Prosa - 1.º
Livre? Isso nunca. -
Este texto pretende ser uma breve reflexão sobre o que seria uma sociedade
verdadeiramente livre, uma sociedade regida pelos direitos humanos, implementados sem condições.
A noite saudava-o carinhosamente do outro lado da vítrea e fria parede contra a qual
apoiava a cabeça. Os candeeiros de rua eram-lhe pouco nítidos. Tremia. “O que aconteceu?”
Abriu completamente os olhos. O cheiro a borracha queimada era tudo o que sentia. A
sua visão era agora mais nítida. Tentou erguer-se. Uma dilacerantemente demoníaca dor na
sua perna esquerda obrigou-o a sentar-se de novo. Tinha agora consciência de que jazia num
banco de autocarro. Olhando em volta, apercebeu-se de que estava só. A janela estava
embaciada pela sua respiração. O rádio crepitava como um fogo moribundo “Assinada a 1949
… É tempo… Não mais! … Pelo bem, pelo Homem, pelos Deuses!”
Fez uma segunda tentativa. Desta vez conseguiu chegar até às escadas. A semi-aberta
porta convidava-o a sair, mas aconselhava-o a ficar dentro. Com esforço transpô-la. A brisa
acariciava-lhe a face e, alternada e lentamente, abria-lhe as abas do casaco com luxúria.
“Onde estou?” Vagarosamente apercebeu-se que a sua memória o havia abandonado
e uma segunda investida na sua consciência revelou-se infrutífera. Uma fina nébula, película
de sonhos cobria todo o seu espírito. Examinou o local.
A parca luz que os postes de iluminação concediam permitia-lhe ver uns poucos
metros de estrada, cercados em ambos os lados por altos prédios de aspecto abandonado,
encimados por antenas parabólicas. É triste ser-se sentinela quando não há nada a guardar.
O vento redobrou os seus avanços. Desta vez, as suas rajadas despiam-no quase
completamente, enquanto ouvia um leve gotejar regular, orgânico quase. Segundos mais tarde
apercebeu-se do ligeiro rasto de rubras pingas que a sua canela havia deixado, desde o
autocarro até à porta onde se encontrava agora. Não se tinha apercebido mas tinha
caminhado até lá, atraído pela luz de presença do hall de entrada daquela imponente
construção. Um majestoso “H” e quatro estrelas desenhavam-se na parede. Entrou.
Além de dois sofás, gastos pelo uso, e de uma rotunda mesa, coberta por papéis
diversos e de uma televisão, cuja programação aparentemente consistia numa ininterrupta
estática, mais nenhum sinal de vida humana existia. Uma análise mais profunda revelou a
existência de vários cartazes cobrindo as de outro modo pornograficamente despidas paredes.
Maior parte deles estavam severamente rasgados, mas com esforço conseguiu perceber
algumas palavras. “Inalienáveis. Dignida… Todo o H..”. A figura de um homem engravatado
estava presente em todos eles, mas, sem excepção, em todos a sua cabeça havia sido
irremediavelmente rasurada ou deformada, até ao ponto da imperceptibilidade. A televisão
havia quebrado o seu irritante silêncio e transmitia agora imagens de um discursante, vestido
de igual modo ao decapitado figurante do cartaz.
“Gerações futuras nos agradecerão! É tempo!”
A sua mão esquerda metodicamente vasculhou os diversos escritos pousados naquela
elipse de madeira de três pernas.
“Caro R.F.
Já trinta e três anos se passaram desde a Proclamação (a palavra estava severamente
sublinhada, tanto que as palavras que se encontravam na linha inferior se viam ligeiramente
decepadas pelas enfáticas linhas). Já não vivemos no nosso mundo. Não, já não reconheço as
caras que vejo nas ruas. O medo substituiu a alma como o traço identificador da humanidade.
Sim, um vitelo cercado de leões exibiria mais coragem do que os homens que passam na rua
entreolhando-se. A confiança morreu R., morreu no dia em que em que a quiseram forçar.
Falaram de liberdade para todos, falaram de igualdade, falaram num paraíso real. E
tivemo-la. Dez anos. Dez anos R., trocámos o nosso destino, o dos nossos filhos, por dez
míseros segundos de eternidade.
Ainda me lembro de como todos os activistas se congratularam quando as prisões
foram remodeladas, quando o nosso secretário anunciou <<Nunca mais será um homem
torturado! Qualquer informação, qualquer confissão, qualquer condenação que a nossa Justiça
precise será obtida pelos devidos meios! Acreditemos no sistema!>>. Dois anos depois
explodiam três salas de conferências!
Fomos nós que informámos as famílias deles… Ainda me lembro, sim, ainda me
lembro… Dissemos: << Fizemos tudo o que podíamos para os proteger, e vamos encontrar os
responsáveis.>> Encontrámo-los pois, e perdemo-los de novo. Quatro meses depois
encontrámos as mesmas impressões digitais naquele restaurante… Vinte mortos.
As escutas foram descartadas, as impressões sofreram moções para serem invalidadas,
e eu perdi a minha licença. Sempre acreditei na nossa máxima <<É preferível manter 100
criminosos livres do que um inocente preso>> Mas não percebo a lógica de <<É preferível
libertar 7 criminosos do que salvar a vida de 20 inocentes>>- Não compreendo.
Mas suponho que já não importe. Já não existem inocentes. Já não existem criminosos.
Agora há sobreviventes. E eu sou um deles…. Sim, sobrevivente, mas não inocente.
Depois foram os motins. No dia em que a força caiu em descrédito a sociedade
acabou. O medo gera medo meu amigo. O medo gera medo.
Parto amanhã para este, fala-se de cidades na Ásia que nunca verdadeiramente
aceitaram a proclamação (agora escrita em minúsculas) e nas quais ainda existe vida civilizada.
Sugiro-te que faças o mesmo. Pousa o teu copo, pousa o teu cinzeiro e foge. Se ainda tens algo
que mereça ser salvo, salva-te.
Sabes, ainda não te…”
Com um clique, a televisão remeteu-se de novo ao seu isolamento autístico. Mas desta
vez a imagem era negra. Tinha sido desligada. Com um rápido movimento rotativo, que o fez
lembrar-se da ferida aberta que ainda o massacrava, deu uma volta de 180º. O homem à sua
frente segurava na mão direita uma bengala, numa posição mais hostil do que de apoio, e na
mão esquerda um controlo remoto. Aparentava ter acima de 60 anos, mas a sua expressão,
morta e fria, indicava pelo menos o dobro.
- Quem és tu? Não te vestes como um dos fanáticos, e um salteador já me haveria
morto nesta altura. – A voz era calma, abatida. A pergunta havia sido feita sem qualquer travo
de malícia, mas o sabor dela era amargo. Não houve resposta.
- Nunca vi ninguém com a tua cor. No meu hotel trabalharam pessoas de todas raças,
de todas as classes. Abençoada a Proclamação, que me obrigou a contratar todos os que se
ofereceram. Não podemos discriminar, claro! Todos são iguais, claro! Não falam a língua, não
tem habilitações? Que importa?! Todos têm o dir… Como pode o mundo funcionar sem
discriminar? Como pode o bom ser igual ao mau? Como pode ser abolida a escolha com a
mesma veemência que o foi a escravatura? - O seu olhar havia adquirido a azulada coloração
de um fogo frio, adivinhavam-se as cinzas por detrás da efémera e derrotada chama.
- Cem anos, cem anos viveu este edifício sem o menor arranhão na sua reputação. E
em seis meses descambou. Começaram como pequenos acidentes. Depois houve os roubos,
depois os confrontos. Depois o incêndio. Agora resta-me uma sala de estar, uma bengala, e tu,
um dos forasteiros…
- Queres comida, suponho. Lamento mas não a vais encontrar. Vinte milhões de
habitantes famintos consomem mais do que produzem. O único sítio em que poderás
encontrá-la é na igreja rósea. Segue a estrada, não será difícil de encontrar. Eu fico. Um
capitão nunca abandona o navio. Mesmo que tenha sido abandonado pelo mar…
Enquanto a pesada porta de madeira se fechava atrás dele ouviu que a televisão
ganhava de novo vida. “Somos livres! Somos livres! Somos livres!”. Um estrondo abafado
indicava que um corpo havia caído ao chão.
A sua noção de tempo encontrava-se labirinticamente dissimulada. As nuvens
acima dele começaram a emitir um silencioso e triste choro. Sentiu o seu cabelo
molhar-se, e o frio percorreu todo o seu corpo.
Enquanto caminhava fitava o chão, mudo companheiro de todas as viagens, e
sentia que não era o único elemento daquela cidade a ser espezinhado. “O que
aconteceu?”
Via agora uma imponente e marmórea elevação. Ricamente ornamentada, a
igreja aparecia-lhe como uma petulante construção, olhando-o de cima,
misteriosamente distante. Uma inspiração funda e um passo em frente.
Imediatamente um forte odor a incenso penetrou as suas narinas. Estremeceu.
A luz era fraca e rosácea. Velas contracenavam invejosamente com lâmpadas
halogéneas. Quando os seus olhos se habituaram à nova luminosidade, conseguiu
discernir uma estátua colocada no meio da nave central. Apresentava notórias
semelhanças com o discursante da televisão.
O cheiro doce contrastava com o ácido saber na sua boca, forçando-o a engolir
em seco. Uma inspecção mais atenta revelou um homem estranhamente trajado,
sentado em frente a um ecrã. Aproximou-se cautelosamente, os seus passos com uma
leveza que o pesado ambiente impunha.
“O meu nome é R.K. e trago-vos uma mensagem de felicidade!
Faz hoje trinta e três anos que proclamámos o que decidimos ser. Decidimos
ser Homens! Regozijai filhos, pois há trinta e três anos que vivemos verdadeiramente!
A nossa cegueira acabou, e a luz do dia é agora clara.
E se houve um tempo em que fomos dominados por tirania, em que a nossa
acção era impura e os nossos valores foram sufocados, hoje eles respiram um largo
hausto do fresco ar da manhã!”
A multidão aplaudia histericamente, enquanto a mítica personagem sorria de
satisfação.
“Somos livres finalmente! Livre de acreditar nos nossos Deuses, livres de educar
os nossos filhos para que eles lhes confiem a vida, como eles confiaram a vida em
nós… Livres…
Não mais haverá uma ateia criança por imposição de uma falsa e tirana ciência
ou de um tirano e falso opressor, todas conhecerão a glória da nossa luz!
E nunca mais será reprimido o nosso grito, a nossa liberdade de expressão,
minha adorada prole!
Longe vai o tempo em que um solitário casal tinha uma solitária criança,
seremos cada vais mais numerosos... Mas claro… Existem aqueles que não
compreendem… Os ignorantes”
Berros e pragas soaram por todo o auditório. A fúria era evidente, e a
manipulação da emoção humana era feita com mestria.
“Eles dizem que somos demais, que o nosso planeta não pode suportar a nossa
população! Falam em escassez de recursos… Pois vos digo, o planeta se verga à nossa
vontade, quando nossa vontade é livre!
Dizem que os motins nas ruas nunca acabarão, dizem que os salteadores nos
derrotarão a nós, os devotos. Mas a devoção permitir-nos-á vencer! Dizem que as
nossas crianças são condicionadas. Mas não compreendem que elas aprendem o
amor! Dizem que a nossa sociedade está a cair, mas não compreendem que se está a
levantar finalmente.
Dizem que protegemos quem não merece protecção. Mas não compreendem
que todo o Homem é vosso irmão.”
- É irónico, suponho… - Levantando-se abruptamente, o solitário telespectador
dirigiu-se ao invasor do seu espaço.
- O quê? – A pergunta não foi feita a medo. Há muito que se tinha desvanecido.
- Quisemos criar uma utopia, mas baseámo-nos no Homem. E esquecemo-nos
da sua corrupção… O Homem não é utópico. É irónico que a primeira sociedade que
criámos que se baseava em princípios e não em fins foi aquela que mais depressa
desabou. Aparentemente, um castelo de cartas é sempre mais estável quando é
invertido.
- O homem não pode ser livre. Podemos libertá-lo da tirania, ele se prenderá
nas mãos da religião. Podemos libertá-lo da religião, ele cairá sob o controlo do
dinheiro. Podemos libertá-lo do dinheiro, ele será animal. Mas não livre… Isso nunca. –
O seu pensamento era límpido, pela primeira vez desde que havia acordado.
- Apercebemo-nos disso tarde demais suponho… Pois bem, preferia ser escravo
consciente do que libertário iludido. O chicote dói mais quando é dissimulado.
- Mas és um sacerdote.
- Já fui muita coisa. Desconhecido, já fui M.K., activista, herói. Já fui um Deus,
quase. Mas não livre, isso nunca… Fui escravo da sociedade, escravo de um ideal,
escravo de uma obsessão. Suponho que fui escravo de mim mesmo no final. Mas não
livre, isso nunca…
Bruno Devesa, n.º 7026, do 12.º QA
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Bruno Devesa, n.º 7026, do 12.º QA, com o conto “Livre? Isso nunca”