando wanga. A posição política diferencial do muanangana no interior da tissemuka Tchokwe se reveste, portanto, de toda sua complexidade cosmológica na cena ritual. Não apenas o muanangana, pois o ngombo em seu ritual kutisa wa wanga se metamorfoseia em leopardo, vestindo sua segunda pele e se dirigindo como um leopardo até o altar de seus objetos rituais que permanecem ao centro do terreiro. Não se trata de simples metáfora ou analogia, mas da eficácia ritual e da potência mágica de incorporar a perspectiva de agentes sobrehumanos (malemba) e grandes predadores. 141 (Figura 5, Tchikhungu; Bastin, 1983) 142 Bastin (1983) analisa os rituais em que a predação dos malemba sobre a família do muanangana (zuwo) deve ser contida, mediante o restabelecimento das relações sociais de parentesco entre o muanangana e seus malemba, entre os humanos e antepassados matrilineares. No longo ritual, o muanangana incorpora seus malemba fazendo-lhes sacrifícios e oferecendo-lhes a comensalidade com os humanos. O ritual se desdobra em diversas partes. Logo cedo, o muanangana se dirige à mutendi – cabana na mata construída com propósitos específicos de abrigar Tchikhungu. Lá, o muanangana se transforma ritualmente em Tchikhungu, incorporando a perspectiva de seus malemba, em seguida avançando das matas à aldeia com sua faca ritual mukwale (objeto ritual genealógico) e um ramo de tchisukulu (planta mágica e medicinal). À sua chegada na aldeia, todos os homens, mulheres e crianças correm e se refugiam em casa, pois Tchikhungu se posiciona como ser sobrehumano e predador e encontros ocasionais outrora davam ensejo à decapitação. Tchikhungu é recebido na aldeia aos toques de dois mikhupiela, batuque de duas bocas simétricas e opostas, cuja orquestra se fazia atributo exclusivo do muanangana98. Somente os makuluana da aldeia do muanangana lhe aguardam na tchóta, casa dos homens localizada no centro. Lá, com sua faca cerimonial, Tchikhungu degola um cabrito, afirmando sua condição sobrehumana diante dos makuluana ao beber o sangue in natura que jorra do pescoço do animal. Tchikhungu entrega então ao mukuluana mais velho presente na tchóta a faca cerimonial com que matou o cabrito, ainda suja de sangue e enrolada na planta tchisukulu, retornando em seguida à mutendi na mata, todos na aldeia permanecendo dentro das casas, até 98 Heintze (2004) revela fotografia de fins do século XIX, tirada pela comitiva do General Henrique de Carvalho, mostrando o irmão de Muatyanwa que seguia até Luanda com a comitiva de portugueses, a fim de formalizar acordos escritos e diplomáticos, fazendo-se acompanhar na comitiva de suas mulheres – para lhe prepararem comida, evitando assim ser morto por wanga (feitiço) ao longo da viagem. Prosseguiam ainda dois tocadores de mukhupiela, cuja performance se daria quando de sua passagem por diferentes domínios político-genealógicos no caminho até Luanda, reconhecimento de sua posição política diferenciada. 143 que os mukhupiela deixem de tocar e os makuluana sinalizem que Tchikhungu deixou a aldeia. O mukuluana segue à casa da mulher do muanangana, entregando-lhe a faca cerimonial que suja de sangue e enrolada na planta é salpicada com pó branco de mpemba, o que sinaliza na umbanda pureza e purificação concedida pelos malemba. A mulher aplicará tal mistura sobre o corpo da pessoa doente, enquanto o sobrinho matrilinear do muanangana, o próximo a sucedê-lo no domínio político, se dirige à mutendi na mata, onde cozinhará a cabeça do cabrito a ser depois comida pelo muanangana e sua família. O resto do cabrito ainda é repartido entre as famílias dos makuluana que, desse modo, participam da comensalidade ritual de Tchikhungu e da família do muanangana, cada qual em sua própria zuwo. No dia seguinte bem cedo, uma caça coletiva é organizada para matar um antílope e trazê-lo à mutendi de Tchikhungu na mata. A máscara que lá permanece se torna um objeto ritual personificando os malemba do muanangana, logo sendo besuntada com o sangue do sacrifício enquanto os homens da família do muanangana e os makuluana realizam a comensalidade ritual do animal99. Os malemba se comportam como antepassados antropofágicos, na medida em que a predação sobre os humanos se efetua ao longo da própria descendência, devorando progressivamente a carne e o mbunge da pessoa (coração, alma, consciência) – seu princípio vital, deixando-a doente e magra. No ritual, os malemba se fundem em Tchikhungu e no muanangana, expressando sua inerente condição sobrehumana ao predarem o animal e se alimentarem de seu sangue in 99 Certa diacronia permanece presente, embora não possa ser desenvolvida no atual estágio de pesquisa de campo. Os cabritos, comumente sacrificados em rituais, foram introduzidos somente pelo comércio atlântico, diferentemente dos bois e galináceos, cuja presença na África remete há séculos e por vezes milênios. Nesse sentido, é provável que os sacrifícios efetuados por Tchikhungu fossem humanos, sendo a faca ritual e sacrificial uma tônica entre outros povos africanos que praticavam a antropofagia ritual. Outro indício mais claro dá mostras do por que o mukhupiela ser atributo exclusivo de muanangana no passado não muito distante e ser evocado em seus rituais aos malemba. Segundo Wastiau, o mukhupiela era forrado em ambas as extremidades com pele humana (Wastiau, 2006). 144 natura e da cabeça – fontes do princípio vital. O ritual visa restabelecer as relações sociais de parentesco, mediante a domesticação da predação dos malemba sobre os humanos. A comensalidade se mostra como fundamento das relações sociais de parentesco entre os Tchokwe. Comer junto implica na recusa de wanga e da predação em e entre domínios familiares (zuwo) e amigos de mukanda. O muanangana, os malemba (Tchikhungu) e os makuluana ao praticarem a comensalidade ritual entre si e entre famílias (zuwo) reafirmam as relações sociais no domínio político-genealógico (tchifutchi), entre os humanos e os mestres-donos da terra – os malemba, dos quais depende a fertilidade da terra e a reprodução social de cada zuwo, visto que a terra se constitui em sua essência como domínio político dos malemba. Os momentos de predação sobre a família ou o território do muanangana denotam, com efeito, que as relações sociais de parentesco com os malemba foram rompidas – por vezes, resultante da recusa dos vivos em continuar a comensalidade ritual com Tchikhungu em sua mutendi. As relações sociais de parentesco entre humanos e os malemba se mostram inerentemente assimétricas, pois somente aos sobrehumanos a predação se torna um atributo onipresente. Nesse sentido, o ritual ao permtir ao muanangana controlar a predação assumindo a perspectiva dos próprios malemba antropofágicos o reveste de magia, fundando a assimetria política entre os humanos no interior do tchifutchi, na medida em que o muanangana ao deter a metamorfose em malemba e animais predadores como condição de sua humanidade extendida pode se posicionar como sobrehumano e predador onipresente da vida humana em seu tchifutchi. Não obstante, a magia não é monopólio do muanangana mas se torna atributo diferencial inerente do mukuluana em cada aldeia, posto que os mianangana compartilham com os makuluana os conhecimentos de fabrico dos yixixi100, pequenas estatuetas 100 Os conhecimentos de fabrico de yxixi eram transmitidos no mungonge, ritual de iniciação à magia posterior a mukanda, cujos conhecimentos são escassos. Os últimos iniciados no mungonge nos anos 50 continuaram a transmitir a magia do tchixixi em suas genealogias e alguns makuluana ainda o fabricam, seja para proteção da família ou ataque, permanecendo o mesmo escondido dentro de casa ou na mata, sempre sendo de caráter secreto. Sua aparição pública se torna indicativa de forte magia, podendo gerar conflitos sociais entre 145 humanas incorporadas de magia: ytumbo (plantas), encantamentos e ossos de antepassados e descendentes da genealogia (tissemuka) – avôs, mãe, tios e filhos. Os yxixi101 lhes permitem assumirem a posição assimétrica de sobrehumanos nas relações sociais entre diferentes domínios familiares (zuwo) de uma aldeia, ora efetuando a contra-predação ao nganga, ora procedendo à predação letal em seus territórios. Nesse ponto transparece o máximo de segmetaridade e condição relativa dos domínios políticos sobre a terra entre os Tchokwe102, na medida em que todo famílias, na medida em que seu dono passa a se posicionar como nganga diante de outros makuluana e famílias da aldeia, como demonstra a aldeia Zairense durante a estadia de campo em que um mukuluana fugiu da aldeia devido aos yxixi que possuía, sob risco de agressão. Os yxixi permanecem desconhecidos na literatura sobre os Tchokwe. Uma transformação fundamental consistiu na introdução da magia do mungonge na umbanda. Os makuluana passam assim a requerer diretamente ao ngombo de umbanda o fabrico dos yxixi e a iniciação a sua magia. Nos rituais de umbanda, o ngombo se torna pessoa composta que se desdobra em diferentes yxixi na cena ritual, cada qual com atributos específicos de divinação xamânica e personificando pontos de sua genealogia. O tchixixi é fabricado na mata ao longo de três dias em que o ngombo, o artesão e a pessoa iniciada se fazem presentes em tabus estritos. Após longas enunciações mágicas dirigidas a uma árvore, a mesma é então cortada e transformada em figura antropomorfa de cerca de 50 cm, as formas de arte sendo pensadas e construídas consoante as atribuições de eficácia que se deseja sejam inerentes a cada tchixixi, no interior do qual serão introduzidos ossos de antepassados e descendentes, plantas mágicas e sangue de animais sacrificados. O processo ritual é complexo e merecerá maior atenção ao longo da pesquisa. 101 Os santos católicos são yxixi em certo e profundo sentido, já que os originais de santos esculpidos em madeira traziam consigo ossos e cabelos dos humanos mortos e santificados (Freedberg, 1989), mortos tornados ritualmente sobrehumanos, cuja magia se pretendia desde outrora fosse eficaz nas relações sociais dos que os detivessem. Os santos católicos, entretanto, logo adentrariam a época em que a reprodutibilidade técnica da arte mágica se mostraria preeminente, impondo que os santos fossem produzidos em massa e difundidos, sobretudo, em cópias e símiles pelos missionários da Santa Fé na expansão européia sobre o mundo. 102 Aprofundando a noção de segmentariedade, Strathern propõe e desenvolve o conceito de fractalidade das relações sociais, o que parece pertinente entre os Tchokwe no tocante às relações segmentares entre magia e política. Segundo Strathern (1991), "as the organization of perspectives on objects of knowledge and enquiry, scale (one might say) behaves the same whatever the scale. Points on a scale can also act as different whole scales. I indicated two orders (domaining, magnification) that yield sets of internal measurements and hence coordinates along which the scale of phenomena may be changed; but as adjuncts to general processes of 146 chefe de família extensa e composta por diferentes zuwo se torna um mukuluana e passa com o tempo a deter a magia de yxixi. No interior de uma aldeia existem, desse modo, muitos domínios políticos cujos makuluana detêm potência mágica, protegendo sua tissemuka e procedendo à (contra-)predação. O inexorável caráter segmentar da política entre os Tchokwe se mostra clarividente, pois a coexistência de muitos makuluana podendo ascender à magia dos yxixi logo sobrepuja qualquer assimetria aparente nas relações sociais na aldeia – como, por exemplo, entre o mukuluana fundador da tchihunda e os demais makuluana, dando lugar, com efeito, à irredutível simetria entre domínios políticos familiares (zuwo). As relações entre domínios políticos se mostram imbricadas e indissociadas de magia. Com efeito, o que concede a assimetria política ao muanangana é, sobretudo, a metamorfose inerente à sua condição sobrehumana e o monopólio dessa magia que, não obstante, pode ser em parte provocada por experientes nganga que a partir de ritual de iniciação estabeleçam o parentesco entre espécies e detenham tchixixi. As acusações de feitiçaria se apresentam assim como conflitos políticos – mesmo entre miananagana ou makuluana, na medida em que opõem domínios genealógicos103, atributos e monopólios de magia. Os Tchokwe são mestres de magia e por isso sempre foram temidos por outros povos. Se os malemba de muanangana são donos-mestres da terra e de sua reprodução, magia e política se mostram estreitamente relacionadas na cosmologia dos Tchokwe. Miller (1978) já enfatizara que os malemba constituíam a essência da segmentação política dos Mbundu no século XVII, presentes nos quilombos antropofágicos e de resistência colonial de Jinga. Mostram-se profundas as relações entre os povos do planalto central e os Tchokwe104, na human perception, these orders behave like so many points along a scale themselves (p. xvi)". 103 O fato da potência mágica se assentar na captura de antepassados e descendentes sob a forma de objetospessoa (yxixi) clarifica o sentido de genealogia entre os Tchokwe. 104 Os Tchokwe descrevem e traduzem os malemba como os "primeiros bisavôs", os antepassados mais longínquos, como os santos. 147 medida em que os malemba são antepassados antropofágicos, e, notadamente, o fundamento do princípio de segmentação política entre os Tchokwe. Vieira, um renomado ngombo, afirma que a umbanda entre os Tchokwe se formou ao longo da história a partir de quatro movimentos fundamentais: NgolaTchiluanji e Mama Jinga – que introduziram os malemba e o ngombo, Kaipussu oriundo de Ruanda que ensinou os conhecimentos de plantas mágicas contra wanga, Kauema que viria do extremo norte dos domínios Tchokwe trazendo as músicas e os cânticos da umbanda, Tchikulukia egresso de Marudi ao norte da terra dos Tchokwe, um mestre de magia que introduziria a técnica de kutisa wa wanga – anulação e retirada de wanga. Vieira ressalta, com ênfase, que os malemba são os "mestres" de todos os mahamba. Trata-se, afinal, da comum epistemologia que permeia os malemba e a diversidade de personagens-mahamba na umbanda dos Tchokwe. Tal fundo comum na produção de entidades sobrehumanas evidencia, sem dúvida, a preeminência relacional entre cosmologia, experiência social e processo histórico105, a saber: o modo como os malemba e 105 Heintze (1970) e Ranger (1973) seriam os primerios antropólogos africanistas a ressaltarem em povos centroafricanos o modo como a história territorial se expressa e se reverbera em personagens rituais. Nessa linhagem de pensamento, Luig (1993) denota que os personagens rituais não se resumem a humanos e animais tornados agentes sobrehumanos, mas, como o caso dos Lozi no centro da Zâmbia evidencia, podem assumir a forma-substância de quaisquer agentes que ao longo do processo histórico se posicionaram como sujeitos predadores sobre um povo. A feroz colonização inglesa na Zâmbia, cujos povos permaneciam até o começo do século XX sem contato com os brancos, se apresenta logo de início sob a forma de tratores, retoescavadeiras e aviões que, avançando sobre os domínios dos Lozi, seriam sobrepujantes ante os altares mágicos que pretendiam lhes anularem tal magia maléfica até então desconhecida. Esses agentes predadores oriundos do processo colonizador logo se tornam personagens a tomar a cena ritual, assumindo e incorporando com seus atributos e performances a perspectiva das mulheres em possessão. Dessa forma, os aparatos técnicos se posicionavam como agentes predadores que deviam ser ritual e continuamente domesticados, se tornando eles próprios em seus gestos e movimentos, personagens rituais (mazungu). Behrend (2005, 2008) expressa, por sua vez, a preeminência em povos dos cerrados de Uganda, a leste da floresta do Congo-Kinshasa, da construção de novos personagens rituais ao longo do processo histórico. Personagens que trazem consigo a ambigüidade constitutiva do bem e do mal, da cura e da morte – da predação que deve ser domesticada. Os jok originalmente compostos por humanos e animais passam a figurar na cena ritual juntos de novos jok dotados cada qual com os atributos específicos de seus personagens: 148 mahamba se constituem como índices cosmológicos de relações históricas de predação que os Tchokwe se viram confrontados em sua experiência social. Antepassados e agentes predadores que assumem a posição de sobrehumanos, praticando a antropofagia nas genealogias (tissemuka) dos Tchokwe e cujo parentesco deve ser produzido ritualmente pelos humanos de modo a controlar a predação, domesticando-os e tornando-os parentes. Os malemba e os mahamba não se restringem, de modo algum, aos muanangana. Como já ressaltado, a segmentariedade política se expressa e se mostra reverberante na medida em que cada família (zuwo) possui seus malemba. São os malemba patrilineares e matrilineares106 os principais causadores da predação sobre a família (zuwo), ao se apropriarem do mbunge (coração, alma, consciência) da pessoa, ora matando e devorando as crianças recém-nascidas ou ainda no ventre, ora comendo a carne dos adultos até causar-lhes a morte, se não houver intervenção ritual da umbanda. Iniciando a doença, os malemba logo se fazem acompanhar dos mahamba e a transformação ritual por que passa a pessoa predada implica em longo processo de iniciação à cosmologia dos Tchokwe em que a própria pessoa passa a se compor como amálgama de muitos personagens, diferentes partes constituintes de si, seja em duplos interiores ou exteriores. Em Sakanha, o breu escuro e frio da noite era acompanhado por duas fogueiras alinhadas no terreiro da casa de Nelito e distantes cerca de cinco metros entre si. Ao centro, sentava-se sua mulher de pernas esticadas e paralelas, com o dorso nú e um pano amarrado da cintura aos pés. No semicírculo externo a uma Omwod Gaki (negociantes de escravos e marfim), Munno (europeus colonialistas), Rumba (novos europeus que dançam ao ritmo de rumba), The Wrong Element (agente americano), Ching Poh (comandante de guerra coreano). Os jok incorporados e seus rituais são partes constituientes e onipresentes nos acampamentos da guerrilha pós-colonial ainda existentes, o que entre os Tchokwe os mahamba de ymbali já afirmaram outrora nos ylombo e na umbanda, em suas apropriações e expropriações rituais ao longo das guerras dos séculos XVIII e XIX no leste de Angola. 106 Nesse sentido, distintos dos malemba matrilineares da segementação política. O fato de haver malemba tanto quanto mahamba patrilineares e matrilineares torna inócuo classificar os Tchokwe de matrilineares, reduzindo-os ao rótulo político de matrilinhagens. O que importa nos domínios políticos é, sobretudo, a relação com os antepassados e descendentes. Por isso, optou-se no texto pela noção ampla de genealogia. 149 das fogueiras as mulheres da aldeia se aconchegavam em grande número com os filhos pequenos ao colo. Ao redor da fogueira oposta estavam os homens. Como que formando o lado externo e longo de um retângulo, os batuques se dispunham em linha ligando ambas as fogueiras. No lado oposto e análogo, o ngombo se fazia presente como mestre ritual acompanhado de um pilão onde plantas mágicas (ytumbo) jaziam. A mulher permanecia de olhos fechados, olhando para dentro de si, de seu mbunge (coração, alma, consciência). Alguns meses antes, fora predada por malemba e mahamba que na comensalidade praticaram a endoantropofagia sobre seu filho recém-nascido que ainda sem engatinhar permanecia como parte inerente de seu mbunge. A divinação do ngombo acusara os malemba e mahamba de terem matado seu filho recém-nascido e, ademais, predado a mulher, deixandoa doente. No decorrer da longa noite de umbanda, a música dos batuques e os cânticos específicos invocavam efusivamente e por tempos os malemba e mahamba, incitando-os a se apresentarem no terreiro diante da platéia. Um a um, os malemba e mahamba surgiam na cena ritual, performando os atributos inerentes de seus personagens, assumindo a perspectiva da mulher sentada no terreiro. As performances se sucedem no tempo e no espaço e após a apresentação ritual cada personagem hamba ou lemba107 se expropriava do mbunge da pessoa e retornava ao cosmos. A mulher caíada desmaiada e inconsciente ao chão, era então trazida ao centro do terreiro, ao silêncio dos batuques e dos cânticos, assentando-se novamente entre as fogueiras, até que a platéia evocasse outro cântico repetido longamente no terreiro, alguns inócuos, denotando que o hamba em questão não se fazia presente, outros eficazes em trazer o personagem à cena ritual. Sob a musicalidade dos batuques e dos cânticos, as yana se apresentam no terreiro, dançando sentadas como crianças pequenas, sem movimentar as pernas, apenas os braços e o dorso em requebrar que leva o paralelismo musical a se reverberar no mbunge da mulher. Em seguida, os cânticos começam a evocar os 107 Hamba (sg de mahamba) e lemba (sg de malemba). 150 malemba – os pais das yana, que um a um assumem a perspectiva da pessoa na cena ritual, levantando-se do chão na cadência dos batuques e enunciando seus nomes e comidas desejadas para que deixem de predar a própria descendente e de praticar a endoantropofagia ao longo da genealogia: Mavunda (cigarros e refrigerantes), Thumba e Kungu (pirão de massango, carne de khai – veado, e ndoka – cerveja de mel), Thimalia (pirão de mandioca e milho, carne de khai, katchipembe – aguardente de milho), Tembo (Kisaka – folhas de mandioca refogadas, e gafanhotos), Makóke (peixe fresco, pirão de mandioca e vinho), Fátima (galinha, pirão de milho e cerveja em lata), Gitotola (peixe seco). Os malemba indiciam em seus gostos culinários distintos tempos vividos por antepassados ao longo da genealogia da pessoa. Recompostos depois de serem aquecidos junto à fogueira, os batuques voltam a cantar. Nakajimo toma parte na cena ritual, sentada acariciando sua grande barriga de grávida. Mumba lhe segue, sua performance com os braços cruzados ao dorso apresenta a mulher que nunca ficou grávida, permanecendo estéril durante toda a vida. As performances de yana, dos malemba, de Nakajimo e de Mumba fazem com que as músicas dos batuques e cânticos logo se acelerem no terreiro, o ngombo começa a pilar as plantas mágicas (ytumbo) que aquecidas à fogueira durante horas eram acrescentadas às que jaziam frescas no pilão. As músicas são longamente invocadas até Jinga tomar parte na cena ritual, Jinga, a Ngola dos quilombos de resistência no planalto central sucedendo os malemba no ritual. Apropriando-se da perspectiva da mulher no terreiro, Jinga mostra o requebrar contagiante de seu dorso, logo dando lugar ao levantar em relampejo, Jinga dança sorrindo ao som dos batuques, as mulheres cantam alto, alto, contagiadas. A alegria toma conta do ritual. As mulheres da platéia, uma a uma lhe dão os bebês no colo, com os quais Jinga passa a dançar, aproximando-se do ngombo e besuntando o corpo de cada bebê com os ytumbo mágicos antes de devolvê-los às mães que a rodeiam na cena ritual, cantando e dançando. Jinga apresenta sua performance até se expropriar do mbunge da pessoa, retornando ao cosmos e fazendo a mulher tombar inconsciente sobre o chão, silenciando os batuques e cânticos. 151 As muitas yana que se fizeram suceder ritualmente pela performance de seus pais – os malemba – e por Jinga realçam a profunda relação dos Tchokwe com a história dos quilombos no planalto central, a memória da predação ritual que operada por Jinga e pelos malemba nos quilombos iniciara a endoantropofagia ao longo da genealogia, quando os humanos passaram a predar os próprios filhos, assumindo eles próprios no quilombo e na guerra a posição de sobrehumanos antropofágicos. Os malemba que vieram do planalto central adentraram as genealogias dos Tchokwe, tendo se constituido entre os mianangana, trazendo consigo o culto dos antepassados que, onipresentes no cosmos, persistiam nas práticas de endoantropofagia ao longo de suas linhas de descendência, predando os recém-nascidos e comendo a carne dos adultos humanos. Cabia à umbanda108 proceder à mediação ritual junto aos malemba que viveram nos quilombos de Jinga, para que deixassem de comer a carne dos humanos – seus próprios descendentes – como o fizeram em vida. A noite ainda seria longa no palco ritual disposto ao centro do terreiro. Mboma assumiria a cena com seu personagem, contorcendo-se ao chão em movimento zig-zag e fazendo com que as perspectivas dos humanos e dos animais fossem trocadas ritualmente. A pessoa transformara-se em jibóia que há gerações preda os humanos. Sucedendo-lhe no palco ritual, tambwê apresenta sua performance, apropriando-se da perspectiva da pessoa. O leão andava longamente até as matas, sob a música frenética de batuques e cânticos, tombando ao chão à entrada das matas – seu domínio, de onde saíra para predar antigos parentes. A apresentação de seu personagem reintroduz a memória da humanidade comum entre humanos e leões, cujo parentesco originário uma vez rompido ensejaria as relações de predação entre espécies que passaram a distinguir-se em seus próprios domínios109. Parentesco que cabe à umbanda e a iniciação à magia de nganga 108 A umbanda se inicia, sobretudo, com o culto aos malemba e essa memória ainda permanece viva nas aldeias Tchokwe do alto Kassai, quando muitos remetem a Ngola-Tchiluanji a origem da umbanda. 109 Fontinha (1983) coletou um mito-lusona em aldeias do alto Kassai nos anos 50 referente à separação entre homens e leões: "um homem e um leão cresceram juntos e sempre foram amigos. Certo dia partiram para a caça e, coube ao homem matar um veado tendo em seguida perdido os sentidos. O leão, num instante fez uma 152 restabelecerem, permitindo-se controlar a perspectiva do leão predador que ritualmente se torna parente. O travestimento de personagens logo se mostra à platéia quando mahamba exclusivamente homens se apropriam do mbunge da mulher: tchiyanga se levanta no palco do terreiro após ser invocado em cânticos, pegando no ar seu arco mágico e performando os atributos de mestre de caça; fuli permanece sentado dançando ao ritmo acelerado dos batuques, antes de seguir para próximo de uma fogueira e, agachado, bater um tronco em brasas incandescentes sobre o facão que permanecia deitado ao chão, já aguardando a possível performance ritual do renomado mestre ferreiro; samuquixe se apresenta com as performances que lhe são atributos inerentes como personagem mestre dos maquixe, dançando contagiado pela música diante da platéia efervescente antes de retornar ao cosmos. A noite profunda na madrugada sem lua se preparava para o desfecho do ritual de umbanda. Os tocadores de batuque bebem katchipembe para espantar o frio, outras pessoas trazem lenha para levantar as labaredas nas fogueiras em brasas e aquecer o couro dos batuques. A mulher permanece sentada ao centro do palco no terreiro, de olhos fechados, sentindo os afetos de seu mbunge. As peles esticadas dos batuques permitem que as sonoridades reverberem com força, logo despertando os cânticos aos mahamba que ainda podem se apresentar110. fogueira e preparou medicamentos para o reanimar. Regressados a casa com a peça abatida, teve lugar uma festa, que consolidou ainda mais a amizade que os ligava. Tempos depois, voltaram à caça e desta vez disparou o leão, que matou uma palanca, atirando-se ao chão, fingindo ter desmaiado. O homem julgando o leão morto, logo pensou tornar-se o caçador mais célebre da região, preparando um amuleto com os olhos, a ponta do nariz e parte das orelhas do leão que tinha a sua frente. Quando se dispunha a cortar o leão, este levantou-se, e, constatando a perdífia do amigo matou-o. Desde então, nunca os dois grandes caçadores (homem e leão) se viram juntos (p.231)". 110 Os personagens mahamba constituem panteão variado de tchifutchi pata tchifutchi, povo para povo. Os persoangens que se apresentam na cena ritual não esgotam jamais os mahamba conhecidos. Novos mahamba podem surgir do cosmos na cena ritual, como reflexo da história do território e da tissemuka (família, genealogia). Tchimbali e kapindji são personagens mahamba que ainda povoam o cosmos e realizam as performances, seus objetos rituais e aparições tendo sido confirmadas pelo ngombo da aldeia Tozê. O ngombo da umbanda se apresenta como mestre ritual e, nota-se, a divinação que acusa a presença de 153 Tchissola e muquixe wa ngombo assumem a perspectiva na cena ritual, sucedendo-se no tempo e no espaço. Tchissola realiza a performance em alusão às danças da mukanda feminina111. Muquixe wa ngombo112 se levanta dançando com extrema violência, trata-se de hamba perigoso que cabe ao ngombo interceder caso a performance se desdobre em agressões sobre a platéia. Muquixe wa ngombo se dirige dançando até o telhado de capim de uma casa próxima, onde um pequeno prato de mandioca pilada já o aguardava, de modo a afastá-lo do palco ao centro do terreiro. Subindo no telhado, o personagem pega o prato e se alimenta antes de expropriar-se do mbunge da pessoa e voltar ao cosmos. A alvorada distante inicia bem leve clareando a noite ritual da umbanda que se aproxima do fim, quando os batuques acelerados e os cânticos evocam longamente ngombo, o mais perigoso dos mahamba que, repentina e bruscamente, toma a cena no palco. Pegando a faca próxima do pilão, o personagem ngombo se dirige apressado ao cabrito que permanecia a noite inteira com as patas amarradas e deitado junto à casa. Ngombo assume sua condição sobrehumana e com um golpe rasga a garganta do cabrito, bebendo seu sangue in natura antes de expropriar o mbunge da mulher, retornando ao cosmos e fazendo-a desmaiar. Os batuques se calam, as pessoas vão ajudar a mulher caída ao chão exausta e inconsciente, levando-a para dentro de casa após o longo ritual em que seu mahamba no mbunge da pessoa predada apenas inicia um longo processo que perdura semanas e meses, em que o próprio ngombo e as mfunda (mulheres iniciadas na umbanda) analisam a pessoa predada, seus sonhos, percepções e sentidos. É do próprio mbunge da pessoa predada que os personagens emergem durante a cena ritual da umbanda. 111 Wastiau (2006) revela pequena estatueta coletada em 1953 entre os Tchokwe mais ao norte, em Bandundu no Congo-Kinshasa. Trata-se, sem dúvida, de um duplo fabricado após a performance ritual, denotando a importância de tchissola na reprodução das mulheres. 112 Não há referência na literatura a muquixe wa ngombo, a saber: personagem mascarado que na divinação xamânica da umbanda passa a constituir junto com os yxixi a multiplicidade de perspectivas e pesssos em que o ngombo se transforma, se desdobra e se distribui em objetos-pessoa na cena ritual. Trata-se de inovações ao longo da história. Vieira, o referido ngombo que possui os yxixi e o Mulevana (muquixe wa ngombo) enfatiza um pouco da posição da umbanda dos Tchokwe frente ao processo missionário e colonizador que poria fim ao mungonge e agiria diretamente sobre a mukanda: "Nós somos resistência cultural, resistência Tchokwe". 154 mbunge se mostrou povoado de diferentes mahamba. O palco se desfaz aos poucos, as fogueiras se tornam carvão negro ao despertar do sol nascente. Algumas semanas se passam até que a família consiga efetuar a caça do khai (veado) e reunir os alimentos pedidos pelos malemba. Um ritual é então realizado dentro da própria casa da mulher predada. O ngombo e cada um dos malemba novamente se fazem presentes, incorporando a pessoa à música dos batuques e participando da comensalidade ritual entre humanos e sobrehumanos, comendo os alimentos dispersos nos pratos sobre a mesa. Os malemba e o ngombo se tornam, desde então, partes constituintes do mbunge da pessoa, duplos interiores que a acompanham a mulher no decurso da vida e com os quais ela passa a sentir e pensar o mundo, inferindo afeto sobre pessoas e situações, sonhando divinações113. A pessoa se torna na umbanda um amalgama de muitos personagens que formam seus duplos exteriores, incorporados em objetos-mahamba. Com os malemba e mahamba a pessoa se apresenta sob forma-substância extendida e distribuída (Gell, 1998) em que a consciência interna de seu mbunge passa a expressar os malemba e o ngombo, enquanto a pessoa externamente se reparte sob a forma de muitos mahamba presentes e incorporados em objetos de arte. Dos mahamba, sobretudo, passa a depender o domínio da vida e de sua reprodução. Em momentos de gravidez, a mulher deve praticar a comensalidade cotidiana com seus mahamba, de modo ensejar a memória e o afeto constituintes de relações sociais de parentesco, trazendo a mente de todos que entre parentes não pode haver wanga. Cozinhando sobre uma fogueira exclusiva, a mulher come apenas com seus mahamba durante os meses de gravidez e resguardo, a comensalidade com parentes da família (zuwo) se apresenta proibitiva, pois pode se desdobrar em predação sob a forma de doenças. Dentro de casa, objetos113 Após alguns meses sem visitar a aldeia de Vieira, seguiria de bicicleta a partir de Sakanha. Logo ao chegar, Mãe Minga, esposa de Mestre Vieira e mfunda me diz, "- sonhei contigo hoje, os malemba me disseram que você viria". Mesmo a predação se apresenta por meio do universo onírico, quando a pessoa sonha com um leão a perseguindo e acuando nas matas, sinalizando que o hamba precisa ser alimentado, sob risco do parentesco se desdobrar novamente em predação. 155 mahamba (Figura 7) passam a figurar como sujeitos, sendo alimentados duas vezes por dia com pirão de mandioca antes de cada refeição: Jinga, Nakajimo, Mumba, Tchissola, Mboma. A carne se torna ausente da dieta alimentar, pois suscita nos mahamba sua inerente potência antropofágica que deve ser controlada ritualmente. Domesticados na comensalidade, os mahamba passam a se comportar como parentes, entre os quais a predação não deve existir. Ausentando-se da aldeia por quaisquer motivos durante o ipango114 a mulher deve levar consigo todos os objetos-mahamba, seus duplos que não podem deixar de ser alimentados, pois se tornam partes inerentes da pessoa. Embora os malemba e ngombo passem a proteger oniricamente a pessoa da predação dos demais mahamba, a gravidez como o resguardo se tornam extremamente perigosos diante de tambwê (hamba leão) que deve, continuamente em toda gravidez, ser atentamente domesticado em sua potência maléfica. Em seu domínio nas matas, um altar ritual é construído com vistas a capturar tambwê, incorporando-o em um duplo esculpido em argila que passa a figurar junto a outros mahamba (tchiyanga, ngombo, fuli, salikishi) – antepassados sobrehumanos que devem intervir junto a tambwê para restabelecer as relações sociais de parentesco entre humanos e leões e assim controlar sua incomensurável posição relacional de predação sobre os Tchokwe. A comensalidade entre os mahamba da mata (Figura 8) opera, entretanto, de forma distinta. O sacrifício inicial de um galo e um khai (ou cabrito) visam alimentar de carne os mahamba, as cabeças dos animais sendo encravadas sobre os postes de madeira que personificam Salikishi e tchiyanga, o sangue sendo besuntado em cada figura do altar ritual. Uma pequena cabaça é então colocada próximo de tambwê, onde plantas mágicas são misturadas ao sangue e à tripas dos animais mortos115. Se os mahamba compartilham do ponto de vista sobrehumano ao se 114 Período de gravidez e resguardo na umbanda, que se segue à predação anterior dos mahamba sobre bebês ainda no ventre ou recém-nascidos. A criança cujo nascimento se deu mediante ritual de ipango passa a ser chamada de tchipango (filho de ipango). 115 Se durante a gravidez, o marido caçar algum animal na mata, o sangue, as tripas e a cabeça devem alimentar os mahamba do altar ritual. 156 alimentarem de sangue e tripas de animais, os alimentos cotidianos em mandioca seca e pilada introduzem o ponto de vista dos humanos. Na troca de perspectivas da comensalidade ritual, as relações sociais entre os mahamba e a pessoa em ipango devem ser assim duplamente produzidas: primeiramente quando tambwê passa a se perceber novamente como da espécie116 humana; em seguida quando os mahamba sobrehumanos deixam todos de posicionarem-se como predadores em relação à mulher que se torna parente. Dos malemba e mahamba depende a reprodução da vida ao longo da genealogia. A umbanda introduz a pessoa à cosmologia de diferentes personagens que povoam o mundo e passam a compor sua própria pessoa e experiência social, em seu mbunge ou como duplos exteriores, por um processo ritual e dialético de familiarização, de incorporação e expropriação. Entretanto, as relações sociais de parentesco nunca se apresentam simétricas entre humanos e sobrehumanos, podendo novamente se desdobrar em predação, cuja potência imanente se faz reverberante e expressa na iconologia dos objetos-mahamba que alternam as cores branca e vermelha117. O mbunge da pessoa permanece assim em constante instabilidade em suas muitas partes118. 116 Fontinha (1983) coletou um mito-lusona no alto kassai em que se torna claro que cada espécie possui uma alimentação específica e que as relações sociais entre espécies implica na comensalidade e troca de perspectivas, no comer com e no comer como: certo leão foi visitar uma ave tchitokola, levando-lhe carne seca. Esta retribuiu a visita oferecendo ao leão massenda (espécie de lagartas). 117 A análise iconológica será aprofundada no decorrer na pesquisa, posto que se apresenta também de forma marcante quando o ngombo da umbanda assume com as pálpebras pintadas de vermelho em sua performance ritual e divinatória a perspectiva de seu hamba e duplo animal (leopardo), procedendo então ao diálogo e visões xamânicas com os mahamba. O pó branco (mpemba) sinaliza, por sua vez, a ausência de wanga e, portanto, de predação, sendo aplicado sobre a cabeça ou o braço de uma pessoa que, acusada de ser nganga por parentes, se dirigiu ao ngombo para realizar a divinação. 118 Vilaça (2005) oferece um fértil e próximo campo de análise entre povos ameríndios. 157 (Figura 7, objetos-mahamba: tchimbali, jinga, tchissola, nakajimo e mumba) 158 (Figura 8, tambwê, tchiyanga, ngombo e samuquixe no plano principal) 159 O mundo entre os Tchokwe se mostra povoado de muitos domínios, com seus mestres e donos. Fausto (2008) já indicara para povos da Amazônia a pregnância da "noção de predação familiarizante – esquema pelo qual relações predatórias convertem-se em relações assimétricas de controle e proteção (p.330)". Entre os Tchokwe, a concepção de domínio se mostra preeminente nas relações entre humanos e sobrehumanos – antepassados tornados seres antropofágicos. Os malemba e mahamba se posicionam assim como mestres fundamentais dos domínios da terra e da vida, dos quais depende entre os humanos a reprodução social e biológica. Trata-se de relações de domínio por pressuposto assimétricas que devem ser reafirmadas na comensalidade ritual e na produção do parentesco. Controlar a predação implica em compartilhar do ponto de vista sobrehumano e se tornar assim um mestre da terra (muanangana) ou da vida (mulheres119). A ausência da comensalidade implica na negação do parentesco e da própria genealogia do domínio político, resultando na antropofagia dos mestres sobrehumanos em relação aos humanos, cabendo ao ritual intervir. No entanto, as relações de domínio não se restringem à terra e à vida, o cosmos se mostrando povoado ainda por outros mestres e domínios políticos sobre técnicas e recursos. Fausto (2008) afirmara que o domínio sobre um recurso ou técnica implica que "o dono seria o mediador entre esse recurso e o coletivo ao qual pertence (p.330)". Tal noção de domínio atravessa a cosmologia de diversos povos ameríndios e se mostra pregnante em povos bantu na África Central. Segundo Vieira, os malemba são "mestres" de todos os mahamba. Os malemba se apresentam, sobretudo, como coletivo que a cada geração se faz acrescentar de mais seres. Na verdade, tudo se inicia com os malemba introduzidos entre os Tchokwe por Ngola-Tchiluanji. Dos malemba se originam diferentes mahamba 119 Os rituais de umbanda possuem forte ênfase no género feminino, visto que os mahamba são por natureza endoantropofágicos e agem sobre a reprodução biológica das famílias, sobre a fertilidade das mulheres. 160 que de forma análoga se constituem como mestres e donos de domínios políticos: tchiyanga (mestre da caça), ngombo (mestre de umbanda120), fuli (mestre do ferro), samuquixe (mestre dos maquixe) 121. A vida, a terra, a caça, o ferro, o ritual são domínios político-genealógicos, pois são os antepassados sobrehumanos e antropofágicos os mestres de tais recursos e técnicas. A predação familiarizante e dialética desempenha papel preponderante na constituição desses diferentes domínios e mestres, visto que a condição diferencial de maestria detida por um humano sobre uma técnica ou recurso se funda nas relações sociais de parentesco com seres sobrehumanos – malemba e mahamba. Na verdade, a genealogia da pessoa se torna o fundamento da maestria 122, pois no caso de transmissão de técnicas são os próprios antepassados tornados mahamba e malemba que procedem à predação sobre seus descendentes humanos para que um domínio seja continuado em termos de genealogia123política. O controle da 120 O xamanismo se mostra na umbanda dos Tchokwe em toda sua horizontalidade, pois a transformação ritual implica em perceber o mundo a partir de personagens sobrehumanos, a divinação se tornando um dom dos malemba e do ngombo inerente a cada pessoa que pode vir, se desejar, a se iniciar ao ngombo a à maestria ritual. Toda pessoa predada por ngombo, pode se transformar em ngombo de umbanda. 121 White (1948) ao estudar a Umbanda entre os Luvale afirma que nguvu (hipopótamo) é um hamba, sem, no entanto, avançar em suas discussões. As histórias ainda hoje narram como o tchinguvu – tambor trapezidal, que imita a voz do hipopótamo, era fabricado em caráter ritual pelos Tchokwe. A pessoa seguia para a mata e completamente nua fazia o tambor durante dias, até trazê-lo à aldeia e tocá-lo. Poucos o sabiam fabricar e tocar. Resta a questão se a pessoa predada por nguvu se tornava um mestre de tchinguvu. Sua existência persiste entre os Luvale, já que o hipopótamo como grandes animais são onipresentes no interior de seus yfutchi ao longo dos rios Luena e Zambeze. 122 Nesse sentido, embora uma pessoa possa incorporar muitos mahamba na cena ritual, a predação em homens indica que um mestre hamba se apropriou da pessoa, cabendo ao ngombo proceder à divinação ao longo da genealogia da pessoa de modo a visionar de que maestria longínqua ou próxima se trata e deve ser, portanto, apropriada e incorporada na ontologia social da pessoa de modo que as relações de parentesco com o hamba possam se estabelecer e a predação controlada, pondo fim à doença. 123 Os africanistras britânicos consagrariam com mérito etnográfico termos que se fazem extremamente reverberantes em campo, como linhagens matrilineares e segmentações políticas. Não obstante, a segmentação e a diferenciação política encontram, sobretudo, na magia seu substrato mais potente entre os Tchokwe. Com efeito, na medida em que a magia e a maestria não descendem apenas da matrilinhagem – 161 predação se torna a condição de se tornar mestre de quaisquer domínios, cabendo, portanto, à umbanda mediar a dialética familiarizante, permitindo à pessoa apropriar-se da maestria, tornando-se ela própria fuli (ferreiro), tchiyanga (caçador), samuquixe (mestre de maquixe), ngombo (mestre de umbanda) 124 . A pessoa predada se torna dialeticamente o mestre de um domínio, ao constituir relações sociais de parentesco com o hamba-mestre de tal técnica, cuja perspectiva a pessoa iniciada na umbanda passa a controlar. Estava logo cedo na cozinha com Giramente, próximo da fogueira para esquentar o corpo numa manhã fria. Fidel, seu filho, chegara para fazer o mojimbo em que fez saber que a criança de Zé havia morrido de madrugada de forma repentina. O óbito estava instalado na aldeia e ninguém seguiria ao trabalho nos próximos dois dias, uma grande fogueira sendo logo feita e permanecendo acesa no terreiro da zuwo de Zé durante o óbito, dia e noite, noite e dia, recebendo todas as famílias da aldeia que assim participavam da comensalidade. No mesmo dia da morte, à tarde, uma forte e impulsiva discussão toma conta do terreiro, as partes – Zé e sua esposa – se agridem e discutem violentamente, sendo contidos com muito esforço pelos demais da aldeia. A esposa acusava os mahamba de Zé de terem predado a criança, a matado. O pai de Zé era grande caçador e ao morrer havia se tornado tchiyanga, fazendo Zé tombar doente. A umbanda o curou ao mesmo tempo em que lhe impôs a comensalidade ritual com os mahamba fundamentais de sua maestria, tchiyanga e mukala (cão). A acusação de sua esposa recaia no fato de Zé não ter alimentado seus mahamba apropriadamente, dando ensejo à predação sobre seu filho ainda pequeno125. com exceção dos malemba mestres da terra, a noção de domínio político-genealógico pareceu-me mais apropriado do que descendência ou linhagem para conjugar a política com a magia em sua amplitude. Foi justamente a relação entre magia e política que permaneceu ausente entre os africanistas britânicos do African Political Systems. Mesmo Evans-Pritchard (1938) em sua clássica etnografia dedicada à magia entre os Azande subestima a potência da magia na política. 124 Não foi possível presenciar a iniciação de um homem à posição de mestre de cada um desses domínios, o que sem dúvida se tornará um objeto privilegiado de estudo no decorrer da pesquisa. 125 Não cabe na dissertação comparar os diferentes tipos de mahamba, apenas evidenciar que os mahamba 162 No fim da madrugada, antes de seguir às matas altas para checar as armadilhas e caçar, Zé se dirige a seu altar ritual disposto na mata circundante da aldeia, onde se encontram os duplos de seus mahamba, incorporados em duplos iconológicos no altar ritual. Pede então que os mahamba tornem a caça exitosa. Tchiyanga e mukala seguem à mata com Zé, como seus duplos exteriores, afugentando os animais e os direcionando para que caiam nas armadilhas. Retornando com caça, Zé passa no altar, onde despeja sangue sobre tchiyanga e mukala, deitando ainda as tripas sobre a pequena cabaça de plantas mágicas disposta ao chão, entre o pequeno pau que personifica tchiyanga e a cabana de palha dentro da qual mukala se faz presente sob a forma de escultura, para que ambos as comam, fomentando assim, na comensalidade ritual, a continuidade do parentesco entre Zé e seus mahamba. Enquanto Zé e sua família comem a carne cozida ou assada da presa abatida, assumindo a posição humana, tchiyanga e mukala126 por deterem a condição sobrehumana se alimentam da carne crua e do sangue. O ritual de umbanda produz assim relações sociais de parentesco entre espécies e mestres de domínios a partir da comensalidade das presas mortas. tissemuka são os fundamentais na umbanda quanto à maestria, sendo classificados como tissemuka em oposição aos mahamba mufu – de mortos que não eram parentes, e aos mahamba yzulye fabricados pelo nganga. Na verdade o termo yzulye parece atravessar todos os mahamba, na medida em que é traduzido como imagem e que não apenas armas de feitiço (mata wa wanga) e mortos (afu, pl de mufu) se apresentam em sonhos à pessoa predada, mas os próprios mahamba tissemuka se manifestam em sonhos. As imagens oníricas desempenham assim um papel sobrepujante nas divinações xamânicas operadas pelo ngombo e em todo o processo de iniciação à cosmologia da umbanda. 126 Mukala se apresenta como transformação e derivação de tambwê ao longo do tempo, em ambos os casos se verificando a indiferenciação entre as formas de esculturas que figuram no altar ritual. As formas se mantêm idênticas, embora o sentido se torne polifônico. Não se trata apenas de simulacros, senão da sinalização no caso de tchiyanga acompanhado de mukala da incorporação escatológica do cão pelos Tchokwe e, em particular, por caçadores. Os altares rituais em que figuram tchiyanga e tambwê (leão) ainda existem, opondo assim mestres de caça, cada qual com seu inerente domínio político-genealógico. Renomados caçadores podem se apropriar da perspectiva do leão durante a caça produzindo duplos que os acompanham às matas, o que o próprio mito ressalta – sendo os olhos, narizes e orelhas as partes fundamentais que concedem visão, faro, audição e magia aos caçadores. 163 Tchiyanga compartilhava outrora a condição humana antes de se tornar hamba sobrehumano, tendo o ritual restabelecido a troca de perspectivas e dotando-o notadamente dessa dupla posição: humano e sobrehumano, fusão que se efetua nos percursos de caça: antes de seguir às matas quando tchiyanga e mukala127 são invocados no altar ritual para acompanhar o caçador, na mata quando se faz presente como um duplo sobrehumano que se adianta nas matas altas para levar os animais às armadilhas, e depois da caça exitosa quando se alimenta em sua morada com mandioca pilada, sangue e tripas. No altar ritual a troca de perspectivas permite que as relações sociais entre humanos e mahamba sejam produzidas. No entanto, a relação de maestria sempre é tênue e assimétrica entre humanos e sobrehumanos e deve por isso ser continuamente produzida na comensalidade ritual, sob risco de se desdobrar em predação por parte dos mahamba na ausência de presas animais ou na medida em que a presa abatida não for devidamente dividida entre o caçador e seus mahamba-mestres de caça. Tchiyanga se aproxima da condição de nganga, podendo por sua maestria e técnica apurada ser acusado de nganga em mortes na aldeia ou em sua família, como se tratasse de uma troca mágica entre espécies ou entre humanos e mahamba. Nesse sentido que tchiyanga e mukala foram acusados de predação nas discussões que se seguiram à morte do filho de Zé. Política, técnica e magia se mostram assim estreitamente imbricados, porquanto o domínio de uma técnica ou recurso implica em compartilhar da perspectiva sobrehumana inerente à maestria. Deter técnicas e recursos pressupõe o acesso à magia dos malemba e dos mahamba, implicando na produção de relações sociais de parentesco entre humanos e sobrehumanos. Nesse sentido profundo que o muanangana ao performar o ritual de Tchikhungu se apresenta sob a forma de um chefe-mestre em seu domínio político-genealógico, que o ngombo de umbanda se mostra como mestre ritual capaz de se contrapor ao nganga, que 127 Mukala pode ser visto também como detentor da posição humana e por isso tornado hamba, posto que acompanhava o caçador nas matas e na caça e, além disso, participava da comensalidade em sua família (zuwo). 164 Tchiyanga detém técnica mágica eficaz na caça, que a mulher com seus malemba e mahamba de ipango se torna mestre da vida. Magia se torna um operador cosmológico em diferentes domínios políticogenealógicos: a terra, a vida, as técnicas, a umbanda. Não à toa, wanga sempre traz essa conotação ambígua na África Central 128 de magia e feitiço, riqueza e 128 De fato, como em outros contextos centro africanos, como entre os Ntomba, Imona, Bólia, Ekonda e demais povos dispersos na foz do rio Kassai, já nos alagados e floresta tropical de terra firme do Congo-Kinshasa a caça pode se desdobrar em predação, quando os humanos ao apropriarem-se de caça em demasia, sobrepondo-se à reprodução social do domínio político-genealógico do mestre dos animais (bilima) são predados em seus domínios familiares. Se os bilima são mestres de caça e assumem a perspectiva e a formasubstância de grandes predadores (leopardo ou crododilo) em seus respectivos domínios políticogenealógicos, seja na floresta densa ou nos rios/lagos, os caçadores são tidos por mestres da espécie humana em suas aldeias. Toda caça é precedida por invocação aos bilima em altares rituais familiares ou do chefe da aldeia, quando se trata de caça coletiva ou de momentos de escassez e fome. Os acampamentos de pesca sazonais são escolhidos por meio do processo onírico, a pessoa permanecendo em diferentes localidades possíveis de pesca até ser comunicada pelos bilima em sonhos sobre o local exato e apropriado para construir o acampamento. A segmentariedade política entre os bilima e os humanos se apresenta na medida em que cada domínio político-genealógico (famílias e aldeias) possui um bilima próprio que remete ao acordo primeiro realizado pelos antepassados do domínio com os mestres de caça, envolvendo um complexo funerário, realizado periodicamente à morte de um chefe político – outrora se matava um cativo, hoje um cão de seu domínio político. Depois de morto, o chefe se metamorfoseia ele próprio em animal predador da espécie do mestre de caça e a comensalidade funerária do cativo ou do cão tem por objetivo reafirmar o acordo entre os humanos e os bilima sobrehumanos, os humanos praticando a comensalidade no funeral do parente que passará a se fazer presente antepassado e bilima. Os bilima se tornam preeminentes na agricultura, na pesca e na caça – nas lavras, florestas e nos rios/lagos onde as famílias e a aldeia se reproduzem socialmente. A acumulação não deve exceder o limite necessário da reprodução social de cada domínio. A caça se torna, assim, atividade inerentemente perigosa, pois resulta na negociação com tais seres sobrehumanos, antepassados tornados mestres de animais. Os limites políticos do tolerável sempre são incertos, a (sobre) caça podendo implicar em predação, na troca entre espécies, os bilima predando seres humanos da família do caçador para compensar a morte excessiva dos de sua espécie, contrapondo-se em segmentação ao domínio político dos humanos que se sobrepôs ao dos bilima, motivo pelo qual caça e predação, técnica e magia, têm fronteiras perigosas e continuamente negociadas ritualmente entre humanos e sobrehumanos. A caça é vista como predação sobre outra espécie e domínio político-genealógico resultando na imanente e onipresente possibilidade de contra-predação dos bilima, que se anuncia, sobretudo, no universo onírico do pescador ou caçador, poucos momentos antes da morte, ocasião durante a qual os bilima 165 malefício, bem e mal, predação e contra-predação, pares que se apresentam imbricados e fundidos. pedem ao homem um de sua espécie ("um dos seus"), criança ou adulto, para compensar a morte e a predação de muitos de sua espécie e família, em seu domínio político-genealógico. A política se mostra segmentar e constituída de relações sociais de oposições, de modo a tornar possível a reprodução social de diferentes domínios, sejam humanos, sobrehumanos ou animais (Sulzmann, 1986; Brandstetter, 1998; Pagezy, 2006). Geschiere (2003) levanta questões similares de contra-predação na caça, entre os Maka das florestas tropicais ao sul dos Camarões. 166 2.3) Luisa e luchiho Nas aldeias Tchokwe do alto Kassai a ecologia do trabalho se transforma à medida que luisa (tempo chuvoso) e luchiho (tempo seco) se sucedem. A ecologia, as atividades sociais e o tempo se mostram profundamente imbricados. Se o tempo inexiste como categoria autônoma de pensamento é porque ele se apresenta e se constitui, sobretudo, como um conceito relacional, tornando-se pensável e vivido em analogia estrita e concomitante a atividades sociais e aos ritmos ecológicos do trabalho. Referindo-se a um povo dos cerrados ao norte da floresta do Congo, Evans-Pritchard (1938) já afirmara em sentido próximo que em meados de tot (tempo chuvoso), "o Nuer praticamente volta-se para a vida da pesca e acampamentos de gado e sente que a residência nas aldeias e a horticultura situam-se num tempo passado. Os Nuer começam a falar de acampamentos como se já estes existissem, e anseiam por começar a movimentarse. Essa inquietação fica ainda mais marcada em fins da seca (mai) quando, observando os céus encobertos, as pessoas voltam-se para a vida nas aldeias e fazem os preparativos para abandonar os acampamentos (p.109)". Entre os Tchokwe, a alternância de atividades socais entre luisa e luchiho se apresenta preeminente em cada unidade política. Luisa é o tempo do trabalho nas lavras, quando a família (zuwo) tende a se fechar em si, por vezes passando mesmo a morar próximo das lavras, construindo uma casa de capim em suas bordas, protegida das chuvas sob as árvores, uma vez que o ritmo ecológico das chuvas passa a conformar o trabalho excessivo e exigente da terra e a ampla coleta nas matas. As famílias que permanecem na aldeia partem de manhã cedo, só retornando no final da tarde, com as luzes do sol que já se pôs e ainda ilumina na altitude dos cerrados centro-africanos. Os caminhos empossados deixam a circulação e os deslocamentos a pé ou de bicicleta algo raro, por meses cada 167 aldeia permanece em grande medida concentrada em si própria ao ritmo de trabalho de cada zuwo. Os terreiros encharcados restringem a fogueira acesa de noite à própria cozinha da família, que permanece em sua intimidade. Por sua importância na dieta alimentar, o plantio de mukamba129 (mandioca) tem papel preponderante e exigente na ecologia de trabalho do tempo chuvoso, todos os montículos preparados na terra fofa e úmida sendo plantados com ramos de mandioca em conjunção com outros tubérculos e plantas que após a colheita em luchiho deixarão as lavras exclusivas de mukamba até o próximo tempo chuvoso, quando são colhidas. As lavras de mukamba permanecem como reserva de valor em sentido amplo, pois constituem a alimentação cotidiana e na necessidade da obtenção de mercadorias (óleo, sal, sabão) são, logo, revertidos em grandes cestos e levados às praças financeiras municipais ou provinciais para serem trocados. A makanha guardada em grandes cabaças enterradas no mato ou colhida e seca na hora (forte e fraca) faz parte inerente do trabalho diário em luisa e de suas alumiações cotidianas ao pé da fogueira, quando as conversas de noite logo cessam ante o cansaço dos corpos, a makanha relaxando o corpo e a mente do dia de trabalho pesado nas enxadas, permitindo que as estratégias de semeaduras sejam de pronto pensadas conforme o solo vai se tornando mais úmido, e plantas mais sensíveis possam ser deitadas no momento preciso, enquanto outras vão alcançando o máximo da capacidade de plantio na progressão do acúmulo de chuvas. Na cozinha as sementes da safra anterior são guardadas em pequenos e 129 A mandioca, planta cultivável oriunda de povos ameríndios, seria introduzida pelos portugueses a partir da costa atlântica e índica e nas circulações de valores se dispersaria continente adentro (Vansina, 2004). Entre os Luchazi e os Nganguela, a alimentação diária se baseia fundamentalmente no pirão de massango ou massambala (espécie de sorgo). A mandioca se espalharia por muitos povos do cerrado centro-africano, logo sendo incorporada nas estratégias de reprodução social das famílias. Seu limite de dispersão geográfica parece ser o alto Congo, já em floresta tropical, onde o pirão é produzido exclusivamente de banana, as lavras consistindo em imensos bananais. O movimento inverso se dá quando os portugueses e espanhóis introduzem a banana em áreas de colonização nas Américas, logo se dispersando continente adentro entre povos que habitavam florestas tropicais. 168 específicos receptáculos, fazendo-as às vistas a todo momento. Luisa dá sinais de esgotamento quando as chuvas intensificam-se em força torrencial alternadas por dias úmidos de forte sol e calor, dando início progressivo das hortas nas baixas do Kassai pelas famílias que adotam a produção horticultura do tempo seco como estratégia de reprodução social. As baixas se tornam pequenos pântanos de terra preta extremamente fértil, cabendo procurar os olhos d'água, próximo dos quais as valas com profundidade de um metro serão cavadas em formatos retangulares, os homens que participam do trabalho coletivo ficando quase à cintura enterrados nos charcos negros. A ecologia do trabalho em fins do tempo chuvoso se alterna entre as manhãs nas lavras e as tardes nas hortas, cujo trabalho exigente de abertura das valas contrasta com a facilidade de se plantar sobre a terra sempre úmida e fofa dos canteiros tão logo a estiagem chegue. Para outras zuwo, as hortas não se tornam estratégias econômicas, o trabalho das lavras já basta à reprodução social e o fim das chuvas é o momento de pensar e repensar nas caravanas aos Luvale130. A chuva derradeira marca o fim de luisa, quando o forte volume d'água que cai durante dias sucessivos faz tombar o capim amarelado já seco e alto dos campos abertos de cerrado, indicando que as chuvas se foram. Luchiho conforma o tempo da aldeia, os terreiros se tornam o centro das relações sociais. As pessoas circulam durante o dia por diferentes zuwo para trocar saudação, conversar, contar histórias, escutar música e dançar, sendo recebidas ao sabor de amendoins torrados e batatas-doces assadas sob as brasas. À noite, as longas conversas ao redor da fogueira em cada terreiro juntam a família, os amigos, vizinhos e parentes que permanecem noite adentro, esquentando-se da noite fria sob o céu limpo e estrelado, fumando makanha (fraca e forte) ao sabor das conversas. A produção de aguardente de milho (katchipembe) e de cerveja de mel (ndoka) se tornam cotidianas, iniciando logo cedo e se desdobrando todo o dia em rodas animadas e fortemente marcadas por gênero – rodas de homens e de 130 Povo com os quais os Tchokwe mantêm extensa e antiga rede de circulação de valores para obtenção de peixe seco. 169 mulheres – que alternam os terreiros e atravessam diferentes zuwo.A makanha plantada em grande parte nos meses iniciais de chuva logo fica no auge de ser colhida. Luchiho é o tempo das festividades e rituais, quando o ritmo de trabalho diminui e cede lugar às sociabilidades cotidianas nos terreiros em que a música é escutada o dia inteiro, as festas de casamentos são realizadas e os rituais de mukanda preparados em seus pormenores, aprontando o acampamento dos kandandji nas matas e construindo os batuques e os maquixe. A mukanda se inicia e termina sempre em luchiho, seja a de quatro meses ou de um ano, as festas de abertura e término dando ensejo à confraternização de diferentes aldeias que na ocasião recebem convites mesmo a longa distância. As lavras prontas são então colhidas, as famílias permanecendo longos dias a descascar os amendoins que secarão em esteiras ao sol e a preparar os grandes cestos de talho de arbusto e cipós de árvore com os quais a produção agrícola de batata-doce e os sacos de amendoim serão levados às praças financeiras. É o tempo do trabalho coletivo, quando as casas e cozinhas novas são construídas, os telhados reformados, os caminhos capinados, a mata de novas lavras derrubada. Luchiho é o tempo das longas caravanas de bicicletas que negociam mercadorias das lavras e fetiches adquiridos nas praças financeiras diretamente pelo peixe seco nas aldeias Luvale dos pantanais do sul em viagens que se alongam semanas, sendo discutidas e planejadas nos terreiros, comentadas e esperadas, desde que as chuvas se aproximam do fim. Entre os Tchokwe, o tempo é pensado em estreita concomitância à ecologia do trabalho. Ao descreverem a sucessão passada ou futura do tempo, os Tchokwe se referem ao tempo das viagens aos Luvale, da mukanda, das lavras, das hortas, da ndoka, do katchipembe, da makanha. Isso evidencia a forma como em diferentes povos agricultores-caçadores-coletores "o calendário é uma relação entre um ciclo de atividades e um ciclo conceitual e os dois não podem ser isolados, já que o ciclo conceitual depende do ciclo de atividades do qual deriva 170 seu sentido e função (Evans-Pritchard, 1938; p.113)131". O tempo não existe assim como mera categoria abstrata e relacional de símbolos matemáticos, cuja lógica possa ser mensurada e controlada para conformar ou orientar a quantidade de trabalho empregada na reprodução social de cada zuwo. É o ritmo de luisa e luchiho que mede e imprime entre os Tchokwe a intensidade, o planejamento e a variedade do trabalho e das atividades sociais. A ecologia se torna, nesse sentido, profundamente inscrita no movimento dos corpos, marcadamente distinta das relações entre tempo e trabalho transformadas e presentes nas urbanidades industriais, em que categorias de tempo abstratas e mensuráveis (minutos, horas, jornadas de trabalho diárias e semanais, produtividade hora/trabalho) passam a imprimir e determinar o ritmo do trabalho e das atividades cotidianas132 – processo por meio do qual o trabalho se torna mercadoria, expropriado do domínio político das famílias e do meio fundamental de reprodução social: a terra. Se a ecologia do trabalho não se orienta ou se determina por categorias temporais abstratas, matemáticas e mensuráveis, tão menos parece válido o emprego analítico de tais categorias para se pensar povos agricultores-caçadorescoletores como os Tchokwe, na medida em que permanecem como divisões de tempo a eles próprios desimportantes no ritmo e no planejamento das atividades e relações sociais. O argumento central de Sahlins (1972) de que a "economia primitiva" possui uma lógica outra que não a da acumulação, já que o ritmo de trabalho não se orienta pela produtividade capitalista ajuda a construir a dualidade entre "economia primitiva" e "economia capitalista" por meio de conceitos de tempo e de trabalho que se apresentam exógenos aos próprios povos agricultores131 Segundo Bohanann (1967), "Tiv 'seasons' are determined as much by agricultural activities as by climatological changes (p.319)"."Time is implicit in Tiv thought and speech, but it is not a category of it (p.328)". 132 "Both body time and clock time are being mutually refashioned in this process, as each takes on meanings from the other (Munn, 1991; p.104)". 171 caçadores-coletores. Seu longo desdobramento na teoria antropológica resultou em certa assunção de que a "economia primitiva" seria por total dissociada da acumulação e do excedente como estratégias de reprodução social. A dualidade se baseia, sem dúvida, na falsa distinção entre dom e mercadoria como se tratasse de duas modalidades e ontologias de troca incomensuráveis (Appadurai, 2007). Cabe retornar nesse sentido a Malinowski (1976), cuja etnografia seria em grande medida parte inerente e fundante do ensaio de Mauss sobre o dom e, por conseguinte, das discussões antropológicas sobre trocas. É notável que entre os próprios Trobriand analisados magistralmente por Malinowski, as trocas de objetos cerimoniais também se fazem acompanhar da intensa troca de mercadorias, realizada sob a forma de presentes e contra-presentes entre parceiros (entre os quais as estadias se tornam parte das trocas), ou ainda sob a forma da troca diretamente mercantil entre quaisquer indivíduos (gimwali) 133. Não obstante, os desdobramentos de Sahlins produziram um longo efeito na teoria antropológica, baseado em certo estranhamento, cuja dualidade conduziria Clastres (1972) em sarcasmo totalitarista134 a afirmar que povos agricultores-caçadores-coletores seriam estruturalmente "contra a economia" e à acumulação. Que a economia não existe em si, senão como domínio da política e realizável somente no interior das relações sociais, a Crítica da Economia Política já revelara e denunciara há mais de um século antes da crítica sahlinsiana. Nos fundamentos e alicerces (Grundrisse) de sua Crítica, Marx (1857/1858) afirmava em meados do século XIX com referência às relações sociais de troca de mercadorias e valor que a "circulação consiste ela própria, ou em um momento determinado da troca ou ainda na totalidade da troca (p.19)". Povos agricultores133 "This subsidiary trade is carried on by means of gifts and coutergifts with one's own partners; by means of barter (gimwali) with other people; whereas certain articles are procured directly (Malinowski, 1920:105, grifo no original)". 134 Totalitarista no sentido em que Clastres assume os povos não-industriais sob a forma de uma totalidade homogênea, quando as estratégias familiares e as diferentes perspectivas políticas entre os Tchokwe não permitem de modo algum reduzir tal povo a um todo totalitário, contra a economia e contra o Estado. 172 caçadores-coletores da África Central como os Tchokwe, os Luvale, os Nganguela, os Luchazi, os Mbunda, os Minungo, os Lunda, que ocupam vastas áreas de Angola, Zâmbia e Congo-Kinshasa, possuem desde tempos pré-coloniais, amplas e extensas circulações de rituais e magia (umbanda, mukanda, mungonge), de perspectivas políticas e de mercadorias. No que tange às trocas de mercadorias, na ausência de meios de de troca135 (papel-moeda), as caravanas de longa distância adotavam outrora como atualmente complexas medidas e conversões. Certas mercadorias conformam diferentes e hierarquizadas "moedas" que vigoram como esferas/categorias de troca (Bohannan,1955). Em tais moedas, substratos de valor se apresentam sob gradativos de fetiche da mercadoria136, variáveis ao longo do processo histórico e 135 Não coube na presente dissertação estudar as diferentes moedas que existiam na África pré-colonial, entre as quais os bastões triangulares de cobre que vieram a ser empregadas em caravanas de longa distância, em certo sentido similares e comparáveis às caravanas que cruzavam a Europa e a Ásia Central anterior à revolução industrial. 136 A definição de fetiche em Marx deve ser pensada em seu próprio campo, a urbanidade industrial européia do século XIX, embora a potência de seus conceitos de mercadoria e de fetiche para se pensar a circulação de valor transcenda em muito a Europa e se mostre preeminente nas relações sociais em outros domínios políticos e povos (Appadurai, 2007). O modo como o conceito de fetiche se forja a partir do encontro dos europeus com povos africanos, emergindo de certa alienação dos próprios europeus quanto ao sentido dos ditos "fetiches" em povos da costa atlântica africana que foram em grande medida analisados e pensados à luz do racionalismo iluminista e do etnocentrismo conceitual da época (Brittes, 2009), de modo algum implica na desconstrução do conceito de fetiche da mercadoria em Marx, e a etnografia o demonstra, na medida em que o fetiche existe como mercadoria e feitiço entre os Tchokwe e se mostra pregnante nas relações sociais entre domínios políticos. No entanto, os yxixi são yxixi, da mesma forma que as mercadorias são fetiches. Marx discute mercadorias, valor e relações de troca em povos industriais e seu conceito de fetiche da mercadoria é potente em toda sua antropologia simétrica que atravessa diferentes povos nãoindustriais ou vice-versa. Que wanga e yxixi são eficazes, os Tchokwe sabem como grandes magos e os utilizam nas relações sociais e em sua umbanda, muito menos duvidam da eficácia das mercadorias em suas estratégias de reprodução social. A análise de Brittes (2009) demonstra fortuna e inovação crítica em sua minuciosa genealogia do conceito de fetiche na história da filosofia européia, não tanto na assunção pósmoderna quanto à essência de Marx. 173 das atribuições políticas de valor137: peles de animais predadores, marfim, rapé, cera de mel, panos, sal, armas, makanha (forte), geradores, aparelhos eletrônicos, roupas, bicicletas, motos. Entre os Tchokwe do alto Kassai, qualquer domínio político (zuwo) detém os meios de reprodução social (terra e trabalho) e adota com isso suas próprias estratégias. Entre os zuwo de uma tchihunda coexistem notadamente diferentes modalidades de troca, de dons (makanha, mel, cerveja, aguardente, carne, frutas, trabalho coletivo) e de mercadorias (makanha/carne de caça, mandioca/peixe fresco, makanha/peixe fresco, makanha/mel, mercadorias/trabalho na lavra). Não se trata, contudo, da dicotomia entre dom e mercadoria, pois ambas as trocas ensejam valor e interesse, sendo distintas apenas em termos de temporalidade: a troca direta de valor ou o intervalo temporal que reveste de dom o interesse de troca (Mauss, 1974; Bourdieu, 1980) 138. No trabalho das lavras durante as chuvas, cada família produz excedentes que são empregados na circulação de valor, seja com as praças financeiras ou nas caravanas que os Tchokwe empreendem desde tempos pré-coloniais às aldeias de pescadores Luvale. As famílias procedem, com efeito, a estratégias claras de acumulação tendo por objetivo, outrora como hoje, a troca de fetiches. São as próprias mercadorias que incidem sobre as estratégias de reprodução social de cada domínio político familiar (zuwo), desde antes da introdução de mercadorias européias. Posto sob outra perspectiva, a economia não existe em si, senão como relação entre domínios políticos e os Tchokwe sempre produziram acumulação de valores na reprodução social e na circulação, tendo por fundamentos as relações sociais de feitiço e fetiche. Como fetichistas, os Tchokwe tanto quanto os povos 137 Appadurai (2007) ressalta que as mercadorias ou "economic objects circulate in different regimes of value in space and time (p. 4, grifos no original)". 138 Não foi possível por motivos de tempo e aprofundamento teórico discutir as reverberações desse longo debate entre dom e mercadoria na teoria antropológica. Grosso modo trataria de contrastar duas visões sobrepujantes: Strathern (1990) e Carrier (1992) que trabalham, cada qual a sua maneira, a recusa desta dicotomia. 174 industriais compartilham certa cosmologia, no sentido em que se deixam fascinar dialeticamente pelo encanto das mercadorias, fetiches da mercadoria – diria Marx, capazes de extrair acumulação e trabalho social ao longo de suas circulações. Last but not least, na medida em que não há limites de terra que uma família (zuwo) possa vir a trabalhar numa aldeia e, ademais, a propriedade imóvel se torna ausente das relações sociais entre domínios políticos, nem a escassez de terra nem a renda máxima determinam a política da terra, como o pensaram Adam Smith e David Ricardo. Ao contrário de se constituírem como verdades lógicas absolutas, tais pressupostos justificam e expressam, sobretudo, certa transformação inscrita e restrita no espaço-tempo, que se espalhou ao mundo sob a moral das armas e das sobreposições cosmológicas, tornando terra mercadoria por meio da expropriação. Dessa imoralidade deriva muito das leis modernas transpassadas e impostas a partir de contextos, interesses e domínios especificamente políticos que incidem sobre a ecologia do trabalho e a cosmologia da terra em muitos povos do mundo. Entre os Tchokwe do alto Kassai, tempo, trabalho e terra não se constituem como categorias autônomas e mensuráveis, calculáveis segundo graus de produtividade, mas se encontram diretamente apropriadas nos domínios políticos, cujas concepções se materializam de forma perspectiva sob domínios fundamentais e irredutíveis como a zuwo (família) e a tchihunda (aldeia). São os domínios políticos que fundam as relações sociais com a terra, o trabalho, a ecologia e o tempo – não apenas entre os Tchokwe, posto que a economia sempre é política. 175 2.4) Circulação de Valor, moral e imaginações Giramente há poucas semanas chegara do Saurimo no caminhão de Nelson. Permaneceu cerca de uma semana na cidade, hospedado na casa da irmã, que na ocasião foi saudada com largas porções de batata-doce, amendoim e mandioca. Levara ainda quarenta quilos de makanha do começo da safra para negociar com antigos e novos parceiros de troca, fumando em rodas com os parentes e lhes dando bocado de dom. Os cestos de mandioca, batata-doce e amendoim foram negociados na praça financeira, a chegada de caminhão diretamente no centro do mercado sendo como sempre das mais disputadas, mulheres que moram nas aldeias urbanas negociam na hora os cestos. Circulando entre famílias e entre territórios, as mercadorias das lavras produzem valor e perfazem as estratégias de reprodução social de muitos zuwo, sejam rurais ou urbanos. Os cestos trocados logo estariam nas mesas de negociação da praça, as mercadorias sendo revendidas em pequenas porções, derivações que produzem sobrevalor na circulação. A praças financeira de Saurimo concentra milhares de barracas de madeira e lona, divididas por setores, onde se vende de tudo, desde roupas e panos, a alimentos e animais vivos, bebidas, eletrônicos, motos, bicicletas – a lista seria indefinida como o são as mercadorias que sempre abarcam trazendo novidades de Luanda. Labirintos de ruas de terra e vielas complexas, pelos quais Giramente andava atento até encontrar as mercadorias para a família e a caravana que, logo do regresso, pretendia empreender aos Luvale. O resto do crédito seria guardado para a compra de sua moto "cavalo" – um fetiche que há alguns anos tem se reverberado em suas estratégias de reprodução social. Já de volta a tchihunda, Giramente trançava cuidadosamente um novo cesto depois de retirar corda de casca de árvore nas matas, tendo as filhas Bruna e Stefânia próximo e observando atentas. Nakameia os acompanhava à distância pilando a mandioca em golpes certeiros para preparar a primeira refeição do dia. 176 Fidel havia me chamado logo cedo no mojimbo para ir ter com ele em seu terreiro. Sua casa foi construída ao pé e à sombra de frondosa mangueira plantada há quase vinte anos por Giramente, ainda nos tempos em que só ele próprio e o irmão Sakanha viviam na aldeia. João e Jaione, seus amigos de mukanda também estavam por lá a conversar. Fidel traz consigo de dentro de casa cinco pequenas e gordas trouxas, feitas de diferentes pedaços de panos coloridos, fechadas cada qual com um simples nó. Já em meados de luchiho o sol misturado com o frio seco incidia diretamente sobre os pés de makanha 139 das lavras. As folhas de pouco em pouco vão caindo amareladas à terra. As cabeças, demasiado crescidas, se tornam envoltas de fios vermelhos, ruivos, marrons, brancos ou amarelos, altamente cristalizadas atraindo as abelhas que ficam horas e dias grudadas ao doce néctar, antes de voltarem voando às colméias nas matas, trabalhando intensamente na produção do mel. Quando as plantas já estão prontas nas lavras, os homens e makuluana da aldeia as colhem em grande quantidade, cortando no caule e as dispondo sobre um pano ou esteira à sombra, de modo a secarem por si próprias sem a incidência direta e inicial do sol que lhes tira a força. Após dois dias do corte, as plantas são colocadas sob o sol por uma manhã, antes de serem guardadas já fortes em cabaças ou baldes de 20 litros. Algumas plantas se destoam, totalmente ausentes de sementes, as cabeças fartas são das mais pensantes e comentadas, as afamadas tchifanigigi que em meados de luchiho alcançam sua máxima maturação, secando, crescendo e se cristalizando na medida certa do sol, do frio e da secura que deixam as cabeças extremamente condensadas e potentes. Nas famílias em que a makanha é apreciada e cultivada, luchiho se apresenta sob intensidades variadas e crescentes, materializadas em distintos embrulhos de panos coloridos e repletos de cabeças (mitwê wa makanha), demasiado singulares em sua essência, cada qual 139 Como em outras partes do Mundo, os Tchokwe fazem uso de ampla variedade de nomes para designar a makanha. Nomeações inventadas ao longo do tempo, como código social, já que apenas os iniciados tornados homens na mukanda aprendem a diferenciar os tipos de makanha, nem todos vindo a fumar, muitos preferem apenas a makanha (fraca). Entre os nomes pode-se citar: xuto, cangonha, forte, kauíssu (dos meses de chuvas, as primeiras cabeças, ainda fracas), tchifanigigi, tabaco forte, lyamba. 177 trazendo em si uma potência imaginativa. Plantas admiradas como as melhores de luchiho constituem, logo, notória troca de dons entre amigos e vizinhos. As rodas são formadas em muitos terreiros durante o dia ou a noite, a makanha sendo degustada em seqüência crescente, de forma a diferenciar as variedades de força presentes em cada receptáculo de pano. Katumbo, irmão de Fidel e primeiro filho de Giramente, chegara do Léua vindo de moto. Os caminhos já secos permitem que diversas yfutchi sejam cruzadas sem dificuldade. Giramente já o esperava há algumas semanas, desde o fim das chuvas. A saudação é feita, discorrendo-se sobre a viagem que transcorrera bem, Katumbo diz, em seguida, que trouxe alguns fios de aço, apreciados por caçadores na preparação de armadilhas na mata para caçar animais, logo se dirigindo à casa de Zé para fazer o mojimbo, seu amigo dos tempos de mukanda e quando morava ainda em Sakanha, com o qual costuma trocar makanha por fios. Katumbo viera à Sakanha, também e em grande medida, para obter alguns quilos de makanha com o pai – Giramente, como de habitual quando a colheita se consolida em luchiho, para revendê-la no Léua em pequenos sachês e embrulhos, quando mesmo em quantidades maiores. Circulando na topologia de parentesco, a makanha produz valor e se torna estratégia de reprodução social em famílias aparentadas que residem em aldeias urbanas. Com a makanha, circula não apenas valor entre parentes, mas a própria moral das famílias Tchokwe do alto Kassai, em que o código social da makanha se torna conhecido apenas aos homens e mulheres já iniciados, se tornando parte inerentes da ecologia do trabalho nas lavras, matas e baixas, das sociabilidades nos terreiros, das conversas entre amigos, parentes e vizinhos que se saudam com um baseado do melhor. Leach (1996) propôs em estudo clássico sobre povos da alta Birmânia o caráter relativo das perspectivas políticas acionadas pelo parentesco (mayu/dama) em que os pertencimentos assumidos em dada situação refletem antes do que normas, estratégias políticas. Afirmar-se gumlao ou gumsa entre os Kachin implica em distintos reconhecimentos de domínios políticos: a hierarquia e a segmentariedade. A makanha ao circular na tissemuka atravessa diferentes segmentos políticos: a família, a aldeia, os territórios de muanangana, o 178 município, a província. Tal circulação denota, sem dúvida, estratégias que acionam perspectivas propriamente políticas, pois a reprodução social implica no reconhecimento e na precedência da genealogia moral dos Tchokwe quanto a makanha, a qual se mostra reverberante e capaz de atravessar diferentes domínios políticos. Não se trata, contudo, de opor "poder tradicional" e "poder do Estado", moral e lei – na medida em que moral e lei possuem um comum substrato lógico140. Em estratégias de circulação de valor entre parentes, Giramente e Katumbo assumem assim posições políticas que se estruturam em reconhecimento das famílias e das aldeias ante as leis de Estado – Estado que os próprios Tchokwe do alto Kassai constituíram com os quilombos contra o domínio colonial e a guerra contra-revolucionária. Os Tchokwe precedem e constituem, afinal, o Estado Pós-Colonial, donde advém a perspectiva de que as leis de Estado ao proibirem a makanha no pós-guerra se mostram imoralidades ilegais, cuja hierarquia centralizada deve ser negada por ter expropriado de sua substância lógica a moral dos malemba que sempre vigorou na tissemuka Tchokwe, sendo eficaz em regular e impedir a violência nas relações sociais entre domínios políticos e tendo legado uma planta ancestral que se torna constituinte da ecologia do trabalho e das tantas alumiações cotidianas de pensamento. 140 Maine (1861) fundaria os estudos de antropologia jurídica. Em sua comparação entre regimes de moral de "povos selvagens", gregos, romanos e indianos até povos modernos sob a lei do Estado, Maine criticava contundentemente os filósofos de sua época que tratavam do direito, das leis, da moral e da política à luz evolucionista do iluminismo e da dualidade entre "povos bárbaros" e "povos civilizados". Filósofos como Locke, Hobbes e Montesquieu eram os que "carefully observed the institutions of their own age and civilisation, and those of other ages and civilisations with which they had some degree of intellectual sympathy, but, when they turned their attention to archaic states of society which exhibited much superficial difference from their own, they uniformly ceased to observe and began guessing. The mistake which they commited is therefore analogous to the error of one who, in investigating the laws of the material universe, should commence by contemplating the existing physical world as a whole, instead of beginning with particles which are its simplest ingredients. One does not certainly see why such a scientific solecism should be more defensible in jurisprudence than in any other region of thought (p.70)". 179 Estava ainda sentado no terreiro com Fidel, quando uma moto estranha e por total desconhecida se aproxima e pára junto à casa de Sakanha, os dois homens logo saltam, de modo a iniciar o mojimbo com o mukuluana da aldeia. Conversando com Fidel, de relampejo percebo quando a moto se dirige, silenciosa e vagarosamente, em direção ao terreiro, olhos brilhantes e coração palpitando, me vejo de repente com dois personagens inusitados que lembravam em duplicata a figura insana de Samuel Jackson141, vestidos no frio de luchiho com calças e camisas de botão escuras, longo e pesado sobretudo até as canelas, óculos escuros e gorros, caras sérias e aparentando algo estranho no ar. A imagem da grande espingarda no interior do sobretudo se desfaz do pensamento quando os sujeitos ao descerem da moto, mostram o sorriso, sendo de imediato contrapostos com o riso. Vieram saudar o tchindeli com a cabeça demasiado pensante no personagem Samuel Jackson que se reverberava em substratos espaço-tempo de cinematografias ainda vivas e acionadas na mente, eficazes em justapor atos sobre fatos, tornando a experiência povoada de personagens. Estavam eles seguindo à aldeia do muanangana Ulemba Khonde, os tantos personagens compostos nas praças de Luena e Saurimo com estilos ímpares circulando desde as cidades até aldeias, acionando com suas roupas e atributos tantas imaginações e mimesis. Algumas mercadorias se tornam potentes em agenciar estratégias de reprodução social. As roupas desempenham papel preponderante, por serem atributos constitutivos dos personagens urbanos, impondo a circulação intensa de novos estilos, desde as praças financeiras onde os personagens são compostos e inventados até as aldeias. No cotidiano do trabalho e dos terreiros, os Tchokwe preferem, sem dúvida, as roupas antigas, mais profundas na memória e no uso, tanto mais rasgadas mais confortáveis e queridas, embora as pessoas sempre guardem alguma roupa especial para festas, ocasião em que freqüentemente lançam mão de sapatos elegantes e blazers, ou algum casado de general russo adquirido nas praças, ou mesmo as tantas roupas que atravessam circuitos mundiais e chegam às aldeias: casacos de neve para o período frio, camisas de 141 Do filme Pulp Fiction (1994). 180 times de futebol europeus para os jogos, camisas de grupos de Rock e chapéus militares de simbologias indecifráveis, logo descritos como sendo do Iraque ou do Afeganistão, sinalizando conhecimentos notórios de algumas guerras presentes, cujas notícias circulam em mojimbo. De uma certa perspectiva as cidades se tornam influentes, "a current in which are mingled the desire of the rural population for equality with the Town dwellers and a tendency to take as the standard by which progress is measured (Tepicht, 1975; p.259)". A tissemuka (família, genealogia), ao se constituir como topologia que atravessa diferentes yfutchi e interliga áreas urbanas e rurais, forma um contínuo por meio do qual pessoas e valores circulam. Desse modo que as cenografias urbanas passam a mesclar-se nas aldeias e novas mercadorias142 como aparelhos eletrônicos, Tvs, Dvds, geradores e roupas logo se apresentam como fetiches nas estratégias de reprodução social de cada zuwo e de acumulação nas caravanas. Isso não impede, notadamente, que muitas famílias permaneçam economica e autonomamente alheias aos fetiches de mercadorias urbanas. Luchiho marca o início do tempo das caravanas, em que grupos de três até dez bicicletas seguem longas viagens, levando mercadorias das lavras e das praças, cruzando diferentes yfutchi até alcançarem as aldeias Luvale, cujo acesso durante luisa se torna impossível com a subida das águas e o alagamento dos cerrados que se transformam em verdadeiros pantanais. As caravanas de luchiho são formadas a partir das relações sociais de parentesco, amizade e vizinhança, articulando domínios políticos (zuwo) no interior de uma aldeia ou entre aldeias. Cada zuwo forma um domínio político irredutível. Algumas caravanas podem se orientar apenas na aquisição de peixe suficiente para o consumo da família (zuwo), ou a mera troca nas aldeias, sem visar à acumulação maior para a troca por novos fetiches nas praças financeiras. As caravanas se constituem consoante os interesses de cada zuwo. A apropriação de fetiches urbanos determina tanto quanto se torna determinada pelo ritmo do trabalho familiar nas aldeias, o que 142 Mercadorias que chegam a Luena e Saurimo por amplas redes mundiais de circulação de valor, tendo Luanda como ponto de difusão. 181 ressalta "that consumption is subject to social control and political redefinition (Appadurai, 2007; p.6)". As cidades ao se tornarem parte inerente das topologias de parentesco de cada família fazem com que pouco a pouco novas mercadorias sejam introduzidas nas caravanas e passem a figurar junto às tradicionais, à medida que são apropriadas pelos próprios Tchokwe nas aldeias. As caravanas aos Luvale são fundamentais na dieta alimentar dos Tchokwe, já que a caça ocorre mais entre meados de luchiho e meados de luisa, remetendo a um tempo bastante longínquo e sendo constitutivas das relações históricas entre ambos os povos que ocupam o interflúvio alto Kassai/alto Zambeze.. Os Tchokwe afirmam que seus malemba já a praticavam. Outrora as caravanas seguiam a pé, transportando as próprias mercadorias produzidas nas aldeias (bolas de mandioca, cabaças de katchipembe, makanha) a serem trocadas na circulação pelos peixes secos. O fluxo de caravanas Tchokwe que seguiam pelos caminhos levando às costas os cestos moxico de arbustos e cipós, logo saltariam aos olhos em sua ampla dispersão na província que viria, por isso, a ser nomeada pelos portugueses, em princípio do século XX, propriamente de moxico. Giramente143 empreendeu a última caravana com Sandonje e Sagegê, seus amigos de mukanda, e Joseph, irmão de Sandonje. No dia da partida, as bicicletas da caravana já se mostram logo cedo prontas no terreiro com as mercadorias: caixas de bebida à frente para fazer contra-preso, gerador e aparelhos de som atrás junto com sacos de roupa e panos, um pouco de mandioca para o próprio consumo dos que vão seguir viagem. Os três primeiros dias são demasiado longos, pedalando desde a alvorada até o fim da tarde, quando se escolhe um lugar no caminho para pernoitar, bastando arrumar lenha para a fogueira e extender as esteiras próximo, para espantar o frio seco da noite. As matas e aldeias Tchokwe ficam progressivamente para trás e o horizonte logo se perde na imensidão 143 No decurso da pesquisa de campo, pretende-se empreender uma viagem com Giramente. Não obstante, o espaço ocupado pelas caravanas em conversas cotidianas e a coleta dos dados anteriores e posteriores a uma caravana efetuada no começo da estadia de campo balizam as paridades das trocas, um dos objetivos imediatos da breve descrição. As caravanas se tornam freqüentes em luchiho, quando passam quase que diariamente pelas aldeias do alto Kassai. 182 incomensurável de kapengue (pantanal, chana), campos de capim fino e amarelado que o olhar não encontra fim. Com o recuo das águas, os pantanais se tornam campos geraes de areia branca e fina, um estreito caminho feito pelas caravanas precedentes serve de única referência às biciletas. A caravana segue parando de tempos em tempos para descansar e fumar um charuto de makanha. As rodas dão ensejo às expectativas quanto às trocas tendo em vista as histórias de caravanas passadas e as conversas com outras caravanas que circulam vindo de diferentes yfutchi. Há sempre um componente de incerteza nas trocas e experiências passadas são fundamentais no planejamento de rotas. Na última caravana feita por Giramente decidiram todos tomar o caminho de Kaifutchi, bem fundo em território Luvale. Sandonje lá chegara no luchiho. Kaifutchi ficava ainda dois dias distantes, mas tinha sido escolhido como lugar ideal de pouso, pois as trocas haviam se mostrado das melhores. Os parceiros de troca de viagens anteriores permanecem como referências cartográficas de novas caravanas. A própria makanha contrói e fundamenta em suas sociabilidades as relações sociais entre parceiros de troca, boa parte dos quilos levados sendo negociados integralmente com parceiros antigos que conhecem a qualidade de tchifanigigi do alto Kassai, outra parte sendo consumida nas fogueiras e nas rodas de conversa, que se alongam e se tornam onipresentes em toda a viagem. As aldeias Luvale que em luisa ficam por completo isoladas pelas águas e só acessíveis de canoa, já despontam no horizonte ao final do terceiro dia. Os terreiros já estão tomados por longas camadas de esteiras, de quase 15 metros de comprimento que secam o peixe fresco ao sol. Os Luvale estavam em plena produção de suas "lavras", como diz Giramente. Ainda em princípios do tempo seco, a pesca dos peixes miúdos nos lagos alcança seu auge, sendo capturados e secos em grande quantidade. Na verdade, as caravanas se vêem diante de ampla variedade de peixes Luvale: do miúdo (caquéia, missuta, misoji, ndembi, kaifutchi, mauengo, sengue, sassakéli, mungolokele), ao médio (mukunga, keli, muiko, nkundu, tchibua, pungu) até ao "bagre” (mbuli). Tudo depende dos interesses de troca e o fator de incerteza refere-se, sobretudo, às outras caravanas que vêm de rios também produtores de makanha. 183 Uma aldeia em Kaifutchi seria o local de estadia durante os dias de negociação, onde todos ficariam hospedados na casa do parceiro de troca de Sandonje. A chegada se faz sempre concorrida, visto que as notícias de tchifanigigi se espalham logo, e as pessoas acorrem à aldeia para negociar a makanha. Durante a estadia em Kaifutchi, as mercadorias trazidas ficavam guardadas na casa do parceiro de troca de Sandonje. As bicicletas seguiam logo cedo até outras aldeias, negociando seus fetiches e as conversões. Demoram-se alguns dias até que tudo seja negociado, as medidas e paridades sendo acordadas a partir de experiências passadas e olho-no-olho, entremeadas por algumas rodas de makanha. Acordo apalavrado, a caravana volta no dia seguinte, trazendo a mercadoria e levando os sacos de peixe seco. Após uma semana de negociações nas aldeias, as mercadorias foram trocadas em sua totalidade. O regresso é dos mais duros, em decorrência da carga que se aproxima de 250 kg144 por pessoa, sendo dividida em diferentes sacos e colocada como contrapesos à frente, ao centro e atrás na bicicleta que, agora, se transforma em um moderno burro de carga. O componente de incerteza se mostrara sob outra face, as mercadorias foram trocadas acima das expectativas. Por esse motivo, Joseph e Sandonje ainda regressariam à Kaifutchi para pegar os 200 Kg restantes de peixe seco que permaneceram guardados pelo parceiro de troca. O caminho de cinco diass e transforma na volta em longa marcha de quase três semanas, as bicicletas sendo empunhadas com mãos firmes pela estreita trilha de areia desenhada ao chão nos cerrados abertos, quaisquer descuidos de perícia e queda acidental tornam-se um transtorno dos mais complicados. Todo cuidado é pouco, mas, por vezes, o cansaço de seguir horas com punhos e antebraços contraídos empurrando 250 kg de mercadorias, sob o sol forte na pele faz com que o corpo desconsiga de acompanhar a mente, e tombe cansado sobre o chão, gerando risadas em cascata em todos da caravana. É, sem dúvida, o momento de parar e fazer os preparativos para o acampamento, descarregando as bicicletas e 144 Referências que se referem aos sacos de lona de 150 kg e de 50 kg que voltam repletos, quase estourando de peixe seco. 184 procurando lenha por próximo. São dias que trazem consigo o melhor da caravana para esses negociantes, as rodas de makanha, a comida preparada com fartura de peixe, as conversas alongando-se noite adentro. São sociabilidades inerentes à circulação de valor. O regresso é lento, mas sereno, por vezes o encontro com uma caravana os faz descansar um dia inteiro em acampamentos coletivos que podem reunir diferentes caravanas, antes de prosseguir na labuta do trabalho, carregando seus fetiches tornados mercadorias e valor. Ao vencerem os cerrados abertos e adentrarem novamente a linha das matas, as caravanas atravessam diversas aldeias Tchokwe, fazendo mojimbo e distribuindo dom em porções de peixe seco aos parentes, makuluana e mianangana – numa intensa economia de prestígio. Em algumas aldeias, pode haver ensejo para a sociabilidade em terreiros, um baseado à sombra de frondosa árvore, mojimbo mais demorado e descanso, quando mesmo um pernoite. Parte do peixe é negociada nas próprias aldeias Tchokwe e, de fato, há caravanas que esgotam suas mercadorias nessas trocas, quando a estratégia não visa a acumulação para aquisição de fetiches, mas se mostra restrita à reprodução da família no tempo seco. No caso de Giramente e dos demais da caravana, as estratégias permitiam negociar além das aldeias. Os muitos quilos de peixe seco virariam, em parte, alimento dos meses vindouros em cada zuwo, o restante seguindo de caminhão até Saurimo ou de bicicleta até alguma sede municipal. O circuito novamente se fecha na praça financeira, lá, onde as finanças materializam o trabalho, onde o sobrevalor produzido na circulação de pessoas e mercadorias se negocia diretamente com os fetiches há tempos pensados e desejados, outra parte sendo retida como papel-moeda, reserva de valor tão importante quanto os animais em tempos modernos. Como diz Giramente, "quando se deseja muito uma coisa, tem que ir aos Luvale". 185 Fetiches e substratos de imaginação "Quando o mundo parecia estar tranquilo, recorde-se, a China e as mesas começaram a bailar, pour encourager les autres”. (Karl Marx) Não só de makanha se fazem as caravanas, pois parte considerável dos yfutchi Luvale depende da mandioca dos Tchokwe em sua dieta alimentar, a mandioca detendo assim importante valor nas trocas por peixe seco. A produção de aguardente (katchipembe) sempre se mostrou atributo dos Tchokwe, por depender diretamente das lavras de milho, raras e proibitivas na ecologia da terra dos Luvale. Armazenado em cabaças e transportado em alguns litros nas caravanas, só recentemente o katchipembe veio a ser substituído por bebidas industriais, em especial pelo afamado "Scotch". As caravanas mesclam intensamente mercadorias produzidas nas aldeias com outras tantas adquiridas nas praças financeiras, mercadorias tradicionais e modernas. Trata-se de diferentes estratégias e as caravanas podem inclusive transportar apenas produtos das lavras, o que ressalta e expressa a continuidade dessa rede de circulação de valor ao longo dos séculos. Algumas caravanas avançam transportando aparelhos de TV e DVDs, visto que as imaginações despertam fascínio crescente entre os Tchokwe e os Luvale, capazes de em performance no terreiro atrairem pessoas de toda a aldeia que ficam assistindo aos muitos grupos de Sassa Tchokwe que têm produzido filmes nas aldeias junto aos maquixe ou às cinematografias de guerra – cenas inusitadas, pois aqueles que combateram são comentadores assíduos dos filmes de guerra americanos, cada arma e ação sendo discutida e criticada como estratégia errada de combate ou uma grande explosão sendo exaltada em onomatopéia: - “ Powwwww!”. Os fatos logo se tornam atos e a cinematografia cubana Kangamba se consolida como filme de guerra dos mais assistidos nas aldeias, mostrando com 186 realismo documental o cerco a uma sede municipal ao sul do Moxico nos anos 80. Entrincheirados numa posição de comando que não ultrapassava um campo de futebol no interior da vila, as tropas das Fapla e de cubanos se viram confrontados com o bombardeamento intermitente da Unita/África do Sul. A posição era estratégica e o Comando Central em Luanda e Havana logo enviariam duas colunas de apoio das cidades Menongue e Huambo. Frente ao cerco que já se adiantava a ocupar partes da sede municipal, um comando especial das Fapla e dos cubanos é então enviado em delicada operação, sendo deslocado de helicóptero a um trecho de mata de mata fechada, de modo a avançar alguns dias e atacar o acampamento (tchilombo) da Unita em sua retaguarda. Enquanto isso, o emprego de Migs se tornava arriscado dado a proximidade de ambas as frentes, embora fundamental para conter o avanço progressivo da Unita, cabendo ao “homem das comunicações” passar as coordenadas e estratégias de ataque para conter o fogo cerrado da torre da igreja ocupada pela Unita que silenciosamente matava um a um os homens entrincheirados. “- 00, desde la torre de la Iglesia, hay uno franco-atirador. La torre, 00, la torre de la iglesia", - Powwww!”. Kangamba logo se torna extensamente comentado em mojimbo de muitos terreiros. A alienação não se mostra presente nas relações sociais quando os meios de produção não foram expropriados. Tanto os Tchokwe como os Luvale os possuem no interior de seus domínios políticos mais fundamentais, as famílias e as aldeias. Com efeito, as estratégias de reprodução social de cada domínio político familiar condicionam a apropriação de mercadorias e fetiches, consoante a política do valor e a ecologia do trabalho. Certas mercadorias como TVs e DVDs logo se propagam, ensejando estratégias de acumulação nas caravanas futuras, ao menos nas famílias que o desejam. Mas afinal, como se estabelece o valor de troca na ausência de meio de troca (papel-moeda)? Bohannan (1955) sugere a existência de esferas de troca escalonadas consoante a potência de valor atribuída politicamente a diferentes mercadorias. Alguns bens se consolidam, assim, como mais valorados em longas séries históricas, para lançar uso de um jarguão econômico – legítimo sob certa perspectiva, na medida em que a economia deriva sua origem etimológica da 187 expressão grega óikos (casa, família) e, como tal, já nasce política em sua essência, dominando seus meios de reprodução social. A caravana de Giramente optara por mesclar diferentes fetiches, introduzindo das cidades a eletricidade, a música, as roupas e as bebidas alcoólicas e levando bocado de fumo. Desde sempre e notadamente, a makanha se mostra preeminente na circulação de mercadorias entre povos agricultores e pescadores, fazendo parte constituinte da ecologia do trabalho e das sociabilidades, não apenas entre os Tchokwe, mas também entre os Luvale que passam horas a fio nas canoas a trabalhar e pensar. Na verdade, a makanha se apresenta ao longo dos séculos como inigualável fetiche na circulação de valor, ainda hoje sobrepujando as mercadorias européias em sua potência de valor. Mercadorias Tchokwe 1 gerador de energia 2 aparelhos de som 1 saco de roupa -24 panos de 200kw cada -16 calças de 400kw cada -12 camisas de 200kw cada 10 Kg de makanha (forte) 48 Scotch (0,5 litro cada) Câmbio: US$100/kw10.000 Valor (US$) Mercadorias Luvale Valor (US$) Valor de Troca 110 3 sacos (150 kg de peixe) 360 3,27 220 6 sacos (300 kg de peixe) 720 3,27 100 3 sacos (150 kg de peixe) 360 3,6 1 pequena bacia de peixe (cada pano) 1 pequena bacia de peixe (cada calça) 1 prato raso de peixe (cada camisa) 100 8 sacos (400 kg de peixe) 960 9,6 96 4 sacos (200 kg de peixe) 480 5 Da caravana de Giramente, advém algum sentido da makanha entre os Tchokwe. Contrastando com os personagens urbanos (roupas), com as imaginações musicais (aparelho de som), com a eletricidade, a makanha permanece como insuperável esfera de troca, uma mercadoria-fetiche insubstituível desde os malemba. Marx (1867) afirmara em relação à potência das mercadorias em extrair sobrevalor na circulação que: “O caráter misterioso da mercadoria não provém do seu valor-de-uso, nem tampouco dos fatores determinantes do valor. E, para isso, há motivos. Primeiro, por mais que difiram os trabalhos úteis ou as atividades produtivas, a verdade fisiológica é que são funções do organismo humano, e cada uma dessas funções, não importa a forma ou o conteúdo, é essencialmente dispêndio do cérebro, dos nervos, músculos, 188 sentidos etc. do homem. Segundo, quanto ao fator que determina a magnitude do valor, isto é, a duração daquele dispêndio ou a quantidade do trabalho, é possível distinguir claramente a quantidade da qualidade do trabalho (p.93)”. Marx se referia ao caráter intrínseco e extrínseco das mercadorias que passavam a circular incessantemente nas urbanidades industriais européias, extraindo sobrevalor da mesma forma e magnitude em que geravam fascínio. As esferas de troca entre os Tchokwe e os Luvale permitem depreender e aprofundar o que vêm a caracterizar a potência misteriosa das mercadorias, a ponto de tornálas fetiches capazes de agenciar e extrair trabalho humano. Na medida em que a caravana de Giramente negocia distintas mercadorias, as diferenças de valor se apresentam como gradações de fetiches, cada mercadoria detendo em si própria um teor subjetivo e de imaginações que podem, por vezes, persistir semanas, meses e anos. É, sobretudo, na imaginação dos fetiches que os Tchokwe e os Luvale orientam as estratégias de reprodução social em seus domínios políticos (óikos), consoante a ecologia do trabalho. A makanha detém incomensurável potência imaginativa, sendo, com efeito, a mais alta a incomparável esfera de troca nas caravanas. Afinal, são brasas de pensamento que junto com os Tchokwe atravessam a história. 189 Conclusão: Em torno de alguma antropologia dialética Com o fim da guerra é das yhunda, sobretudo, que as contradições, arbitrariedades e imoralidades políticas serão pensadas, discutidas e analisadas, de mojimbo em mojimbo, de aldeia em aldeia, de tchifutchi em tchifutchi. Nesse sentido mais profundo que a política de tchilombo se reverbera com força, na medida em que a política provém dos domínios políticos mais fundamentais aos Tchokwe do alto Kassai: as famílias e a aldeia. Os quilombos são as aldeias na contemporaneidade dos Tchokwe – sempre o foram, afinal, os quilombos de fuga e resistência deram lugares às aldeias, sendo iniciados como quilombos e tornados aldeias. A partir de meados do século XX, os Tchokwe se apropriaram progressiva e dialeticamente de novas formas políticas. A arquitetura das cidades e do Estado colonial se tornaram propriamente Tchokwe e dos demais povos de Angola. As antigas cidades e vilas se transformaram em imensas aldeias que continuamente remoldavam a arquitetura colonial, dando-lhe nova conotação, espaço, sociabilidades. Se a modernidade é devorada em ritmo voraz no pós-guerra, não significa que as aldeias deixem de ser um lócus fundamental na vida dos Tchokwe. A dialética traduzida na pragmática política dos quilombos revolucionários no leste de Angola que lutavam pela apropriação do Estado se tornou uma metanarrativa histórica que está longe de se desvencilhar das biografias e das narrativas dos que viveram a guerra a partir das aldeias. No entanto, é notória a dialética inversa que subjaz no presente das aldeias espalhadas pelas matas e rios, que permanecem na ecologia de luisa e luchiho e em suas próprias posições políticas, na terra dos malemba, em seus rituais, na moral das famílias, na autonomia das estratégias de reprodução social. Da profunda genealogia política dos Tchokwe se perfaz, enfim, o presente: essa dialética de versos inversos, de tchilombo e tchihunda. 190 Glossário Hamba (pl. Mahamba): entidades; divindades; ancestrais Kapindji (pl. Tupindji): pessoas em relação social de dívida Lemba (pl. Malemba): entidades; divindades; ancestrais; idosos Luchiho: tempo seco Luisa: tempo chuvoso Makanha: tabaco; tabaco forte. Mojimbo: saudação; conversa sobre últimos acontecimentos Muanangana (pl. Mianangana): chefe de território matrilinear Mukanda: ritual de iniciação masculino à idade adulta; livro; bíblia Mukuli: relação social de dívida Mukuluana (pl. Makuluana): chefe de aldeia, chefe de família extendida. Mungonge: ritual de iniciação masculina à magia Mussumba: aldeia fortificada de Muatiyanvwa Nganda: aldeia de Muanangana Ngombo: mestre de Umbanda; Hamba de divinação; objetos de divinação Tchifutchi (pl. Yfutchi): território matrilinear Tchihunda: aldeia Tchilombo: quilombo; acampamento provisórioa na mata, com fins de de fuga e/ou guerra, com casas de capim. Tchimbali (ymbali): negociante de escravos; branco Tchindeli: branco Tchixixi (pl. Yxixi): pequena estatueta de madeira personificada por um ancestral ou descendente. 191 Tissemuka: família, linhagem, genealogia Umbanda: culto de divindades; Umbanda; medicina tradicional Zuwo: família 192 Bibliografia Appadurai, Arjun (ed.) (2007). The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press. Barbosa, Adriano (1989). Dicionário Cokwe-Português.Coimbra: Centro de Estudos Africanos. Bastin, Maire-Louise (1984). "Ritual Masks of the Chokwe". African Arts 17(4): 40-45+9293+95-96. Baumann, Hermann (1951). "Das Tier als Alter Ego in Afrika. Zur Frage des afrikanischen Individualtotemismus". Paideuma 5(3):167-188 Behrend, Heike (2005). “Macht und Geisterbesessenheit. 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