O COMBOIO DA NOITE ou ESTAÇÃO DE CAMINHO DE FERRO À NOITE
1. Estação de caminho de ferro à noite – Museu de Grão Vasco. Imagem cedida pelo Instituto dos Museus e Conservação/© IMC / MC nº 2267;P145
Nota Explicativa
Pintura a óleo sobre madeira de António Carvalho da Silva Porto (1850-1893). Museu Grão Vasco - Viseu.
Silva Porto. Fotografia. Cerca de 1880
Silva Porto era natural do Porto. Estudou Belas Artes na Academia Portuense. Foi pensionista (bolseiro) na Escola de Belas Artes de Paris devido
ao seu mérito. Esteve como bolseiro em França e em Itália entre 1870 e 1879, altura que regressou a Portugal. Quando chegou à capital francesa,
assistiu à efervescência social e política da Guerra franco-alemã e da Comuna de Paris. A nível das correntes artísticas acompanhou o auge da
escola de pintura de Barbizon. Este movimento artístico constituiu uma ruptura em relação ao academismo vigente. Pugnava pelo contacto
directo dos artistas com a natureza. Os pintores deviam captar os motivos das paisagens observando as suas mudanças diárias, efeitos
atmosféricos e luz, assim como o quotidiano das pessoas, retratando de forma humilde e descompremetida tudo o que vissem. As figuras
retratadas no seu ambiente natural surgem associadas ao trabalho e à diversidade das suas regras de vida. Mas as opções estéticas são claramente
de ordem rural, dado que se pode observar, no conjunto das obras produzidas pela Escola, uma oposição ao industrialismo e ao crescimento das
cidades, fazendo-se o elogio da ruralidade. O contacto directo com o ar livre era para os artistas da época um espanto, determinando uma nova
sensibilidade cromática que esse tipo de vivência na arte anunciava. Do ponto de vista filosófico era a adesão ao positivismo e ao neopositivismo de Hypolitte de Taine e à estética como reflexo das diferentes geografias e climas das regiões e dos países.
Em França, Silva Porto foi discípulo de Alexandre Cabanel (1824-1889), de Marcelin Groseillez e de Charles François Daubigny (1817-1878),
trabalhando em Fontainebleu e outros arredores da Paris, onde, aliás, poderia ter captado o movimento da chegada de um comboio a uma
pequena estação ou apeadeiro, numa noite de breu, que ilustra a sua produção desta época (entre 1870 e 1879). Teve contacto com a fase inicial
do movimento impressionista, que no entanto, não exerceu influência nas suas opções estéticas. Quando regressou a Portugal (1879), introduziu o
naturalismo e a técnica de pintura ao ar livre. Silva Porto foi um dos mais consagrados pintores da 2.ª metade do século XIX, uma esperança da
renovação artística portuguesa, a precisar de arejamento contra os formalismos estéticos do academismo vigente. Entrou como professor de
pintura na Escola de Belas Artes de Lisboa, depois da morte de Tomás de Anunciação.
O Comboio à noite é provavelmente a designação mais antiga de uma pintura a óleo sobre madeira de Silva Porto. Encontra-se no Museu Grão
Vasco, em Viseu. A designação mais antiga surge no catálogo da Exposição Cem Anos de Caminhos de Ferro em Arte e Recordações, realizada
por ocasião do Centenário dos Caminhos de Ferro Portugueses (1856-1956). Naquele Museu tem o nome de Estação de caminho de ferro à noite
e segundo se sabe corresponde a uma obra final, executada antes de 1879, quando ainda o pintor se encontrava no estrangeiro, como bolseiro ou
pensionista do Estado português. Conhece-se um esboço deste quadro, executado uns tempos antes do segundo, que revela um estádio ainda
pouco amadurecido da sua obra.
O Comboio à noite é uma obra de juventude. Tem a particularidade de tratar o tema ferroviário, durante uma noite escura, através de uma
composição artística tratada num ambiente de trevas, onde se vislumbram uma pequena estação ou apeadeiro, sua plataforma ou cais, aspecto que
confere ao ambiente alguma nota de artificialidade da paisagem. Na gare encontra-se estacionado uma composição de passageiros, donde emana,
através das suas janelas, manchas de iluminação interior, ritmadas pela fenestração das carruagens, prolongadas através da perspectiva conferida
aos veículos na sua relação com a plataforma e pelos reflexos de luz e sombra nas ditas janelas, sugerindo dinamismo interior motivado pela
presença humana. A fachada da estação recebe também uma fonte de luz de um candeeiro a petróleo, luz que permite distinguir a vedação da
estação e os ramos de uma árvore, em relação ao local de captação da imagem. Outros pormenores da construção perdem-se pelo contraste de
claro-escuro e pela força da paleta de tons negros, verdes e azuis-escuros utilizados pelo pintor, como que a reflectir, segundo alguns autores, um
estado de alma de fantasmagoria e oposição ao progresso (dado o barulho dos silvos nocturnos; os sons de rolamento das composições sobre
carris; a descarga de fumos do carvão consumido nas caldeiras; a própria velocidade das máquinas). A gare recebe os focos de luz do candeeiro
da estação e da reflexão das luminárias do interior da composição, revelando ser a luz a expressão mais eloquente desta obra, ainda animada pelo
foco intenso usado pelo guarda-linhas da estação. Este, no seu posto de trabalho, entanto um traço pouco perceptível, exemplifica o cuidado do
apontamento do quotidiano, matéria que a Escola de Barbizon desenvolveu em relação à pintura, a partir do natural. O breu da noite interrompido
pelo jogo das diferentes intensidades da luz da estação, das carruagens e do funcionário permite mostrar a dicotomia entre a noite natural e a
noite artificial que as novidades tecnológicas da modernidade oitocentista proporcionaram (neste caso os candeeiros a petróleo, a gás e a
acetileno), inspirando os artistas a interpretarem as relações entre a arte e a indústria ou a arte e os transportes ferroviários, de uma forma
diferente. A visão do comboio é nítida enquanto mancha, mas não permite distinguir aspectos que nos ajudariam a interpretar o material
circulante. A locomotiva, essa encontra-se omissa pela escuridão. As carruagens de passageiros, através dos poucos pormenores, parecem
evidenciar portas de acesso de acordo com a diferença de classe de passageiros.
Aliás, o tema dos caminhos-de-ferro, ganha relevo na pintura das escolas contemporânea das nações europeias, chegando a deter um grande
significado na interpretação da natureza e da realidade dos impressionistas, dado o seu carácter transformador da realidade territorial e o seu
significado universal. No caso de Silva Pinto, a cena retratada nesta sua obra de juventude, não representa tanto um antagonismo às mudanças
operadas pela ferrovia naqueles anos de crescimento da rede ferroviária europeia, mas sim – a nosso ver – outra coisa. Sabe-se que ele
frequentava os arredores de Paris e, nas suas andanças, é provável que durante o trabalho artístico de captação da natureza campesina e rural dos
departamentos circundantes de Paris, que se encontravam numa fase de profundas mudanças proporcionadas pelo crescimento industrial, se lhe
tivesse deparado com o contraponto daquela paisagem natural e rural que era motivo de aprendizagem, relevando-se aos seus olhos e sentidos,
como uma segunda natureza, diferente da que procurava imitar a partir das indicações dos seus professores, ela própria reveladora da
transformação em curso nos campos franceses.
O Comboio à noite – embora não represente aspectos ferroviários do Portugal coevo – tem a importância de ser uma das mais antigas
representações das relações entre a arte & a indústria, por via de um grande pintor que deixou um importante legado à arte e à cultura
portuguesas.
Jorge Custódio
Download

mais