O Uso da Geometria Para Surpreender
Frederico Reis Marques de Brito ([email protected])
Outubro de 2006
O Uso da Geometria Para Surpreender
Frederico Reis Marques de Brito - UNIFEMM
Resumo
A geometria estudada no ensino básico é uma rica e, em geral,
pouco aproveitada, fonte de recursos para demonstração, visualização
e entendimento de resultados algébricos. Ela se presta ao importante
papel de provar que o conhecimento matemático não é compartimentado, mas faz parte de um todo articulado e coerente.
Muitas vezes a geometria pode tornar mais concretas determinadas propriedades algébricas. Das expressões algébricas mais canônicas a resultados de combinatória, diversas são as possibilidades de aplicações da geometria. Nesse texto citaremos algumas das que conhecemos e julgamos mais
atraentes.
1
Identidades Notáveis
1. Distributividade do Produto em Relação à Soma:
a · (b + c) = ab + ac .
Essa é uma das identidades de mais simples visualização geométrica.
Basta construir um retângulo de comprimento (b + c) e altura a, ou
o contrário, obviamente. De resto, agora é só observar que a área do
retângulo maior ( de medidas a e b + c ) é a soma das áreas dos
retângulos (I) e (II), de medidas a e b, e a e c, respectivamente :
1
Logo:
a · (b + c) = a · b + a · c .
2. Quadrado da Soma: (a + b)2 = a2 + 2ab + b2 . Se a e b são
números positivos, podemos dar uma ’demonstração visual’ desse fato.
Consideremos um quadrado de lado (a + b), como indica a figura.
Como vemos esse quadrado pode ser decomposto, sem justaposição de
áreas, em um quadrado de lado a ( I ), um de lado b ( II ) e dois
retângulos de lados a e b ( III e IV ). Como a área de um quadrado
de lado x é x2 e a de um retângulo de lados x e y é xy temos:
(a + b)2 = a2 + b2 + 2ab .
2
3. (a − b)2 = a2 − 2ab + b2
Considerando agora a > b ( único caso em que é possı́vel uma interpretação geométrica ), construı́mos a seguinte figura:
Nela, o quadrado hachurado tem lado medindo (a − b). O quadrado
de lado a está assim decomposto em dois retângulos de lados (a − b)
e b e dois quadrados, de lados b e (a − b). Portanto:
(a − b)2 = a2 − 2(a − b)b − b2 = a2 − 2ab + b2 .
2
Somas Notáveis
1. Soma dos n primeiros números ı́mpares
Queremos provar a fórmula:
1 + 3 + 5 + 7 + · · · + (2n − 1) = n2 .
Para isso, tomemos uma famı́lia de circunferências de mesmo centro e
de raios 1, 2, 3, · · · , n. Vamos indicar por A0 a área do cı́rculo
menor( o de raio 1 ), por A1 a área do primeiro anel circular( região
entre as circunferências de raios 1 e 2 ), e, de forma análoga, por Ak
a área da região compreendida entre as circunferências de raios k e
k + 1. Por exemplo, ilustramos o caso n = 4:
3
Como sabemos a área de uma circunferência de raio r é dada por πr2
e, dessa forma:
A0 = π, pois é a área de um cı́rculo de raio 1 e a área do anel Ak é:
Ak = (k + 1)2 π − k 2 π = [(k + 1)2 − k 2 ]π = (2k + 1)π .
Assim, já que a área do cı́rculo maior foi decomposta pelos Ak ’s temos:
A0 + A1 + A2 + · · · + An−1 = πn2
π + 3π + 5π + · · · + (2n − 1)π = πn2 ⇒
1 + 3 + 5 + · · · + (2n − 1) = n2
Isso também pode se ver numa figura como a seguinte:
4
2. Números Triangulares
Números triangulares são números da forma:
Ou seja, o n-ésimo número triangular é Tn = 1 + 2 + · · · + n =
n(n+1)
.
2
Observando que cada Tn é representado por uma figura como uma
‘escada’ ( já que Tn = 1 + 2 + · · · + n ) e uma figura como essa:
Podemos notar uma “bela” identidade:
8Tn + 1 = (2n + 1)2 .
3
Interpretações Geométricas
Geometricamente podemos interpretar, por exemplo, a raiz quadrada de um
número positivo.
5
O procedimento é bem simples. Seja x > 0 o número para o qual
queremos construir a raiz. Traçamos um segmento AB de medida x e, em
seu prolongamento, adjuntamos um segmento unitário u = BC. Em seguida,
tomamos o ponto médio do segmento AC, que indicamos por O. Agora, com
centro em O tracemos uma circunferência de raio OC. Finalmente, pelo
ponto B traçamos uma perpendicular à reta AC, BD, que intercepta a
circunferência no ponto D.
A Geometria nos ensina que todo triângulo inscrito em uma semi-circunferência
é retângulo e que, por sua vez, num triângulo retângulo, o quadrado da altura
2
relativa à hipotenusa
é igual ao produto das projeções. Daı́: BD = x · 1,
√
ou seja, BD = x.
De posse
desse método podemos visualizar geometricamente expressões
√
como
a + b. Para√tanto, construı́mos,
como exposto acima, segmentos
√
auxiliares medindo
a e
b. Em√ seguida, construı́mos
um triângulo
√
retângulo OF G com√catetos OF = a e OG = b. Consequentemente,
a hipotenusa F G = a + b:
6
É muito comum que os alunos tenham a seguinte dúvida
√
√
√
a+b= a+ b ?
A construção
acima
deixa dúvidas de que não: Para números positivos
√
√ não √
a e b, a + b > a + b.
Podemos
√ também, como uma mera consequência do Teorema de Pitágoras,
n para cada n natural, obtendo uma bela figura. Para isso,
construir
basta construir um triângulo
retângulo isósceles de catetos 1. Nessse caso,
√
a hipotenusa medirá 2. Sobre a hipotenusa desse triângulo construı́remos
um segundo triângulo retângulo, tendo por catetos a hipotenusa do anterior
e um novo cateto medindo 1. Novamente pela relação a2 = b2 + c2 para
um triângulo retângulo de catetos b e√ c e hipotenusa a, obtemos que a
hipotenusa do segundo triângulo mede 3. Repetindo esse processo obtemos
√
n, para todo número natural n.
4
Outros Resultados
Podemos também dar uma interessante
prova da desigualdade entre as médias,
√
ou ainda, da irracionalidade de 2, apoiando-nos em argumentos geométricos.
4.1
A Desigualdade Entre as Médias
Recordemos que dados dois números positivos a e b, nós definimos a média
aritmética e a média geométrica deles respectivamente como:
M.A(a, b) =
a+b
2
e
7
M.G(a, b) =
√
ab .
√
√
= 5 e M.G(3, 7) = 3 · 7 = 21.
Assim, por exemplo: M.A(3, 7) = 3+7
2
√
21 < 5. Isso não é um fato isolado. Na realidade, podemos
Note que
provar que
M.G(a, b) ≤ M.A(a, b) ∀a, b ∈ R+ .
Geometricamente basta fazer o seguinte:
Construı́mos dois segmentos de medidas P N = a e N M = b. E colocamos um como prolongamento retilı́neo do outro. Em seguida, marcamos o
ponto médio O desse segmento e construı́mos uma semi-circunferência de
centro em O e raio r = a+b
= M.A(a, b). Levantamos pelo ponto N a al2
tura relativa ao diâmetro P M obtendo um ponto Q na semi-circunferência.
Enfim, construı́mos o triângulo P QN , obtendo a figura:
Como sabemos, todo triângulo inscrito numa semi-circunferência é retângulo.
Assim, pelas relações métricas:
2
QN = P N · N M = a · b ⇒ QN =
√
ab = M.G(a, b) .
Por outro lado, se traçarmos pelo centro O um segmento OR perpendicular à P M tocando a semi-circunferência em R, OR será um raio e
portanto medirá M.A(a, b). Logo,
M G(a, b) ≤ M.A(a, b) .
8
4.2
√
2 é irracional
Todo aluno iniciante no√curso de Matemático é apresentado à demonstração
da irracionalidade de
2 por absurdo, usando rudimentos de teoria dos
números. Pois bem, podemos dar uma demonstração bastante interessante,
novamente lançando mão da geometria. Aqui também faremos uma prova
por absurdo. Lembremos que um número real x é racional se podemos
escrever x na forma x = pq , com p, q inteiros, q 6= 0, e podemos ainda
supor que essa fração é irredutı́vel, ou seja,
√ que p e q são primos entre si.
Assim, vamos supor, por absurdo, que 2 seja racional, ou seja, que
√
p
2= ,
q
com p, q ∈ Z, q 6= 0 e p e q sem fator comum. Elevando os membros
dessa igualdade ao quadrado chegamos em
p2 = 2q 2
(1)
p2 = q 2 + q 2 ,
(2)
Ou seja,
que é a igualdade do Teorema de Pitágoras, para um triângulo ABC retângulo
isósceles de catetos AB = AC = q e hipotenusa BC = p. Na figura vemos
esse triângulo:
9
Como q < p, podemos marcar sobre a hipotenusa BC um ponto D tal
que CD = q, basta traçar, com centro em C um arco de circunferência AD
de raio q. Finalmente, traçamos um segmento DE perpendicular a BC
com E pertencente a AB. Seguem-se algumas considerações importantes:
(i)Como o ângulo em B é de 45o o triângulo BED é retângulo e isósceles.
Daı́ ED = BD = p − q.
(ii) AE = ED. De fato, ED é perpendicular ao raio CD e EA é
perpendicular a outro raio, o raio CA. Segue que EA e ED são segmentos
tangentes à circunferência traçados a partir de um mesmo ponto externo (
E). Assim, EA = ED.
(iii) EB = AB − AE = q − (p − q) = 2q − p.
(iv) Portanto, o triângulo EBD é retângulo isósceles e de medidas inteiras
( e menores que as do triângulo ABC original ).
(v) Mas pelo caso AAA, quaisquer dois triângulos retângulos isósceles são
semelhantes. Em particular ∆ABC ∼ ∆DEB. E, nesse caso,
p
EB
=
.
q
DB
Isso consiste num absurdo, uma vez que havı́amos suposto que a fração
era irredutı́vel.
5
p
q
Exercı́cios
Exercı́cio 5.1. Pense num argumento geométrico para mostrar que 1 + 2 +
3 + · · · + n = n(n+1)
.
2
Exercı́cio 5.2. Explique a seguinte construção do máximo divisor comum:
Dados dois números naturais a e b, construı́mos um retângulo com essas dimensões. Cobrindo todo esse retângulo com quadrados de maiores dimensões
posı́veis, a medida do lado do menor quadrado é o mdc(a, b). Na figura, vemos um exemplo em que a = 55 e b = 5.
10
Exercı́cio 5.3. Use a idéia dos cı́rculos concêntricos, agora de raios 1, 3, 6, · · · , Tn ,
para provar que:
13 + 23 + · · · + n3 = (1 + 2 + 3 + · · · + n)2 .
Referências
[1] LINDQUIST, Mary M., SHULTE, Albert P.( Org.) Aprendendo e
Ensinando Geometria. São paulo: Atual Editora, 1994.
√
[2] POSSANI, Cláudio. Uma demosntração geométrica de que
2
é irracional. RPM, num. 57, 2005, pp 16 a 17.
[3] WELLS, David. Dicionário de Geometria Curiosa. Lisboa: ed.
Gradiva, 1998.
11
Download

Geometria para surpreender