FAZENDO HISTÓRIA: A MILITÂNCIA COMO TRAÇO IDENTITÁRIO DOS
ESTUDANTES DE HISTÓRIA (FEIRA DE SANTANA-BA, 1986-1991)1
Jackeline Silva Lopes2
Resumo: O presente artigo visa analisar a militância como traço identitário dos
estudantes da primeira turma de Licenciados em História da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), ingressos em 1986 e formados em 1991,
destacando como esta identidade se construiu, sua relação com o contexto em que
o curso foi criado, com o currículo implantado e com a influência/o exemplo dos
docentes. Pretende-se, assim, problematizar o papel da militância na formação dos
historiadores (professores e pesquisadores). Para tanto, recorre-se ao Projeto de
Implantação do Curso de História, ao Relatório de Estágio da Turma e aos
depoimentos de sujeitos que participaram do processo, especialmente ex-alunos,
como suporte documental.
Palavras-chave: Identificação profissional. historiador/professor de História.
militância.
Abstract: This article examines militancy as a trace of the identity of the first class
of students graduates in History from the Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS), who entered in 1986 and graduated in 1991, highlighting how this
identity was constructed, its relation to the context in which the course was
created, with the curriculum as well as the influence and example provided by
teachers. The aim is to discuss the role of activism in the formation of historians /
history
teachers.
As
supporting
documentation,
refers
to
the
Project
Implementation of the Course of History, the Report Stage of the Group and the
interviews with subjects who participated in the process, especially old students.
1
Recebido em 10/09/2013. Aprovado em 19/11/2013.
Mestra em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Professora Assistente
da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Departamento de Educação / Campus XIV –
Conceição do Coité. E-mail: [email protected]
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Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 170-184.
Jackeline Silva Lopes
Keywords: Professional identification; historian / teacher of history; militancy.
Nem todos viveram outros tempos, mas, no senso comum da sociedade
atual, parece ser uma unanimidade a sensação de que vivemos um louco “novo
tempo”. Alguns o aproveitam, outros o temem, sobrevivem das lembranças de
tempos passados, se ressentem de não tê-los vivido ou profetizam o apocalipse,
mas ninguém parece inerte à sua presença e inferência nas vidas de cada um de
nós.
Desde a década de 1970, vivemos este “novo tempo”, caracterizado como
um tempo de mudanças. Dentre estas, podemos citar: fim da relação fordianakeynesiana entre capital e trabalho, flexibilização das relações trabalhistas,
globalização dos mercados, dependência político-econômica dos países periféricos,
enfraquecimento do Estado e fortalecimento dos micropoderes, fragmentação dos
movimentos sociais e diversificação de suas bandeiras de luta, naturalização da
miséria, do consumismo e do capitalismo como um sistema indestrutível, expansão
dos meios de comunicação de massa, efemeridade das tecnologias. É também um
tempo de crises: econômicas, das nacionalidades, do Estado, dos valores, da
estrutura familiar padrão, dos movimentos sociais, das identidades, dos sujeitos e
dos paradigmas científicos e ideológicos.
Alguns estudiosos da contemporaneidade, a exemplo de Giddens (1991),
Hall (2000, 2005), Silva (2000) e Woodward (2000), apontam também para os
efeitos das transformações contemporâneas sobre as identidades. Isso porque os
processos históricos que fixaram certas identidades - como o processo de
contestação ao sistema capitalista, que se baseava nas identidades de classe, ou o
processo de formação dos Estados Nacionais, que se sustentavam na definição de
identidades nacionais - entraram em colapso e as identidades que lhes davam
suporte, ficam fragmentadas, dispersas em meio às novas identidades, como as de
gênero, sexualidade, etnia e raça e outros processos de identificação política, social
ou cultural. Assim, ora nos agarramos e ora nos afastamos dessas múltiplas
identidades, que são, por vezes, conflitantes, e a idéia que temos de nós próprios
como sujeitos integrados é abalada.
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Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas
vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo
deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no
mundo social e cultural, quanto de si mesmos – constitui uma
“crise de identidade” para o indivíduo. (HALL, 2005, p. 9).
Diante do exposto, percebemos que já não é possível à identidade de classe,
por exemplo, atuar como uma identidade mestra que alinha e reconcilia as
diferentes identidades na construção de uma política, porque as pessoas já não
consideram que seus interesses sociais são contemplados em termos de classe.
No Brasil, para a maioria da população, essa contemporaneidade demorou
mais a se fazer sentir e compreender, uma vez que tendo o país vivido uma
ditadura militar até meados da década de 1980, os efeitos da nova ordem
capitalista ficavam camuflados como reflexos do regime ditatorial. A impressão
que se tinha era a de que, uma vez derrubados os militares do poder e implantado
um regime democrático no país, os problemas que afetavam a nação se
resolveriam. O clima de grande mobilização social, através de movimentos
organizados como os de trabalhadores e da igreja, fortalecia essa idéia, de modo
que se vislumbrava a possibilidade de uma democracia que verdadeiramente
garantisse o poder ao povo.
É neste contexto de efervescência e otimismo que foi instituída, em 1986, a
Licenciatura Plena em História na UEFS. Acompanhando um movimento nacional,
o curso surge em substituição à Licenciatura Curta em Estudos Sociais – existente
na UEFS desde 1976 –, após um longo processo de lutas, encampadas por
professores da instituição e estudantes do curso de Estudos Sociais. Segundo
afirma a Professora Elizete da Silva (2002), que participou da mobilização pela
mudança, além de integrar comissão que elaborou o projeto do curso, as primeiras
manifestações pela sua implantação remontam ao final da década de 1970, tendo
seu ápice na grande passeata pelo campus de 1983, encerrada com um enterro
simbólico do curso de Estudos Sociais na Reitoria da instituição.
Segundo Silva (2002, p. 233), a criação do curso de História na UEFS
representava, para os professores e estudantes de Estudos Sociais que fizeram
parte desse processo, uma luta política maior, tanto pelo seu alcance, já que era
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uma luta travada em âmbito nacional pela ANPUH (Associação Nacional do
Professores de História), quanto no que tange à extensão dos efeitos dessa medida
para a educação feirense e para a política local/regional.
A expectativa para com a implantação do curso de História estava
relacionada às concepções de Universidade – voltada à compreensão e intervenção
na realidade social - e de História, como ciência capaz de “auxiliar na
compreensão” desta realidade e na “solução dos diversos problemas que atingem a
sociedade brasileira” (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1990,
p. 6). A História assume, então, um caráter salvacionista, e o profissional que nela
atua deveria ter uma sólida base teórica que lhe permitisse uma visão crítica da
realidade, já que seriam eles responsáveis por, em tempos de redemocratização,
formar cidadãos brasileiros críticos, através de sua atuação no ensino de 1º e 2º
graus (atuais ensinos fundamental e médio, respectivamente) e propor soluções de
bases científicas para os problemas sociais. É possível perceber, a partir do Plano
Estrutural do curso, uma aproximação do professor de História que se quer formar
tanto com o perfil de um “intelectual orgânico” gramsciano quanto com o
“professor progressista” freiriano, o qual seria capaz de desenvolver a “consciência
crítica” dos alunos e contribuir para a transformação da sociedade, através de uma
atuação não apenas profissional, mas também no exercício do papel de um
militante político-social.
Um traço marcante do currículo do curso de História implantado na UEFS
era sua orientação marxista e freiriana, perceptível a partir da forma como as
disciplinas foram organizadas, numa lógica linear que partia dos modos de
produção, nas referências bibliográficas das disciplinas e na necessidade constante
de justificar-se enquanto um curso voltado para a produção de ferramentas para a
transformação da realidade social. Tal informação se confirma quando, ao
analisarmos a estrutura do curso de História no Plano, percebemos que, dentre as
suas 64 disciplinas, 39 apresentam em suas ementas conceitos e expressões
marxistas, a exemplo de estrutura social, política ou econômica, relações de
produção, modo de produção, luta de classes, sistemas produtivos, método
dialético ou dialética, materialismo, burguesia e proletariado. Nas 25 disciplinas
que sobram, deixando de explorar tais conceitos e expressões, 12 eram
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relacionadas a outras áreas de conhecimento, mais precisamente Letras, Exatas e
Saúde. Além disso, as obras de Freire são referenciadas em três das 4 disciplinas
pedagógicas do curso, bem como consta nas referências do relatório de Estágio.
(UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1990).
Pode-se dizer, ainda, que se tratava de uma formação que prezava muito
pela leitura de textos teóricos. O depoimento de um ex-aluno da primeira turma do
Curso de História aponta para esta característica:
A gente fez um curso de graduação em que... quase todos os
nossos professores, se não todos, se auto definiam como
marxistas. (...) E, a despeito dos limites de alguns... de alguns
desses professores, a respeito do que hoje me parece ser
insuficiências na elaboração teórica de alguns deles, nossas
bibliografias, a orientação geral das disciplinas, contribuiu para
que eu acumulasse leituras, que eu acumulasse espertice (...). (D3,
entrevista concedida em 21 jan. 2009).3
A partir da análise da literatura consumida pelos estudantes de História de
fins da década de 1980 e início da de 1990, na qual se encontra Louis Althusser,
Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron, Antonio Gramsci, Demerval Saviani,
Bárbara Freitag e Paulo Freire, autores estes citados em depoimentos, bem como
referenciados no Relatório de Estágio e nos programas/ementas de disciplinas do
plano estrutural do curso, é possível perceber o ideal de sujeitos e profissionais
que se pretendia formar na universidade, com a intenção de vê-los agir
politicamente na sociedade. Tais profissionais comporiam uma liderança
comprometida com a mudança social, sendo a educação o seu campo prioritário de
atuação, tendo em vista a concretização do projeto de transformação.
É o que percebemos na fala de um dos depoentes abaixo, quando
perguntado sobre a concepção que tinham, na época da formação, quanto ao ser
professor de História:
Esta frase aí (...) está muito condicionada ao que a gente vivia no
momento. (...) eu acho que também deve fazer parte da sua
A fim de preservar a identidade dos depoentes, em respeito às normas do Comitê de Ética da
Universidade Estadual de Feira de Santana, iremos designá-los como D acompanhado de um
número (a exemplo de D3).
3
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pesquisa, acredito, o que é que nós líamos naquele momento,
tanto da área de história quanto da área de educação,
principalmente da área de educação. Então, um dos livros
clássicos, de Bárbara Freitag, que é “Estado, escola e sociedade”
[na verdade, “Escola, Estado e sociedade”], além de ler Paulo
Freire, além de ler Gramsci, uma série de bibliografias (...) para
estudar, principalmente na área de educação, e pensar a história.
Falavam dessa questão do que é o professor, dessa vinculação
política, dessa vinculação militante do professor de História. (...)
Então muitos desses relatórios, dessa concepção aí, do que é o
professor, estava baseada muito no que nós líamos e no que nós
discutíamos (...). Nós tínhamos que ter coerência com o que nós
estávamos trabalhando (...). (D7, entrevista concedida em 30 dez.
2009)
Havia, ainda, o forte envolvimento entre docentes e discentes na construção
do curso além de coparticipação nas lutas internas da universidade, momentos
estes em que os mestres tornavam-se referências de compromisso e militância. A
militância parecia ser uma característica presente na maioria dos professores de
História da UEFS no período em destaque. É isso que sugere D5, ex-aluno desta
turma:
(...) nós tínhamos um quadro muito bom de professores,
professores que não apenas eram bons, eram bem preparados, do
ponto de vista da acumulação do conhecimento, mas pessoas que
tinham um envolvimento, que tinham comprometimento com
aquilo que faziam, com o próprio curso e com as lutas que o
próprio curso demandava e nas quais o curso se envolvia, que era
o movimento estudantil, que era o movimento dos professores, o
movimento sindical. (Entrevista concedida em 30 dez. 2009).
Constata-se, nesse caso, uma consideração diferenciada a respeito da
qualificação dos professores, distintamente de uma transcrição anterior, na qual o
depoente põe em dúvida o verdadeiro domínio do marxismo da parte deles,
deixando dúvidas quanto à formação teórica que possuíam. Apesar da avaliação
crítica recentemente elaborada, o mesmo informante que questiona os seus
antigos mestres (D3) e mais um dos entrevistados durante a pesquisa nos
fornecem pistas do peso referencial de alguns docentes para a formação da turma.
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Neste trabalho, entrevistamos dois destes docentes: a Professora Elizete da
Silva e o Professor Elói Barreto. A primeira, por exemplo, destaca, em depoimento,
a militância acadêmica como um de seus traços característicos.
Além das leituras teóricas, dos textos, das discussões e de tudo o
mais, nós ainda fazíamos política (com ênfase) acadêmica dentro
desta universidade. (...) Não era só aulinhas de História do Brasil
que eu dava. A gente tinha uma vida acadêmica que englobava a
totalidade. E era bom, nós fazíamos com muito prazer, nós
fazíamos com muita garra. (...) E eu estou muito, muito feliz aqui.
Eu acho que... que do ponto de vista da... da minha contribuição
para a formação de uma geração de profissionais, eu estou
tranqüila, eu estou tranqüila, eu acho que eu dei o que eu pude,
posso ter errado em algumas coisas – todo mundo erra -, posso ter
exagerado em outras, posso ter politizado demais... Uma vez um
aluno meu disse que eu politizava tudo [risos da entrevistadora],
eu disse: “hum... sou um animal político”, né? (Elizete da Silva,
entrevista concedida em 14 out. 2009).
O Professor Elói Barreto, por sua vez, também orgulha-se de sua
militância:
[...] eu lutei a vida toda pela Universidade, a construção da
Universidade Estadual de Feira de Santana, a vida inteira, muito.
Eu tenho uma alegria profunda disso. Não quero ser reconhecido
por conta disso não, mas foi uma alegria profunda. (Elói Barreto
de Jesus, entrevista concedida em 28 jan. 2009).
Assim, percebe-se que a primeira turma de História da UEFS ingressou no
curso em um contexto otimista e de grande efervescência dos movimentos docente
e estudantil, carregando consigo as convicções e o espírito da época durante toda a
formação acadêmica e profissional. De certo, isto garantiu a esta turma uma
formação bastante específica, como muitos exaltam, chegando a emocionar-se ao
rememorar a época:
[...] fazer universidade para a gente foi... [chora] fundamental. (...)
Os professores que nós tivemos, a discussão, o momento, o
contexto também era muito... muito favorável para isso, né? Então
a gente é um pouco dessa coisa de... uma vontade de mudar o
mundo, mesmo. (...) A gente tinha a formação de História, do
conteúdo, mas a nossa formação política foi importantíssima,
importantíssima (...) Na época, quando a gente chegou, só dava
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engenharia, e engenharia civil era o curso, e a gente muito ousado,
e aí a gente entrou para disputar, pra brigar, pra aparecer mesmo,
mas pra fazer, puxamos pra gente a responsabilidade de fazer
movimento estudantil e... e aí a gente cresceu rápido, o curso de
História se fez respeitar muito. (...) Então, o fazer História da gente
não era fazer História, só assistir aula, não. Mas era, também,
deixar uma marca dentro da universidade, aproveitar as
oportunidades. (D6, entrevista concedida em 08 jan. 2010).
Chama atenção, no depoimento acima, a preocupação em destacar que não
se limitaram à condição de estudantes do curso – mais do que isso, foram
construtores dele e da Universidade. É o que também destaca o depoimento
abaixo:
O curso de História estava sendo montado e nós participamos
ativamente da montagem do curso, muita coisa que estava em
aberto, e nós discutimos como fazer pra criar o Colegiado de
História, regulamentação de vários dispositivos curriculares,
mudança de currículo, a montagem do corpo docente, enfim, é... a
criação do diretório acadêmico que não existia e foi construído
por nós (...). Aqueles foram anos em que nós tivemos, pela
primeira vez, eleições diretas para reitor, aqueles foram... em
[19]87, foi a primeira vez que nós conseguimos fazer isso. (...)
Aqueles foram os anos em que nós elegemos pela primeira vez no
Departamento o diretor do Departamento, (...) em que nós
ocupamos o prédio, que era pra ser uma creche, estava
abandonada, e transformamos em residência universitária.
Aqueles foram anos de memoráveis... greves de professores, das
quais nós participávamos, de maneira ativa, de maneia decidida.
(...) Nós tínhamos sido convidados a construir, e, de algum modo,
era visível que nós tínhamos aceito esse convite. (D3, entrevista
concedida em 21 jan. 2009).
Formados neste contexto, não surpreende as representações sobre a
História e sua função social, apresentadas pelos alunos da primeira turma de
História da UEFS no Relatório de Estágio da turma, conforme demonstra o trecho
destacado abaixo:
A concepção dialética e materialista da História (...) faz esta
ciência cumprir o que chamamos acima a sua vocação profética,
isso é, denunciadora da luta de classes e do seu produto histórico
e anunciadora da possibilidade dos homens assumirem seu papel
de sujeitos críticos de sua própria ação e, principalmente, das
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ações coletivas. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE
SANTANA, 1993, p. 21-23). [grifos meus]
Aqui, o uso do termo “vocação profética” para a História cumpre o papel de
dar o destaque que desejavam à sua função crítica e emancipadora como natural,
como uma essência.
É a partir destas convicções que os futuros docentes de História aqui
estudados expõem suas autorrepresentações sobre os profissionais que seriam.
Nessa perspectiva, afirmavam que o profissional formado em História pela UEFS
assumiria a função social de
intelectual orgânico das classes subalternas em potencial, ou seja,
um agente interno dos grupos sociais explorados, atuando no
sentido de sistematizar e catalisar a WELTANSCHAUUNG,4
superar o senso comum. (...) A luta por fazer chegar uma nova
concepção de História ao 1º e 2º graus, então, passa a confundirse com a luta por uma nova concepção de mundo, alternativa à
óptica burguesa, a ser constituída pela classe subalterna através
de seus intelectuais. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE
SANTANA, 1993, p. 23).
O “ser professor de História” assume, portanto, uma explícita e exaltada
conotação político-ideológica . Ao atrelar a capacidade do intelectual orgânico em
cumprir esta vocação profética da História ao domínio da concepção dialética e
materialista da História, e ao frisar que, para tanto, faz-se necessário “um curso
que
consiga
instrumentalizar
o
profissional
para
a
referida
vocação”
(UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1990), os futuros formados
“professores de História” pela UEFS, por sua vez, se colocam como preparados
para exercer esta função, já que dominavam a concepção dialética e materialista da
História e tiveram uma vivência no tocante à militância. É o que destaca D5:
História é a ciência essencial, a gente entende... Nesse
entendimento a gente achava que a transformação, ela passava
obrigatoriamente, primeiro pela nossa qualificação, permanente
qualificação. Nós deveríamos ser realmente intelectuais, mas não
apenas intelectuais de gabinete, não apenas intelectuais de
academia e não apenas intelectuais; tínhamos que ser intelectuais,
4
Palavra alemã que significa visão de mundo.
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mas intelectuais cujos serviços estivessem colocados a favor das
classes subalternas e da transformação. Nós queríamos ser
exatamente, diametralmente opostos àquilo que nós
identificávamos como sendo os professores de História daquela
época:
mantenedores
do
estado,
mantenedores
da
subalternização, mantenedores da desigualdade (...).E daí a gente
volta para a questão da dubiedade do curso: Eu quero ser
pesquisador. Eu quero ser pesquisador e produzir o
conhecimento. Eu quero produzir conhecimento, e quero, já que
eu vou ser professor, e quero, eu mesmo, levar adiante esse
conhecimento. Eu só não quero ser só intelectual e não quero ser
só repassador, reprodutor do conhecimento. Eu quero construir o
conhecimento. (Entrevista concedida em 30 dez. 2009).
O mesmo sinaliza D3, quando afirma: “nós saímos da universidade como
intelectuais orgânicos e faríamos a diferença, através da nossa atuação
profissional. O mundo do ensino de História seria outro depois da nossa chegada”
(Entrevista concedida em 21 jan. 2009).
Pelos depoimentos coletados, é possível perceber, ainda, que a formação a
partir da militância, impulsionava esses jovens para a necessidade de ir muito mais
além do que o simples exercício de uma profissão, de modo que ser
historiador/professor de História, para eles, significava também uma missão, um
compromisso social, uma luta em prol de uma sociedade melhor. É o que podemos
perceber no depoimento de D5:
[...] nós éramos militantes do movimento estudantil, militantes
mesmo do movimento social - alguns de nós mais, outros menos -,
então aquilo que nós colocamos lá está carregado de nossa
concepção de sociedade, de nossa concepção de profissional,
nossa concepção de transformação [com ênfase e ironia] do
mundo, nós éramos revolucionários, né? Nós desejávamos isso,
aliás, ser professor é ser um transformador. “A Revolução passa
obrigatoriamente, necessariamente, por nós”. Nós acreditávamos
nisso. (Entrevista concedida em 30 dez. 2009).
Do mesmo modo, chama à atenção a frequência com que se referem à
profissão como compromisso sério a ser seguido, conforme destaca D6:
Eu digo que a minha atuação... ela é uma atuação pautada no
compromisso que eu gestei dentro da universidade. Eu não me
vejo uma professora que possa ir para uma sala de aula ludibriar,
enrolar os alunos (...). Então a formação teórico-política ajudou
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(...). O desafio era ganhar o respeito. E como é que você ganha o
respeito? Sendo um profissional sério, né? Então, assim, eu
consegui um respaldo dos alunos, (...) na medida em que você alia
a sua criticidade a um... uma... digamos, um comportamento, uma
postura profissional, e mostrando aos alunos o que é ser um
professor comprometido com o ensino público, de não faltar aula,
de dar aula, de não ir para lá enrolar, de não passar ninguém sem
saber, então, de você ter uma postura assim, bastante crítica
também, na análise, na argumentação, engajada também no
movimento... (Entrevista concedida em 08 jan. 2010).
A partir dos trechos aqui destacados, tanto do Relatório do Estágio da
primeira turma do Curso de História da UEFS, quanto dos seus ex-alunos,
depoentes nesta pesquisa, tornou-se possível perceber que a formação pautada na
leitura de teóricos marxistas e na vivência da militância, a partir da referência dos
seus docentes, foi fundamental para que pautassem sua identidade profissional em
um engajamento ideológico, político e social – inicialmente, estudantil e,
posteriormente, profissional – e no compromisso com a transformação da
sociedade.
[...] nesse caldeirão [da Universidade] é que fomos cozinhados, ou
cozidos, e daí saímos, assim, pessoas... muitas dessas pessoas,
comprometidas com o que faziam, comprometidas com o
movimento, comprometidas com... com o lutar por uma vida
melhor para todo mundo, cada qual no seu... no seu espaço, no seu
ambiente, mas pessoas comprometidas com... com esse
transformar a história para uma coisa melhor, profissionalmente
muito comprometidos com a disciplina História, com o ramo da
ciência... com a ciência chamada História, pessoas muito
comprometidas com a profissão e pessoas muito solidárias, entre
si. (D5, Entrevista concedida em 30 dez. 2009).
Pode-se afirmar, portanto, a partir dessas autorrepresentações, que na
formação dessa primeira turma de Licenciatura em História da UEFS a
universidade cumpriu com os objetivos propostos em seu Plano de Curso: habilitar
profissionais que tenham “a responsabilidade profissional” e “o compromisso
político com o desenvolvimento da capacidade crítica dos seus alunos”
(UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1990). Aparentemente,
estava certa a Professora Elizete da Silva, quando, ao defender que “não era um
curso de História apenas para formar conteúdos de História, era um curso de
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História para formar cidadãos, professores engajados num processo para a
transformação social”, avaliou o trabalho realizado: “eu acho que a gente foi
eficiente se conseguiu passar isso para eles”.
Entretanto, no início da de 1990, começaram a se tornar perceptíveis no
Brasil os efeitos das mudanças observadas em nossa contemporaneidade,
principalmente no que se refere à penetração das idéias neoliberais, ao
enfraquecimento do poder estatal, à naturalização da miséria e das desigualdades.
O contexto era de crise econômica, tentativas frustradas do Governo Federal em
implantar pacotes econômicos, arrocho salarial, desemprego, instabilidade, até
mesmo nos empregos públicos, e escândalos de corrupção. Segundo Rodrigues
(1999, p. 64-65),
Havia no ar, e manifesta, uma descrença generalizada. Nos
governantes, na existência de saídas, enfim, na possibilidade de
tudo se ajeitar. Havia também irresponsabilidade nos
pronunciamentos políticos e nas atitudes de grande parte dos
governantes. Como acreditar nas boas intenções do poder público
se elas são, diariamente, desmentidas pelos fatos? (...) Todas estas
“pequenas distorções” compunham um imenso quadro de
insegurança, impotência e desproteção que ainda caracteriza o
cotidiano da maioria dos cidadãos brasileiros.
Assim, se antes, para a maioria dos brasileiros, a culpa das mazelas do país
era depositada no governo ditatorial, hoje prevalece no senso comum a noção de
que os governos democráticos falharam em sua missão de salvar o país e
frustraram as expectativas sociais, gerando a incredibilidade, o marasmo e o
esvaziamento dos movimentos sociais organizados.
Diante desse contexto, como ficaram as identidades da geração de
historiadores/professores de história militantes, formados na UEFS na primeira
turma do Curso, entre 1986 e 1991?
Estes professores tiveram e têm histórias de vida e experiências
profissionais diferentes. Por isso, construíram trajetórias diversas e, nelas,
desenvolveram múltiplos processos de identificação profissional, constituindo
identidades múltiplas e, por vezes, contraditórias, comportamento comum na
contemporaneidade, como sinalizamos no início deste texto.
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Fazendo história
Entre os seis ex-alunos da primeira turma do curso de Licenciatura em
História da UEFS aqui entrevistados, é possível recompor traços da trajetória
profissional e deduzir sobre os efeitos da identificação profissional construída
durante o processo de formação e no exercício da prática docente.
Dois indicam, em suas avaliações, que tentaram ser efetivamente os
professores idealizados nos anos de vida universitária, mas perceberam que o
modelo imaginado não era viável na realidade da escola pública que vivenciavam,
buscando, por isso, redimensionar seus objetivos profissionais, de forma a melhor
se adaptarem à realidade – ao invés de promotores da revolução social,
motivadores de transformações significativas nas vidas de alguns alunos. Assim,
consideram-se satisfeitos e felizes na profissão, apesar do cansaço e das
frustrações em alguns momentos.
Um deles também tentou redimensionar a profissão, mas tem maior
dificuldade de se desvencilhar dos antigos ideais. Por não conseguir colocá-los em
prática, sente-se “frustrado”, desenvolvendo a pretensão de abandonar a sala de
aula, embora deseje permanecer na área de educação.
Outros dois, que também tiveram dificuldades de se desvencilhar dos
antigos ideais e encontraram obstáculos para realizá-los na escola pública. Estes
identificaram-se melhor com o exercício da profissão no nível superior, onde as
barreiras são menores e o reconhecimento social e financeiro é maior. Em suas
falas, ao mesmo tempo em que afirmam gostar daquilo que fazem e que não teriam
problema em continuar o trabalho em escolas públicas caso fosse necessário, não
disfarçam a preferência pelo ensino superior.
Há ainda um que desde o início percebeu que não se identificava com o
ensino em níveis médio e fundamental e fez sua opção pelo ensino superior. Sentese realizado na escolha que fez, embora se ressinta da experiência que deixou de
adquirir em salas de aula do nível fundamental e médio.
E o que dizer das novas levas de historiadores/professores de História que
estão se formando na UEFS? Qual o papel da militância estudantil na construção
identitária dos profissionais nela formados? Este é um estudo ainda a ser feito, mas
a realização de um Seminário na UEFS em dezembro de 2011, organizado pelo
Diretório Acadêmico Estudantil e por um coletivo de estudantes do curso, sob o
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Jackeline Silva Lopes
título “O movimento estudantil e a memória do curso de História” representa um
desejo de refletir sobre a identidade profissional e a possibilidade ou necessidade
de manter a militância como um dos traços identitários dos profissionais de
História formados na UEFS.
Hoje,
novas
bandeiras
de
luta
se
colocam
para
os
futuros
historiadores/professores de História: aquelas referentes a raça, gênero,
preconceitos regionalistas, geração, meio ambiente, dentre outras. Para aqueles
inclinados a se lançar nestas batalhas, ficam as palavras do Professor Elói Barreto
para reflexão:
Então é como eu vejo hoje a profissão de Historia. Eu aposto
profundamente naqueles que são capazes de resistir, são capazes
de, para além de tudo que tão vivendo, acreditar que amanhã pode
ser diferente. (...) Então, não imagino que vocês, que os
profissionais de História hoje, vão ser reconhecidos pelo sistema.
Não. Pela Universidade? Não, não vão. Eles vão ser sempre
lutadores, até um outro momento, vão ser sempre aqueles que vão
garantir a luta, tá certo? (Elói Barreto de Jesus, em entrevista
concedida em 28 jan. 2009).
REFERÊNCIAS
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HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).
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2000, p. 103-133.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. 10ª Ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2005.
RODRIGUES, Marly. A década de 80: Brasil: quando a multidão voltou às praças.
3ª Ed. São Paulo: Ática, 1999.
SILVA, Elizete da. Combates pela História nas terras de Lucas da Feira. Humanas:
Revista do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Estadual
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Fazendo história
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culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 7-72.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA. Plano Estrutural do Curso
de Licenciatura em História. Feira de Santana: UEFS, 1990.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA. Relatório de Estágio do
curso de História, 1990.2: pesquisa histórica e interferência na escola pública de
1º grau em Feira de Santana. Feira de Santana: UEFS, 1993.
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