Do Livre–Arbítrio em Santo Tomás
Autor: Sávio Laet de Barros Campos.
Licenciado e Bacharel em Filosofia Pela
Universidade Federal de Mato Grosso.
E-mail: [email protected]
O livre-arbítrio apresenta-se como uma das exigências mais
elementares de toda uma parte da filosofia, a saber, daquela que estuda os atos
humanos, a moralidade. Por esta razão a negação do livre–arbítrio deve ser
contada entre as opiniões anti-filosóficas.1 Não haveria razão para conselhos,
exortações, louvores ou punições, se a vontade do homem não fosse livre: “O
homem é dotado de livre-arbítrio, do contrário os conselhos, as exortações, as
recompensas e os castigos seriam vãos.”2
1.1) O Homem Possui Livre-Arbítrio
Algumas coisas, diz santo Tomás, agem sem julgamento. É o caso da
pedra que cai para baixo somente em virtude da sua forma e todas as coisas
destituídas de conhecimento.3 Outras agem com julgamento, mas é um julgar por
instinto, e, por conseguinte, não livre. A ovelha foge do lobo porque julga, por
instinto, que ele lhe é nocivo e assim acontece com todos os animais. O
1
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 477: “A liberdade da vontade é uma das
exigências mais elementares da filosofia, e portanto ela não pode ser negada. (...) Por isso a
negação do livre-arbítrio deve ser contada entre as opiniões a-filosóficas, por destruir os
fundamentos de toda uma parte da filosofia.”
2
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 83, 1, C.
3
Idem. Op. Cit: “(...) certas coisas agem sem julgamento. Por exemplo, a pedra que se move
para baixo, e igualmente todas as coisas que não têm conhecimento.”
julgamento por instinto não é livre porque não procede de uma comparação, que
é uma operação própria da razão:
Outras coisas agem com julgamento, mas não é livre: como nos
animais. Por exemplo, a ovelha, vendo o lobo, julga que é preciso
fugir: é um julgamento natural, mas não livre, pois não julga por
comparação, mas por instinto natural. 4
Já no caso do homem, que é um animal racional, há nele um
julgamento livre porque ele foge de uma coisa ou a procura por meio de uma
comparação da razão e não simplesmente por instinto natural. Esta comparação,
exercida pela razão no homem, é possível porque as ações particulares são
contingentes e, por conseguinte, não determinadas a uma única coisa:
O homem, porém, age com julgamento, porque, por sua potência
cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procurála. Mas como esse julgamento não é o efeito de um instinto
natural aplicado a uma ação particular, mas de uma certa
comparação da razão, por isso, o homem age com julgamento
livre, podendo se orientar para diversos objetos. (...) Como as
ações particulares são contingentes, o julgamento da razão sobre
elas se refere a diversas e não é determinado a uma única.5
Ora, se o julgamento livre acontece por comparação e esta é uma
operação própria da razão, deve-se dizer que o homem possui livre-arbítrio,
precisamente, por ser ele um animal dotado de razão: por sua própria natureza o
homem é livre: “Por conseguinte, é necessário que o homem seja dotado de livrearbítrio, pelo fato mesmo de ser racional”.6
4
Idem. Op. Cit. (O itálico é nosso).
5
Idem. Op. Cit. I, 83, 1, C.
6
Idem. Op. Cit: “Et pro tanto necesse quod homo sit liberi arbitrii, ex hoc, ipso quod rationalis
est.” O homem possui livre-arbítrio pelo próprio fato de ser homem e não rato! O livre-arbítrio é
1.2) Os Dois Modos de Atos Livres
De fato, o homem, embora atraído pelos instintos naturais, não é
determinado por eles. Pode, por exemplo, negar-se a atender aos apelos dos
sentidos e isto, exatamente, por possuir o livre-arbítrio:
O homem, pela alma racional, é capaz de moderar ou dizer ‘não’
ao apetite dos sentidos, e por isso é o único animal que, com
fome, pode deliberadamente não comer; sem fome, empanturrarse de comida: com sono, não dormir; com desejo, sublimá-lo ou
reprimi-lo; etc.7
É pertinente aqui um esclarecimento adicional antes de continuarmos.
Existe, na concepção tomásica, dois tipos de atos livres: aqueles que procedem,
formalmente, do livre-arbítrio e outros que, embora emanem de outras
faculdades, estão, no entanto, sob o domínio da faculdade livre:
De dois modos chamam-se livres os nossos atos: ou porque
emanam de uma faculdade formalmente livre ou porque
procedem imediatamente de outra faculdade, mas sob o império
de uma determinação da vontade.8
Livres, propriamente, são somente os atos da vontade; entretanto,
aquelas faculdades que estão sob o império da vontade, pelo influxo desta,
constitutivo da própria natureza do homem: Luiz Jean Lauand. A Educação no Novo
Catecismo Católico. In: LAUAND, Luiz Jean. Sete Conferências Sobre Tomás de Aquino.
São Paulo: Esdc, 2006. p. 102: “Se agimos como homens é porque nascemos homens e não
ratos. Natureza humana é, assim, o ser que o homem recebe de nascença.”
7
Sidney Silveira. Santo Agostinho e o Mal como Privação dos Bens Naturais. in:
AGOSTINHO, Santo. A Natureza do Bem. trad. Carlos Ancêde Nougué. 2º ed. Rio de Janeiro:
Sétimo Selo, 2006. p. 10
8
Leonel Franca. A Psicologia da Fé. I, III.p. 33.
podem agir livremente.9 Com exceção das funções vegetativas, todos os demais
atos humanos podem estar submetidos à influência da vontade.10 O movimento, a
visão e a estudiosidade, embora estejam reduzidos aos seus princípios mais
imediatos – músculos, olhos e aplicação mental- podem ser determinados pelo
livre-arbítrio. Podemos escolher andar ou parar de andar, abrir ou fechar os
olhos, estudar história ou matemática. Por isso somos responsáveis, inclusive,
por estes atos:
Posso livremente andar ou parar, abrir ou fechar os olhos, estudar
matemática ou história. O movimento, a visão, a aplicação mental
procedem, de princípios imediatos, dos músculos, dos olhos, da
inteligência, mas ao mesmo tempo são atos livres, porque
livremente imperados pela vontade. Por eles podemos e somos
responsáveis.11
1.3) O Livre-Arbítrio não é um Habitus
O livre-arbítrio não pode ser um habitus natural, pois, habitus naturais
dizem respeito àquelas coisas para as quais naturalmente nos inclinamos.
Portanto, por sua própria definição, um habitus natural não diz respeito àquelas
coisas que estejam submetidas ao livre-arbítrio12. De fato, para as coisas que
estão submetidas ao livre-arbítrio, não nos inclinamos naturalmente, mas só após
9
Idem. Op. Cit: “Livres da primeira maneira são somente os atos voluntários; só a vontade é
livre entre as nossas potências. Livres, porém, porque emanados sob a dependência da vontade,
podem sê-lo quase todas as outras faculdades.”
10
Idem. Op. Cit. I, III. p. 33 e 34: “Com exceção das funções da vida orgânica – nutrição,
assimilação, circulação, etc. – diretamente subtraídas à ação da vontade, as outras atividades
humanas, de um ou de outro modo, estão sujeitas à sua influência.”
11
Idem. Op. Cit. I, III. p. 34.
12
Tomás de Aquino. Op. Cit. I, 83, 2, C: “Ora, não temos habitus naturais para as coisas que
estão submetidas ao livre-arbítrio, porque naturalmente nos inclinamos para as coisas a respeito
das quais temos habitus naturais (...)”.
uma comparação e escolha.13 Por exemplo, não podemos escolher não querer ser
felizes, pois possuímos um habitus natural que nos inclina naturalmente para a
felicidade.
Tampouco o livre-arbítrio é um habitus adquirido. Pois, um habitus
adquirido, como indica o próprio nome, precisamos adquiri-lo, ou seja, não o
temos naturalmente. Ora, o homem possui naturalmente o livre-arbítrio: “(...) hoc
enim est naturale homini, quod si liberi arbitrii.”14 Logo, nasce com ele e não o
adquire. Por conseguinte, é óbvio que o livre-arbítrio não pode ser um habitus
adquirido. Como bem acentua o professor Lauand, a própria palavra natureza
deriva de natus e nos remete ao verbo nascer: “Não por acaso natureza deriva de
natus, do verbo nascer (nascor).” 15 Donde, ser contrário à própria razão do livrearbítrio, como indica a incisiva sentença de Frei Tomás, ser um habitus
adquirido: “Contra naturalitatem autem eius est, quod sit habitus”16.
Além disso, o habitus, diversamente da potência que diz respeito só ao
agir, torna o homem apto para agir bem ou mal: “(...) per habitum autem ut aptus
ad operandum bene vel male.”17 Ora, o livre-arbítrio é indiferente quanto à
eleição do bem ou do mal: “Liberum autem arbitrium indifferenter se habet ad
bene eligendum vel male”18. Logo, é impossível que o livre-arbítrio seja um
habitus: “Unde impossibile est quod liberum arbitrium si habitus.”19 De forma
que: o livre-arbítrio não é, de nenhum modo, um habitus: “Et sic reliquintur quod
13
As ações submetidas ao livre-arbítrio são particulares e contingentes.
14
Idem. Op. Cit: “(...) é natural ao homem ser dotado de livre-arbítrio.”
15
Luiz Jean Lauand. Op. Cit. In: LAUAND, Luiz Jean. Op. Cit. São Paulo: Esdc, 2006. p. 102.
16
Tomás de Aquino. Op. Cit: “É, portanto, contrário à razão do livre-arbítrio ser um habitus
natural.”
17
Idem. Op. Cit. I, 83, 2, ad 2: “(...) Pela potência o homem se acha capaz de agir; pelo habitus,
apto para agir bem ou mal.” (O itálico é nosso).
18
Idem. Op. Cit. I, 83, 2, C: “Ora, o livre-arbítrio é indiferente a escolher bem ou mal.”
19
Idem. Op. Cit: “Não pode (O livre-arbítrio), portanto, ser um habitus.” (O itálico e o parêntese
são nossos).
nullo si habitus.”20 E, como o princípios de todos os nossos atos, é um habitus
ou uma
potência21, deve-se dizer que o livre-arbítrio é uma potência:
“Relinquitur ego quod sit potentia.”22
1.4) O Livre-Arbítrio é uma Potência Apetitiva
A escolha, acentua Santo Tomás, é o ato próprio do livre-arbítrio.23
Escolher, por sua vez, é o mesmo que ser livre e ser livre consiste em poder
aceitar uma coisa enquanto se recusa outra: “Somos livres, enquanto podemos
aceitar uma coisa, rejeitada outra: o que é escolher.”24 Ora, para que a escolha
aconteça ocorre uma participação, tanto da parte cognoscitiva quanto da parte
apetitiva. À cognoscitiva cabe o conselho pelo que ela julga qual deve ser o
objeto escolhido; da potência apetitiva requer-se a aceitação do conselho dado
pela cognoscitiva:
Da parte da cognoscitiva requer-se o conselho pelo qual se julga
o que deve ser preferido; da parte da apetitiva requer-se que, ao
desejar, aceite o que o conselho julga.25
A escolha, que é aquilo em que consiste o livre-arbítrio, tem como
objeto próprio o que é para o fim.26 Ora, o meio que conduz ao fim, exatamente
por ser útil para alcançar o fim, tem razão de bem.27 E o bem, enquanto tal, é
20
Idem. Op. Cit: “E assim resulta que (O livre-arbítrio) não é de modo alguma um habitus.” (O
parêntese é nosso).
21
Idem. Op. Cit: “Ora, o princípio de nossos atos é a potência e o habitus.”
22
Idem. Op. Cit: “Resta que seja (O livre-arbítrio) uma potência.” (O parêntese é nosso).
23
Idem. Op. Cit. I, 83, 3, C: “A escolha é o ato próprio do livre-arbítrio.”
Idem. Op. Cit.
24
25
Idem. Op. Cit.
26
Idem. Op. Cit: “A razão disso é que a escolha tem por objeto próprio o que conduz ao fim.”
27
Idem. Op. Cit: “Ora, o meio, enquanto tal, tem a razão do bem que se chama útil.”
objeto próprio do apetite. Logo, a escolha, e, por conseguinte, o livre-arbítrio é
um ato da potência apetitiva:
Por conseguinte, sendo o bem, enquanto tal, objeto do apetite,
segue-se que a escolha é sobretudo um ato da potência apetitiva
(sequitur quod electio sit principaliter actus appetitivae virtutis).
Assim o livre-arbítrio é uma potência apetitiva (Et sic liberum
arbitrium est appetitiva potentia).28
1.5) O Livre-Arbítrio não é uma Potência Distinta da Vontade
O livre–arbítrio não é uma potência distinta da vontade. Para
entendermos isso precisamos relacionar a potência cognoscitiva com a potência
apetitiva. Conhecer implica tão-somente na simples aceitação de uma coisa:
“Nam intelligere importat simplicem acceptionem aliicuius rei (...)”29. De outra
parte, raciocinar significa passar de um conhecimento para o outro, “Ratiocinari
autem proprie et devenire ex uno in cognitionem alterus”30, como das premissas
para a conclusão. Da mesma forma, querer implica o desejo de uma coisa: velle
importat simplicem appetitum alicuius rei (...). Daí que o querer se refira,
propriamente falando, ao fim, que é querido por ele mesmo.31 Já escolher é
querer uma coisa em razão de outra: Eligere autem est appetere aliquid propter
alterum consequendum (...).
Por isso escolher diz respeito, não ao fim, mas aos
meios que conduzem a este fim: “Escolher, porém, é desejar alguma coisa por
causa de outra que se quer conseguir; por isso se refere propriamente aos meios
ordenados ao fim.”32
28
Idem. Op. Cit
29
Idem. Op. Cit. I, 83, 4, C: “Com efeito, conhecer implica a aceitação simples de alguma
coisa.”
30
Idem. Op. Cit: “Raciocinar é propriamente passar de um ao conhecimento do outro (...)”.
31
Idem. Op. Cit: “(...) querer implica um simples desejo de alguma coisa; de onde se diz que a
vontade tem como objeto o fim, que é desejado por si mesmo.”
32
Idem. Op. Cit.
Ora, assim como não podemos chegar à conclusão sem as premissas,
também não podemos chegar aos meios adequados para o fim, sem antes haver
um fim. De modo que, da mesma forma que a razão tem por referência o
intelecto, o escolher tem por medida o querer:
Assim, o que é, na ordem do conhecimento, o princípio em
relação à conclusão, a que assentimos por causa dos princípios;
isso mesmo é, na ordem do apetite, o fim em relação às coisas
que são para o fim, as quais são desejadas em razão do fim. Por
isso é claro que assim como o intelecto se refere à razão, assim
também se refere a vontade à potência de escolha, isto é, ao livrearbítrio.33
Conclui santo Tomás: da mesma forma que conhecer e raciocinar não
são senão uma única potência cognoscitiva, assim também querer e escolher não
são senão uma potência apetitiva:
Foi demonstrado acima que é próprio da mesma potência
conhecer e raciocinar, como é próprio da mesma potência
repousar e mover-se. Também querer e escolher é próprio de uma
só e mesma potência.34
Logo, vontade e livre-arbítrio não são duas potências, mas apenas
uma: “Et propter hoc voluntas et liberum arbitrium no sunt duae potentiae, sed
uma.”35
33
Idem. Op. Cit.
34
Idem. Op. Cit.
35
Idem. Op. Cit: “Por isso, a vontade e o livre-arbítrio não são duas potências, mas apenas
uma.”
BIBLIOGRAFIA
FRANCA, Pe. Leonel. A Psicologia da Fé. 7º ed. Rio de Janeiro: Agir Editora,
1958.
LAUAND, Luiz Jean. A Educação no Novo Catecismo Católico. In:
LAUAND, Luiz Jean. Sete Conferências Sobre Tomás de Aquino. São Paulo:
Esdc, 2006
SILVEIRA, Sidney. Santo Agostinho e o Mal como Privação dos Bens
Naturais. in: AGOSTINHO, Santo. A Natureza do Bem. trad. Carlos Ancêde
Nougué. 2º ed. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2006.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. Aimom - Marie Roguet et al.
São Paulo: Loyola, 2001. v.II..
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