Ética e Administração da Educação Ethique et administration en éducation Elisabete Ferreira (FPCE – Universidade do Porto) Ana Isabel Silva (FPCE – Universidade do Porto) Resumo Este texto surge como ocasião de reflexão numa trajectória exploratória e ponderada em torno da contratualização da autonomia escolar e governo das escolas, e procura discutir os sentidos pertinentes de uma ética da administração da educação. A propósito da direcção das escolas com contratos de autonomia procura-se estudar a acção e a decisão política nestas escolas como contributos singulares do processo de contratualização da autonomia em Portugal. Deste modo, alargamos o enquadramento teórico sobre o desenvolvimento da autonomia escolar, que se apresenta como processo crísico, ambíguo e complexo e trazemos um novo enfoque nas lideranças das organizações escolares, como variável essencial no funcionamento destas, e abrimos possibilidades no entendimento de uma ética da administração em educação que é fomentada numa pluralidade de autonomias e lideranças, assentando numa necessidade de salvaguarda dos princípios da escola autónoma, democrática e sensata. Privilegiando uma atitude interpretativa e compreensiva da autonomia escolar, na especificidade da direcção das escolas com contratos de autonomia, são apresentadas algumas opções metodológicas da investigação em curso que permitem apontar alguns resultados e alguns desafios que se adivinham neste contexto. Palavras – Chave: Ética da Administração, Autonomias e Lideranças. Introdução A propósito da autonomia escolar, temos vindo a dar conta de uma possibilidade de fenomenologia da mudança na governação das escolas públicas portuguesas com desenvolvimentos emancipatórios, comunicacionais, críticos e éticos (Ferreira, 2004, 2007 e 2009). Partimos da análise e do enquadramento da escola enquanto organização complexa e específica e espaço relacional e afectivo por excelência, em que se assume a escola enquanto lugar de saberes possíveis e numa “ética da comunicação e da relação” (ibidem) e numa unidade social que se constrói pela e na acção dos actores e no grau das relações e da coesão entre estes (Barroso, 1997 e Afonso, 2000). Neste meandro de complexidade temos vindo a defender uma (re)combinação de lógicas de acção que originam um entendimento social de recomposição ou recombinação paradigmática e não só de transição paradigmática na compreensão da realidade social. No que à escola concerne o momento é de facto, de transição educativa (entre normativos, entre ministras da educação, entre processos de avaliação) e os estudos ganham pertinência ao analisarem os contratos de autonomia escolar enquanto dispositivos potenciais ou de constrangimento na direcção autónoma das escolas. Nesta comunicação, apresentamos resultados parciais sobre a primeira fase de contratualização de 282 autonomia das escolas com especial ênfase nas questões da autonomia e das lideranças 1, reflectindo sobre o modo como estas se articulam e possibilitam uma conceptualização da ética da administração escolar. Situando-nos então, no estudo do processo de desenvolvimento da autonomia das escolas, entendemos o governo da escola pública no movimento de expansão da autonomia escolar, num cenário de autonomia crísica (Ferreira, 2007) e pretendemos dar conta da compreensão do desenvolvimento e da relação da ética na administração escolar através de estudos sobre a(s) liderança(s) da escola pública. Entre Autonomias e Lideranças Escolares No que à autonomia se refere partimos da vivência de princípios de igualdade de oportunidades, de justiça, de equidade e a autonomia escolar surge de uma perspectiva democrática (Afonso, 2000; Barroso, 1997; Ferreira, 2004 e 2007; Formosinho e Machado, 2000; Lima, 2006), sendo entendida numa partilha de poderes que se conjuga na interacção e interdependência das relações entre os diversos actores e estando intimamente relacionada com a possibilidade e a capacidade da acção que permite introduzir a diferença da autoria em prol de um bem comum. As autonomias resultam então, de lógicas dicotómicas, contraditórias e ambíguas, pelo que ressalta o seu carácter polissémico (Ferreira, 2007) e assiste-se, nesse contexto, a uma proliferação metafórica, em que se assume a autonomia como: “A cabeça de Janus” (Amaral e Magalhães, 2001), a “Ficção Necessária” (Barroso, 2004) e como “A lenda da estátua com pés de barro” (Ferreira, 2004), entre outras. De facto, são vários os entendimentos em torno da autonomia escolar mas considerem-se as seguintes abordagens: - A autonomia é associada ao desenvolvimento de lógicas de descentralização e ou de centralização desconcentrada (Formosinho e Machado, 1999), contudo, Fernandes (2005) clarifica que, na génese de cada um destes processos estão pressupostos distintos. Assume-se que a descentralização, sendo uma componente política visível da autonomia, quer como condição quer como efeito, não deve ser confundida com esta, e, ainda, que a autonomia das escolas pode ser dissimulada numa “recentralização por controlo remoto” (Lima, 1995). - Reconhece-se que a Autonomia Decretada, emanada por normativos, orientações e dispositivos que, embora legitimem a acção autónoma, podendo favorecê-la ou comprometê-la, por si só não criam nem demovem a autonomia que se pratica no quotidiano das escolas (Barroso, 1996 e 2004). Assim, a autonomia escolar apresenta-se, não como um fim em si mesmo, mas como um meio que leve a uma Autonomia construída (Ibidem). - Enuncia-se uma Autonomia Crísica que assenta na simultânea génese e crise da autonomia e é expressa numa racionalidade política e instrumental (Ferreira, 2007). Esta é “…determinada pela inércia da retórica da autonomia. (…) A autonomia crísica, a verificar-se, resultará num processo fracassado de desenvolvimento e realização da autonomia.” (ibidem:145). A autonomia crísica não é uma visão pessimista e não deve ser encarada como ameaça ou desconfiança, é antes algo que existe e que importa integrar. Ela é imprevisível e tem vários riscos e, também por isso, é desafiante. - Não obstante, ao analisarmos os processos de autonomia das escolas em vários países da Europa (em particular os 30 países que fazem parte da Rede Eurydice), verifica-se que, de modo geral, as reformas 1 Esta comunicação pretende, por um lado, dar a conhecer o trabalho de pesquisa em curso no âmbito do projecto AGIL (Administração, Gestão e Implementação de Lideranças /Grupo de Pesquisa FPCEUP) e, por outro, de modo mais específico, apresentar o estudo sobre a direcção das escolas e agrupamentos de escolas com contrato de autonomia, no âmbito de uma dissertação de mestrado em Ciências de Educação que orientamos. 283 empreendidas no sentido do reconhecimento e da atribuição de responsabilidades e poderes de decisão às escolas foram sujeitas num processo legislativo de lógica descendente de uma política centralista e de imposição às escolas que acaba por reunir consenso (Eurydice, a Rede de Informação sobre Educação na Europa,2007) e contraria o próprio sentido da autonomia. - O reforço dos poderes dos actores e a transferência de competências para as escolas têm sido efectuados através de processos lentos e graduais, nomeadamente pela formalização da autonomia escolar através da sua contratualização. - Este processo de desenvolvimento da autonomia está intrinsecamente ligado à participação e às lideranças na educação e na escola, à democracia, no sentido da proximidade do poder aos actores e ao desenvolvimento da tomada de decisão partilhada (Barroso, 1997 e 2000). Genericamente, a autonomia das escolas é associada à qualidade do ensino, à participação democrática e à gestão eficiente dos fundos públicos. Seguramente um conceito ligado às diversas dimensões e à distribuição de poderes (de escolha, de decisão, de regulação e de emancipação, entre outros). Neste sentido a ideia de uma pedagogia da autonomia (Freire, 1997), é uma pedagogia centrada na prática de decisões participadas e autónomas, isto é, baseada na capacidade deliberativa dos actores educativos, no quadro de uma organização educativa estruturada e governada democraticamente. Importa, então, compreender que a “Direcção”, como função marcadamente política de seleccionar os princípios e definir as orientações, e a “Gestão”, enquanto técnica ligada às aptidões para organizar, implementar e executar, são processos essenciais a ter em conta na governação das escolas e que cabe às lideranças a tarefa de articular estas funções (Barroso, 1995). O director, enquanto “cara” da escola, deve dar sentido à acção, nomeadamente, deve dar sentido ao Plano de Acção proposto. Para tal, é necessário que assuma uma atitude comunicativa e portadora de valores na tomada de decisão. De facto, o papel do director nas escolas tem sofrido (re)configurações ao longo das últimas décadas 2, essencialmente, porque a este cabe equilibrar as pressões externas com os problemas levantados pela comunidade educativa. Neste sentido, a liderança tem sido distinguida da gestão, aproximando-se mais da direcção por valores (Trigo e Costa, 2008). Diferenciando as lideranças pela sua natureza, estilo e poder exercido, defende-se a sustentabilidade e eficácia destas (Hargreaves e Fink, 2006; Fullan, 2002). Hargreaves e Fink (2006) abordam a sustentabilidade da liderança como um dos aspectos mais importantes desta, propondo sete princípios para uma liderança sustentável: Profundidade da aprendizagem; Durabilidade do impacto a longo prazo, pela boa administração da sucessão; Amplitude de influência, em que a liderança se torna uma responsabilidade partilhada; Justiça; Diversidade, por alternativa à padronização; Engenhosidade ou Iniciativa, que canaliza a energia dos líderes para a inovação; e Conservação, mobilizando o melhor do passado na criação de um futuro ainda melhor. Esta sustentabilidade da liderança levará a uma acção transformacional (Alves, 1999; Sergiovanni, 2004) pela prática de uma liderança democrática que promova uma acção autónoma partilhada com os actores (autores), levando a um clima organizacional aberto e sensato (Reves, 2004). Reivindica-se então uma coragem cívica (Giroux, 1986) para os líderes das nossas escolas, com vista ao desenvolvimento de uma liderança crítica no verdadeiro sentido de empoderamento aos actores envolvidos (Estêvão, 2000). Pensando na especificidade da organização escolar, enquanto singular na sua missão, é apresentada por alguns autores uma liderança educativa e pedagógica (Sergiovanni, 2004; Costa, 2000) “[…] no sentido da 2 Esta reconfiguração tem uma face visível na atribuição de significação à própria função e ao sujeito que a exerce, num quadro de tensões e correlações entre o modo como está organizada administrativamente a escola e o modo como é assumida essa função (nomeação, designação, eleição…). 284 defesa de uma liderança participativa, colaborativa, emancipatória, de interpretação crítica da realidade e da correspondente recusa das visões mecanicistas, hierárquicas, tecnocráticas e instrumentais da liderança” (Costa, 2000:28). Jablin (2006), refere-se aos estudos da liderança numa perspectiva multi e interdisciplinar em que a comunicação, a arte3 e a criatividade assumem centralidade, fundamentando o seu interesse crescente numa qualidade humana muito subjacente aos estudos de liderança, mas nunca estudada, a coragem. Relaciona-a com a motivação e começa a estudar o conceito na sua interdisciplinaridade, realçando a qualidade da coragem para os estudos da liderança pela oportunidade de vitalidade e regeneração dos grupos, organizações e comunidades. No desenvolvimento do conceito, o autor refere e “segue dois níveis: a coragem ofensiva e a coragem defensiva. Pensem na coragem ofensiva, como uma coragem de mudar, de atacar; a coragem defensiva é uma coragem de resistir, de ficar dia após dia a ser bombardeado e esperar o melhor momento para o ataque” (ibidem: 106). Na utilização destes dois níveis, portanto, um físico e outro moral, sugere que estes não são exclusivos e podem ser combinados de várias formas heurísticas. Pretende, ainda, realçar a coragem e a comunicação corajosa dos líderes e seguir o líder na comunicação nos grupos, organizações e comunidades. Nesta perspectiva, argumenta sobre as culturas de coragem nos grupos com a intenção de desenvolver as pessoas na liderança e na coragem (a usarem o conhecimento e as habilidades) ao serviço da sociedade, das organizações e da formação. Mais especificamente, e sobre os decisores no governo da escola autónoma, deve considerar-se quer a “coragem” quer a “coragem cívica” que nos são apresentadas, respectivamente, por Jablin (2006) e Giroux (1986). Jablin (2006), a propósito do desenvolvimento dos estudos sobre liderança e na defesa de um conhecimento transversal de e na liderança ao serviço do bem comum, apresenta a ideia da coragem considerando-a através de “três modelos: a disposição para correr riscos, a conscientização, o poder e o medo, por vezes, elaborado” (ibidem: 102). Também Giroux (1986: 158) capta esta noção e defende, para uma prática transformadora, a “coragem cívica”, considerando-a central e representativa de “uma forma de comportamento no qual a pessoa pensa e age como se vivesse numa democracia real. É uma forma de bravura que tem por objectivo explodir as reificações, mitos e preconceitos”.É neste entendimento que nos parece adequado apresentar o termo lideranças, na medida em que este é um processo, ou um fenómeno, que acarreta contornos pouco definidos num carácter marcadamente híbrido no que concerne quer ao nível das práticas, quer dos processos de direcção e gestão das organizações. Ética e Administração em Educação Seguimos a teoria crítica no seu propósito de procurar e lutar por um mundo sem injustiças, melhor e mais humano, isto é, uma “actividade transformadora que se vê a si própria como explicitamente política e se compromete com a projecção de um futuro até agora não realizado” Giroux (1986: 36). Decerto, um futuro, que faça face à desumanização das sociedades e às características impessoais e burocráticas das organizações em geral e as de educação em especial, urge neste cenário, desenvolver e pensar numa ética da administração escolar que permita alargar o modelo tradicional da administração e trazer novos códigos de vivência e de possibilidades. Relembra Sennett (2001: 47): “As condições de tempo no novo capitalismo criaram um conflito entre carácter e experiência, a experiência do tempo desconexo a ameaçar a capacidade das pessoas formarem o respectivo carácter como narrativa sustentada”. Para Giroux (1986: 3 Para o autor, nas artes constroem-se caminhos de conceitualização e de estudo da comunicação humana e a coragem é um tema aí recorrente e, desse ponto de vista, admite que a liderança possa ser estimulada com outra criatividade e imaginação e até explorada para a resolução de problemas. 285 139), importa “O papel atribuído à acção humana e à experiência como elos mediadores centrais entre os determinantes estruturantes e os efeitos vividos.” Como lembra o autor, o mundo nunca teve estabilidade e as pessoas habituaram-se a várias formas improvisadas de sobrevivência, mas “O que há de peculiar na incerteza de hoje é que existe sem qualquer desastre histórico iminente; em vez disso está tecida nas práticas quotidianas de um capitalismo vigoroso.” (ibidem). Na realidade, destas tensões paradoxais emergem novas possibilidades no cenário educacional capazes de contrariar visões dominantes e criar nas pessoas novas dinâmicas de pensar crítico e autónomo de modo a utilizá-lo dentro e fora das escolas. Aderimos com Giroux (1986: 155-156) a uma natureza “arriscada” da Educação, resultante da tensão e das contradições entre os ideais e as práticas. Na escola, esta natureza encontra expressão entre uma lógica de reprodução sócio-cultural de uma sociedade estratificada e dominadora e uma lógica revolucionária que propicie espaços para o ensino e o conhecimento emancipatório. Para Giroux (1986: 157), “Efectivamente a escola não é um baluarte de dominação, nem um locus de revolução; assim ela contém espaços ideológicos e materiais para o desenvolvimento de pedagogias radicais.” Adoptamos para o discurso da administração em educação um enlace fundamental com estas visões e a ideia de emancipação humana até porque na exigência de mais democracia são precisas pessoas emancipadas. Com Giroux (ibidem: 155-156), assumimos “uma conexão entre escolarização e emancipação, sugerindo que as escolas têm a responsabilidade de equipar os alunos com o conhecimento e habilidade de que eles precisarão a fim de desenvolver uma compreensão crítica de si mesmos, bem como do que significa viver em uma sociedade democrática”. Se considerarmos a administração no seu propósito máximo de planear, organizar, dirigir ou liderar e controlar, nas sociedades capitalistas contemporâneas, percebemos os riscos de desumanização inerentes. Ora é neste cenário que vale pensar a ética da administração e como refere Botler (2003) faz até sentido pensar “num código de ética do gestor” quando restringimos o olhar num modelo de administração tradicional. Emerge assim, a ideia de que a dimensão ética só pode ser formada simultaneamente por sentimentos e pensamentos (razão). Seguimos então, a ética numa possibilidade de reflexão de juízo crítico sobre a dimensão moral e que procura os sentidos compreensivos da acção. Nesta perspectiva sublinha-se uma administração ética que é construída numa razão dialógica e que, se seguirmos Habermas (1987), dizemos de uma racionalidade comunicativa e emancipatória. Defendendo a liderança como princípio reconstituinte da administração educativa, alguns autores, têm enfatizado uma “(…) liderança que seja sensível aos valores, crenças, necessidades e desejos únicos dos profissionais e cidadãos locais” (Sergiovanni, 2004:10), isto é, uma liderança local no “Mundo-da-vida” das escolas que potencie uma responsabilidade partilhada e um posicionamento moral comum (ibidem), que vá no sentido de “(…) uma liderança atenta à dimensão moral da educação, à natureza social e interpessoal das práticas educativas, à dimensão instrucional, à natureza política da educação” (Alves, 1999: 25). Uma liderança com personalidade que reflicta os valores das comunidades (Sergiovanni, 2004), que se assuma como liderança da crítica, democrática e facilitadora (Estêvão, 2004). O que equivale a dizer uma liderança de código ético. Até porque, a transição e as tensões prementes no campo escolar e educacional propiciam um paradoxo ético (ibidem) na medida em que aumentam as nossas tarefas éticas e simultaneamente diminuem os recursos simbólicos e os critérios seguros para os levar a cabo. Com Botler (2003), consideramos que a função de direcção e gestão das escolas deve ser pensada não enquanto especialidade técnica, mas antes enquanto especialidade educacional pelas competências marcadamente técnicas, políticas e éticas implícitas a esta função. 286 Destas singularidades de uma perspectiva crítica compreende-se a possibilidade que se constrói no empenho colectivo, num projecto de educação, que reivindique aprovação e compromisso político apropriado para o serviço à comunidade local. E que pode ser definido por uma liderança aplicada ao serviço a bem da comunidade. O que equivale a dizer do cuidado de pensar a administração da educação num quadro de definição política, de responsabilidade cívica, isto é, desígnio de presença participada e de entendimento de responsabilização relacional e social. Portanto, uma racionalidade aberta, de conhecimento, de ética, de interesse e de vontade que se expressa criticamente, numa lógica de racionalidade emocional que é e anuncia uma racionalidade comunicativa e emancipatória. Imagina-se uma mudança radical no olhar da Educação e da Escola, que exige lidar simultaneamente com o risco e a confiança, e que pode significar um aumento de responsabilidade relacional e social, isto é, pensar constantemente e reflectir sobre as diferentes perspectivas e as circunstâncias das interacções quotidianas educativas. São estas perspectivas que nos levam a querer uma ética da administração em torno dos valores, dos afectos, do diálogo – uma “ética da comunicação e da relação” (Ferreira, 2007), em que se articulam dimensões: racionais, justas, intuitivas e emocionais. De facto, um querer na administração escolar, que se realiza numa racionalidade comunicativa emancipatória e no desenvolvimento de uma ética da administração escolar que, necessariamente, envolve uma pluralidade de autonomias e lideranças, (re)criadas e (re)forçadas pela direcção e gestão das escolas. Administração da educação Do que antecede compreende-se a escola enquanto espaço de acção e de decisão política, no desenvolvimento de práticas emancipatórias em torno do nível mesopolítico da administração escolar. Nesta perspectiva surge o nosso estudo, sobre Os/as directores/as de escolas em contextos de contratualização da autonomia e consideramos a proposta da lei que apresenta os contratos de autonomia como uma possibilidade instrumental de reforço da autonomia das escolas e acentuamos, então, o nosso enfoque, na tomada de decisões da direcção política, nos saberes em acção, daqueles que governam as escolas com contratos de autonomia. Com o intuito de dar a conhecer mais especificamente o nosso projecto de investigação, apresentam-se algumas questões que orientam o nosso estudo e que nos levam a desenvolver o problema a investigar: Quais as formas de autonomia que se têm desenvolvido nas escolas com contrato de autonomia? De que modo a contratualização da autonomia escolar contribui ou não para o desenvolvimento de práticas autogovernadas na direcção das escolas? De que modo a liderança, depositada num órgão unipessoal – o/a director/a, contribui como condicionalismo e ou possibilidade no sentido de construção de uma acção autónoma (quer individual, quer organizacional)? Quais os interesses e os saberes (saberes em acção) que são mobilizados na direcção política das escolas com contrato de autonomia? E de que modo os contratos de autonomia se assumem como instrumento potencial ou de constrangimento na direcção política das escolas? Neste estudo em curso, em que desenvolvemos uma investigação qualitativa, propomo-nos reflectir sobre os contributos das concepções em torno da autonomia e da direcção escolar na compreensão da realidade das escolas com contrato de autonomia e identificar potencialidades e fragilidades no processo de contratualização da autonomia escolar para mais especificamente analisarmos e compreendermos a acção política dos/das directores/as das escolas com contrato de autonomia. Para isso, e como principais instrumentos de recolha de dados, temos a pesquisa bibliográfica e a recolha documental e procedemos à construção de um inquérito por questionário a ser aplicado aos/às directores/as das 24 escolas e agrupamentos de escolas com contratos de autonomia celebrados com o 287 Ministério da Educação. Este inquérito, que foi precedido de uma entrevista com carácter exploratório, é composto maioritariamente por questões de resposta fechada numa escala tipo Likert com 7 níveis de concordância que estão agrupadas em cinco dimensões: pessoal, profissional (motivações e ocupações), representações de autonomia e princípios de acção autónoma. Para um aprofundamento da compreensão da acção (ou das representações sobre a acção) na direcção das escolas com contrato de autonomia, serão também elaboradas entrevistas, semi-directivas e de aprofundamento a Directores/as de escola ou agrupamento de escolas em estudo. Problemas e Desafios na Contratualização da Autonomia Escolar A contratualização da autonomia tem expressado um paradoxo ético na forma como surge enquanto dispositivo de possibilidade de responsabilidade partilhada e de mais autonomia das escolas, ou então, enquanto dispositivo regulamentador e controlador da autonomia escolar. Pelos documentos já analisados, pela análise de entrevista exploratória e de algumas respostas aos inquéritos, os contratos de autonomia no plano formal apontam para: - Escassos indicadores referentes à liderança e ou à etica - Sucesso dos resultados escolares - Grau e tipo de competências transferidas similar em todos os contratos (respeitam a matriz publicada pela Portaria nº 1260/2007) - Certo esvaziamento dos contratos pela legislação agora em vigor (elaborados ao abrigo do Decreto Lei 115-A/98 e agora em vigor ao abrigo do Decreto Lei 75/2008) - Lógica de regulação e de prestação de contas ao Estado Nos Planos de Desenvolvimento são definidas as áreas prioritárias daquelas que foram competências reconhecidas às escolas. Os Relatórios de Acompanhamento, ressaltam que alguns dos objectivos têm vindo a ser alcançados pelas escolas, contudo as áreas em que as escolas evocam maior necessidade de autonomia, nomeadamente na gestão do pessoal docente e na gestão dos recursos financeiros, continua a não estar prevista ou a ser incipiente nesta primeira fase de contratualização. Contrariamente ao esperado, ao nível curricular e pedagógico são pouco significativas as mudanças trazidas (ou procuradas) pela contratualização da autonomia. Os Planos de acção, que são apresentados no sentido de se tornarem planos de orientação para a acção, salientam a abertura e a necessidade da participação dos diversos actores para a tomada de decisão partilhada; a vontade em construir nas escolas uma identidade própria; a continuidade no desenvolvimento de projectos. Globalmente são projectos consentâneos com o discurso dos Planos de desenvolvimento em que se destacam preocupações de oferta educativa da escola, de modo a tomar a escola mais atraente para os seus públicos. Atendendo às possibilidades que se abrem e às dificuldades que se apresentam na direcção das escolas com contratos de autonomia, reconhece-se que o contrato poderá ser um dispositivo privilegiado para que se abram novos caminhos nos escassos espaços de liberdade, na consecução de metas e acções carregadas de sentido e da responsabilidade partilhada. Mas não ignoramos o sentido perverso que estes podem assumir, se confundidos como instrumento para a privatização da escola pública ou usados como modo e meio para instar princípios de mercado, de controlo por controlo e de regulamentação mais do que de regulação. Este meandro de discussão permite-nos reivindicar uma política educativa comprometida com as pessoas e as comunidades locais de modo adequado e continuado para que a construção da autonomia escolar se concretize numa pluralidade de autonomias lideradas eticamente. 288 Bibliografia AFONSO, Natércio (2000). “Autonomia, avaliação e gestão estratégica das escolas públicas”, in Costa, J. A, Mendes, Afonso, N. e Ventura, A. (orgs.), Liderança e Estratégia nas organizações escolares – Actas do 1º Simpósio sobre Organização e Gestão Escolar. Aveiro: Universidade. ALVES, M. José (1999). “Autonomia, participação e liderança”, in Carvalho, Angelina, Alves, M. José e Sarmento, Manuel Jacinto, Contratos de Autonomia, Aprendizagem organizacional e Liderança. Cadernos Pedagógicos. Porto: Edições Asa, 15-32. AMARAL, A. e MAGALHÃES, A. (2001). “On markets, autonomy and regulation the Janus Head revisited”, in Higher Education Policy 14, 7-20. 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