Revista da Abordagem Gestáltica:
Phenomenological Studies
ISSN: 1809-6867
[email protected]
Instituto de Treinamento e Pesquisa em
Gestalt Terapia de Goiânia
Brasil
FERNANDES, MARCOS AURÉLIO
LIBERDADE COMO DINÂMICA GESTÁLTICA DA EXISTÊNCIA HUMANA
Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, vol. XII, núm. 2, diciembre, 2006, pp. 67
-67
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia
Goiânia, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=357735505005
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Liberdade Como Dinâmica Gestáltica da Existência Humana
LIBERDADE COMO DINÂMICA GESTÁLTICA
DA EXISTÊNCIA HUMANA
MARCOS AURÉLIO FERNANDES
Resumo: O artigo procura abordar o tema da liberdade. Levanta as concepções usuais a respeito do que
seja a liberdade. Mostrando seu caráter derivado e insuficiente, conduz para uma concepção não negativa
de liberdade. A liberdade, então, aparece como a dinâmica gestáltica, isto é, estruturadora e configuradora,
da própria existência humana. Neste sentido, evidencia-se que não é a liberdade a ser uma propriedade do
humano, mas sim o humano a ser uma propriedade da liberdade.
Palavras-chave: Liberdade, Autonomia, Existência.
Artigo
“A verdade não é para escravos.
O escravo já renunciou à liberdade da verdade, ao escolher o poder,
a riqueza ou a fama para amo e senhor.
A verdade é daqueles que nunca cessam de libertar-se
da escravidão para a liberdade de uma verdade redentora”
Kostis Palamás (1859-1943).1
Usualmente, quando falamos de liberdade, sem pensar, entendemos algo assim
como uma arbitrariedade: ser livre seria fazer tudo o que se quer, quando e como se
quer. Neste sentido, a liberdade nada teria a ver com limites e com responsabilidade.
Esta concepção de liberdade, veiculada impensadamente na sociedade de consumo, é
mais uma ideologia, que mascara a real situação do ser humano e sua mais profunda
relação com a liberdade. Enquanto tal mascaramento, esta concepção de liberdade não
nos torna real e verdadeiramente livres, antes, nos aprisiona numa liberdade apenas
aparente, ilusória, falsa. O que se conhece, então, da liberdade, é apenas uma sua
sombra, um seu simulacro, uma sua irreal imitação. Esta liberdade está para a real
liberdade, como as flores de plástico estão para as flores verdadeiras, que se dão nos
jardins, pelos campos e matas.
Outro modo, muito corrente, de se entender a liberdade, concebe-a como o
exercício da liberdade de escolha ou como o livre-arbítrio: o poder escolher entre
coisas diferentes, colocando-se, de um modo in-diferente, isto é, igual, diante destas
possibilidades, pesando-as e escolhendo uma dentre elas. Este entendimento da liberdade, os antigos chamavam de liberdade da indiferença. Trata-se de um entendimento
abstrato e, por assim dizer, geométrico, matemático, da liberdade. Aqui, o que se chama
de possibilidade, soa de maneira lógica, abstrata, e não existencial, concreta. Aqui, o
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Citado por Leão, 2000, p. 20.
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ser humano concreto, encarnado, situado, condicionado, finito, desaparece de foco.
Aqui, já não se percebe a dinâmica de concreção do movimento de libertação para a
liberdade, que constitui o desafio de toda a existência humana. Assim, afirma-se ou
então nega-se – o que dá no mesmo – que o ser humano é livre, mas se compreende
o ser de uma maneira defasada e inadequada, pois supõe-se o ser humano como uma
coisa, a liberdade como uma mera propriedade desta coisa e a relação entre esta coisa
e sua propriedade como um fato neutro e impessoal, destituído de existencialidade,
como se o ser-humano e o seu ser-livre se dessem a modo de uma mera ocorrência.
A fim de reconduzir a nossa compreensão de liberdade de uma tal representação padronizada e vazia à uma intuição formal, isto é, essencial-concreta, é preciso
auscultar o sentido do ser que pulsa como existência humana em sua dinâmica de
auto-geração e auto-constituição, de con-creção e consumação. Não se trata de negar
o livre-arbítrio da vontade humana, mas de pensar o que, em sua representação usual,
permanece impensado. Mesmo quando se afirma o livre-arbítrio da vontade, pode-se
dizer que o livre-arbítrio não coincide com a liberdade. É, antes, sempre de novo,
em assumindo o que podemos escolher como também o que não podemos escolher,
chance para nos tornarmos verdadeiramente livres. O que é essencial, necessário e
decisivo, porém, não podemos escolher. O próprio ser-livre, por exemplo, é uma necessidade, que não podemos escolher. Neste sentido, de fato, estamos condenados a
respondermos e correspondermos à necessidade de nos tornarmos livres, ainda que
nossa resposta seja a da fuga da própria liberdade, ou seja, da não assunção de suas
provocações, desafios e exigências.
Estamos já sempre submetidos à exigência de realizarmos a liberdade. Na
verdade, a liberdade:
Assim como há a abstração de uma liberdade sem libertação, há também, por
outro lado, a ilusão de uma libertação sem liberdade. Trata-se de uma concepção que
entende a liberdade apenas de modo negativo. Costuma-se entender, assim, a liberdade,
como liberdade-de-alguma-coisa: independência, no sentido de quebrar correntes,
desatar peias, desfazer nós, romper esquemas, dissolver padrões, ignorar exigências,
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Artigo
...não é uma propriedade do homem, assim como uma caminhada não é um dado ou
um fato do caminho. O homem é que chega a realizar-se como homem, enquanto e
na medida em que é apropriado pela liberdade... A hominização do homem se funda
e se exerce na significação da liberdade pela verdade. Ademais, a liberdade não é
coisa, nem uma qualidade, nem uma propriedade que o homem possa ter ou deixar
de ter. Liberdade não é nariz, muito embora, e precisamente por isso, no perfume da
libertação o homem sinta a liberdade da verdade. A liberdade só se dá como conquista,
a liberdade só existe como empenho de libertação, a liberdade só se presenteia no e
como desprendimento da verdade. Somente na medida em que nos lançarmos neste
pulo, no pulo do desprendimento, é que existimos como filhos da verdade (Leão,
2000, p. 38-39).
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desacatar imposições. A liberdade negativa, que caracteriza a libertação, que, por
sua vez, se realiza como independência, se é condição necessária para a liberdade,
não é, contudo, uma sua condição suficiente. É que não se pode, na concretude da
existência, viver sem vínculos, compromissos, vale dizer, sem responsabilização. A
libertação para a liberdade real e concreta é, com efeito, muito mais que mera abolição
de todos os vínculos:
Artigo
Por isso o grande desafio é deixar-se atravessar pelo movimento da liberdade. Liberdade
não inclui negar dependência. É a ilusão de uma libertação sem liberdade. Liberdade
significa não se deixar destruir pela dependência. Não pertence às possibilidades humanas construir realizações sem relação, sem amarras, sem suposições. A liberdade
concreta é tanto negativa, independência, como positiva, autonomia, como nem negativa
nem positiva, mas criativa até nas dependências e heteronomia...2.
A liberdade é, pois, mais propriamente, uma liberdade positiva: uma liberdade-para-alguma coisa, ou seja, uma liberdade de adesão a isto ou aquilo. Por e para
dizer sim a isto ou aquilo é que ela também diz não a isto ou aquilo outro. O não só
tem sentido pelo sim, o negativo pelo positivo. O ser-livre-de só tem sentido quando
assumido na dinâmica de um ser-livre-para. Aqui, porém, a positividade é, no fundo,
negação da negação. Ser-livre-para-isto implica uma limitação e uma nova forma de
vinculação. Esta nova forma, que se caracteriza como auto-determinação e auto-vinculação nós chamamos de autonomia.
Autonomia é muito mais do que auto-suficiência. É o movimento de libertação
em que a liberdade é conquistada como a dinâmica da auto-geração e auto-constituição do humano. A tarefa da autonomia anuncia que o humano precisa, sempre de
novo, erguer-se a si mesmo e constituir-se como ele mesmo. Nada de humano é pura
e simplesmente, como um fato, um dado, uma ocorrência neutra e impessoal. Tudo
no humano é ao modo do ter que ser. Autonomia diz que, em todos os seus empenhos,
o humano precisa se pôr a si mesmo, se colocar de pé a partir de si.
O humano tem a possibilidade de agir e, agindo, dar início a algo de radicalmente novo no mundo. Na ação, o humano realiza o incondicionado em meio ao
condicionado. Em todo a nossa ação, estamos nos comportando conosco mesmos,
com o nosso ser livre, mais precisamente, com o nosso poder-ser-livre. A ação fundamental e primordial é aquela através da qual nós nos configuramos a nós mesmos, nos
damos um perfil, nos singularizamos, nos individuamos. Esta ação, porém, é sempre
algo assim como uma libertação de si para a própria liberdade, através do crescer na
verdade de si mesmo. Em toda ação, o eu (o si-mesmo) atua o seu poder-ser. Nesta
atuação, o eu se relaciona consigo mesmo, se põe, se posiciona, se porta, se comporta. Toda ação é, de certa maneira, reflexiva: ação que brota do eu como de sua fonte,
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E. Carneiro Leão, 2000, contracapa.
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repercute nele mesmo, ou seja, nele ressoa, nele redunda. Este comportar de si para
si mesmo, presente em toda a ação, é um índice da responsabilidade de toda a ação,
quer ela se volte, explicitamente somente para si, quer se volte também para o outro
ou os outros. A autonomia fala, pois, desta reditio in se ipsum (Tomás de Aquino),
desta repercussão em si mesmo, deste retorno de si para si, próprio de um ser que
tido pelo e no vigor da liberdade. Um ser que não é tido pelo e nem mantido no vigor
da liberdade não apresenta esta reditio, quer dizer, ele não age. A ação é própria de
um ser, que é espiritual, ou seja, de um ser que existe na dinâmica da liberdade. Um
animal, neste sentido, não age, pois ele, propriamente falando, não se comporta de si
para si. Os procedimentos do animal não são, propriamente, comportamentos. Pois
no comportamento está a atuação de um eu que já sempre se relaciona com o seu simesmo, assumindo a responsabilidade de ser que lhe está entregue. Um animal pode
proceder de diversas maneiras, fazer ou não fazer isto ou aquilo, e isto de uma maneira
relativamente espontânea, guiado pelo seu instinto, até mesmo escolhendo entre possibilidades distintas. Nem por isto, porém, o animal é livre. O seu ser é absolutamente
imerso no ciclo da natureza, aprisionado nas determinações de sua espécie e de seu
ambiente. Por isto, o “eu” do animal permanece sempre ainda como que adormecido
na inconsciência de sua animalidade. O seu “eu” não é propriamente um eu, ou seja,
um si que está posto em relação de ser e compreender junto de si mesmo, ou seja, um
si, que se relaciona con-sigo mesmo, que se comporta, que é transparente de si para
si mesmo, que se assume na responsabilidade de tornar-se o que é, de se configurar
dando à universalidade de sua essência um perfil singular.
A liberdade de ser, ou seja, a responsabilidade de existir perfaz todo o nosso
comportamento, toda a nossa ação. É no aberto da liberdade que nós existimos. É
dentro deste aberto que nós insistimos, a cada nova ação que atuamos. É no poder da
liberdade que nós atuamos toda a nossa potencialidade e a liberdade perpassa todas
as dimensões do nosso ser. A liberdade é o que há de mais radical, mais profundo,
mais íntimo, e, ao mesmo tempo, mais amplo, mais abrangente, mais total em nós
mesmos. É o que reúne tudo o que somos e não somos. É o que nos torna um. Por isso,
dizemos que a liberdade reside no coração do homem. E é do coração do homem que
brota todo o seu comportamento, que se atua toda a sua ação. A palavra coração, aqui,
porém, não deve ser entendida no sentido sentimental-romântico. Coração, antes, está
a indicar, aqui, o si-mesmo de alguém (de um ser que denominamos de pessoa), isto é,
ao mesmo tempo, seu centro, seu âmago, e sua totalidade, sua unidade. A liberdade,
que emerge do coração, orienta, pois, toda a existência do ser humano em todos os
seus empenhos e desempenhos. A liberdade é, pois, o a priori e o horizonte de toda
a nossa ação e auto-realização.
Agimos sempre a partir do vigor da liberdade. Não é a ação que produz a liberdade, mas é a liberdade o vigor que institui e consuma a ação e todo o engajamento
humano no sentido da autonomia. Por isso, a autonomia fala do fato de o humano
estar submetido ao ter que ser o que ele é. Neste sentido, a autonomia precisa se
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transformar em ausculta, audiência, abertura, disponibilidade para a con-vocação
que nos advém da liberdade. Portanto, o erguer-se da liberdade não é simplesmente
uma auto-afirmação prometéica do eu, mas sim um dobrar-se e curvar-se obediente
a dinâmica da finitude da existência:
Conta uma legenda japonesa que o famoso guerreiro do antigo Japão, Kussunoki Massashige, celebérrimo pela sua inteligência e pelos seus lances geniais de estratégia, já na
sua infância, vivia no meio dos guerreiros. Uma vez, no castelo do seu pai, observava
os vassalos do seu pai, que, reunidos ao redor de um enorme sino de bronze, suspenso
por uma armação de grossas madeiras, estavam apostando quem deles conseguia pôr em
movimento o sino que pesava toneladas. Mas nenhum deles, mesmo os mais hercúleos,
conseguia mover o sino, nem sequer um milímetro, por mais ímpeto e violência que
empregasse. O menino assistia a tudo isso com muito interesse. E de repente se ofereceu para mover o sino. E lhes perguntou se podia usar todo o tempo que necessitasse
para um tal empreendimento. Meio zombeteiros, meio admirados, e achando graça,
os guerreiros desafiaram-no a realizar o seu propósito. O menino, então, cola todo o
seu corpo ao sino, e sem pressa, sem ânsia, suavemente, mas com toda a possibilidade
do seu pequenino corpo, empurra até onde pode e solta, empurra e solta, como que
sondando o tempo do sino, cordialmente, sempre de novo e sempre de maneira nova,
como que recebendo e dando parte do sino e parte de si, num intercâmbio simbiótico
amigo, por horas a fio. E, aos poucos, de início imperceptivelmente, mas aos poucos
visivelmente, o enorme sino começou a balançar...3.
Nós já sempre fomos con-clamados a nos libertarmos para a liberdade, vale
dizer, a nos dispormos a um relacionamento livre com o ser que somos e com o ser
que não somos, sim, em última instância, com o ser no seu todo, com o todo no seu
ser, com o ser ele mesmo:
Artigo
Ora, livre é o relacionamento que abre nosso modo de ser para a vigência e expõe nossa
existência ao vigor da verdade. É na correspondência a esta abertura, é dispondo-nos
a esta exposição que haveremos de experimentar os limites em que se dá e viceja a
essência da liberdade na história de nossas libertações (Leão, 2000, p. 39).
A liberdade tem, pois, antes de tudo, um teor ontológico: ela diz respeito ao
nosso ser e existir, constitui a nossa humanidade como tal, estrutura o nosso viver, está
na gênese de tudo aquilo que é, de alguma maneira, humano. Isto porque o humano
só é uma realidade, por ser uma possibilidade, quer dizer, só é, em certa medida, um
“que”, por ser um “como”.
Ser-humano é, antes de tudo, uma possibilidade por ser agarrada e assumida.
Agarramos, porém, uma possibilidade quando nos formamos e configuramos a partir
da necessidade que nela está previamente delineada e esboçada. Assumimos uma
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Hermógenes Harada, comunicação pessoal.
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possibilidade quando obedecemos cordialmente às suas exigências e implicâncias.
Assumimos uma possibilidade quando nos permitimos sua necessidade, quando a
ela nos afeiçoamos e, seguindo a sua tendência, vamos gostando do seu deslanche,
vamos fluindo em sua regência. Nós podemos, de fato, uma possibilidade, a dominamos
quando, na verdade, como em um acordo, passamos a ser tidos por ela, deixamo-nos
embalar no seu lance cordialmente, com ternura e rigor.
Nós não escolhemos ser humanos. Já fomos, desde o princípio, escolhidos e
colhidos por esta possibilidade. Pela dinâmica da liberdade, o fato de termos nascido não é nunca algo superado: é sempre o fato primordial, ao qual sempre de novo
precisamos conferir sentido, até o momento em que morrermos ou, quiçá, sobretudo
quando formos mais prementemente colocados em face da morte. Por esta mesma
dinâmica da liberdade, na qual existimos, o fato de termos que morrer não é nunca
algo neutro, uma vez que o ter que morrer é para nós uma incumbência: aquela de
ter que se confrontar com o limite da própria vida, com sua possibilidade mais extrema, a possibilidade de sua impossibilidade. Se estes dois “fatos” extremos da vida
nada têm da neutralidade factual das coisas, do mesmo modo, nenhum outro fato da
nossa existência, que é, justamente, uma existência mortal, será indiferente, neutro,
impessoal. Tudo quanto, de alguma maneira, nos é dado, nos é dado como tarefa de
realização de nossa liberdade. A liberdade não é, pois, um fato, nem algo de factual,
mas é o horizonte a priori de todos os fatos e feitos da existência, é facticidade. Tratase, portanto, de um fato cujo modo de ser a lança a existência inteira como tarefa de
um puro por-fazer e per-fazer.
Tendo nascido humanos, já sempre fomos solicitados a receber este ser que
somos, ou melhor, que somos chamados a ser. Receber, porém, é já sempre dar, a
saber, dar-se a própria disposição e abertura de receber. Já fomos, pois, submetidos à
necessidade de assumir o que, neste modo de ser, está, de certa forma, previamente
delineado. O que está prescrito é que o humano deve conquistar, continuamente, sua
própria humanidade, tem que hominizar-se, ou seja, libertar-se, sempre de novo, para
a sua mais própria humanidade. Nós já fomos sempre atingidos por nossa humanidade
e, assim, nos afeiçoamos a ela. O ser que somos nos im-porta, nos toca, nos diz respeito.
O nosso ser nos está entregue, isto é, está entregue à nossa responsabilidade. Por tudo
isso, o humano só é humano, como empenho de ser, de se conquistar, ou melhor, de
se deixar conquistar, a partir do abismo de sua própria humanidade.
A essência do ser-homem, isto é, o vigor no qual o homem vige e vigora como
homem, é, justamente, o fato de já sempre ter sido lançado para além e para fora de
si mesmo, é sua ek-sistência. Ser-homem é ek-sistir, é estar posto-fora-de-si, como
abertura e clareira do ser. Estamos já sempre lançados no aberto desta possibilidade,
que, para nós, é inexorável necessidade. Este empenho, porém, de e para ek-sistir tem
que, sempre de novo, tomar corpo, tem que se configurar, assumir um perfil, ganhar
uma fisionomia singular. Por isto, o humano está sempre tendo que se essencializar,
hominizar, singularizar. Ele tem que se tornar um ser humano. A unidade, a unicidade,
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a individualidade e a singularidade lhe são dadas, mas dadas somente como tarefas,
vale dizer, como pro-jeto.
Nós somos livres por existirmos sempre a partir de um porvir. Nós somos
livres por sermos sempre um projeto por se realizar. Este projeto, que sou, leva-me,
a cada vez, a reassumir o meu passado e a re-situar-me no meu presente. Por sermos
pro-jeto, isto é, por estarmos sempre orientados por um porvir (pela evocação de nos
tornarmos nós mesmos, de chegarmos a ser nós mesmos plenamente), o nosso passado
não é nunca um passado pretérito e irreversível. É verdade que há um certo limite
no nosso passado: o que aconteceu não pode não ter acontecido (nem um deus, diria
Aristóteles, poderia fazer isto). O que aconteceu não ficou num passado pretérito,
mas compõe a força de um passado sempre presente. Eu posso e devo, a cada novo
presente, a partir do projeto de porvir que eu mesmo sou, reassumir o meu passado,
re-significá-lo, liberar-lhe o vigor humanizante. Mesmo as culpas podem se tornar
culpas felizes, quando as assumimos diante da possibilidade de um recomeço. Mesmo
os males. Mesmo os acasos e fatalidades. Fazendo isso, vou dando uma fisionomia
singular ao humano em mim mesmo e como mim mesmo.
Trata-se, em última instância, aqui, da tarefa de se finitizar, isto é, de in-sistir
na própria finitude. A ek-sistência é, pois, in-sistência em e para ser finito, isto é, o
empenho por e para alcançar o próprio fim. “Fim”, aqui, não quer dizer, deixar-deser, mas sim ser-na-plenitude do mais próprio de si mesmo, tinir no melhor de si,
no melhor da própria identidade. É ser na mais própria con-creção de si mesmo. O
sentido, pois, do êxtase (ek-stasis) é ênstase (en-stasis). O sentido da infinitude da
ek-sistência, o seu contínuo trans-cender, o seu infindo ultra-passar-se, sua expansão
é a con-centração, a centro-versão, a re-união, o re-colhimento na finitude da própria
singularização. Daí, a advertência, que a vida sempre nos faz: noli foras ire, in te ipsum
redi, in interiore hominis habitat veritas – não vás para fora, entra em ti mesmo, no
homem interior habita a verdade (que te torna livre). A liberdade, de fato, acontece
propriamente ali onde a in-finitude não é assumida como negação da finitude, mas
como a dinâmica de in-sistência na finitude. A infinitude verdadeira, pois, consiste
em in-sistir no finito (in-finito: dentro do finito), em ser a plenitude do que se é, não
apesar do finito, mas por causa e por amor dele. Ek-sistir é in-sistir na finitude da
vida. É abrir caminhos de liberdade. É – como nos recordaria a poesia de Guimarães
Rosa – trilhar as “veredas” estreitas da realização da identidade humana no grande,
imenso, “sertão” do ser:
Artigo
... Vento que vem de toda parte. Dando no meu corpo, aquele ar me falou em gritos de
liberdade. Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no
dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do
encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. Sou um homem
ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível? Lengalenga. Fomos.
Fomos... (Rosa, 1985, p. 286).
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O sopro da liberdade é a experiência da vida do espírito, é a experiência da
existência4. Enquanto clareira5 do ser, o humano é o espaço luminoso e leve de irrupção
da liberdade no seio, melhor, no bojo, sim, nas entranhas da realidade. Este espaço,
esta abertura, porém, só é em se abrindo. O abrir-se deste espaço-de-jogo-da-liberdade se dá, no entanto, no embate com o real: “dentro do ferro de grandes prisões”. A
abertura na qual o humano irrompe e surge como humano, note-se, não é o fazer-se
de uma estrada larga e pavimentada, mas é, antes, a “alegria” do encontro “de um
pobre caminhozinho”, o intrépido e humilde abrir caminho de uma “vereda”, que vai
serpenteando no entremeio dos apertos e necessidades da vida. Trata-se de um caminho que precisa, sempre de novo, como se fosse a primeira vez, ir sendo traçado, sim,
rasgado, em meio ao embate com os apertos e estreitezas do mundo. Ser-humano é ter
que aprender o que ninguém ensina, o “encoberto”: “o beco para a liberdade se fazer”.
É encontrar-se em aporia, e, em meio a ela, nela se embatendo, esperar o inesperado: a
jovial gratuidade e a graciosa jovialidade, “a alegria do pobre caminhozinho”. E, assim,
em meio à “cousa terrível”, que é a vida, ir, ir... Atravessar... fazer a travessia:
“Existe é o homem humano. Travessia”6.
Muitos são os modos de o humano pôr-se de pé, em meio ao real, ou seja, de
ser posto no fora e no além de si (de ek-sistir). Muitas são as maneiras de o humano
inventar (in-venire: vir de encontro a, vir ao encontro de) caminhos de realização de
sua própria identidade, caminhos de sua mais própria essencialização, de hominização,
de singularização: o crer e o saber, o pensar e o fazer, o trabalhar e o festejar, o lutar
e o dominar, o amor e a morte, entre outros. Nisto tudo o humano precisa, sempre de
novo, se inventar. Esta carência, sim, a premência, a necessidade de ter o humano que
se auto-inventar nós chamamos, aqui, de liberdade, de “espírito”:
O espírito, porém, não é concebido como uma propriedade do homem, mas sim como
o evento dramático da auto-invenção da humanidade por sobre rompimentos radicais,
carregados de necessidades, como o evento concreto do diálogo e do confronto no qual
o homem com seu mundo sempre de novo e repetidamente se deixa pôr em questão
(Rombach, 1977, p. 7).
4
A palavra “espírito”, aqui, não significa uma “parte” da coisa-homem, mas sim um modo de ser, que
perpassa todas as dimensões de tudo quanto é humano no homem.
5
Em alemão, a palavra Lichtung diz não somente e nem primordialmente o espaço de irrupção da luz (Licht),
mas também e antes de tudo o abrir-se do espaço-de-jogo da liberdade, em sua leveza (das Leicht).
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J. Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, p. 568.
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Vê-se, pois, que o “espírito”, a “liberdade”, não é algo que o homem tem como
sua propriedade, mas, ao contrário: não é o homem a ter a liberdade, sim a liberdade
a ter o homem. E ela o tem, à medida que o lança na necessidade de ter que se autoinventar, que se auto-de-finir, nas vicissitudes e peripécias de suas veredas e caminhos
historiais de hominização. O ser-homem se ergue e se configura como tal, no espaço
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de jogo da liberdade, graças ao embate, ao confronto, com a terra e o céu, com o seu
mundo, com a sua mortalidade, com os acenos do divino.
No fim das contas, pois, o humano, enquanto filho da liberdade, permanece
sendo um singular paradoxo: um connexus absolutus, ou seja, uma tessitura, um
imbricamento, uma rede de relações e relacionamentos que, no entanto, só se estruturam como exposição, soltura, abertura da liberdade. Trata-se, portanto, de um ser
solto (-soluto) na abertura (ab-) de sua própria liberdade e, ao mesmo tempo, de ser
encarnado na finitude da existência: ek-sistência e in-sistência., portanto, um infinito
finito e um finito infinito. O enigma do humano está, pois, fundado no mistério da
liberdade: “Todas as vezes que se investiga o homem, transcende-se o próprio homem
e se atinge o que é mais poderoso e vital do que ele mesmo, a saber, o processo de sua
libertação na verdade...” (Leão, 2000, p.39).
Referências Bibliográficas
Agostinho de Hipona (1990). A cidade de Deus, Introdução de E. Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes.
Leão, E.C. (2000). Aprendendo a Pensar (Volume II). Petrópolis: Vozes.
Rosa, J.G. (1985). Grande Sertão: Veredas (18. ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Rombach, H. (1977). Leben des Geistes. Freiburg I.B.: Herder.
Abstract: The article approaches the subject of the freedom. It raises the usual conceptions regarding what
it is the freedom. Showing its derived and insufficient character, it leads for a non negative conception of
freedom. The freedom, then, appears as dynamics gestalt, that structure and configures the existence of
human being. In this direction, it is proven that it is not the freedom to be a property of the human being,
but the human being to be a property of the freedom.
Key words: Freedom, Autonomy, Existence.
Resumen: El artículo intenta abordar el tema de la libertad. Levanta las concepciones usuales a respecto
de lo que sea la libertad. Evidenciando su carater derivado y insuficiente, lleva a una concepción non
negativa de libertad. La libertad, entonces, aparece como la dinámica gestáltica, es decir, estruturadora y
configuradora, de la própria existencia humana. En este sentido, se evidencia que no es la libertad a ser
una propriedad de lo humano, mas si el humano a ser una propriedad de la libertad.
Palavras llave: Libertad, Autonomia, Existência.
Artigo
Marcos Aurélio Fernandes - Doutor em Filosofia, Professor e Diretor do Instituto de Filosofia e Teologia de
Goiás (IFITEG). E-mail: [email protected]
Recebido em 18.09.2006
Aceito em 06.11.2006
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Revista da Abordagem Gestáltica – XII(2): 67-75, jul-dez, 2006
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