UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
DOUTORADO EM PSICOLOGIA
Rafael Coelho Rodrigues
JUVENTUDE COMO CAPITAL
Niterói
2012
Rafael Coelho Rodrigues
JUVENTUDE COMO CAPITAL
Texto apresentado ao Programa de PósGraduação em Psicologia do Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Federal Fluminense, como
exigência parcial para a obtenção do título
de Doutor em Psicologia, na área de
concentração Subjetividade, Política e
Exclusão Social.
Orientadora: Prof. Dra. Maria Lívia do
Nascimento
Co-orientadora: Prof. Dra. Kátia Aguiar
Niterói
2012
2
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
R696 Rodrigues, Rafael Coelho.
Juventude como capital / Rafael Coelho Rodrigues. – 2012.
318 f.
Orientador: Maria Lívia do Nascimento.
Coorientador: Kátia Aguiar.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2012.
Bibliografia: f. 142-149.
1. Juventude. 2. Projeto social. 3. Vulnerabilidade.
4. Periculosidade. I. Nascimento, Maria Lívia do. II. Universidade
Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia.
III. Título.
CDD 155.5
3
Rafael Coelho Rodrigues
JUVENTUDE COMO CAPITAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da Universidade
Federal Fluminense, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Psicologia Social.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Maria Lívia do Nascimento
Orientadora
Departamento de Psicologia – UFF-RJ
Profa. Kátia Aguiar
Co-orientadora
Departamento de Psicologia – UFF-RJ
Cecília Maria Bouças Coimbra
Departamento de Psicologia – UFF-RJ
Estela Scheinvar
Faculdade de Educação – UERJ
Gilead Marchezi Tavares
Departamento de Psicologia – UFES-ES
Heliana Conde
Departamento de Psicologia - UERJ
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Maria Lívia do Nascimento, o companheirismo, parceria e confiança nos
últimos seis anos. Que continuem por muito outros!
A Kátia Aguiar, que no momento mais tenso, esteve presente. Acolhedora, carinhosa,
sincera. Sempre abrindo linhas de análise ali, onde, poucos conseguem enxergar.
A Cecília Coimbra que consegue, como poucos, quebrar a barreira imposta pelos muros
da Universidade que a afasta do povo. Inspiração para todos nós!
A Estela Sheinvar, e sua sabedoria em associar firmeza e cuidado.
A querida Vera Malaguti. Saudades!
A Heliana Conde e Gilead Marchezi que aceitaram gentilmente o convite para estarem
conosco nesse momento tão importante.
A Rita pela imensa ajuda de sempre.
Aos companheiros do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis,
especialmente, os parceiros do Programa Arte-educação & Direitos Humanos.
Aos jovens integrantes dos projetos do CDDH.
Aos jovens da Chatuba e do Complexo do Alemão que estiveram comigo em vários
encontros. Bons encontros!
A Gi, pela imensa paciência, delicadeza, otimismo e amor durante boa parte dessa
jornada.
A Faela, Heloísa e Larissa. Amor incondicional!!!
A Capes pelo fornecimento da Bolsa de Estudos que possibilitou financeiramente a
realização da pesquisa.
5
Latuff, 2012.
6
RESUMO
Problematizamos, nessa tese, como nós, intelectuais-militantes-pesquisadores,
contribuímos para a capilarização do sentimento de insegurança numa sociedade regida
pelos mecanismos de segurança.
São tais mecanismos e dispositivos implantados pelo modo neoliberal de
controle globalizado que possibilitam o surgimento de projetos, ditos progressistas, para
jovens classificados como vulneráveis e em risco social, que têm como objetivo enlaçar
a esfera penal ampliada com práticas sociais.
Jovens em seus campos de concentração a céu aberto e dispositivos que buscam
empoderá-los, produzindo-os como capital humano e empreendedores de si. Táticas e
técnicas de infantilização, enfraquecimento e pacificação do intempestivo jovem.
7
ABSTRACT
We are problematizing in this thesis, as we are activists-intellectual-reasearchers,
contributing to the capilarization of insecurity feeling in a society managed by the
security mechanisms.
Such mechanisms and arrangements are implemented by neoliberal way of
global control that enable the projects' emergence, they are said progressists for youth
people who are classified as vulnerable and at social risk, which aim to tie the penal law
enlarging it with social practices.
Youth people in their opened concentration camp and devices that seek to
empower them, producing them as human capital and as their own enterpreneurs.
Strategics and childish techniques, weakening and pacification of the untimely young.
8
SUMÁRIO
Introdução ..................................................................................................................... 11
Capítulo I: PRONASCI: entrelaçamentos entre o social e o penal ............................... 18
1. Sociedade de Segurança ................................................................................ 33
2. Neoliberalismo ............................................................................................... 38
3. Capital Humano ............................................................................................. 40
4. Poder Pastoral ................................................................................................ 45
5. O Neoliberalismo e o PRONASCI ................................................................ 48
6. Vulnerabilidade(s) ......................................................................................... 50
Capítulo II: Vulneráveis e em risco social: enquadramentos da juventude pobre e seus
efeitos ............................................................................................................................. 52
1. Proteção dos jovens em territórios vulneráveis – PROTEJO ........................ 54
2.1 Metodológico ou como não fazer ..................................................... 59
2. Experimentar. Pensar...................................................................................... 67
2.1 Direitos Humanos ............................................................................ 70
3. Jovem PROTEJO: Empreendedor de si? ....................................................... 72
4. Empoderados ................................................................................................. 81
Capítulo III: A domesticação da juventude pobre ........................................................ 84
1. Da natureza do jovem à imanência do perigo ................................................ 85
2. Invisibilidade do jovem pobre ou impossibilidade de enxergar a potência? . 96
3. A Falta e a Incapacidade .............................................................................. 102
9
Capítulo IV: E nós com isso? Os Intelectuais-militantes-pesquisadores e os campos de
concentração na atualidade .......................................................................................... 105
1. Segurança ..................................................................................................... 107
2. Normalizando a Exceção ............................................................................. 112
3. A Segurança e a capilarização da Insegurança ............................................ 115
4. Intelectuais-militantes-pesquisadores .......................................................... 120
Considerações Finais ................................................................................................... 135
Referências Bibliográficas ........................................................................................... 140
Anexos ......................................................................................................................... 150
10
INTRODUÇÃO
Baixada fluminense, município de Mesquita, favela da Chatuba. 09 de setembro
de 2012. Seis jovens entre 15 e 19 anos são executados, aparentemente, devido a uma
música tocada no celular que fazia alusão a uma facção diferente daquela responsável
pela venda de drogas na região.
Infelizmente, tal fato, não é nenhuma novidade nessas regiões do estado do Rio
de Janeiro. O número de jovens mortos ou desaparecidos nos últimos vinte anos no
estado é alarmante1. Quando percebemos que as vítimas dessa violência são, em sua
grande parte, jovens negros e moradores das favelas, executados geralmente pela
polícia, tal fato pode ser considerado um verdadeiro genocídio praticado pelo Estado
dito democrático de direito.
Mas numa época como a nossa, repleta de um conservadorismo moderado
(Passetti, 2007) e governada pelo modo neoliberal de controle globalizado, o
encarceramento vai muito além da prisão e seus muros. Convocados a participar, somos
todos incluídos na gestão e manutenção de nosso próprio assujeitamento. Gestores dos
campos de concentração a céu aberto, tecnologia de controle que opera não mais em
lugares de confinamento fechados e/ou apartados de um fora, nem mesmo por uma
delimitação territorial em relação ao centro, mas por uma administração do território por
seus próprios habitantes. Territórios vulneráveis, governado pelos ditos vulneráveis, em
busca de uma vida invulnerável.
Jovens classificados como perigosos e ingovernáveis, simplesmente por serem
quem são, ou seja, negros e pobres que, hoje, lutando por um futuro que não esteja em
1
Segundo Batista (2012), nos últimos 15 anos foram assassinados mais de 30.000 jovens, apensas no
estado do Rio de Janeiro.
11
nenhuma das opções acima citadas, estão inseridos em diversos projetos e programas
assistenciais, educacionais, religiosos, culturais, esportivos, de qualificação profissional,
etc. Esses jovens são os “vulneráveis”, os que estão em “risco social” e na nova
modalidade sociológica de “risco criminal”. Mudam-se as nomenclaturas e conceitos,
permanece o mesmo público.
Após me formar como psicólogo fui trabalhar no Programa Delegacia Legal do
governo do estado do Rio de Janeiro. Este programa era considerado um avanço incrível
na área da segurança pública do estado, pois ao informatizar suas ações, acreditava-se
que a taxa de crimes solucionados subiria e a dita impunidade, como consequência,
diminuiria. O avanço seria também na questão referente ao impedimento dos presos
continuarem nas delegacias e, assim, o estado enfim, cumpriria o que dita à lei. Outro
avanço do programa seria o acolhimento do cidadão, realizado por psicólogos e
assistentes sociais, responsáveis por humanizar o atendimento e, quando necessário,
efetuar atendimentos sociais nas delegacias.
Os especialistas em segurança pública que pensaram o programa Delegacia
Legal, o colocam como um avanço a aproximação das questões criminais com as
demandas sociais. Esta corrente sociológica, hoje, muito próxima dos governos que se
auto-denominam de esquerda, elaborou nos últimos anos do século XX e na primeira
década do século XXI uma série de outras políticas que buscavam essa “aproximação
revolucionária”.
Este é o principal objetivo do PRONASCI – Programa Nacional de Segurança
Pública com Cidadania. Implantado pelo governo federal, esse programa tem como
principal objetivo realizar o enlace entre a segurança pública e os projetos sociais e,
como público alvo, a juventude.
Não é para qualquer juventude que se destinam os projetos sociais ligados ao
ministério da justiça, são reservados para áreas consideradas com mais conflitos urbanos
e maiores taxas de violência. E os jovens são aqueles considerados em risco criminal.
O alardeado avanço está realizado. A aproximação entre as áreas de maiores
conflitos e sua população são as que receberão mais policiamento, mais investimentos
em infra-estrutura urbana e projetos sociais preventivos para os jovens vulneráveis. Está
equacionada a questão. Os diversos saberes já esquadrinharam determinados
“territórios” a serem “ocupados” e quais jovens serão os beneficiários desta política.
12
Modulações do encarceramento. Políticas sociais de intervenção no espaço que
operam um aclamado combate à criminalidade por meio de ações ambientais. Essas
ações “miram áreas consideradas de risco ou vulnerabilidade social com projetos de
urbanização de favelas, policiamento de proximidade junto da comunidade e ações
repressivas pontuais, segundo as formulações da teoria da ecologia criminal da Escola
de Chicago” (Augusto, 2010, p. 265).
Tais práticas são designadas como projetos preventivos tendo como alvo
crianças e jovens de determinadas localidades. Essas intervenções no campo
assistencial, educacional e de planejamento urbanístico têm como objetivo dissuadir os
moradores, especialmente jovens, de cometer incivilidades, oferecendo alternativas para
vida em bairros considerados de risco. Projetos de um determinado modo de vida.
Produção de subjetividades que sejam condizentes com o modo neoliberal de governo
das condutas. Moralidade mínima.
O discurso da liberdade, do interesse e da meritocracia deixa poucas
possibilidades para os jovens pobres e negros, ou “quase negros de tão pobres”. Ou se
arriscam a tornarem-se mais um na estatística de mortos e desaparecidos na guerra do
Estado contra os pobres ou aderem a projetos e programas que demonstrem sua força de
vontade de “vencer na vida”, de “ter outra vida”.
Essa tese surge para desdobrar as discussões apresentadas em trabalho anterior2,
com o objetivo de evidenciar o acoplamento das esferas social e penal no campo das
políticas endereçadas aos jovens ditos como vulneráveis e acompanharmos os efeitos
dessas práticas para esses jovens.
Para isso, precisava estar nesses projetos, com os jovens. Após um levantamento
dessas políticas que envolvem programas, projetos, planos, ONG‟s, parcerias públicoprivadas, etc., elegemos o projeto social que detinha maior destaque no PRONASCI: o
PROTEJO – Projeto de jovens em território de vulnerabilidade.
Foram vários meses, tentando aproximação com o referido projeto. Uma hora o
projeto estava sendo gerido por Ong‟s, outra pela Secretaria de Assistência Social e
Direitos Humanos do estado. Muito tempo depois de cansativas idas e vindas, consegui
2
O Estado Penal e a Sociedade de Controle: O Programa Delegacia Legal como Dispositivo de Análise.
Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2009.
13
a autorização para começar a realizar “oficinas de direitos humanos” para jovens do
PROTEJO em dois “territórios”: Chatuba, no município de Mesquita, baixada
fluminense, e Complexo do Alemão, recém-pacificado3, na cidade do Rio de Janeiro,
Não fazia ideia da localização da cidade de Mesquita, muito menos do bairro
Chatuba. Só sabia que era longe, muito longe. E também sabia que naquele “território”
não havia quase nenhum dos cursos ministrados pelo projeto. Os responsáveis pela
gestão do PROTEJO alegavam que não conseguiam professores dispostos a ir até lá,
pela distância e violência do local.
O combinado foi realizar oficinas de direitos humanos com os jovens na
Chatuba, durante três meses e, em seguida, realizá-las no Complexo do Alemão.
Foram tempos de muita angústia, mas uma coisa me alegrava. Estaria com os
jovens, em um projeto administrado pela Secretaria de Assistência social do estado do
Rio, para trabalhar as violações aos direitos humanos cometidos pelo próprio estado.
Uma contradição? Uma brecha?
Mas estar naquele projeto, que fazia parte de uma série de projetos sociais
ligados ao ministério da justiça, me incomodava muito. O PRONASCI, ao eleger os
jovens como seu público alvo, chega ao absurdo de planejar projetos sociais para eles e,
ao mesmo tempo, a construção de presídios para jovens entre 15 e 29 anos. Será que ao
elaborarem esse programa já contavam com a redução da maioridade penal?
3
A política de pacificação das favelas da cidade do Rio de Janeiro começou em 2008. Consiste na
ocupação permanente das comunidades pela polícia. As maiores ocupações, como o Complexo do
Alemão, tiveram o apoio de veículos blindados e militares das forças armadas. Geralmente essas ações de
ocupação movimentam cerca de 2.000 policiais e militares que parecem ir para uma guerra. Após a
“retomada do território” pelo Estado, quem passa a comandar a comunidade é o comandante da Unidade
de Polícia Pacificadora (UPP). É ele, quem decide que tipo de música pode tocar na comunidade, o modo
como os moradores podem se divertir, os cursos oferecidos para a comunidade. Alguns desses cursos são
dados pelos próprios policiais, numa tentativa de modificar a visão que os moradores têm da polícia e de
aproximar a polícia das crianças.
Gostaríamos de salientar que as forças armadas do Brasil possuem uma condecoração denominada
“Pacificador” com a qual vários militares que torturaram presos políticos do período da ditadura civilmilitar foram condecorados. Consideramos, no mínimo, curioso essa política de governo ter o mesmo
nome de tal condecoração.
14
Começava aí uma tarefa árdua que durou todo o tempo da pesquisa. Uma
espécie de cuidado e atenção constante ao entrar no projeto e de como habitar aquele
espaço.
Pretendíamos rastrear as forças presentes para nelas/com elas desenhar as
condições de emergência de tal dispositivo e dele nos aproximar e apreender seu
funcionamento.
Porém, sabíamos que somente o exercício da crítica não era suficiente. Tais
projetos de segurança pública com preocupação com as questões sociais surgem, muito
em função das críticas às políticas de enfrentamento praticadas no Brasil. Tais críticas
encontraram uma acomodação condizente às metamorfoses das tecnologias de poder
atuais, potencializando-as.
Precisávamos de uma atitude, um outro modo de estar com os jovens, de
pesquisar. Uma aposta de um modo de vida, muito mais, do que uma metodologia de
pesquisa. Praticar a pesquisa como uma pesquisa-intervenção é subverter os lugares
tradicionalmente ocupados pelo pesquisador e pelo objeto a ser pesquisado. Ambos se
produzem no decorrer da pesquisa. Com isso, cai por terra a suposta neutralidade e
imparcialidade do pesquisador.
Para nos afastar das premissas de imparcialidade, neutralidade e objetividade se
fez necessário colocar em prática a ferramenta da “análise das implicações”, ou seja,
problematizar as instituições em jogo que atravessam o campo da pesquisa. Instituição
neste viés tida como práticas sociais historicamente produzidas.
A implicação não é uma questão de vontade, de decisão consciente.
Ela inclui uma análise do sistema de lugares, o assinalamento do
lugar que ocupa, que busca ocupar e do que lhe é designado ocupar
com os riscos que isso implica (Barros, 1994: 308-309 in cit.
Coimbra e Neves, 2002, p. 44).
Para apreendermos as forças em movimento naquele dispositivo tínhamos que
realizar um trabalho sobre nós mesmos, que nos possibilitasse um grau de abertura para
os encontros e acontecimentos. Para problematizarmos a construção do conceito de
vulnerabilidade e seus efeitos nos jovens hoje, era preciso estar em contato com nossa
precariedade, com nossa vulnerabilidade.
15
Mas tantas outras questões ainda nos incomodavam. Como realizaríamos as
oficinas? Quais seriam os assuntos abordados e a metodologia utilizada? Ficaria eu em
uma posição de militante que iria doutrinar seguidores? Ou no lugar do intelectual a
dizer o melhor caminho? Ou do pesquisador neutro que estaria ali apenas para
identificar algumas questões e refutar ou não hipóteses pré-estabelecidas?
No primeiro capítulo da tese buscamos diagnosticar o campo de forças que são
as condições de possibilidade para o surgimento do PRONASCI e do dispositivo
PROTEJO. Indagamos o suposto avanço dessas políticas ditas como públicas e de
esquerda, que objetivam aliançar a esfera penal com a social. Não seria o social, desde
sempre, uma engrenagem no continuum carcerário como descrito por Foucault? E essas
políticas, o que teriam a ver com a Escola de Chicago, fundadora do neoliberalismo
estadunidense, e seu modo de governo do presente?
O segundo capítulo tenta “fazer o campo falar”. As angústias produzidas ao
habitar os “territórios”, as questões que o campo nos colocou. E como, desde a entrada
nos “territórios” de pesquisa, vínhamos trabalhando uma série de pressupostos em nós,
mas que, de antemão, sabíamos que não se davam por decreto. Tratava-se do modo de
estar habitando aquele dispositivo, de como conseguir captar o acontecimento no
acontecimento, ou seja, acontecer. Pautar nossas questões a partir dos encontros com os
jovens e não, antes. Que as questões da pesquisa se construíssem nesses encontros, com
os afetos que se produzissem neles. Nossas ponderações com a temática dos direitos
humanos, e de como trabalhar isso com os jovens. Como trabalhar isso em nós?
Ao entrar no dispositivo nos deparamos com dois manuais para a formação do
“jovem PROTEJO”. Começamos, então, a acompanhar os efeitos daquele conteúdo
político-pedagógico nos jovens, assim como, os efeitos dos nossos encontros neles e em
nós. Formação pautada em empreendedorismo, realização do roteiro e do projeto de
vida, do plano de negócios. A vida construída como um negócio. Capital humano. Vida
capital.
O terceiro capítulo problematiza a produção da adolescência como fase do
desenvolvimento da vida e como algo da ordem do perigo. Como o jovem vai tendo sua
virtualidade moldada e sua vontade sequestrada pelo discurso da prevenção ao risco e
aos perigos da vida.
16
A criação de tais rostos para a juventude se torna possível por saberes que vão
sendo construídos por esse campo de atuação sobre o jovem que, em última instância, o
legitima. A sentença erigida de que os jovens pobres são seres invisíveis socialmente
tem produzido o quê para esses jovens? E esse sistema de visibilidade total construído
para pretensamente “tirá-los” das sombras da cidadania, o que traz como efeito para
essa camada da população? O que é invisível: o jovem pobre ou sua potência de vida?
Já no quarto capítulo, procuramos pistas para pensar algo que nos inquietava
deste o início desta empreitada: o que nós, intelectuais-militantes-pesquisadores
estamos fazendo nessa realidade com campos de concentração a céu aberto e captura do
intempestivo jovem e da sua vontade e colorido da vida?
É pungente que haja uma modulação no modo como algumas questões estão
sendo colocadas em relação à realidade. Buscamos, ao mesmo tempo, que apreendíamos
as forças em movimento no dispositivo PROTEJO e os efeitos para os jovens ditos
como vulneráveis, realizar um trabalho sobre nós mesmos que não ficasse no discurso
ou nos decretos. Um cuidado conosco que não fosse uma proteção apenas com as forças
de conservação em nós. Mas uma prática de si que colocasse em análise constante, o
que em nós, nos torna cúmplice disso que criticamos. Uma atitude que possibilitasse
que os acontecimentos ocorridos nos encontros, que tantas vezes, produzem incômodo e
desestabilização, potencializassem o pensamento e a criação. Um determinado cuidado
com o uso que fazemos dos nossos afetos que nos ligam com a intensidade da vida, e
não a uma moral ou a projetos ideais de vida, nem tampouco, a busca de uma vida
invulnerável.
Só assim que, ao escutar o discurso de que os jovens “não querem nada”,
podemos questionar: o que eles têm que querer?
O que podemos pensar a partir da recusa dos jovens em fazer da sua vida, capital
humano e de rentabilização para o capital? O que está imperceptível, invisibilizado, nos
atuais discursos, políticas e técnicas para a juventude empobrecida?
17
CAPÍTULO I
PRONASCI: Entrelaçamentos entre o social e o penal
Falaram que aqui teria um monte de coisas legais pra fazer, curso
pra ganhar dinheiro depois. Mas somos obrigados a vir pra cá e
não tem nada de legal. Se não viemos, não pagam a gente.
Estamos perdendo tempo aqui!(A.M., diário de Campo,
24/06/2010).
O lugar a que o jovem se refere é o Projeto PROTEJO no bairro Chatuba,
município de Mesquita, baixada fluminense, no estado do Rio de Janeiro.
O projeto social PROTEJO faz parte do leque de projetos sociais inseridos no
PRONASCI - Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania, considerado um
novo paradigma do campo da segurança por sua proposta “inovadora” contra a
criminalidade ao integrar políticas de segurança pública com ações sociais,
supostamente, diferente das políticas de segurança pública tradicionais no Brasil,
conhecidas pela grande truculência e letalidade, e pelo olhar seletivo no qual identifica
seus alvos de intervenção.
O PRONASCI foi elaborado pelo Ministério da Justiça no governo do presidente
Luís Inácio Lula da Silva, através da lei 11.530 de 27 de outubro de 2007, pretendendo
ter um sentido mais amplo do que simplesmente a segurança pública, ou seja,
“constituindo a base através da qual o sujeito se mobiliza em defesa da saúde, da
educação, da igualdade, da promoção da juventude para consolidação de novo modo de
18
vida” (2007).
Este programa tem como eixos centrais a formação e valorização dos
profissionais de segurança pública; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate
à corrupção policial e o envolvimento da comunidade na prevenção da violência. É
composto por 94 ações, que envolvem a União, os estados, os municípios e a própria
comunidade, prevendo um investimento direto por parte do governo federal de R$ 6,707
bilhões, até 20124 e tem como principal objetivo realizar o “enlace das ações
estratégicas de segurança com os programas sociais existentes, com a finalidade de
atingir diretamente o núcleo familiar e a juventude, instituindo um território de
cidadania e coesão social”. Seus principais focos de atuação são o território, através
das regiões sugeridas na primeira fase de implementação do programa, a questão social,
atingindo as “famílias em situação de vulnerabilidade social”, e o enfoque etário, com
prioridade para jovens entre 15 e 24 anos.
Em seu plano de desenvolvimento, o PRONASCI buscava em um primeiro
momento a “pacificação do território – entrar e permanecer” através de ações
estratégicas: atuação integrada dos governos Federal, Estaduais e municipais para o
restabelecimento do “equilíbrio social”; articulação com o Ministério Público e o Poder
Judiciário; garantia do território com a ação policial qualificada – força nacional de
segurança e policias estaduais; combate ao crime organizado e à corrupção policial,
controle de armas e munição; recuperação de espaços e equipamentos urbanos. Este
primeiro momento teria como tempo médio de ação 01 ano.
No segundo momento de desenvolvimento do PRONASCI o objetivo seria a
“conquista dos jovens para a cidadania – formar e conviver”. Este momento teria como
ações estratégicas a “inclusão social do jovem e participação da família: percurso social
e formativo”, “mãe ouvidora”; a mobilização e controle social, através dos conselhos
comunitários e ouvidorias de polícia; a formação e aperfeiçoamento constante da polícia
estadual; a substituição gradual da força nacional de segurança pública pela “polícia
cidadã”.
O terceiro momento estabelecido no desenvolvimento do programa preconizava
a “repactuação do contrato social para a coesão do território – consolidar e manter”,
com a gestão integrada de segurança pública cidadã; “espaços públicos saudáveis”;
“polícia cidadã”; “valorização da vida” e redução da criminalidade violenta.
4
Até o final de 2011, o foram gastos com o PRONASCI cerca de 4 bilhões de reais, segundo o Jornal O
Globo, de 17/01/12.
19
Para alcançar seus objetivos traçados, o Ministério da Justiça elaborou uma série
de projetos sociais como parte do programa. Podemos destacar aqui, brevemente, o
Projeto Reservista Cidadão que se destinava a jovens recém-licenciados do serviço
militar, geralmente ditos como alvos fáceis para o crime por saberem manejar armas.
Outro projeto previsto era o de “Formação do Apenado”, tendo como alvo, a juventude
encarcerada. A reestruturação do sistema penitenciário era uma das principais
preocupações do PRONASCI. O Programa tinha como meta a construção de unidades
especiais femininas e para jovens de 18 a 24 anos, com módulos de saúde e informática.
Os detentos também teriam mais atenção no acompanhamento de seus processos, com a
possibilidade de instalação de núcleos especializados para acompanhamento da
execução penal nas defensorias públicas federais.
Pensando na juventude encarcerada, o PRONASCI, em seu texto base, traz
diversos projetos educacionais do governo federal que seriam implantados nas
penitenciárias brasileiras. Um deles promoveria a alfabetização de seis mil jovens
presos que não tiveram a oportunidade de escolarização ou abandonaram a escola
precocemente. Outra iniciativa do PRONASCI, nessa área, era o Programa Nacional de
Inclusão de Jovens (ProJovem) estruturado pela Secretaria Nacional da Juventude, que
permitiria o acesso aos ensino fundamental a aproximadamente 30 mil jovens5.
Outros projetos elaborados foram o “Pintando a Liberdade” e “Pintando a
Cidadania”. O primeiro visava ensinar os presos a fabricar materiais esportivos, como
bolas de futebol e redes de basquete, além de técnicas de serigrafia e impressão de
materiais diversos. Os produtos teriam como destino as escolas públicas do país. A
participação do preso no projeto contribuiria para a remissão de um dia de pena para
cada três dias trabalhados. No projeto Pintando a Cidadania, o foco era nas famílias dos
apenados, que teriam as mesmas atividades desenvolvidas pelos jovens presos. O
objetivo seria que, após o cumprimento da pena, o preso retornasse à família e, junto
dela, pudesse desenvolver na comunidade o trabalho praticado na prisão. Ambos os
projetos seriam articulados com o Ministério do Esporte. Já o Projeto Farol – visava
promover a cidadania entre jovens negros em situação de vulnerabilidade social, em
5
O Pronasci também vai preparar os detentos para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e para a
formação universitária por meio do ProUni ou Universidade Aberta, ambos coordenados pelo Ministério
da Educação. Os jovens reclusos assistirão às aulas para que tenham condições de prestar o exame ao sair
da prisão. O sistema penitenciário trabalharia também com jovens do regime semi-aberto no Programa de
Educação Profissional para Jovens e Adultos (Proeja), que permitiria que eles cursassem o nível médio
integrado a cursos profissionalizantes. A iniciativa contaria com a parceria dos governos estaduais e
universidades e deveria beneficiar cerca de 6,8 mil detentos. A formação educacional dentro das prisões
serviria ainda para a remissão da pena: a cada 18 horas de estudo seria um dia a menos na prisão.
20
conflito com a lei ou egressos do sistema prisional. O principal desafio seria recuperálos, inseri-los na rede de ensino, no mercado de trabalho e até fazer com que
desenvolvam atividades sócio-educativas-culturais, atuando como multiplicadores desse
processo. A iniciativa era uma parceria do PRONASCI com a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), da Presidência da República.
Em nossa tese, elegemos o projeto social PROTEJO como um dispositivo. De
acordo com Deleuze (1990) os dispositivos podem ser entendidos como “máquinas que
fazer ver e falar”. O autor destaca quatro tipos de linhas presentes no dispositivo: a de
visibilidade, de enunciação, de força e a de subjetivação, definindo-o como
um emaranhado, um conjunto multilinear. Ele é composto de
linhas de natureza diferente. E estas linhas do dispositivo não
cercam ou não delimitam sistemas homogêneos, o objeto, o sujeito,
a língua, etc., mas seguem direções, traçam processos sempre em
desequilíbrio, às vezes se aproximam, às vezes se afastam umas
das outras. Cada linha é quebrada, submetida a variações de
direção, bifurcante e engalhada, submetida a derivações. Os
objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício,
os sujeitos em posição são como vetores ou tensores (Deleuze,
1990, p. 17).
Com isto Deleuze indica que em cada formação histórica há maneiras de sentir,
perceber e dizer que conformam regiões de visibilidade e campos de dizibilidade (linhas
de visibilidade e de enunciação). Isto quer dizer que em cada época, em cada estrato
histórico, existem camadas de coisas e palavras. O método, portanto, não consiste numa
luminosidade geral capaz de iluminar objetos pré-existentes, assim como não existem
enunciados que não estejam relacionados a linhas de enunciação, elas mesmas
compondo regimes que fazem nascer os enunciados. A realidade é feita de modos de
iluminação e de regimes discursivos. O saber é a combinação dos visíveis e dizíveis de
um estrato, não havendo nada antes dele, nada por debaixo dele. Trata-se, então, de
extrair as variações que não cessam de passar.
Um dispositivo também é composto de linhas de força. Aqui, Deleuze dá
destaque à dimensão do poder-saber. Elas operam “no vai-e-vem do ver ao dizer e
inversamente, ativo como as flechas que não cessam de entrecruzar as coisas e as
palavras sem cessar de levá-las à batalha” (Deleuze,1990). Estas linhas passam por
todos os pontos do dispositivo e nos levam a estar em meio a elas o tempo todo. Mas o
dispositivo também é composto de linhas de subjetivação, linhas que inventam modos
de existir. A dimensão do si não está, portanto, determinada a priori: “a linha de
21
subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade, num dispositivo: ela deve
se fazer, para que o dispositivo a deixe ou a torne possível...” (Deleuze, 1990).
Nesta pesquisa buscamos traçar um diagrama de forças presentes no dispositivo
PROTEJO. Linhas de forças que são as condições de possibilidade e as forças presentes
no dispositivo PROTEJO em territórios diferentes. Chatuba (Mesquita), baixada
fluminense e Complexo do Alemão, cidade do Rio de Janeiro.
O Projeto de Proteção dos Jovens em Território Vulnerável – PROTEJO – tem
como público-alvo jovens em situação de “risco criminal” e foi estendido também a
jovens moradores de rua e para jovens expostos à violência doméstica ou urbana. O
foco do PROTEJO é a promoção da formação cidadã por meio de práticas esportivas,
culturais e educacionais, a fim de resgatar a auto-estima e a convivência pacífica dos
jovens nas comunidades. Os jovens do PROTEJO deverão atuar como multiplicadores
da cultura de paz e receberão, durante um ano, uma bolsa mensal de R$ 100,00.
O PROTEJO é associado ao projeto Mulheres da Paz, desenvolvido em
comunidades dominadas pelo tráfico de drogas, capacitando “lideranças femininas” para
se aproximar de jovens “à beira da criminalidade” e encaminhá-los aos programas
sociais e educacionais do PRONASCI. Cerca de 5,3 mil mulheres foram formadas até
2011 no curso “Promotoras Legais Populares”, que trabalhou temas como direitos
humanos, mediação de conflitos e cidadania. Cada uma delas recebe uma bolsa mensal
de R$ 190,00.
O texto base do PRONASCI nos fornece uma série de analisadores de como o
modelo de gestão das questões referentes à segurança pública e às problemáticas sociais
vêm sendo implementadas. “Pacificação do território”, “equilíbrio social”, “conquista
dos jovens para a cidadania”, “polícia cidadã”, “espaços públicos saudáveis”,
“repactuação do contrato social para a coesão do território”, “conquista dos jovens para
a cidadania”, são alguns exemplos de termos presentes no texto que sinalizam
determinados modos de pensar a cidade, as comunidades empobrecidas e a juventude.
Uma produção de insegurança social vem sendo atrelada, convenientemente, à
violência urbana que, por sua vez, historicamente é associada à pobreza em nosso país.
Na prática o que acontece com a legitimação da atual política de segurança pública é a
entrada midiática de forças policiais e militares nas favelas, no intuito de “pacificar o
território”. Como exemplo emblemático disso temos a operação no Complexo do
Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, transmitida ao vivo para o mundo. Tanques de
guerra passavam por cima dos carros estacionados em frente às residências, helicópteros
22
davam rasantes em cima das comunidades e todos “torciam” pela volta do aclamado
“equilíbrio social”.
É importante percebermos que toda essa suposta inovação referida à política
implantada pelo PRONASCI, acoplando as esferas sociais e penais, de nova não tem
nada. A escola de Chicago, criada em 1890, berço do neoliberalismo americano,
baseava suas teorias sobre a criminalidade a partir de análises ecológicas, buscando
determinar o grau de riscos de determinadas populações em áreas específicas da
cidade, e as intervenções espaciais que poderiam ser construídas para diminuir tais
riscos. Para isso, utilizavam inquéritos sociais, por meio de interrogatórios diretos junto
a um universo determinado de pessoas e, estudos biográficos de casos individuais, “tão
necessários para o conhecimento das carreiras delinquentes” (Shecaira, 2004, p. 150).
O pensamento ecológico da Escola de Chicago tem como parâmetro central a
ideia da cidade não ser somente um amontoado de homens individuais e de convenções
sociais decorrentes do agrupamento humano. Tão pouco, veem a cidade como uma
composição de suas ruas, parques, linhas de ônibus, metrô, rede de esgotos, etc., não
sendo meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Ao contrário, a
“cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e
atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição”
(Shecaira, 2004). Sendo assim, está envolvida nos processos vitais das pessoas que a
compõem.
Segundo Shecaira (2004), com o crescimento das cidades, os hábitos dos seus
habitantes passam a guardar certas características das áreas em que vivem. Cada parte
da cidade, tomada em separado, inevitavelmente se cobre com os sentimentos peculiares
à sua população. Os homens passam a se conhecer, a se relacionar, a se visitar
mutuamente. Algumas vezes há, em uma cidade, uma espécie de vigilância mútua entre
os vizinhos. A esse mecanismo Shecaira denomina controle social informal, tratando-se
de uma espécie de “polícia natural”, que coibiria certas atividades dos indivíduos.
Porém, nas grandes cidades, segundo os estudos da Escola de Chicago, a vizinhança
tende a perder muito da identidade que possuía nas pequenas comunidades.
Outro conceito citado por Shecaria (2004) é o de mobilidade. Toda a mobilidade
de qualquer organização ecológica, mudança de endereço, emprego, ascensão ou
decadência social, próprias das grandes cidades, com o seu aumento de estímulos em
número e intensidade, tenderiam a possibilitar um menor controle social informal
exercido pelo cidadão em face das relações de vizinhança.
23
Essas áreas de mobilidade seriam, segundo essa teoria sociológica, exatamente
aquelas onde se desenvolvem áreas de promiscuidade, vício, maior delinquência juvenil,
maior número de crianças abandonadas, etc. A mobilidade social contribuiria assim,
para a destruição das formas clássicas de controle social, tal como estabelecia a família,
a vizinhança, os grupos comunitários locais. “A ruptura dos vínculos locais e a
debilitação das restrições e inibições do grupo primário, sob a influência do ambiente
urbano, é em grande medida a responsável pelo aumento das condutas delituosas nas
cidades grandes (Shecaira, 2004, p. 156).
Dois conceitos são importantes para entendermos a teoria ecológica aplicada aos
estudos da criminalidade, realizados pela Escola de Chicago: “desorganização social” e
“áreas de delinquência”.
O conceito de “desorganização social” tem estreita relação com a questão da
mobilidade, ínsita das grandes cidades, caracterizando segundo essa teoria, uma ruptura
dos mecanismos tradicionais de controle. A desorganização social seria preliminar a
organização de posturas e condutas humanas, uma experiência pela qual passaria o
recém-chegado à cidade com uma rejeição de hábitos e concepções morais,
acompanhados do conflito interior e do seu sentimento de perda pessoal. O crescimento
das grandes cidades produziria um processo de desorganização social, em face
principalmente pela chegada de imigrantes e migrantes, propiciando o aumento
excessivo de doenças, crimes, prostituição, desordens, insanidade e suicídios (Shecaira,
2004, p. 161).
Essas transformações profundas na cidade fragilizaria o papel desempenhado
pela vizinhança de controle social informal, pois os clubes de serviço não mais
conseguem refrear as condutas humanas, já que os vínculos que permitem esse
“serviço” não existem com o recém-chegado. As pesquisas que pautam essas políticas
demonstram que as áreas mais preocupantes de criminalidade são encontradas naquelas
áreas da cidade onde o “nível de desorganização social é maior”. São áreas de “menor
sociabilidade” (pois o Estado está completamente ausente – faltam escolas, postos de
saúde, áreas de lazer, etc.), e com uma “sensação de completa anomia, condição
potencializadora para o surgimento de grupos de justiceiros, bandos armados, e outros
tantos crimes” (Shecaira, 2004, p. 161).
O conceito de “áreas de delinquência” utilizado pela Escola de Chicago pauta-se
na teoria ecológica pensando a cidade e seu desenvolvimento de acordo com círculos
concêntricos, ou seja, uma divisão natural dos agrupamentos socioeconômicos dando
24
forma e caráter à cidade, tendo cada grupamento humano um lugar e um papel na
organização total da vida da cidade.
Segundo essas análises, os problemas sociais, psicológicos, de saúde pública e
criminais estariam relacionados com a distribuição da população por essas áreas. As
áreas de delinquência foram traçadas como sendo aquelas, nas quais, os índices de
criminalidade seriam mais pronunciados, estando ligados à degradação física,
segregação econômica, étnica, racial, às doenças, etc.
Seus estudos estatísticos demonstram que a “concentração de casos de
delinquência em determinadas áreas da cidade parece sugerir a probabilidade de uma
estreita relação entre certos ambientes da comunidade e a formação de padrões
delinquentes de comportamento” (Shecaira, 2004, p. 165). Embora haja um suposto
cuidado para não haver um determinismo ecológico nas conclusões, é certo que há,
segundo essa teoria, todo um vetor criminógeno em certos tipos de áreas.
Essas áreas conflitivas, consideradas como áreas de delinquência, criaram,
segundo esse pensamento, distintos códigos morais e modelos de comportamento
diferenciados, seja pela degradação das moradias ou das péssimas condições de vida,
seja pela diversidade de valores culturais. Nessas zonas não haveria possibilidade de ser
mantida a solidariedade social, com a promoção dos valores tradicionais da
comunidade. Isso favoreceria a influência das soluções delituosas junto aos recémchegados, sobretudo os jovens. Esse mecanismo estaria “intimamente relacionado com
o conceito de desorganização social acima exposto, o que provocaria a falta de controle
informal sobre adultos e principalmente sobre os jovens” (Shecaira, 2004, p. 165).
A escola de Chicago norteia muitas das políticas preventivas e de controle da
criminalidade na gestão neoliberal do capitalismo mundial integrado. Em primeiro
lugar, segundo esta teoria, nenhuma redução de criminalidade é possível se não houver
mudanças efetivas das condições econômicas e sociais das crianças. Isto é, há que
alterar o caminho que fornece condições para a existência das carreiras delinquentes.
Para isso, sabem que os métodos individualizados não serão suficientes para a
diminuição significativa da criminalidade. Por isso, pressupõe uma “macro-intervenção
da comunidade” (Shecaira, 2004, p. 167).
Tratamento e prevenção, para terem sucesso, demandam amplos
programas que envolvam recursos humanos junto à comunidade e
que concentrem esforços dos cidadãos em torno das forças
construtivas da sociedade. Isto é, instituições locais, grupos,
25
igrejas, escolas, associações de bairro, para obviar à
desorganização social precisam envidar esforços para reconstituir a
solidariedade social e aproximar os homens no controle da
criminalidade (Shecaira, 2004, p. 167).
É a vizinhança que deve ser fortalecida para o combate à criminalidade. Buscase trabalhar com os desempregados da comunidade, como meio de envolvimento destes
nos valores comunitários, procurando reduzir este “grave vetor criminógeno, que é o
desemprego, além de diminuir a pobreza por meio do apoio estatal para redução e/ou
minimização das parcelas existentes à margem da sociedade” (Shecaira, 2004, p. 168).
Devem ser criados programas comunitários que incluam a
intensificação de atividades recreativas, escotismo, fóruns
artesanais, viagens culturais, excursões, piqueniques como medida
de preenchimento do tempo das crianças, além de intensificação da
formação sociocultural (...) Deve-se buscar a melhoria das
condições sociais, econômicas das crianças (em especial) para
eliminar o padrão referencial desviante provido pelas cidades
(Shecaira, 2004, p. 167).
Projetos arquitetônicos também foram criados pela escola de Chicago para
intervenção no território. O fato de não retirarem as famílias de suas comunidades e de
realizarem obras para a mudança na infra-estrutura local, permite que a sociabilidade
tecida ao longo dos anos pelos moradores mais antigos no território não seja perdida.
Nesse sentido, pode-se dizer que,
na essência, projetos de desfavelização que priorizam o reforço da
convivência social e que não afastam as pessoas das áreas em que
viviam devem ser considerados progressistas e utilizados em larga
escala para resgate da condição de cidadania dos estratos sociais
mais baixos e a consequente diminuição da criminalidade
(Shecaira, 2004, p. 171).
O programa Tolerância Zero, surgido com mais destaque na cidade de Nova
York na década de 1990, é uma das políticas dessa vertente ecológica, compreendendo
propostas urbanísticas e ecológicas associadas à repressão em larga escala da população
empobrecida da cidade.
Políticas assistenciais invariavelmente se combinam com uma
presença expressiva da polícia repressiva como integrante dessa
comunidade, tanto relacionadas às formulações da teoria
criminológica da ação ecológica, desenvolvida pela escola de
26
Chicago, como á contemporânea, e tributária desta teoria, política
de tolerância zero (Augusto, 2011, p. 23).
Luiz Eduardo Soares, um dos pensadores das políticas de segurança pública no
Brasil, acredita que “o controle dos espaços pelo Estado e sua integração à ordem
urbana exercem efeitos até mesmo sobre a percepção social do risco e a sensação
coletiva de insegurança.” (Soares, 2000, p. 354).
Algumas propostas de restauro de fachadas de edifícios antigos,
melhoria de conservação dos próprios públicos, cultivo de flores
em terrenos baldios de áreas ditas problemáticas de criminalidade,
construção de quadras de basquete para clínicas noturnas e
campeonatos de bairro, foram associadas á repressão total das
mínimas faltas (pichações, danos a edifícios públicos, riscos em
veículos estacionados, jogar sujeira nas ruas, etc.), sem prejuízo de
mobilização feita junto a instituições sociais com o emprego de
políticas públicas de diminuição de pobreza, tratamento de
drogados em instituições especializadas, resgate da dignidade das
pessoas encaminhando-as para empregos públicos e privados, etc.
(Shecaira, 2004, p. 172).
Para esses pensadores, ditos progressistas, há a necessidade de associação entre
projetos ecológicos e amplos projetos de corte social, pois acreditam que, assim, podem
produzir um imediato resgate da cidadania. Pesquisas associam os índices de pobreza e
miséria como riscos ao aumento da criminalidade nas grandes cidades e a diminuição de
homicídios em territórios que receberam programas sociais. O empirismo da Escola de
Chicago criou uma análise estatística dos dados policiais e judiciais vinculados ao
delito, chamando a atenção da criminalidade em áreas pobres e deterioradas da cidade.
Segundo Shecaira (2004), a Escola de Chicago inaugurou um paradigma reformista de
resposta ao crime. No que concerne à política criminal, o foco é voltado para a
comunidade local, com a mobilização das instituições locais para amenizar a
desorganização social, reconstituir a “solidariedade humana e controlar as condutas
delituosas só sendo possível com o envolvimento preventivo da comunidade (e não
repressivo), reconhecendo-se implicitamente que a sociedade era a responsável pela
existência da própria criminalidade” (Shecaira, 2004, p. 180).
Políticas como essa são consideradas progressistas por focarem sua atenção em
ações preventivas, minimizando, a princípio, a atuação repressiva. Colaboram para essa
avaliação os esforços em produzir intervenções em territórios determinados por
pesquisas estatísticas, o esforço de envolver a vizinhança nas ações e programas
27
comunitários, promovendo o controle social informal, assim como, a reurbanização
planejada desses territórios associados com uma vasta ação de políticas sociais.
A teoria da ecologia criminal da Escola de Chicago baseada no estabelecimento
de graus de riscos para determinadas populações em áreas especificas da cidade e na
construção de intervenções espaciais para diminuir tais riscos aproxima essa escola do
pensamento sociológico, que fundou o neoliberalismo americano, com o PRONASCI.
É a partir do diagnóstico das áreas de delinquência (áreas com maiores índices
de violência) que os territórios são eleitos para receber as políticas do PRONASCI. Se
há alguma inovação implantada pelo PRONASCI em relação à teoria da ecologia
criminal da Escola de Chicago é o fato de que no Brasil tais políticas são iniciadas de
modo militarizado, com a “tomada dos territórios”, sendo realizadas a partir da premissa
que esses territórios são territórios inimigos, e que há uma guerra instalada nessas
localidades, o que possibilita o discurso da pacificação pelo Estado, alegadamente
ausente desses espaços. Mas o Estado está ausente dessas localidades com suas políticas
de saúde, educação, lazer, cultura. Porém, a face autoritária do Estado sempre esteve
presente nesses territórios, com incursões policiais, violência e barbárie praticadas por
seus agentes contra os moradores.
O PRONASCI tem como objetivo principal realizar o enlace entre as políticas de
segurança e as sociais o que é avaliado no texto base da lei de criação do programa
como uma proposta inovadora. O acoplamento de práticas policiais e punitivas, de
controle e segurança pública, com políticas sociais, não pode ser considerado como algo
inovador. Desde o século XVIII, segundo Foucault (1994), o poder penal e suas práticas
foram capilarizadas por toda a sociedade. Para ele, as fronteiras entre o encarceramento,
os castigos judiciários e as instituições de disciplina, como a escola, o exército e a
fábrica, tendem a desaparecer para “construir um grande continuum carcerário que
difunde as técnicas penitenciárias até as disciplinas mais inocentes” (Foucault, 1994, p.
260).
Este continuum carcerário possibilita que a instância que condena, esteja cada
vez mais presente na vida da população, e se introduza entre todas as que controlam,
transformam, corrigem, melhoram. Para Foucault, nada mais os distinguiria realmente,
não fora o caráter singularmente “perigoso” dos delinquentes, a gravidade de seus
desvios e a necessária solenidade do rito. Mas, sublinha que em sua função, esse poder
de punir não é essencialmente diferente do de curar ou educar.
28
Recebe destes e de sua tarefa menor e inferior uma garantia que
vem de baixo mas nem por isso menos importante, pois é o socorro
da técnica e da racionalidade. O carcerário “naturaliza” o poder
legal de punir, como “legaliza” o poder técnico de disciplinar.
Homogeneizando-os assim, apagando o que possa haver de
violento em um e de arbitrário no outro, atenuando os efeitos de
revolta que ambos possam suscitar, tornando consequentemente
inúteis sua exasperação e excesso, fazendo circular de um para o
outro os mesmos métodos calculados, mecânicos e discretos, o
carcerário permite a realização daquela grande “economia” do
poder, cuja fórmula o século XVIII procurou, quando veio à tona o
problema da acumulação e da gestão útil dos homens (Foucault,
1994, p. 265).
Há, portanto, uma generalidade carcerária funcionando em toda a “amplitude do
corpo social e misturando incessantemente a arte de retificar com o direito de punir”
(Foucault, 1994, p. 265), baixando com isso, o nível a partir do qual se torna natural e
aceitável ser punido. A arte de retificar comportamentos, sentimentos, modos de vida,
próprias à educação e às políticas sociais do capitalismo estão acopladas desde meados
do século XVIII a práticas de punir. Essa economia do poder, que tem no sistema
carcerário seu instrumento de base, faz surgir uma nova forma de “lei”, um misto de
legalidade e natureza, de prescrição e constituição, que é a norma.
É a partir da norma e do seu poder normalizador possibilitado pela onipresença
dos dispositivos disciplinares que hoje há juízes da normalidade em toda parte, segundo
Foucault. “Estamos na sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz,
do assistente-social-juiz; todos fazem reinar a universalidade do normativo” (Foucault,
1994). É importante analisarmos como nós mesmos, tantas e tantas vezes, estamos
fazendo o papel do pesquisador-juiz, do militante-juiz ou do intelectual-juiz.
Foucault percebia como sendo um problema a enfrentar o grande avanço desses
dispositivos de normalização e toda a extensão dos efeitos de poder que eles produzem,
através da fabricação de novas objetividades. Colocamos aqui outro desafio: o de não
legitimarmos com nossas práticas diárias tais objetivações e modos de subjetivação.
Como sustentar que projetos como o PRONASCI são progressistas porque
visam enlaçar as esferas sociais com a penal tendo em vista a obra de Foucault que nos
alerta para o crescimento, desde o surgimento das ciências do homem, das redes
disciplinares e da multiplicação de seus intercâmbios com o aparelho penal, dos poderes
cada vez mais amplos que lhes eram dados, da transferência cada vez maior das funções
judiciárias que poderiam, no meio de todos esses dispositivos de normalização
(Foucault, 1994) que se densificavam, fazer da especificidade da prisão e seu papel de
29
junção perderem parte de sua razão de ser. Mesmo com a medicina, a psicologia, a
educação, a assistência, ou seja, o “trabalho social” tomando parte cada vez maior nos
poderes de controle e de sanção, fazendo com que o aparelho penal se medicalize, se
psicologize, se pedagogize e que se articule o poder penal e o poder disciplinar,
sabemos que a prisão não perdeu sua força.
Foucault (1994) ainda na década de setenta do século XX, já conseguia perceber
as redes disciplinares e a multiplicação de seus intercâmbios com o aparelho penal, o
que depois Wacquant (2007) denominou como “Estado Penal”. Na aula de 11 de janeiro
de 1978 do curso intitulado “Segurança, território e população”, Foucault salienta que a
existência de uma sociedade de segurança só é possível pelo conjunto das medidas
legislativas, dos decretos, dos regulamentos, das circulares, de uma verdadeira inflação
legal para fazê-la funcionar. Para que os mecanismos de segurança estejam garantidos é
necessário apelar, por exemplo, para toda uma “série de técnicas de vigilância dos
indivíduos, de diagnóstico do que eles são, de classificação de sua estrutura mental, da
sua patologia própria, etc., todo um conjunto disciplinar que viceja sob os mecanismos
de segurança para fazê-los funcionar” (Foucault, 2008, p. 11).
Temos cuidado em falar que há um Estado Penal, embora haja, sim, uma
maximização das políticas penais e a exacerbação da histórica criminalização de uma
massa de humanos miseráveis. Há, sim, todo um modo de gestão da população
miserável através das prisões e de programas sociais que cada vez mais são ações
governamentais para produzir determinados comportamentos em seus “beneficiários”.
Mas há, também, toda uma adesão subjetiva á barbárie (Batista, 2012), uma vontade de
poder sobre o outro, todo um modo de vida que legitima não só as prisões da miséria,
mas, também, as práticas de extermínio e segregação que as completam.
Entendemos essa “adesão subjetiva à barbárie” a partir das contribuições de
Michel Foucault sobre a microfísica do poder. Para ele, o poder não é uma substância
que só alguns possuem, como por exemplo, o Estado. O poder nesta perspectiva é
exercido nas relações, como um modo de ação de uns sobre outros.
O que quer dizer, certamente, que não há algo como o „Poder‟ ou
„do poder‟ que existiria globalmente, maciçamente ou em estado
difuso, concentrado ou distribuído: só há poder exercido por „uns‟
sobre os „outros‟; o poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se
inscreva em um campo de possibilidade esparso que se apoia em
estruturas permanentes (Foucault, 2010, p. 287).
30
Seguindo esta perspectiva, pensamos não em um Estado penal, como dito por
Wacquant, e sim, num poder penal, punitivo, espraiado nas relações do mundo atual,
pois, como Foucault, não queremos afirmar o Estado como um universal histórico e
político. Ao dizermos poder penal, estamos falando da vontade de justiça, de equilíbrio,
de governo que se espalha por toda a sociedade e se instala em nós mesmos. É a
sociedade de segurança e sua política da vingança, da busca por mais leis. O Estado não
necessita mais impô-las. Ele as instaura a partir de um clamor social por elas. Na
sociedade penal, que demanda controle, é o cidadão que as reivindica a todo o momento
em suas práticas de acusação com fundo de proteção. Diz Castel: “A insegurança
moderna não seria a falta de proteção, mas antes seu inverso, sua sombra projetada num
universo social que se organizou em torno de uma busca sem fim de proteções, ou de
uma busca tresloucada de segurança” (Castel, 2005, p. 8). Essa “busca tresloucada de
segurança” se faz pela demanda cada vez maior de punições, o que leva a mais e mais
leis.
Trata-se
do
investimento
na
segurança
como
paradigma
central
da
governamentalidade e como conceito básico de sustentabilidade do sistema do capital.
Essa formatação do mundo abre espaço, por exemplo, para a emergência de uma polícia
que se propõe ser pacificadora e para resistências apaziguadas pelo conforto da
segurança.
Foucault ao longo de sua trajetória filosófica vai narrando uma série de
mecanismos de poder que vão sendo erigidos e somando-se na tentativa de produzir
mentalidades condizentes com as forças sociais em ebulição. Soberania, disciplina,
segurança. Deleuze já anunciava que um dos aspectos que o capitalismo mundial
integrado teria que lidar seria a explosão dos guetos e favelas.
Para lidar com essa realidade promovida pelo capitalismo mundial integrado,
Wacquant relata a criação de um modo de gestão da miséria que acopla práticas penais
às políticas sociais. A gestão da população pobre passaria pelo controle penal. Este
autor demonstra como, principalmente nos Estados Unidos, há uma regressão
vertiginosa das políticas sociais, do que foi o Welfare State, para um incremento sem
procedentes de práticas e políticas penais. Para Wacquant, as políticas sociais se tornam
políticas atreladas a modos disciplinados de estar na vida, de governo das condutas das
classes empobrecidas.
Torna-se necessário salientar que as ciências humanas surgem muito em função
da observação do comportamento humano no interior das instituições de sequestro da
sociedade disciplinar. Esta rede de estabelecimentos – pedagógicos, médicos, penais ou
31
industriais – têm como principal característica a vigilância e a disciplina, contribuindo
para o surgimento de um poder epistemológico, um dos responsáveis pela constituição
das ciências humanas e sociais. Tal rede de estabelecimentos tem como função “ligar os
indivíduos aos aparelhos de produção, formação, reformação ou correção de
produtores” (Foucault, 1996, p. 114).
Esse poder epistemológico produzido no interior dos estabelecimentos
disciplinares, só é possível pelo sequestro do saber dos indivíduos, com o propósito de
extrair os saberes produzidos pelas mais diversas práticas dos sujeitos submetidos e
controlados pelos diferentes poderes.
Através de minuciosos e constantes registros, observações e
classificações dos comportamentos desses sujeitos em diferentes
situações e momentos vai sendo construído, em cima de seu saberexperiência, um outro saber sobre ele, que fala dele, que o
descreve, diagnostica, que prescreve o que, como e quando deve
agir, pensar, sentir. Enfim, que rumos deve dar a sua vida.
Aprende, com isto, a caminhar neste mundo guiado por modelos,
que dizem o que fazer e como fazer (...) (Coimbra e Nascimento,
2001, p. 247).
Ou seja, as ciências humanas e sociais que embasam as políticas sociais sempre
estiveram muito próximas da gestão do comportamento humano para a manutenção do
status quo. As políticas sociais estão enredadas neste continuum carcerário descrito por
Foucault, possibilitadas pelas práticas dos profissionais que as executam.
Para lidar com a explosão dos guetos e das favelas no Brasil, grande laboratório
de fabricação de práticas violentas e genocidas de lidar com a população indesejada,
presenciamos práticas que fazem convergir intervenções sociais com atuações
militarizadas denominadas como política de segurança pública, intensificando o
continuum carcerário, descrito por Foucault. Delegacias Legais com psicólogos e
assistentes sociais para atendimento à população, Unidades de Polícia Pacificadora em
favelas com projetos sociais (UPPs Sociais), são só alguns exemplos do “enlace das
ações estratégicas de segurança com os programas sociais existentes”, como objetiva o
PRONASCI. Mais do mesmo!
Segundo Batista (2012), precisamos produzir um mapa que demonstre a
coincidência territorial entre a produção de conhecimento que legitima tais modos de
gestão da pobreza e o aumento do extermínio dessa camada da população. “São essas
pesquisas tautológicas que fornecerão a „comprovação científica‟ da relação entre
32
pobreza e a criminalidade, produzindo argumentos para a expansão do poder punitivo
em todas as direções” (Batista, 2012, p. 309). Batista cita Zaffaroni, que defende a ideia
de que para que aconteça o extermínio é imprescindível que antes se formule um
discurso legitimante. Geoprocessamentos, realizados através de sofisticados softwares
para controle social, agenciam dados das políticas ditas sociais, com informações da
rede penal ampliada, entrecruzando múltiplas conexões com outras conexões,
construindo estatísticas que comprovem a necessidade de intervenções em seletivas
comunidades para um, também, seleto público alvo. Biopolíticas!
1. Sociedade de Segurança
Foucault denominou como biopolítica o poder, que a partir do século XVIII,
buscou racionalizar os problemas colocados para a prática governamental pelos
fenômenos próprios de um conjunto de viventes enquanto população. Um poder voltado
muito mais em se fazer viver, e de como se viver, do que, exatamente, um poder de
fazer morrer. Um poder exercido para se ampliar a vida, preocupado com a população,
entidade biológica que deve ser levada em consideração, se
queremos, precisamente, utilizar essa população como máquina
para produzir, para produzir riquezas, bens, para produzir outros
indivíduos. O descobrimento da população é, ao mesmo tempo que
o descobrimento do indivíduo e do corpo adestrável, o outro núcleo
tecnológico em torno ao qual os procedimentos políticos do
ocidente se transformam. A maneira pela qual, a partir do século
XVIII, se buscou racionalizar os problemas colocados para a
prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto
de viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade,
longevidade, raça (Foucault, 2010, p. 197).
Esse poder de intervir na vida, para controlar os acidentes, o aleatório, os riscos,
as deficiências só é possível através de uma arte de governar sob a razão de Estado. Para
isso, a polícia é um instrumento decisivo no modo de governamentalização do Estado.
A polícia tem como função, no século XVIII, ser o aparelho de cálculo e de técnica que
possibilitará ao Estado estabelecer uma relação móvel, porém, estável e controlável,
entre a ordem interna do Estado e o crescimento de suas forças. Estado de polícia.
33
Esse Estado de polícia é caracterizado pelo interesse, por parte do Estado, pelo
que fazem os homens, suas atividades, suas ocupações. Temos um Estado de polícia
quando há o controle ou a tentativa de controle das atividades dos homens na medida
em que essas atividades possam constituir um elemento diferencial no desenvolvimento
das forças do Estado.
Deste modo, a polícia deve se ocupar com o número de homens, com suas
necessidades, com sua vida, com a saúde da população, com a circulação de
mercadorias. “De maneira geral, no fundo, o que a polícia vai ter de regular e que vai
constituir seu objeto fundamental são todas as formas, digamos, de coexistência dos
homens uns em relação com os outros” (Foucault, 2008, p. 437).
A preocupação com a saúde da população e seu bem-estar passam a ser objeto
de governo. A governamentalização do Estado produz “saber sobre essa população, por
meio de cálculos e medições estatísticas, que permitirá sua atuação sobre ela tendo
como instrumento específico a polícia, utilizada como técnica de governo que realiza o
esplendor do Estado” (Augusto, 2011, p. 21).
Em resumo, com a preocupação crescente do Estado com a vida dos indivíduos,
empenhado em fazer com que vivam cada vez mais e melhor, a polícia deve ser capaz
de articular a força do Estado e a necessidade crescente de felicidade dos indivíduos.
“Fazer da felicidade dos homens a utilidade do Estado, fazer da felicidade dos homens a
própria força do Estado” (Foucault, 2008, p. 439), eis o objetivo da polícia.
Como podemos perceber, a definição de Foucault sobre a polícia no século
XVIII é muito diferente da instituição polícia que conhecemos hoje, principalmente em
lugares como o estado do Rio de Janeiro e suas práticas de repressão fascista e de
genocídio social.
Essa definição foucaultiana para polícia nos afasta da sua simples atuação
repressiva, mais conhecida de nós, brasileiros, para uma aproximação importante com
os investimentos estatais em políticas sociais, como duas faces de uma mesma moeda,
como intervenções policiais do Estado sobre a população como estratégia para a
ampliação das forças do Estado através da feliz obediência de sua população. Estado de
polícia. Mais do mesmo!
Foucault cita Von Justi que estabelece o objetivo desta arte de governar moderna
como sendo o desenvolvimento das condições de vida dos indivíduos como premissa
para o reforço da potência do Estado. Destaca a polícia como uma função positiva do
Estado e da sociedade civil favorecendo a saúde e, assim, dirigindo condutas da
34
população, “garantindo a moralidade e obediência dos cidadãos” (Augusto, 2011, p. 22).
Esse Estado de polícia implica uma série de objetivos quase que ilimitados, já
que se trata de se encarregar de uma rede de atividades dos indivíduos em suas mais
variadas modalidades. Porém, quem governa de acordo com uma razão de Estado tem
objetivos limitados (objetivos externos).
Foucault nos alerta que o governo segundo o Estado de polícia, ilimitado em
seus objetivos, requer certo número de mecanismos de compensação, linhas de
demarcação, uma fronteira para esses objetivos quase ilimitados que são prescritos ao
Estado de polícia pela razão de Estado. E tais linhas de demarcação, de limites para a
ação governamental deve ser exercida pelo próprio governo. Porém,
quem define essa limitação interna não pode ser os que governam,
mas a transação entre os que governam e os que são governados, já
que o governo é uma prática que não é imposta, mas uma prática
que fixa a definição e a posição dos governados e dos governantes
uns diante dos outros e em relação aos outros” (Foucault, 2008, p.
17).
Toda essa questão da razão governamental crítica vai girar em torno de como
não governar demais. Essa autolimitação fundamental da razão governamental é
possibilitada, segundo Foucault, pela economia política. E esse novo tipo de
racionalidade na arte de governar, esse “novo tipo de cálculo que consiste em dizer e em
fazer o governo dizer aceito, quero, projeto, calculo que não se deve mexer em nada
disso”, foi definido em linhas gerais por Foucault como sendo o “liberalismo”.
Essa razão governamental que tem por característica fundamental a busca do seu
princípio de autolimitação é, para Foucault, uma razão que funciona com base no
interesse, não do Estado inteiramente referido a si mesmo e que visa tão sua somente
seu crescimento, sua riqueza, sua população, sua força, como era o caso na razão de
Estado. Agora, o interesse a cujo princípio a razão governamental deve obedecer são
interesses, que fazem parte de um “jogo complexo entre os interesses individuais e
coletivos, a utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e o
regime do poder público, é um jogo complexo entre direitos fundamentais e
independência dos governados. O governo, em todo o caso o governo nessa nova razão
governamental, é algo que manipula interesses” (Foucault, 2008, p. 61).
São através dos interesses que o governo pode agir sobre os quase ilimitados
objetivos do Estado de polícia como os indivíduos, seus atos, suas palavras, as riquezas,
35
recursos, propriedade, seus direitos, etc.
Para Foucault, esse é o ponto de deslocamento entre a antiga e a nova razão,
entre a razão de Estado e a razão de um “Estado mínimo”.
A partir de então o governo já não precisa intervir, já não age
diretamente sobre as coisas e sobre as pessoas, só pode agir, só está
legitimado fundado em direito e em razão para intervir na medida
em que o interesse, os interesses, os jogos de interesse, tornam
determinado indivíduo ou determinada coisa, determinado bem ou
determinada riqueza, ou determinado processo, de certo interesse
para os indivíduos, ou para o conjunto dos indivíduos, ou para os
interesses de determinado indivíduo confrontados ao interesse de
todos, etc. O governo só se interessa pelos interesses (Foucault,
2008, p. 62).
Portanto, o governo passa a ser exercido sobre os interesses. O liberalismo tem
como questão fundamental saber qual o valor de utilidade do governo e de todas as
ações do governo numa sociedade em que é a troca que determina o verdadeiro valor
das coisas – veridição do mercado.
A liberdade, na arte de governar do liberalismo, está no cerne dessa prática ou
dos problemas que são postos a essa prática.
Foucault nos alerta ao utilizar a palavra “liberal”, que a utiliza por ser uma
prática de governo que não se contenta apenas em respeitar esta ou aquela liberdade,
garantir esta ou aquela liberdade, mas, mais profundamente, é consumidora de
liberdade. Ela só pode funcionar se existe efetivamente certo número de liberdades.
“Liberdade de mercado, liberdade do vendedor e do comprador, livre exercício do
direito da propriedade, eventualmente, liberdade de discussão”. A nova razão
governamental necessita, portanto, de liberdade, do consumo de liberdades.
Consome liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a
produzi-la, é obrigada a organizá-la. A nova arte governamental
vai se apresentar, portanto como gestora de liberdade, não no
sentido do imperativo, „seja livre‟, com a contradição imediata que
esse imperativo pode trazer. (...). Com isso, embora esse
liberalismo não seja tanto o imperativo da liberdade, mas a gestão e
a organização das condições graças às quais podemos ser livres
(Foucault, 2008, p.87).
Foucault coloca no cerne da questão do liberalismo uma relação de
produção/destruição em relação à liberdade.
36
Nós queremos liberdade. Mas aqui, não temos nenhuma. Nem no
projeto, nem aqui no bairro. Não temos nada pra fazer e tudo aqui
é perigoso (...) (M.A. Diário de campo, 28/06/2011).
Liberdade como produção. Fabricada. O liberalismo se propõe a fabricá-la a
cada instante, suscitá-la, produzi-la, levando em conta uma série de problemas que sua
produção traz. Segundo os estudos de Foucault, o princípio de cálculo do custo de
fabricação da liberdade é, precisamente, o que chamou de segurança. Essa arte liberal
de governo se vê obrigada a determinar exatamente em que medida e até que ponto o
interesse individual, os diferentes interesses – individuais no que têm de divergente uns
dos outros, eventualmente de opostos – não constituirão um perigo para o interesse de
todos. O problema de segurança seria: proteger o interesse coletivo contra os interesses
individuais.
Em suma, a todos esses imperativos – zelar para que a mecânica
dos interesses não provoque perigo nem para os indivíduos nem
para a coletividade – devem corresponder estratégias de segurança
que são, de certo modo, o inverso e a própria condição de
liberalismo. A liberdade e a segurança, o jogo liberdade e
segurança – é isto que está no âmago dessa nova razão
governamental (...) (Foucault, 2008, p. 89).
No liberalismo não é apenas uma proteção externa ao próprio indivíduo que
deve ser garantida. Ele, o liberalismo, se insere num mecanismo em que terá a cada
instante, de arbitrar a liberdade e a segurança dos indivíduos em torno da noção de
perigo. Nesta arte de governar se manipula fundamentalmente os interesses, porém,
como reverso da mesma moeda, ele não pode manipular os interesses sem ser ao mesmo
tempo gestor dos perigos e dos mecanismos de segurança/liberdade, do jogo
segurança/liberdade que deve garantir que a população fique o menos possível, exposta
aos perigos.
Foucault salienta que o lema do liberalismo é “viver perigosamente”. Isso
significa que os indivíduos são postos perpetuamente em situação de perigo, ou antes,
são condicionados a experimentar sua situação, sua vida, seu presente como portadores
de perigo. Toda uma educação do perigo, toda uma cultura do perigo, com o
“aparecimento, emergência, invasão dos perigos cotidianos, perigos cotidianos
perpetuamente animados, atualizados, postos, portanto, em circulação pelo que
poderíamos chamar de cultura política do perigo no século XIX, que tem toda uma série
de aspectos” (Foucault, 2008, p. 90). O primeiro desses aspectos é o incentivo ao medo
37
do perigo, que é de certo modo a condição, “o correlato psicológico e cultural interno do
liberalismo. Não há liberalismo sem cultura do perigo” (Foucault, 2008, p. 90).
A segunda consequência diagnosticada por Foucault desse liberalismo e dessa
arte liberal de governar é a formidável extensão dos procedimentos de controle, de
pressão, de coerção que vão constituir como que a contrapartida e o contrapeso das
liberdades.
A terceira consequência do liberalismo é o aparecimento de mecanismos com a
função de ampliar, produzir, insuflar as liberdades, introduzir um “a mais” de liberdade
por meio de um a mais de controle e de intervenção. No panoptismo, o controle era o
contrapeso necessário à liberdade. Aqui, segundo Foucault, ele é o seu princípio motor.
Posteriormente, em seu estudo, Foucault chega ao que chamou de crises de
governamentalidade. Estas podem se dar por um aumento do custo econômico do
exercício das liberdades ou, pode vir da inflação dos mecanismos compensatórios da
liberdade. Uma série de processos de saturação que fazem com que os mecanismos
produtores de liberdade, os mesmos que foram convocados para assegurar e fabricar
essa liberdade produzam, na verdade, efeitos destrutivos que prevalecem até mesmo
sobre o que produzem.
2. Neoliberalismo
Mercado. Liberdade. Capital humano. Interesse. Habilidades. Aptidões.
Desenvolvimento. Empreendedorismo.
O neoliberalismo americano desenvolvido pela Escola de Chicago surge para
tentar, à sua maneira, findar a crise pela qual o liberalismo passava.
Esse modelo neoliberal de governo é, e Foucault faz questão de enfatizar isso,
todo um modo de ser e de pensar, não apenas uma alternativa como modelo de governo
ou como uma técnica entre governantes e governados.
Foucault realiza sua análise sobre o neoliberalismo americano se detendo em
particular, em dois elementos que são “ao mesmo tempo métodos de análise e tipos de
programação: primeiro, a teoria do capital humano e, segundo, (...) o programa da
análise da criminalidade e da delinquência” (Foucault, 2008, p. 302).
A análise da criminalidade e da delinquência realizada por Foucault nos
possibilita discutir o PRONASCI aproximando-o, definitivamente, da Escola de
38
Chicago e do neoliberalismo, findando assim sua pretensa inovação progressista.
A análise dos comportamentos não-econômicos através da grade de
inteligibilidade econômica e o modo de relação do mercado com o Estado, não mais no
sentido de autolimitação do Estado, mas como uma espécie de tribunal contra o
governo, são demarcados por Foucault, como os dois traços que se encontram na
análise, dos neoliberais, da criminalidade e do funcionamento da justiça penal. Ou seja,
para os reformadores do direito penal no século XVIII a questão posta era de fato uma
“questão de economia política, no sentido de que se trata de uma análise econômica, ou
de uma reflexão em todo caso de estilo econômico, sobre a política ou sobre o exercício
de poder” (Foucault, 2008, p. 340). Surge todo um pensamento calcado sobre o custo da
delinquência.
A lei surge como a solução mais econômica para punir devidamente as pessoas e
para e maneira mais eficaz. Com isso, se define o crime como uma infração a uma lei
formulada. Adotada a partir de um princípio econômico, a lei busca obter a punição e a
eliminação das condutas consideradas nocivas à sociedade. Para Foucault, o homo
penalis, o homem que é penalizável, o homem que se expõe à lei e pode ser punido pela
lei, esse homo penalis é, no sentido estrito, um homem oeconomicus. “E é a lei que
permite, precisamente, articular o problema da penalidade com o problema da
economia” (Foucault, 2008, p. 341).
Porém, Foucault nos adverte que no século XIX, essa economia levou a um
efeito paradoxal no qual a lei sanciona atos que a infringem. Mas, por outro lado, a
necessidade de punir, a gradação na punição e a aplicação efetiva da lei penal só tinham
sentido na medida em que, é claro, não se punia um ato.
Só tinha sentido na medida em que se pune um indivíduo, um
indivíduo infrator que se trata de punir, de emendar, de dar um
exemplo a outros possíveis infratores. De modo que, nesse
equívoco entre uma forma da lei que define uma relação com o ato
e a aplicação efetiva da lei que só pode visar necessariamente um
indivíduo, nesse equívoco entre o crime e o criminoso, vê-se como
pôde se desenhar uma tendência interna a todo o sistema (...) em
direção a uma modulação cada vez mais individualizante da
aplicação da lei e, por conseguinte, reciprocamente, a uma
problematização psicológica, sociológica, antropológica daquela a
quem se aplica a lei. Ou seja, o homo penalis está derivando, ao
longo de todo o século XIX, para o que se poderia chamar de homo
criminalis (Foucault, 2008, p. 342).
Todo esse caminho que vai fazendo do homo penalis ao homo criminalis vai
39
substituindo toda a rigorosa e econômica mecânica da lei por toda uma “inflação de
saber, uma inflação de conhecimentos, uma inflação de discursos, uma multiplicação
das instâncias, das instituições, dos elementos de decisão, e toda a parasitagem da
sentença em nome da lei por medidas individualizantes em termos de norma” (Foucault,
2008, p. 342).
Porém, para Foucault, os neoliberais não se preocupam com a história. Fixam-se
em uma análise puramente econômica, a um homo oeconomicus e, a partir disso, veem
como o crime e, talvez, a criminalidade, podem ser analisados. Contudo, Foucault
salienta que o cálculo utilitário, o problema do homo oeconomicus, é mantido, sem ter
em vista uma tradução imediata dessa problemática nos termos e nas formas de
estrutura jurídica.
Para analisar o problema do crime por uma chave de inteligibilidade econômica,
os neoliberais buscaram definir o que é crime, ou seja, é o que faz com que um
indivíduo corra o risco de ser condenado a uma pena. Com isso, há um deslocamento do
ato para o sujeito do ato, o individuo. É esse deslocamento para o sujeito individual,
para sua motivação de cometer o ato criminoso, que pode torná-lo, pela perspectiva da
rede de inteligibilidade do seu comportamento, um comportamento econômico.
Só se torna o sujeito homo oeconomicus, o que não quer dizer que
o sujeito por inteiro seja considerado homo oeconomicus. Em
outras palavras, considerar o sujeito como homo oeconomicus não
implica uma assimilação antropológica de todo comportamento,
qualquer que seja, a um comportamento econômico. Quer dizer
simplesmente que a grade de inteligibilidade que será adotada para
o comportamento de um novo indivíduo é essa. Isso quer dizer
também que o indivíduo vai se tornar governamentalizável, que só
vai poder agir sobre ele na medida em que, e somente na medida
em que, ele é homo oeconomicus. Ou seja, a superfície de contato
entre o indivíduo e o poder que se exerce sobre ele, por
conseguinte o princípio de regulação do poder sobre o indivíduo,
vai ser essa espécie de grade do homo oeconomicus. O homo
oeconomicus é a interface do governo e do indivíduo. E isso não
quer dizer de forma alguma que todo indivíduo, todo sujeito, é um
homem econômico” (Foucault, 2008, p. 245-246).
Para Foucault, o sistema penal terá de se ocupar não com a realidade dupla do
crime e do criminoso, mas sim, com uma conduta, uma série de condutas que tragam
uma espécie de lucro para seus atores. O sistema penal age sobre esses indivíduos
tentando reagir a uma oferta de crimes. A preocupação econômica com a criminalidade
promove a punição de modo que os efeitos nocivos da ação criminosa possam ser
40
anulados ou prevenidos.
Uma série de mecanismos começa a ser pensada, de modo ecológico, para
intervir na oferta de crimes. A Escola de Chicago propõe investimentos em ações
preventivas e sociais, em áreas delimitadas, definidas através de dados estatísticos
específicos, como áreas de risco. Tal procedimento se justifica pela ideia que a
discriminação do território leva os habitantes dessa área a avaliar o custo/benefício de
uma possível ação criminosa. Cálculo econômico. Crime e capital.
O endurecimento das penas e a intensificação da vigilância fazem o
potencial criminoso avaliar que o risco de cometer um crime é alto:
a diversificação de programas de assistência, formação
profissional, moradias populares, equipamentos de lazer e
complementação de renda levam os habitantes das áreas de risco a
avaliar que é mais vantajoso obedecer às leis do Estado. Trata-se,
portanto, não mais de um projeto de normalização do indivíduo
biológico, mas um investimento no ambiente em que vive como
meio de produzir obediência pelo cálculo econômico racional de
custo e benefício (Augusto, 2011, p. 26).
Investimento no ambiente – produção de interesses. Manejo de interesses.
Controle pelo desejo. Produção de obediência. Cálculo racional de custo e benefício.
3. Capital humano
Outra linha de análise utilizada por Foucault para pensar o neoliberalismo como
modo de governo das condutas é a teoria do capital humano. Primeiramente, por se
constituir como uma incursão da análise econômica em um campo até então
inexplorado. E, em decorrência disso, permitir a possibilidade de reinterpretar em
termos econômicos e “em termos estritamente econômicos, todo um campo que, até
então, podia ser considerado, e era de fato considerado, não-econômico” (Foucault,
2008, p. 302).
A economia passa a ser definida como a ciência do comportamento humano,
como análise da racionalidade interna, da programação estratégica da atividade dos
indivíduos. Essa análise sobre a teoria do capital humano é fundamental para pensarmos
as atuais estratégias sociais e educacionais para a juventude.
41
À medida que determinados valores econômicos migram da economia para
outros domínios, disseminando-se socialmente, ganham forte poder normativo,
instituem processos e políticas de subjetivação que vêm transformando sujeitos de
direitos em indivíduos-empresas. Toda uma lógica neoliberal de produção de sujeitos
empreendedores, empresários de si mesmos.
O neoliberalismo americano imprime duas importantes novidades em seu tipo de
economia política: primeiramente, um deslocamento no qual o objeto de governo e de
análise não se restringe ao Estado e seus processos econômicos, mas à sociedade (as
relações sociais, as sociabilidades, os comportamentos dos indivíduos). Em segundo, o
mercado funciona no neoliberalismo americano como chave de decifração, responsável
por revelar algo como verdade, funcionando como princípio de inteligibilidade, do que
sucede à sociedade e ao comportamento dos indivíduos, “constituindo-se como (se fosse
a) substância ontológica do „ser‟ social, a forma (e a lógica) mesma desde a qual, com a
qual e na qual deveriam funcionar, desenvolver-se e se transformar os fenômenos
sociais, assim como os comportamentos de cada grupo e de cada indivíduo” (Gadelha,
2009, p. 144).
O trabalhador neste regime neoliberal de governo é considerado pela análise
econômica não como um objeto de uma oferta e de uma procura na forma de força de
trabalho, mas como um sujeito econômico ativo. Sendo assim, o salário do trabalhador
que é tido como renda, passa a ser visto como rendimento de um capital. E capital, para
os neoliberais, é, de uma maneira ou de outra, uma fonte de renda futura. Salário como
renda de um capital. O capital do qual a o salário é a renda é um conjunto de fatores
físicos e psicológicos, aptidões e competências que tornam uma pessoa capaz de ganhar
este ou aquele salário.
Capital humano. Um conjunto de habilidades, capacidades, aptidões humanas
que adquirem valor de mercado e se apresentam como capital, como soma de valores de
troca. Capital humano como capital-competência que recebe, em função de variáveis
diversas, certa renda que é o salário, e o próprio trabalhador aparece, a partir desse
momento, como uma espécie de empresa para si mesmo, empresário de si.
Da noção de homo oeconomicus, ou seja, do homem da troca, como parceiro da
troca, no neoliberalismo tal noção assume o sentido de empresário de si mesmo. As
análises dos neoliberais substituem, “a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da
troca por um homo oecomomicus empresário de si mesmo, sendo para si mesmo a fonte
de sua renda” (Foucault, 2008, p. 310).
42
Temos uma governamentalidade biopolítica neoliberal. Um modo de governo
dos homens realizado por formas flexíveis e sutis de controle das populações e dos
indivíduos tal como elas se exercem por meio das regras neoliberais da economia de
mercado globalizado, para além dos domínios limitados da soberania política
tradicional.
O novo axioma biopolítico vigente nas sociedades liberais de
massa e mercado do segundo pós-guerra já não se encontra mais
exclusivamente na dependência de incentivos e das ações do poder
soberano que faz viver e deixa morrer certas parcelas da
população. Para a biopolítica neoliberal, por outro lado, é preciso
governar para o mercado, em vez de governar por causa do
mercado (Duarte, 2009, p. 46).
Importa pensarmos aqui uma das questões importantes do neoliberalismo. Se o
capital humano, essa competência-máquina geradora de renda, depende de certos
atributos, competências, habilidades para a produção de mais renda, de que é composto,
então, esse capital? De que modo é possível a constituição e acumulação desse capital
humano? São essas perguntas que tornam possíveis a aplicação de análises econômicas
a campos e áreas que são totalmente novos, inexplorados, neste regime neoliberal de
governo dos homens.
O capital humano, segundo os neoliberais, é composto de elementos inatos e de
elementos que seriam adquiridos pelos indivíduos. Foucault cita Schultz para quem a
constituição do capital humano só tem interesse para os economistas na medida em que
este capital se constitui graças à utilização de recursos que seriam raros. A preocupação
passa a ser nos modos mediantes os quais os indivíduos buscam produzir e acumular
capital humano.
Sim, são os indivíduos que passam a investir na aquisição e acumulação desse
capital humano. Passam a fazer de si mesmos uma empresa, se tornam voluntariamente
empreendedores de si e de seu capital. Esse modo de governo neoliberal, essa nova
modalidade de governamentalidade, utiliza programas de educação continuada que
nunca terminam, como mencionado por Deleuze em seu pós-scriptum sobre a sociedade
de controle, como estratégias de acumulação de conhecimentos, de habilidades, de
características pessoais, ou seja, de capital.
Essa nova modalidade de governamentalidade é engendrada, como já dissemos,
tendo na economia e no mercado sua chave de decifração, seu princípio de
43
inteligibilidade.
Trata-se
de
uma
governamentalidade
que
busca
programar
estrategicamente as atividades e os comportamentos dos indivíduos; em última
instância, um tipo de governamentalidade que busca programá-los e controla-los em
suas formas de agir, sentir, pensar e de situar-se diante de si mesmos, da vida que levam
e do mundo em que vivem, através de determinados processos e políticas de
subjetivação. “Novas tecnologias gerenciais no campo da administração (management),
práticas e saberes psicológicos voltados á dinâmica e á gestão de grupos e das
organizações, propaganda, publicidade, marketing, literatura de auto-ajuda, etc.”
(Gadelha, 2009, p. 151).
Este modo de governo dos homens utiliza, assim, o princípio do mercado para a
análise das relações sociais favorecendo toda uma
renovação conservadora que passa a ver na restauração da família,
do matrimônio e da educação rígida dos filhos investimentos para
esse homem-empresa obter lucros como um homo economicus, de
onde se depreende, também, as funções fundamentais do Estado
com investimentos em saúde e educação da população (Augusto,
2011, p. 25).
Produção de competências, habilidades, conhecimentos, capital humano. Um
conjunto de investimentos feitos no próprio homem, muitas vezes, por ele mesmo.
Investimentos em capital humano orientam políticas da direita conservadora e de ditas
esquerdas. Políticas sociais, políticas educacionais, políticas culturais.
Definitivamente, a economia utilizada como instrumento de decifração,
veridicção e inteligibilidade de fenômenos sociais. Uma inversão das relações sociais
com as econômicas produzindo a “forma empresa” no interior do corpo ou do tecido
social” (Foucault, 2008, p. 331). Essa “forma empresa” espraiada pelo tecido social
modula as relações entre os indivíduos e de cada um consigo mesmo. Uma decifração e
modelização dos comportamentos sociais a partir de valores e crenças econômicas.
Políticas e programas sociais aferidos a partir da relação custo-benefício, do
investimento-lucro, assim como as relações pessoais de si para consigo.
4. Poder Pastoral
44
Ao pesquisar os mecanismos de poder nos séculos XVIII e XIX, Foucault
percebeu que um poder disciplinador e normalizador que se exercia principalmente em
corpos individualizados, definido por ele como uma “anátomo-política do corpo” já
estava se compondo com outro mecanismo, que se concentrava na figura do Estado e se
exercia como política estatal pretendendo administrar a vida e a população crescente.
Uma biopolítica. Um conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie
humana, constituem suas características biológicas fundamentais se tornam alvos
políticos, em uma estratégia geral do poder. Para Foucault, a análise dos mecanismos de
poder tem o papel de “mostrar quais são os efeitos de saber que são produzidos em
nossa sociedade pelas lutas, os choques, os combates que nela se desenrolam, e pelas
táticas de poder que são os elementos dessa luta” (Foucault, 2008, p. 175).
Estudando a gênese de um saber político que viria a se preocupar, sobretudo,
com o corpo-espécie, com a noção de população e com suas formas de regulação,
Foucault elabora o conceito de governo, ou seja, “tipos de racionalidade que envolvem
conjuntos de procedimentos, mecanismos, táticas, saberes, técnicas e instrumentos
destinados a dirigir a conduta dos homens” (Gadelha, 2009, p. 120), e de
governamentalidade como o
conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, as
análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer
essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que
tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a
economia política e por instrumento técnico essencial os
dispositivos de segurança” (Foucault, 2008, p. 143).
Neste momento de sua trajetória intelectual, Foucault se preocupa com os modos
de “governo dos homens”, com a “arte de governar”. A partir desses estudos, formula a
noção de poder pastoral, identificando um governo dos indivíduos através de uma série
de atividades de direção da consciência. Tal atividade, segundo Foucault, foi
introduzida no mundo ocidental por intermédio da Igreja cristã.
Foi a igreja cristã que coagulou todos esses temas de poder pastoral
em mecanismos precisos e em instituições definidas, foi ela que
realmente organizou um poder pastoral ao mesmo tempo específico
e autônomo, foi ela que implantou seus dispositivos no interior do
Império Romano e que organizou, no coração do Império Romano,
um tipo de poder que, creio eu, nenhuma outra civilização havia
conhecido (Foucault, 2008, p. 174).
45
O pastorado cristão organizou uma prática, muito diferente das que aconteciam
na Grécia antiga, denominada por Foucault como uma instância de obediência pura,
simplesmente. O pastor é aquele que cuida individualmente de cada ovelha e que zela
pela salvação de cada uma, dispensando os cuidados necessários a cada uma em
particular.
Mas, ao mesmo tempo – e é este o paradoxo sobre o qual gostaria
de insistir -, o homem ocidental aprendeu durante milênios o que
nenhum grego sem dúvida mais teria aceitado admitir, aprendeu
durante milênios a se considerar uma ovelha entre as ovelhas.
Durante milênios, ele aprendeu a pedir sua salvação a um pastor
que se sacrifica por ele” (Foucault, 2008, p. 174).
Essa relação da ovelha com aquele que a dirige, segundo Foucault, é uma
relação de dependência integral. Foucault (2008) extrai três questões dessa dependência
integral: a primeira seria uma relação de submissão, não a uma lei ou a um princípio da
ordem, ou a injunções racionais, como os gregos, mas uma relação de submissão de um
indivíduo a outro indivíduo. Isso porque a relação estritamente individual, o
correlacionamento entre um indivíduo que dirige e outro que é dirigido, é não apenas
uma condição, mas o princípio mesmo da obediência cristã.
A segunda questão pensada por Foucault, é que a relação pastoral não é
finalizada, o momento em que a relação de dependência do outro indivíduo é suspensa
ou até invertida não acontece. Na relação pastoral, em sua obediência, não há finalidade,
porque aquilo a que a obediência cristã leva é a própria obediência. Obedece-se para ser
obediente, para alcançar um estado de obediência. Um estado de obediência no qual há
a renúncia à vontade. É ser humilde, saber que toda a vontade própria é uma vontade
ruim. A finalidade da obediência é a mortificação da vontade, “que não haja outra
vontade senão a de não ter vontade” (Foucault, 2008, p. 235). Seria isso, a apátheia
cristã.
Por conseguinte, o páthos que deve ser conjurado por meio das
práticas da obediência não é a paixão, é antes a vontade, uma
vontade orientada para sim mesma, e a ausência de paixão, a
apátheia, vai ser a vontade que renuncia a si mesma e que não para
de renunciar a si mesma (Foucault, 2008, p. 236).
Foucault aponta que o poder pastoral produz um modo de individualização que
não passa pela afirmação do eu, mas ao contrário, implica em sua destruição.
46
A terceira questão apontada por Foucault sobre esta dependência integral
produzida pelo governo pastoral é o problema da verdade. A reação do pastorado com a
verdade, com o ensino passando a ser exercido como uma direção da conduta cotidiana
do indivíduo. Não se trata apenas de ensinar o que se deve saber e o que se deve fazer.
Trata-se de uma modulação cotidiana, o ensino passa por uma observação, uma
vigilância, uma direção exercida a cada instante sobre a conduta integral, total, das
ovelhas. Um ensino integral e, ao mesmo tempo, um olhar exaustivo do pastor sobre a
vida das suas ovelhas.
Outro aspecto concernente à relação do pastorado com a verdade é a que tange à
direção da consciência. Foucault enfatiza que o pastor não deve simplesmente ensinar a
verdade, mas, também, dirigir a consciência. E para dirigir a consciência da ovelha é
necessário um exame de consciência. Esse instrumento da direção da consciência, o
exame, na prática cristã não tem como função assegurar ao indivíduo o controle de si.
Pelo contrário, nesta prática de “ir ao pastor dizer o que você fez, o que você é, o que
sentiu, as tentações a que foi submetido, os maus pensamentos que deixou em si, serve
para melhor ancorar a relação de dependência ao outro” (Foucault, 2008). E o indivíduo
assim, formar a cada instante, pelo exame da sua consciência, certo discurso de verdade.
“Vai extrair e produzir a partir de si mesmo certa verdade, que vai ser aquilo através do
que vai estar ligado àquele que dirige sua consciência” (Foucault, 2008, p. 241).
(...) o pastorado cristão inova absolutamente ao implantar uma
estrutura, uma técnica, ao mesmo tempo de poder, de investigação,
de exame de si e dos outros pela qual certa verdade, verdade
secreta, verdade da interioridade, verdade da alma oculta, vai ser o
elemento pelo qual se exercerá o poder do pastor, pela qual se
exercerá a obediência, será assegurada a relação de obediência
integral (...) (Foucault, 2008, p. 242).
A partir daí, Foucault se preocupa com o estudo da conduta, ou seja, com a
atividade de conduzir, a maneira como a pessoa se conduz, o modo como se deixa
conduzir, a forma como é conduzida e como se comporta sob o efeito de uma condução.
5. O neoliberalismo e o PRONASCI
47
O projeto social PROTEJO é um dos inúmeros dispositivos produzidos pelo
Estado de polícia atual. As Unidades de Polícia Pacificadora (UPP‟s) e a política de
choque de ordem, ambas não por acaso, implantadas na cidade do Rio de Janeiro, as
internações compulsórias de crianças e jovens usuários de crack, ou a versão paulista,
que instaurou um choque de ordem na denominada cracolândia, para delírio dos
especuladores imobiliários locais, são exemplos que demonstram que a polícia como
política social é uma técnica e, acima de tudo, um modo de pensar e viver. A
combinação entre ações sociais e práticas relativas à segurança policial nos remete à
produção de uma conduta policial em nós, uma produção de subjetividade policial
instaurada e reproduzida em nós/por nós, em nossas mínimas atividades diárias, em
nossos relacionamentos, gestos e pensamentos. Moralidade mínima neoliberal.
Sociedade de controle em segurança. O governo em nós.
As ações do Estado que procuram ser de ordem preventiva aos comportamentos
perigosos são um “desdobramento do poder pastoral, uma ressonância das políticas
sociais como prática de polícia para promoção da saúde da população e prosperidade do
Estado” (Augusto, 2011, p. 23), nunca para o fortalecimento da vida.
Mas como bem nos lembra Augusto, o exercício do poder e a prática policial
como componentes da biopolítica nunca foram exclusividades do Estado. Por isso,
como dissemos anteriormente, não podemos falar somente em Estado Penal. A Escola
de Chicago aposta na relação de vizinhança como modo de controle informal na
comunidade para dificultar uma desorganização social promovida pela mobilidade.
Cordeiro (2009), em estudo sobre os jovens do Jardim Catarina, em São Gonçalo/RJ,
conclui que a mobilidade dos jovens pela cidade tinha uma série de empecilhos, fazendo
com que os jovens tivessem muito dificuldade em sair da sua região de moradia. Seria
coincidência o fato dos jovens não conseguirem se locomover pela cidade, ficando
confinados na sua comunidade como uma verdadeira prisão a céu aberto?
Temos que perceber e diagnosticar onde e como essas práticas estão sendo
exercidas e como esse modo de subjetividade nos afeta. Como estamos sendo cúmplices
disso tudo que tanto criticamos?
Subjetividade policial. Empreendedor de si. Individuo-empresa. Capital humano.
Policial de si e dos outros. Governamentalidade policial da vida.
Vivemos em tempos onde o regime de controle e punição não recai apenas sob
os considerados anormais, perigosos, subversivos ou diferentes. O dispositivo da
periculosidade é cada vez mais extenso. Pessoas diagnosticadas como em risco social ou
48
em condições de dita vulnerabilidade passam a fazer parte de todo o arsenal de táticas e
estratégias do controle a céu aberto. Com isso, os “pobres e miseráveis de sempre”,
continuam como alvos dos mais atuais dispositivos e mecanismos de atualização da
suspeição generalizada. Em época do governo neoliberal, a política preventiva e seu
correlato inseparável, o controle, são exercidos amplamente através de penas
alternativas, tratamentos compulsórios, projetos sociais, culturais e esportivos nas
comunidades. Toda uma “assistência penal preventiva” (Passetti, 2007) é ampliada e
potencializada. O social e o penal não se aproximam simplesmente. Eles não se
separam.
Não podemos perder de vista que hoje, é através da noção de vulnerabilidade de
determinadas populações e seus territórios que toda uma lógica de intervenção opera. É
a atualização da periculosidade em vulnerabilidade que permite uma série de práticas de
governo de polícia, de polícia da vida.
É sob o controle a céu aberto, que a população suspeita de sempre, em seus
campos de concentração atuais, aparece incluída no fluxo da população vulnerável,
ampliando dispositivos de segurança acompanhados de detalhadas
localizações e mapeamentos de zonas de possíveis e imediatos
confrontos, delimitando as periferias e favelas (muitas vezes
corretamente renomeadas como comunidades), não mais como
áreas à margem do centro, mas como uma nova versão do campo
de concentração; e este não mais restrito à função de separar,
prender ou exterminar, mas de administrar, conter e convocar à
participação, segundo práticas específicas (...) (Passetti, 2007, p.
19).
É pelo clamor por segurança que o controle e seus incontáveis fluxos de
contenção e cooptação contribuem para a sociedade regida pela tolerância zero.
Segundo Passetti (2007) a sociedade de controle não suportando resistências contínuas,
pretende dissolvê-las com práticas de inclusão e pela ampliação de penalidades, próprias
dos controles jurídicos, policiais e normalizadores, e também, por políticas afirmativas e
compensatórias. Hoje, o governo neoliberal de controle a céu aberto se dá por fluxos de
penalidades, inclusão, empoderamento e gestão da vida, produzindo sobrevida e a
“normalização dos normais, provocando o apreço pelos controles e abjuração a qualquer
desvio” (Passetti, 2007, p. 28).
O que se pretende é a administração das zonas com déficits sociais ou em
situações de risco em torno das populações vulneráveis. A vulnerabilidade inerente à
49
vida somada aos fatores externos que potencializam sensações de vulnerabilidade ou
vulnerabilidades reais, colocam o “vulnerável” na condição de público-alvo da política
penal preventiva. Os cuidados, as políticas afirmativas, a convocação a participação,
servem para tutelar a vida enfraquecida que não suporta a própria fragilidade e requer
uma vida invulnerável.
6. Vulnerabilidade (s)
O conceito de vulnerabilidade, tão em voga na construção, instrumentalização e
implementação das políticas públicas e nas ciências sociais, hoje, é operado como
complemento ao conceito de risco. Surge entre nós, segundo Abramovay et al (2002)
designando uma situação em que os recursos e habilidades de um dado grupo social são
tidos como insuficientes e inadequados para lidar com as oportunidades oferecidas pela
sociedade. Estas oportunidades constituem uma forma de ascender a maiores níveis de
bem-estar ou diminuir probabilidades, de deterioração de vidas de determinados atores
sociais.
Hillesheim e Cruz (2009) citam Pereira e Souza (2006) para quem a
vulnerabilidade se destaca pela existência de um risco, pela incapacidade de responder
ao risco e inabilidade de adaptar-se ao perigo.
Lopes (2009) em brilhante estudo demonstra-nos como o conceito de
vulnerabilidade é útil para os modernos dispositivos de controle da vida. Para ele, o
termo provém da constatação das limitações dos estudos sobre pobreza que se baseavam
até a década de 1980 em indicadores de renda, em carências das necessidades básicas e
produto per capta bruto. A metodologia baseada na análise das condições de vida
baseadas no índice de desenvolvimento humano (IDH) criado pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/ONU) propõe-se a permitir uma visão
da evolução de diversos fatores que incidem positiva ou negativamente no modo de vida
e no acesso aos benefícios sociais, possibilitando interpretações sobre os riscos da
mobilidade social descendente e desvantagens do acesso a bens e serviços,
caracterizando a vulnerabilidade.
Esse autor cita Moser, Kaztman e Figueira (2001) para quem a relação negativa
entre a disponibilidade dos recursos materiais e a disponibilidade de recursos simbólicos
50
resulta na vulnerabilidade que está associada à carência de ativos sociais e à capacidade
dos sujeitos para mobilizá-los. Tais autores entendem como ativos sociais os recursos
necessários para qualquer família enfrentar dificuldades e mudanças externas relativas
ao trabalho, capital humano (educação), moradia, relações domésticas e capital social
(normas e redes sociais que facilitam a ação coletiva). Nessa concepção importa,
sobretudo, para conformar condições de vulnerabilidade os desajustes entre os ativos
disponíveis (recursos materiais e simbólicos) e a estrutura de oportunidades (educação,
trabalho, saúde, lazer e cultura), as possibilidades de acesso a programas de educação,
atividades culturais, profissionais, ao atendimento a vítimas de violência, etc., que
podem ser proporcionados tanto pelo Estado quanto pelo mercado ou a comunidade.
Mais uma vez podemos notar a equação custo/benefício, cara ao modo
neoliberal de governo das condutas, embasando e legitimando o conceito de
vulnerabilidade, que rege boa parte das políticas sociais no Brasil.
51
CAPÍTULO II
Vulneráveis e em risco social: enquadramentos da juventude pobre e seus efeitos.
Em todas as épocas se quis “melhorar” os homens:
isso, sobretudo, foi chamado de moral. Sob a mesma
palavra, porém, se escondem as mais diversas
tendências. Tanto a domesticação da besta homem
quanto o cultivo de um determinado gênero de homem
foram chamados de “melhoramento” (...). chamar a
domesticação de um animal de “melhoramento” soa
aos nossos ouvidos quase como um piada. Quem sabe
o que acontece nas exposições de feras duvida que
nelas a besta seja “melhorada”. Ela é enfraquecida,
tornada menos daninha, transformada numa besta
doentia, através do afeto depressivo do medo, através
da dor, dos ferimentos, da fome – não é diferente com
o homem domesticado que o sacerdote “melhorou”.
(...) falando fisiologicamente: na luta contra a besta,
torna-la doente pode ser o único meio de enfraquecêla. Isso a igreja entendeu: ela corrompeu o homem,
ela o enfraqueceu – mas pretendeu tê-lo
“melhorado”... (Nietzsche, 2009, p. 61).
Melhorar. Tutelar. Ensinar. Diagnosticar. Prescrever. Encaminhar. Enfraquecer.
Despotencializar. Controlar. Disciplinar. Modelar. Enquadrar. Normalizar.
***
Temos um Estado de polícia que atua associado e legitimado pela cultura do
perigo, própria do modo liberal de governo. Podemos perceber no Brasil, com sua
histórica criminalização das populações empobrecidas, como o condicionamento da
52
experimentação dos movimentos inerentes à vida como portadores de perigo,
influenciam nas políticas de governo para o endurecimento das penas, a intensificação
da vigilância e a extensão dos procedimentos de controle. Influenciam na produção de
subjetividades complacentes e aderentes à barbárie, a produção policial da vida. Uma
rede de proteção e controle que funciona na gestão de uma vida cada vez mais
enfraquecida e fragilizada. Mecanismos e dispositivos de segurança.
Habitantes de áreas consideradas como vulneráveis e em/de risco por
mecanismos estatísticos, softwares de georeferenciamento e toda uma rede de
assistência global à vida, os jovens pobres passam a ser a população alvo de várias
políticas de prevenção à violência e de inserção no mercado de trabalho, colados a um
estereótipo de perigo e risco à sociedade. Diversas práticas e saberes constroem um
determinado rosto para o jovem pobre. Toda uma máquina abstrata funcionando na
construção de rostos, num processo de rostificação da juventude pobre brasileira, com
uma política pautada pelo medo do imprevisível no jovem, pelo imprevisível da vida,
toda uma vida pautada na demanda por segurança.
São esses enquadramentos da juventude pobre que a atrela a um conjunto de
mecanismos, projetos e políticas que funcionam, legitimando tais enquadramentos num
processo de retroalimentação.
A produção da demanda por mecanismos de segurança, numa imensa rede de
assistência penal preventiva, na qual há a pretensão de prevenir aquilo que esperamos
está por vir, aproxima, cada vez mais, os jovens empobrecidos brasileiros do dispositivo
da periculosidade.
Para Foucault (2005), a noção da periculosidade surge na reforma penal no
século XVIII, na qual o indivíduo deve passar a ser controlado de acordo com o que
pode vir a fazer, considerado por suas virtualidades e não mais, apenas, ao nível dos
seus atos. Isso permite uma produção de toda uma rede de práticas preventivas e de
controle no campo social.
É necessário pensarmos nas atuais modulações do dispositivo da periculosidade,
e como este vem sendo operado na construção de políticas sociais. Vicentin (2010) nos
diz que a noção de periculosidade hoje, aproxima o perigo como algo da
“incontrolabilidade”, como aquilo ou aqueles que escapam à gestão institucional, se
tornando um resíduo institucional.
O novo resíduo tem algo de ameaçador no fato de não
53
corresponder, de não ser reconduzível e redutível a uma solução
institucional definida (...). Essa nova periculosidade em questão
gerada nos limites, residual com relação aos códigos interpretativos
e de intervenção das instituições que reproduzem a norma social
(...) é esta, quando o abandono e a vulnerabilidade se apresentam
como um problema „ingovernável‟, assumem certamente a forma
de distúrbio ou de perigo, tendendo a ingressar cada vez mais no
circuito da psiquiatrização ou da judicialização (Vicentin, 2010, p.
65).
Se considerarmos os não-íncluídos em mecanismos institucionais como
ingovernáveis, ingovernados ou perigosos, toda uma camada da população passa a ser
alçada a essas categorias e classificações. Pensamos aqui, com Agamben (2010), que
essa parcela da população é o início e o ponto de fuga de toda política. É nesse paradoxo
que nos interessa intervir, pois estamos no meio dele, vivendo-o intensamente.
Interessa-nos aqui, estar com os jovens participantes do projeto PROTEJO para
mapearmos alguns efeitos dessa política no seu “público-alvo”. Entendemos que esse
dispositivo captura os jovens legitimando determinados rostos: vulneráveis, em/de risco,
em risco criminal. Mas para, além disso, o que esse projeto coloca em funcionamento?
Que subjetividades produz?
1. Proteção dos Jovens em Território Vulnerável - PROTEJO
Os projetos sociais do PRONASCI, como tantas outras políticas de governo,
encontram-se na responsabilidade de Ong‟s, que muitas vezes não aceitam a
proximidade de pesquisadores em suas ações. Até mesmo localizar as Ong‟s
responsáveis pelo projeto PROTEJO foi tarefa árdua. Quando localizamos, o governo
do estado do Rio de Janeiro estava reformulando o projeto e passando a ser o
responsável direto pela implementação. Naquele momento, apenas a contratação de
pessoal para determinadas atividades, continuavam a ser incumbência de Ong‟s.
Assim que o projeto começou a ser executado pela Secretaria Estadual de
Assistência Social e Direitos Humanos do estado, conseguimos o contato dos
responsáveis e marcamos um encontro para tentar, enfim, ter acesso aos jovens
integrantes do PROTEJO. Marcada a reunião, encontramos o responsável e relatamos
qual era a nossa proposta: realizar oficinas que possibilitássemos discutir direitos
54
humanos em algumas comunidades que possuíam o projeto e permanecer em cada uma
delas por cerca de três meses. A proposta foi prontamente aceita. Estavam precisando de
profissionais para alguns “territórios” que já estavam com poucas ou nenhuma
atividade. Saímos de lá com a certeza que o início das atividades com os jovens era
questão de dias e esperávamos apenas saber as localidades e a data de início.
Porém, a entrada no projeto ainda iria ser um pouco demorada. O coordenador
da divisão responsável pelo PROTEJO foi exonerado com a troca de secretários no
governo estadual e tivemos que esperar a nomeação da substituta e sua disponibilidade
para nos atender.
Após um período relativamente longo, cerca de dois meses, conseguimos marcar
uma conversa com as duas coordenadoras do projeto. Ao chegar na sede da secretaria
de assistência do estado, nos deparamos com uma cena inusitada, porém, não incomum
ali. Um jovem transexual recebia voz de prisão de um policial militar na entrada do
prédio. A Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos se localiza no
prédio da Central do Brasil, no centro da cidade, e fica um andar acima da Secretaria
Estadual de Segurança Pública. Por isso, uma quantidade grande de policiais e agentes
penitenciários fica no saguão do prédio. Nenhum homem pode subir sem estar com
calça comprida, sapatos e documento de identificação. Foi justamente a falta de uma
calça que motivou a proibição da entrada do transexual e a posterior confusão que
resultou na “voz de prisão”. O rapaz, irritado por não poder ter acesso à secretaria de
assistência do estado, rasgou sua carteira de trabalho e disse que os policiais queriam
era que ele continuasse se prostituindo nas ruas para que continuassem a roubá-lo. Ao
escutar o policial dar voz de prisão ao rapaz, intervi e tentei acalmar o rapaz,
conseguindo tirá-lo dali. Porém, saiu sem o atendimento que buscava. E eu, havia,
novamente, presenciado o continuum carcerário atual. O social e penal estavam ali,
associados, de “mãos dadas”. E com muita força!
Retornando ao saguão, os policiais me olhavam de cara feia, mas como estava de
calça, sapato e documentado, permitiram minha entrada, embora tenha escutado piadas
com relação a minha bolsa do MST.
Chegando à sala para a reunião, a conversa transcorreu muito bem. Conversei
com as responsáveis pelo projeto PROTEJO e pelo projeto Mulheres da Paz. Ambas
disseram concordar com a proposta e a crítica que fiz aos pesquisadores da academia
55
que se dirigem às comunidades como, apenas, “sequestradores do saber” (Aguiar,
2003).
A proposta realizada por elas era de iniciarmos as oficinas na comunidade
Chatuba, município de Mesquita, “território” que segundo as coordenadoras, era o que
tinha o menor número de recursos disponíveis para os jovens do projeto e, inclusive,
estava praticamente sem atividades. Porém, as coordenadoras me alertaram quanto à
distância que teria que percorrer para chegar até lá e do perigo existente no “território”.
Um dos profissionais fora retirado às pressas de lá, segundo elas, devido aos “traficantes
do local”. Posteriormente, as oficinas aconteceriam no Complexo do Alemão.
A proposta apresentada constituía-se na realização de 12 oficinas com os jovens,
em cada comunidade, utilizando filmes e documentários que tivessem como tema a
violação aos direitos humanos. Em outros espaços6, já trabalhávamos com essa proposta
e considerávamos que seria um facilitador para a adesão dos jovens às oficinas. Em tais
espaços, presenciávamos, geralmente, um certo fascínio dos jovens pela violência. A
proposta inicial, então, seria buscar produzir uma transmutação do fascínio pela
violência, para um instrumento de luta contra as diversas formas de violência e de
violação aos direitos humanos.
A proposta de utilizar os documentários como provocação para conversas com
os jovens sobre direitos humanos levantou vários questionamentos em nosso grupo de
orientação coletiva7.
Os companheiros de mestrado e doutorado questionavam a
metodologia e a proposta das oficinas:
como você quer produzir luta contra a violência com
instrumentos como estes filmes que só produzem violência?
como busca produzir algo que escape a violência com
instrumentos tão viciados como estes filmes? “Você tentou
conversar com estes jovens e permitir que eles tragam o que
produzem para as oficinas?
por que ao invés de trabalhar com filmes que enfoquem a
violência você não faz o contrário e trabalhe com poesias do
Manoel de Barros?”, “ou com o teatro do oprimido? (diário
de campo, 10/04/2011).
6
Realizamos oficinas com jovens desde 2009 no Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis –
CDDH.
7
Dispositivo de orientação coletiva no qual um grupo de mestrando e doutorandos, com a supervisão da
professora Dra. Maria Lívia do Nascimento, discutíamos os textos de todos os integrantes durante o
percurso da pesquisa.
56
Depois dos questionamentos, da angústia e da inquietação produzidas nesse
dispositivo de orientação coletiva, percebi que, talvez, tais problemas fossem falsos
problemas. Estávamos discutindo questões que ainda não haviam surgido no campo.
Não era a questão da violência que nos levava até ali. O que nos levava para próximo
dos jovens do PROTEJO era o desejo de estar com eles, perceber o que escapava àquele
dispositivo de captura que objetiva acoplar políticas sociais com a esfera penal inflada
no Brasil. Consideramos importantes as oficinas para discutir direitos humanos, mas
como meio de estar ali com os jovens, conversando, sentindo, percebendo o que
acontece, as linhas que vão sendo construídas por eles, as sutilezas e delicadezas de um
projeto que associando esferas penais a projetos sociais, captura jovens produzidos
como em “risco criminal” por uma série de saberes e práticas, de mecanismos
estatísticos, de georeferenciamento e controle social.
Várias questões surgiram entre nós neste período: como seriam as oficinas?
Como trabalhar direitos humanos com os jovens? De que direitos humanos falávamos?
Será que eles queriam isso? Se não, o que queriam? Como seriam essas oficinas? Ou
seriam encontros?
Embora tivéssemos estas e outras tantas dúvidas ao pensar as oficinas-encontros
com os jovens, tínhamos alguns apontamentos bem delineados:
1) Não queríamos repetir o modelo no qual o projeto PROTEJO e, a maioria dos
projetos sócio-educativos se baseiam, ou seja, de ter metas pré-estabelecidas, um
caminho delineado para alcançar essas metas, sem respeitar o processo que vai se
construindo com os encontros. Uma formação com base em modelos de conduta,
prescritiva e moralizante.
2) Partiríamos de uma proposta que possibilitasse equivocar o sentido tradicional e
hegemônico de “direitos humanos”.
Essas oficinas nos possibilitariam estar com aqueles jovens, enquadrados como
“vulneráveis” e selecionados para o projeto pelas Mulheres da Paz, acompanhando os
movimentos, as forças em tensão existentes, os acontecimentos nestas zonas da cidade
57
classificadas como “em guerra”8. Mas o que escapava a tudo isso? O que estava ali,
presente, gritando, mas que ninguém ouvia? A questão, desde então, não era o conteúdo
das oficinas que aconteceriam, embora entendêssemos ser potente o exercício de
problematizar algumas questões com aqueles jovens. Mas outras surgiam com força:
conseguiríamos captar o que estava escapando daquele território (território “ocupado”,
na perspectiva da guerra) e no qual se construíam outros territórios (subjetivos)? Meu
corpo conseguiria ser tocado pelos movimentos disruptivos e intempestivos presentes
ali, porém, invisíveis?
Nossa proposta não era conscientizar jovens. Buscávamos realizar um trabalho
sobre nós mesmos, para que nossa militância não se efetuasse de modo doutrinador, mas
como uma militância por um modo de vida mais intenso, por uma vida mais viva, uma
vida que combata a produção de sobrevidas.
Estar ali, envolvido naquele dispositivo, acarretava uma nítida confusão entre o
pesquisador, o psicólogo e o militante em nós! Como era difícil nos despir de nossas
práticas instituídas! Assim como era difícil viver o incômodo em estar ali, de algum
modo, fazendo parte daquele dispositivo que tanto criticávamos.
Com Fuganti (2011) aprendemos que a crítica tem que ser contra a relação de
forças em nós que permite operações do poder. Combater em nós aquilo que possibilita
o que criticamos. Tarefa árdua pela frente.
Difícil tarefa essa de realizar um combate que não se dê no plano moralizante,
que fique declarando princípios, buscando um ideal, pois estamos encharcados disso.
Mas, buscávamos um combate como ato político, no qual a existência acontece no
imediato do devir, no imediato da sensibilidade, no acontecimento.
Realizar uma crítica, conforme a entende Deleuze (2006), não consiste em
justificar, mas em procurar outra sensibilidade. A filosofia como criação de conceitos é
necessária para que haja um rompimento com as “modalidades dominantes de pensar e
representar a subjetividade e que são inseparáveis de novos perceptos (novas maneiras
8
Desde meados da década de 1990 que a grande mídia pauta que há um estado de “guerra civil” no Rio
de Janeiro. Discordamos veementemente dessa afirmação que acarreta no extermínio dos jovens pobres e
negros moradores das favelas do estado do Rio nesse período. Para ampliação desse debate sugerimos a
leitura do texto de Coimbra, C. Produzindo o Mito da "Guerra Civil": Naturalizando a Violência,
2000. Disponível em: www.slab,uff.br
58
de ver e escutar) e de novos afectos (novas maneiras de sentir)” (Domènech, 2001, p.
121).
Os questionamentos ao modo como realizaríamos as oficinas, feitas pelo grupo
de orientação, produziu interpelações à metodologia de estar com os jovens. Mas
decidimos bancar a proposta. Considerávamos que poderia ser apenas uma proposta
para o início do trabalho e que à medida que os encontros fossem acontecendo
poderíamos alterá-la, a partir do que os jovens avaliassem. Colocar os encontros em
análise com eles, problematizando-os ou tornar os próprios encontros como
problemáticos. Com isso, o próprio PROTEJO poderia ser colocado em análise.
1.1 Metodológico ou como não fazer.
Tínhamos a cautela, já dita aqui, de não doutrinar nem, tampouco, conscientizar
os jovens. Buscávamos estar no campo sem a ideia vanguardista de libertação,
emancipação ou autonomia daqueles jovens que estivessem conosco nos encontros,
conceitos, estes, centrais no projeto político-pedagógico do PROTEJO. Segundo Silva
(2003), a promessa de autonomia re-introduz, pela porta dos fundos, a fantasia de um
sujeito soberano no pleno comando de seus atos. “Libertar significa restaurar uma
essência que foi alienada, corrompida ou pervertida. Libertar ou reprimir: a eterna
dialética que se resolve na re-instauração do mesmo – a consciência plena” (Silva, 2003,
p. 13).
Para nos deslocarmos dessa ideia de libertação e essência, o conceito de
produção de subjetividade é fundamental. Guattari (2005) propõe a ideia de uma
subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada,
modelada, recebida, consumida. Uma subjetividade em constante movimento e
produção. Deleuze (1996), frente à ideia de um eu essencializado, dotado de uma
identidade unitária, autônoma, privada, estável, de contornos fixos, pensa formas de
subjetividade múltiplas, heterogêneas, de confins fluídos.
Deleuze substitui a lógica do ser pela lógica da conjunção, substitui o “é”, que
identifica, pelo “e”, que relaciona: a identidade pela multiplicidade. “E o sujeito seria,
59
portanto, o espaço de conexão ou de montagem, contínua pre-posição, um dobrado
exterior. A dobra” (Domènech, 2001, p. 123).
Essa figura faz referência a processos, relações de movimento e
descanso, capacidades de afectar e ser afectado, definindo, pois,
modos de individuação que não correspondem a um sujeito e que,
por isso, não precisam do recurso a meta-teorias psicológicas ou
linguísticas (Domènech, 2001, p. 123).
Deste modo se desfaz o “mito da interioridade” (Silva, 2003), tão caro a
formulação do sujeito cartesiano, autônomo e soberano. Tal mito é essencial aos
diversos avatares do sujeito que povoam os territórios das pedagogias contemporâneas:
o cidadão participante, a pessoa integral, o indivíduo crítico.
A interioridade tem negócios com a consciência, com a
representação, com a intencionalidade. Privilegiar, em vez da
interioridade e suas figuras, as conexões e as superfícies de
contato, as dobras e as flexões, os poros e as fendas, os fluxos e as
trocas. Preferir, sempre, a exterioridade á interioridade (Silva,
2003, p. 11).
Importante pensar como, nesta perspectiva, fica o papel do intelectual-militantepesquisador. Guattari (2005) diz que aqueles a quem se convencionou denominar
“trabalhadores sociais” estão em uma “encruzilhada política e micropolítica
fundamental”
ou reproduzimos os modelos que não nos permitem criar saídas
para os processos de singularização ou, ao contrário, podemos
trabalhar para o funcionamento desses processos na medida de suas
possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para
funcionar. Isso quer dizer que não há objetividade científica
alguma nesse campo, nem uma suposta neutralidade na relação,
como a suposta neutralidade analítica (Guattari, 2005, p. 37).
Uma questão relevante para nós foi, desde o início, como colocar em
funcionamento ou como criar agenciamentos que contribuíssem para um processo de
singularização naquele dispositivo. Um dispositivo que buscava articular aspectos da
maciça prática penal atual e tudo que a isto está associado, com as políticas sociais que
nada mais são do que tentativas de ajustamento ao modelo dominante, funcionando
60
como mecanismo de compensação do flagelo imposto pelo capital tornado mundial e
integrado.
Dirigimo-nos para aqueles “territórios” com a pretensão de realizar intervenções
que possibilitassem, ao mesmo tempo, “elucidar” aquele campo de subjetivação e uma
intervenção efetiva no campo, tanto em seu interior como em suas relações com o
exterior. Análise de um dispositivo e um dispositivo de análise.
Como estar ali e perceber os agenciamentos possíveis, se tornava uma questão
para nós. Talvez, falávamos de um certo modo de nos relacionar, uma maneira de estar
nos encontros. Um possível encontro com a arte do encontro. O encontro como arte. A
ética dos encontros: experimentar!
Experimentar mais, interpretar menos (Deleuze, 2006). Criar um “desvio da
fala” (Deleuze, 2007). Criar a partir do que nos passa, do que nos afeta. Não comunicar,
não conscientizar. Já que a fala e a comunicação estão totalmente penetradas pelo
dinheiro, apodrecidas, segundo Deleuze, talvez, o importante venha a ser “criar
vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle” (Deleuze, 2007,
p. 217).
Para isso, é urgente acreditar no mundo. “Acreditar no mundo é o que nos falta.
Nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar
acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos
espaços-tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos” (Deleuze, 2007, p. 218).
Acreditar no mundo é ser digno dos acontecimentos, estar à altura deles. Não
ficar com a utopia de acreditar que “um outro mundo é possível”. O mundo se faz aqui,
nos acontecimentos que nos acontecem. Ao invés de uma utopia, uma heterotopia.
Apostávamos que os encontros com os jovens poderiam funcionar como um
disparador que possibilitasse, em alguns momentos, uma nova maneira de ser afetado
por questões tão cotidianas, que muitas vezes encontram-se banalizadas pelo modo
como são tratadas, exibidas, debatidas. Acreditávamos que a exibição de documentários
realizados pelos movimentos sociais9 poderiam produzir perspectivas diferentes
9
Exibimos nas oficinas com os jovens do PROTEJO os seguintes documentários: Entre muros e favelas,
Elas da favela, Brasil 8.069, Juízo e 788.
61
daquelas mostradas pela grande mídia e, que esse dispositivo-oficina, poderia contribuir
na produção de novos regimes de afetabilidade entre nós.
Mutações afetivas, outras condições de percepção, outra distribuição dos afetos e
outra circunscrição do intolerável. Seriam possíveis, naquele dispositivo, a partir das
nossas intervenções? Questões que deveríamos levar a campo, porém, com um grau de
abertura para as questões que o campo nos trouxesse! Sabíamos que este denominado
“grau de abertura” não se dá por decreto. Precisaríamos estar aberto para o vivo da
experiência. E só saberíamos se erámos capaz disso experimentando.
Bondía (2002) define a experiência como aquilo que se passa em nós, o que nos
acontece, o que nos toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,
quase nada nos acontece. A contradição é que apesar do ritmo de vida que levamos ser
cada vez mais intenso, a experiência é cada vez mais rara. O intenso neste sentido é
diferente do que é intensivo.
Para este autor, algumas características do nosso estilo de vida como o excesso
de informação, o excesso da fabricação de opinião, a falta de tempo, que impede a
conexão significativa entre acontecimentos, e o excesso de trabalho impossibilitam a
experiência.
Considerando que a experiência é “o que nos passa”, “o que nos acontece” e “o
que nos toca”, o sujeito da experiência seria
algo como um território de passagem, algo como uma superfície
sensível que aquilo que nos acontece afeta de algum modo, produz
alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios,
alguns efeitos (...). Espaço onde tem lugar os acontecimentos (...) o
sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua
recepção, por sua disponibilidade, por sua abertura (Bondía, 2002,
p. 26).
Experimentar o acontecimento. Acontecer no acontecimento. Ato intensivo, em
nada, planejado, objetivado.
É necessário responder ao acontecimento. „A única chance dos
homens está no devir revolucionário, o único a poder conjurar a
vergonha ou responder ao intolerável‟ só podemos responder aos
acontecimentos, porque não podemos mais viver em um mundo
que não mais suportamos, na medida em que não mais o
62
suportamos. Se é responsável
(Zourabichvili, 2000, p. 345).
diante
do
acontecimento.
Experimentar. Acontecer. Passar. Afetar. Destruir. Sentir. Perceber. Deslocar.
Nada disso é da ordem do decreto. Do voluntário. Da consciência. Da intenção. Intervir
tem algo de involuntário. O involuntarismo do devir.
Nessa perspectiva, é estranho acreditarmos em projetos de transformação do
mundo, segundo planos ou em função de uma meta. É fundamental percebermos que
tanto a necessidade política de conservar como a de transformar são polos com a mesma
natureza, reformista e adaptativa, próprios de um tipo de vida no qual predomina a
vontade de conservação da vida.
Mas se não acreditamos em projetos, metas, em conscientização sobre nossa
realidade, o que seria possível construir em nossas intervenções com jovens? Esta
indagação nos levou a um dos últimos textos escritos por Deleuze (2010) chamado “O
esgotado”. Neste brilhante texto, encontramos ferramentas que nos ajudaram nesta
problematização.
Deleuze parte da construção do conceito de “possível” de modo bem diferente
do que habitualmente é concebido. O possível não como alternativa, mas como
potencialidade. Geralmente, o possível é visto como algo que ainda pode acontecer,
basta que tentemos outros meios, ou que ainda, não tenhamos percebido o que a
situação abre de possibilidades. Ou seja, uma alternativa atual. Porém, Deleuze (2010)
traz nesse texto, o possível como algo que só pode ser pensado a partir do
acontecimento, que possibilita outro regime de possibilidades, um outro campo de
possíveis.
Zourabichvili (2000) esclarece que é necessário entender a abertura de um “novo
campo de possíveis”, entendendo que a palavra “possível” deixa de designar a série de
alternativas reais ou imaginárias (ou...ou...), como o conjunto de disjunções exclusivas
características de uma época ou de uma sociedade dada. “Ele concerne, agora, à
emergência dinâmica do novo” (Zourabichvili, 2000, p. 346).
A realização de um determinado projeto não produz nada de novo no mundo,
uma vez que não há diferença conceitual entre o possível como projeto e sua realização.
63
Há uma diferença fundamental entre o possível que se realiza a partir de imagens préconcebidas e do possível que se cria, possibilitando novos modos de vida.
Os projetos sociais e pedagógicos correntes entendem possibilidades de vida
como da ordem da escolha de determinadas profissões, partindo da instrumentalização
dos jovens, ou de atos ou políticas a serem realizados que transformarão a vida dos
assistidos. Tais características, a “ignomínia das possibilidades de vida que nos são
oferecidas remete às alternativas que definem uma sociedade ou ao conjunto de modos
de existência concretos possíveis a uma dada sociedade” (Zourabichvili, 2000, p. 338).
Aqui entendemos possibilidades de vida de maneira mais profunda, exprimindo
um modo de existência, o que Deleuze (2007ii) define como o “expresso de um
agenciamento concreto de vida” (Deleuze, 2007ii, p. 78). Expresso, para Deleuze,
segundo Zourabichvili (2000) “nunca é da ordem de uma significação” e, sim, consiste
em uma avaliação. A própria possibilidade de vida como avaliação, ou seja, uma
maneira singular de avaliar, de separar o bom e o mau, avaliar uma distribuição dos
afetos.
Este ponto é fundamental para nós. Novas possibilidades de vida supõem uma
nova maneira de ser afetado. Zourabichvili (2000) relata que Deleuze insistia no
conceito de “aptidão para afetar e ser afetado” em Espinosa e no conceito de “vontade
de potência” de Nietzsche concebido como um pathos, instrumento de uma tipologia de
modos de existência imanentes, de maneiras concretas de viver e pensar. Sendo assim, o
conceito de possível nos leva irremediavelmente à potência10.
Possibilidade de vida como distribuição diferencial dos afetos. Mutação
subjetiva que nos possibilita novas avaliações entre o bom e o mau, o tolerável e o
intolerável. A condição necessária para uma mutação subjetiva é um novo modo de
perceber a realidade, percepções em devir, perceptos (Deleuze, 2007). O percepto se
distingue de uma simples percepção porque nele envolve um encontro, uma relação com
o fora. E, nesta relação com o fora, conseguir ser um visionário, no sentido que é aquele
que consegue ver o possível, consegue apreender a situação atual em sua potencialidade,
como “campo de possíveis”. Vidência aqui, não como alguém que antevê o futuro, ou
10
Potência para Nietzsche é vida! Vontade de potência é da ordem da vida que quer expandir suas forças,
criar, gerar mais vida. Para Deleuze “A vontade de potência não é um ser nem um devir, é um „pathos‟.
Isto é, a vontade de potência manifesta-se como a sensibilidade da força; o elemento diferencial das
forças manifesta-se como sua sensibilidade diferencial” (DELEUZE, 2008, p. 31).
64
alguém que elabora um plano para uma revolução ou uma intervenção, mas como
alguém que capta o intolerável de uma situação, apreende o possível, ascendendo uma
possibilidade de vida que pede realização, capta as potencialidades emergentes.
Experimentar. Acontecimento. Encontro. Atitudes éticas criadoras de novos
modos de intervir. Para atualizarmos ou efetuarmos o possível se faz necessário a
criação de novos agenciamentos concretos que abram espaços-tempo para a
concretização dessas novas possibilidades de pensar, sentir, viver. Essas novas
possibilidades de vida são criadas pelo acontecimento. É o acontecimento que cria o
possível. O possível é o virtual. O acontecimento cria uma nova existência, produz uma
nova subjetividade. Criar o possível é, então, criar agenciamentos espaço-temporais que
respondam a estas novas possibilidades de vida. Para tanto é necessário senti-las,
apreendê-las, experimentá-las. Responder ao acontecimento, criando o possível em
agenciamentos concretos. Questão de vida!
Esse passeio com os jovens logo no primeiro dia não estava
programado e foi ótimo. Não poderia ter sido melhor. Possibilitou
uma aproximação diferente com os jovens. Ficamos a manhã toda
juntos andando pelo complexo, várias histórias foram surgindo,
piadas sendo contadas, muito diferente se tivéssemos ficado na
sala da escola modelo do Alemão (diário de campo, 05/07/2011).
Para conseguir responder ao acontecimento é necessário um trabalho sobre nós
mesmos. Uma prática de si na qual consigamos responder ao intolerável em nós, para
depois, conseguirmos produzir agenciamentos concretos à nova sensibilidade,
afirmando-a. Caso contrário, criaremos metas, destinos, objetivos prévios. Teleologias.
Uma prática de si que nos possibilite combater em nós aquilo contra o qual
lutamos e que, desse modo, nossa luta se dê como efeito da luta travada em nós. Só
assim, para não buscar conscientizar os jovens, falar por eles ou defendê-los. Combater
em nós essas forças.
Deleuze (2007ii) denomina como clichês os esquemas sensório-motores que
temos como respostas totalmente prontas a situações de sofrimento, esquemas
particulares, de natureza afetiva que fazem com que não percebamos a coisa ou a
imagem inteira, “percebemos sempre menos, o que temos interesse em perceber, devido
65
a interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas.
Portanto, comumente, percebemos apenas clichês” (Deleuze, 2007ii, p. 31).
Para Zourabichvili (2000), nossas relações com o mundo se revelam convenções
arbitrárias, que nos protegem do mundo e o torna tolerável para nós: e aí está o
“compromisso intolerável para com a miséria de toda a natureza e os poderes que a
alimentam e a propagam. Nossos interesses se inclinam, é claro, sempre para o lado da
obediência” (Zourabichvili, 2000, p. 349), daí a proliferação de projetos e dispositivos
para a produção de obediência nos jovens e em nós.
A época moderna se caracteriza, indubitavelmente, por um déficit
de vontade, por uma certa “má vontade”, embora o mal de que
sofra seja de uma outra natureza. Não acreditando mais no
possível, perdemos o gosto e a vontade de realiza-lo: eis nosso
cansaço e nosso tédio. Mas se perdemos a fé, é porque nossos
esquemas sensório-motores nos aparecem, agora, como são – como
clichês. Tudo o que vemos, dizemos, vivemos, e até mesmo
imaginamos e sentimos já está, definitivamente reconhecido;
carrega, por antecipação, a marca da recognição, a forma do já
visto e do já ouvido. Uma distância irônica nos separa de nós
mesmos, e não mais acreditamos no que acontece, porque nada
parece poder acontecer (...) (Zourabichvili, 2000, p. 349).
O real se torna uma imagem do possível. O clichê se torna o que é possível. Um
real pré-existente a si mesmo. Assim, o mundo perde toda a realidade. Não
conseguimos perceber o real a não ser a partir do já visto, objeto da recognição. O
acontecimento perde toda a sua espessura e, não mais, apreendemos o novo.
Uma experiência real implica a afirmação de uma relação radical com o que
ainda não pensamos. Caso não consigamos apreender o novo, o inusitado dos encontros,
ficaremos refém de “pseudo-experiências”, cuja formas possuímos previamente, e que
não coloca em questão a imagem que o pensamento fazia de si mesmo, ou seja,
continuaremos com um “pensamento que não faz mal a ninguém” (Deleuze, 2009).
66
2. Experimentar. Pensar.
O próprio pensamento pode ser uma máquina de guerra. É que, no
momento em que alguém dá um passo fora do que já foi pensado,
quando se aventura para fora do reconhecível e do tranquilizador,
quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas,
caem os métodos e as morais, e pensar torna-se, como diz
Foucault, um “ato arriscado”, uma violência que se exerce primeiro
sobre si mesmo (Deleuze, 2007, p. 128).
Ao habitar esse campo de pesquisa, nossa aposta era numa atitude diferente do
modo dominante de pesquisar. Para isso, seria necessário nos afastarmos dos métodos
habituais de como realizar pesquisas, pautados no modelo da representação.
Este modelo tradicional de pensamento, que “não faz mal a ninguém” (Deleuze,
2009), parte de uma imagem definida a partir da moral, dogmática e representativa.
Deleuze (2009) apresenta três teses essenciais que constituem a imagem dogmática do
pensamento. A primeira nos diz que o pensador, como pensador, quer e ama o
verdadeiro, que o pensamento possui formalmente o verdadeiro – o inatismo da ideia, o
a priori dos conceitos. Esta tese indica que pensar é exercício natural de uma faculdade,
bastaria pensar “verdadeiramente” para pensar com veracidade – a natureza reta do
pensamento, o bom senso universal compartilhado. A segunda tese nos diz que somos
desviados do verdadeiro por forças estranhas ao pensamento (corpo, paixões, interesses
sensíveis), que nos fariam cair no erro, tomar o falso pelo verdadeiro – o erro como
efeito das forças estranhas a se oporem ao pensamento. A terceira tese fala que, para
pensar, precisamos apenas de um método, um método que nos faça pensar bem e
verdadeiramente.
Filósofos como Nietzsche e Deleuze se esforçaram para criar uma filosofia que
revertesse essa imagem moral do pensamento. Pensar, para esses autores, não é um
exercício natural de uma faculdade. O pensamento não pensa sozinho e por si mesmo,
assim como não é perturbado por forças que lhe permaneceriam exteriores. Pensar,
nesta perspectiva, depende necessariamente das forças que se apoderam do pensamento.
Deleuze (2010ii) contrapõe uma nova imagem do pensamento à imagem
racionalista da filosofia, indicando como sendo a maior característica desta nova
67
imagem a relação dessas forças externas que se apoderam do pensamento fazendo-o sair
de sua imobilidade, provocando encontros, intercessões.
Vasconcellos (2006) enfatiza que esses encontros têm como objeto o signo e que
há uma série de relações entre signos, pensamento e criação:
O que nos força a pensar é o signo. O signo é objeto de um
encontro; mas é precisamente a contingência do encontro
que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato
de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural;
ele é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a
gênese do ato de pensar no próprio pensamento (Deleuze,
2010ii, p. 91).
Essa gênese deve implicar alguma coisa que violente o pensamento, que o retire
de seu natural estupor, de sua imobilidade, de suas abstrações. “Pensar é romper com a
passividade, é sofrer a ação de forças externas que o mobilizem. Pensar é, além disso,
interpretar. Dito de outro modo, pensar é explicar, desenvolver, decifrar, traduzir
signos” (Vasconcellos, 2006, pg. 05).
Deleuze (2010ii) diz que é preciso ser dotado para os signos, predispor-se ao seu
encontro, expor-se à sua violência. É importante em nossa pesquisa estarmos sempre
atentos para um movimento de pesquisa que seja uma atitude de abertura para estes
encontros com os signos presentes no campo de intervenção, uma atitude necessária
para a afecção do corpo do pesquisador pelo signo.
Uma prática de construção de um plano coletivo de forças, responsáveis pela
gênese constante das formas empíricas. Processo este, de produção dos objetos do
mundo. Nossa aposta metodológica é num modo de pesquisar que seja uma atitude de
abertura aos encontros com as forças e com o plano dos afetos. O desafio constante é
em conseguir nos deslocarmos dos nossos clichês, acessando o vivo da experiência,
encontrando o acontecimento ali, no plano de produção da realidade, plano das forças
sempre em movimento, em modulação constante. Buscamos, em nossa tese, traçar estes
movimentos no dispositivo PROTEJO.
Realizar uma pesquisa-intervenção é um processo de conhecimento que não se
restringe a descrever ou classificar os contornos formais dos objetos do mundo, como
no modelo da representação, mas principalmente, preocupar-se em traçar o movimento
68
próprio que os anima, seu processo constante de produção (Escóssia e Tedesco, 2010).
Também é uma prática de intervenção já que acessar o plano das forças é habitá-lo e,
neste sentido, os atos do pesquisador, “sendo também coletivo de forças, participam e
intervém nas mudanças e, principalmente, nas derivas transformadoras que aí se dão”
(Escóssia e Tedesco, 2010, pg. 92).
Para isso, também se tornou importante para nós, o modo como narrar a
pesquisa, pois entendemos que o modo como narramos a experiência da pesquisa
implica uma “tomada de decisão” (Passos e Barros, 2010, p. 150) que demonstra nossa
implicação politica com o tema da pesquisa e seu campo problemático.
Não partimos, nesta pesquisa, de hipóteses pré-determinadas para ingressar no
campo. Buscamos reverter o sentido tradicional do método sem, no entanto, abrir mão
da orientação do percurso da pesquisa nem de um rigor metodológico. Partindo de
algumas pistas metodológicas (Passos e Barros, 2010) nosso desafio nesse trabalho não
foi o de caminhar para alcançar metas pré-determinadas como nos métodos tradicionais
de pesquisa (metá-hódos), mas seguir uma atitude (ethos) que nos permitisse traçar no
caminhar as metas do percurso. Para isso, tornar os encontros com os jovens
problemáticos era fundamental.
Neste modo de pesquisar, o percurso é orientado pelos efeitos do processo sobre
o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados. Para isso, partimos da premissa
que toda pesquisa é intervenção e que há uma “inseparabilidade entre conhecer e fazer,
entre pesquisar e intervir” (Passos e Barros, 2010, p. 17). Por acreditar nisso é que
buscamos o traçado do plano da experiência no qual a intervenção se dá. Acompanhar
os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção de conhecimento) do próprio
percurso da intervenção é o que nos moveu em todo o processo dessa pesquisa.
Consideramos que “objeto, sujeito e conhecimento são efeitos coemergentes do
processo de pesquisar” (Passos e Barros, 2010), não sendo possível orientar a pesquisa
pelo que se suporia saber de antemão acerca da realidade.
Mergulhados na experiência do pesquisar, não havendo nenhuma
garantia ou ponto de referência exterior a esse plano, apoiamos a
investigação no seu modo de fazer: o know-how da pesquisa. O
ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto
é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da
experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao
fazer-saber, do saber na experiência à experiência do saber. Eis aí o
“caminho” metodológico (Passos e Barros, 2010, p. 18).
69
Buscamos transformar para conhecer e não conhecer para transformar a
realidade. Neste sentido, conhecer a realidade é acompanhar seu processo de
constituição. Isto não é possível sem uma imersão no plano da experiência, sem uma
política de narratividade que indique a direção ético-política que avalia os efeitos da
experiência e sem que estejamos habitando o território existencial e seus signos.
O desafio é desenvolver práticas de acompanhamento de processos inventivos e
de produção de subjetividades. Por isso, este modo de realizar pesquisa é refratário à
representação de objetos, e necessita de uma atitude diferenciada do militanteintelectual-pesquisador. Requer como já dito, um trabalho sobre nós mesmos, para que
haja uma abertura aos encontros, mergulhando-nos nas intensidades do presente,
procurando “dar língua para afetos que pedem passagem” (Rolnik, 2007, p. 23). Para
isso, não tínhamos uma metodologia, mas algumas pistas que indicavam a necessidade
do treinamento da atenção concentrada, porém, sem que houvesse focalização (Kastrup,
2010); uma “experimentação de um estranhamento” (Caiafa, 2000, p. 148) na habitação
do território existencial e no contato com seus signos; a construção de um “corpo
vibrátil” (Rolnik, 2007) que possibilitasse percebermos afetos que pedissem passagem e
atualizássemos as linhas de forças presentes no campo de pesquisa.
Nossa aposta metodológica é num modo de pesquisar que intensifique a vida.
Vida como princípio que faz do pensamento algo de ativo e o pensamento como
elemento afirmador da própria vida, nos distanciando da “disjunção vida/pensamento
que é elaborada a partir de um modelo de vida – do modelo da vida reativa que encontra
no pensamento meios de expressá-la e conservá-la” (Dias, 2011, p. 32).
2.1 Direitos humanos
Já dizia Deleuze,
(...) Os direitos do homem não nos obrigarão a abençoar as
„alegrias‟ do capitalismo liberal do qual eles participam
ativamente. Não há Estado democrático que não esteja totalmente
comprometido nesta fabricação da miséria humana. A vergonha é
não termos nenhum meio seguro para preservar, e principalmente
70
para alçar os devires, inclusive em nós mesmos (...) (Deleuze,
2007iii, p. 213).
Direitos humanos comumente são pensados, praticados e defendidos como um
conjunto de leis e declarações de intenção, essencializado e naturalizado. Não se analisa
a construção histórica de termos como direitos ou humanos. Tomando-os em sua
perspectiva histórica, “tanto o humano como os direitos são construções das práticas
sociais em determinados momentos, que produzem continuamente esses objetos,
subjetividades e saberes sobre eles” (Coimbra, Lobo e Nascimento, 2008).
Deleuze (2007) nos lembra que, desde sua gênese, os direitos do homem servem
para levar aos subalternizados a ilusão de participação e de um humanismo dentro do
capitalismo. Passeti (2007) é enfático ao afirmar a importância da convocação à
participação nesse momento do capitalismo mundial integrado, em seu modo de
controle globalizado, como meio no qual, resistências libertadoras são imobilizadas, a
partir de integrações, benefícios e atrativos de segurança.
Sempre estiveram fora dos direitos humanos os pobres e todos aqueles
segmentos da população que sobravam, de maneiras bem diversas, das normas vigentes.
Para estes “efetivamente, os direitos, assim como a dimensão humana, sempre foram - e
continuam sendo – negados, pois tais parcelas foram produzidas para serem vistas como
„subalternas‟, ou como não-pertencentes ao gênero humano” (Coimbra, Lobo e
Nascimento, 2008).
No município de Mesquita, na localidade conhecida como Chatuba, quando
iniciamos a apresentação da proposta de trabalhar questões relacionadas com direitos
humanos em documentários e filmes, um dos jovens disse:
isso aí de direitos humanos não existe! Aqui isso aí não existe! É
mais uma coisa que aqui só escutamos falar como todas as outras
coisas do projeto que disseram pra gente que teria e até agora não
teve (M.A., diário de campo 24/06/2011).
Há todo um modo de pensar, sentir e agir, ou seja, toda uma produção de
subjetividade atrelada à definição de quais humanos os denominados direitos devem ser
garantidos.
71
Aqui nada funciona. Hospital, vamos pra lá e se bobear, morre na
fila. A escola é essa merda aqui que não tem nada e quando tem é
essa chatice. Se bobear com os cara, eles vem aqui dentro te pegar
como fizeram com o neguinho. Não tem nada pra fazer de bom...
(C.R., diário de campo, 24/06/2011).
Coimbra, Lobo e Nascimento (2008) sugerem que, em vez de pensar os direitos
como essência universal do homem, podemos garantir e afirmá-los como diferentes
modos de sensibilidade, diferentes modos de sentir, pensar e viver.
Daí que o objetivo que tínhamos com as oficinas para discutir os direitos
humanos no PROTEJO, não era conscientizar os jovens da sua própria realidade, como
se dela não soubessem, mas colaborar na produção de outros modos de sensibilidade,
capazes de construir e permitir a irrupção de maneiras inéditas de viver.
Encontros que colocassem em análise os “direitos do homem”, como se esses
direitos precisassem ser resgatados, “como algo perdido que sempre esteve ali, em
algum lugar, esperando para ser encontrado” (Coimbra, Lobo e Nascimento, 2008), mas
como um modo de viver ativo que busca a produção de uma vida que trava suas lutas
agônicas, aquelas que travamos conosco mesmo, não demandando uma vida segura,
asséptica e invulnerável.
3. Jovem PROTEJO: Empreendedor de si?
Nosso acordo com a Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos
Humanos era realizar oficinas na comunidade da Chatuba e no Complexo do Alemão,
zona norte da cidade do Rio de Janeiro e, naquele momento, ocupado pelas “forças de
pacificação”.
Ao chegar ao complexo pela rua Itararé, realizando a curva para direita, nos
deparamos com cerca de dez veículos blindados do exército em uma fábrica abandonada
que se transformou em quartel general das forças de ocupação. Jovens soldados
fortemente armados com bonés azul, com a inscrição: “força de pacificação”.
72
Continuando a rua encontro a escola estadual Tim Lopes, quase em frente a uma
moderna instalação da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e ao lado de vários
prédios recém-construídos que fazem parte das obras do PAC (Programa de Aceleração
do Crescimento), junto com o teleférico que, neste momento, estava prestes a ser
inaugurado.
A escola estadual Tim Lopes sediava o projeto PROTEJO no Complexo do
Alemão. Uma escola estadual modelo, moderna, extremamente limpa e decorada com
várias cores, contendo instalações visivelmente contrastante com as demais escolas
estaduais da área (e com as demais do estado). Para minha surpresa e desânimo, houve
uma falha de comunicação entre a secretaria e a coordenação do “território”, não
havendo jovens para a realização de nosso primeiro encontro. Combino com uma
senhora, integrante do projeto “mulheres da paz”, que voltaria na próxima semana e
que, antes, entraria em contato com a coordenadora do “território” acertando os detalhes
para o início da “oficina de direitos humanos”.
Na semana seguinte, consigo chegar à escola no horário marcado, 9 h da manhã.
Havia quatro jovens soldados na porta da escola disputando uma pequena sombra
produzida pelo poste.
Após alguns minutos de indecisão sobre a sala a ser usada, consigo perceber que
há um pequeno “estresse” entre as coordenadoras do projeto e a direção da escola onde
acontece o projeto na localidade. Depois fui oficialmente apresentado aos jovens como
o “professor” que daria as oficinas de direitos humanos. Eram cerca de 20 jovens
naquela turma do projeto e seriam aproximadamente 25 na turma da tarde. Jovens entre
15 e 21 anos, com uma divisão quase exata entre homens e mulheres.
Procurei de início, dizer a eles que não estava ali como professor. Na verdade,
não queria falar muito, queria ouvi-los. Disse onde trabalhava, estudava, o porquê de
estar ali e como estava pensando realizar os primeiros encontros. Depois, pedi que eles
se apresentassem e falassem o que sugeriam para os nossos encontros.
Foi um misto de sensações e sentimentos. Falavam que não
queriam estar ali. Que tudo era muito chato. Queriam que
terminasse aquela “aula” para irem ao teleférico com a
coordenadora do território. Me chamaram para ir junto. Fui!
Logo no primeiro dia andamos pelo complexo, até chegar na
localidade da Baiana e entrar na fila do teleférico. As meninas
com medo da altura já se agarravam em mim. Os meninos, se
73
fazendo de machões, mas não conseguiam disfarçar o medo. Era a
primeira vez ali para muitos. Que encontro!” (Diário de campo,
19/07/2011).
Diferente dos primeiros encontros realizados no complexo do Alemão, na
localidade Chatuba, em Mesquita, os primeiros encontros foram tensos. Naquele
momento, muitos jovens fugiam das comunidades cariocas devido à instalação das
UPPs e se transferiam para lá. A população estava nervosa já prevendo o que está
movimentação iria provocar.
Nos primeiros encontros realizados com cerca de 25 jovens, uma sensação
pairava no ar após as falas: está tudo dominado!
a vida aqui é assim mesmo. Não funciona nada. Esses direitos
humanos aí, aqui não existem. Nada funciona. Hospital a fila é
gigante. Na escola se bobear os cara entram aqui pra te pegar! E
ainda tomamos porrada da polícia! (C.R., diário de campo,
25/05/2011).
Essa sensação de “está tudo dominado!”, em alguns momentos, começava a me
incomodar, pois, algo em mim, de algum modo, também estava pensando assim.
Como estar ali com esses jovens e não reforçar essa sensação de
que tá tudo dominado? Saí de lá hoje, mal, pois, parece que de
algum modo essa sensação “me pegou”. Quando eles questionam
direitos humanos, questionam os equipamentos públicos ali
presentes, questionam como a polícia entra na comunidade,
questionam os jovens que estão vendendo drogas lá, fico com a
sensação de que ali tem muito potencial. Aquela molecada é muito
boa, potente, mas parecem estar perdidos, não conseguem fazer
algo produtivo para eles com essas indagações. Estão entrando
numa onde de que nada vai mudar, e que nada podem fazer, e que
tudo o que fazem dá errado. Como conseguir trabalhar essas
questões nesse tempo tão curto que estaremos juntos? (Diário de
campo, 08/06/2011).
A ideia era compor com outras forças para dar passagem a outros sentidos, à
multiplicidade daquelas vidas. A análise que fazíamos da nossa intervenção no campo e
da problematização das oficinas com os jovens possibilitavam o surgimento de algumas
linhas que precisavam ser delineadas.
74
Em vários momentos os jovens diziam não querer estar ali, que nada no
PROTEJO era do gosto deles. Citavam as atividades prometidas no ato da inscrição e
que, muitas, não aconteceram. Para reforçar o que diziam sobre a infraestrutura do
projeto na Chatuba, por duas semanas seguidas não foi possível exibir os documentários
porque a sala de vídeo da escola, utilizada para este fim, não tinha sido agendada com a
antecedência necessária.
Não sendo possível exibir o documentário, o encontro transcorreu de modo
inédito. Ficamos sentados no pátio da escola, conversando, rindo, mas quando o assunto
voltava para o projeto eram taxativos:
Estão querendo nos comprar com essa grana, mas quando
chegamos aqui ou não tem nada ou coisa muito chata! (M.N.,
diário de campo, 15/06/2011).
Queremos jogar bola ou fazer um curso pra dar um dinheiro pra
gente. Aqui querem tirar a gente da rua mas a maioria nem vem
mais. Ficam enrolando a gente, falando da escola, da nossa
família. Eu tô é precisando de grana pra comprar roupa maneira e
sair com as novinhas! (C.R., diário de campo, 15/06/2011).
Saí do encontro querendo estar ali mais dias com eles, talvez, fora
dali. O projeto pra eles era um espaço no qual eles tinham
sentimentos ambíguos. No próximo encontro quero perguntar para
eles se eles estão ali só por conta da grana mesmo, ou se há algo
mais que os motivem a estar ali.
Eles falam o tempo todo em dinheiro, em comprar, se divertir.
Querem estar incluídos no mercado de trabalho e poder fazer o
que vêm na TV. Saio novamente com essa sensação de que, pra
eles, está tudo dominado! (R.M., diário de campo, 15/06/2011).
Na semana seguinte, novamente, a sala de vídeo não pôde ser utilizada. Ficamos
do outro lado do pátio, sendo olhados e vigiados pelas professoras e funcionárias da
escola. Perguntei para eles por que estavam ali, se o dinheiro era o único motivo...
Para meu espanto a maioria disse que não, que estavam ali pela
amizade entre eles. Que gostavam muito dos amigos que tinham
feito ali. E que isso não tinha preço!
Falaram um tempão de histórias de alguns deles e de como os
amigos foram a salvação, o quanto podiam contar um com os
outros e que as pessoas não entendiam isso (diário de campo,
22/06/2011).
75
Saí pela Dutra pensando naquilo. Algo finalmente surgia. E com
força! Não poderia estar tudo dominado. Algo estava ali visível,
porém, poucas vezes conseguíamos enxergar! A amizade deles,
entre eles, produzia uma força. A amizade como potência! A
potência da amizade! (Diário de campo, 22/06/2011).
Mas nada de amizade, relações, encontros eram discutidos no PROTEJO. Com
seu conteúdo político-pedagógico fechado e contido em duas apostilas (anexos I e II),
havia poucas brechas para a potência da amizade e dos encontros que se teciam ali,
mesmo sem serem percebidos.
Tanto a apostila I (Plano de desenvolvimento individual) quanto a II (com seus
eixos de autoconhecimento e autodesenvolvimento, formação cidadã e de emancipação
juvenil) visam produzir um determinado jovem, o Jovem PROTEJO.
Um jovem empreendedor, criativo, capaz de construir um plano de negócios
como roteiro para sua vida, que se conheça, que seja verdadeiro, bom filho, persistente,
resiliente, empoderado. Um jovem que invista no seu projeto de vida. Uma produção de
individualizações que ligam esses jovens cada vez mais a uma interioridade deles, a
uma história deles, a uma identidade.
Jovens ligados a uma pretensa falta, a uma referência que nunca alcançam, que
por mais que façam sempre estão devendo, sempre faltosos, incompletos, inadequados,
incompetentes. A construção histórica da figura do pobre como da ordem do
vagabundo, preguiçoso e malandro. A falta e a incompletude sendo construídas como
algo constitutivo do ser, não como produções sociais e históricas. Um sentimento de
apatia que, aos poucos, vai sendo produzido nos jovens. A ideia de que há vários
projetos e que a inserção neles, com a devida força de vontade, é o suficiente para a
inclusão no tão sonhado mercado de trabalho. Quando nada disso funciona é à
incompetência individual que se recorre como justificativa.
As coisas por aqui são muito difíceis. Estamos tentando fazer o
que é certo. Mas nada tem dado certo. Agora, então, ficamos
quase três semanas sem poder sair muito na rua por causa dessa
guerra com os caras que vieram do Rio, por causa da UPP. A
polícia não quer saber de nada, já entra aqui atirando em tudo.
Temos que ficar em casa quietinho. Já é difícil conseguir trabalho
aqui, porque não tem nada, imagina agora. Às vezes bate um
desânimo, não da vontade de fazer nada. Ficar só vendo televisão,
porque mais do que estamos fazendo não dá (C.M., diário de
campo, 22/06/2011).
76
Uma governamentalidade em que se objetiva o sujeito, se produz modos de
desejar, sentir, pensar e viver através de diversas modalidades disciplinares, mas
também, uma governamentalidade que produz uma série de práticas que constituem,
modificam e realizam a mediação da pessoa consigo mesma, processos de subjetivação.
Projetos sócio-educativos para jovens como modos de subjetivar e desenvolver
capital humano. É nesse sentido que queremos explorar como hipótese de trabalho,
projetos sócio-educativos como dispositivos de ajuste. Referenciados à lógica neoliberal
e justificados como aportes necessários ao desenvolvimento de capital humano, a aposta
parece ser num certo efeito de liberdade. Tal efeito, entre os jovens que frequentam tais
projetos, fortalece a versão de falência da capacidade de cada um: mesmo investidos de
liberdade, não dão certo.
Práticas, como as que problematizamos nesta tese, participam da construção de
determinados modos de subjetividade e da mediação da relação do sujeito consigo
mesmo. Uma “relação na qual se estabelece, se regula e se modifica a experiência que a
pessoa tem de si mesma, a experiência de si” (Larrosa, 1994, p. 37). Experiência de si
como proposta por Foucault, como resultado de um complexo processo histórico de
fabricação no qual se entrecruzam discursos que definem a verdade do sujeito, práticas
que regulam seu comportamento e formas de subjetividade nas quais se constitui sua
própria interioridade.
Larrosa exalta que a experiência de si mesmo sendo histórica e culturalmente
contingente é, também, algo que deve ser transmitida e aprendida. Sendo assim, a
“educação, além de construir e transmitir uma experiência „objetiva‟ do mundo exterior,
constrói e transmite também “a experiência que as pessoas têm de si mesmas e dos
outros como „sujeitos‟” (Larrosa, 1994, 45).
Ao desenvolvermos aqui um processo de problematização desses projetos sócioeducativos, não podemos realiza-lo apenas do ponto de vista da „objetivação do sujeito‟,
mas também, e fundamentalmente, do ponto de vista da „subjetivação‟, ou seja, do
ponto de vista de como essas práticas sociais e pedagógicas constituem e realizam a
mediação de determinadas relações do sujeito com ele mesmo.
Aqui os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos,
mas como sujeitos falantes, não como objetos examinados, mas
como sujeitos confessantes; não em relação a uma verdade sobre si
mesmos que lhes é imposta de fora, mas em relação a uma verdade
sobre si mesmos que eles mesmos devem contribuir ativamente
para produzir (Larrosa, 1994, p. 54).
77
Para Branco (2004) é necessário ressaltar o aspecto produtivo do poder, isso é, o
fato de que os saberes e os poderes produzem subjetividades, incitam atitudes previstas,
conduzem pessoas ao espírito do rebanho.
Por esse motivo, rejeito toda leitura de Foucault que fica apenas no
conceito de panóptico. Tais interpretações são parciais e limitadas,
pois não sabem ou não querem saber da dimensão da produção da
subjetividade na analítica do poder. a diferença seria como nos
filmes: pensariam apenas no roubo/subtração das subjetividades e
no esquecimento, e não se dão conta que as subjetividades são,
acima de tudo, controladas e manipuladas, sem necessidade de um
grande olhar controlador. Assujeitamento é também isso:
operações de controle realizadas pelas pessoas sobre si mesmas,
que indicam o quão produtivo e capaz foi o processo de produção
de suas subjetividades. Elas recebem suas identidades e cuidam
delas com afinco e dedicação (Branco, 2004, p. 38).
Foucault em suas últimas análises investiga os diversos modos com os quais se
governa e se conduz os indivíduos, mas também, as muitas maneiras pelas quais os
próprios indivíduos tomam para si a tarefa de se autogovernarem e de se
autoconduzirem em suas vidas.
Tecnologias do eu, que permitem aos indivíduos efetuar, por conta
própria ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre
seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta, ou qualquer forma de
ser, obtendo assim uma transformação de si mesmos com o fim de
alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou
imortalidade (Foucault, 1990, p. 48).
A arte neoliberal de governo, entendida como uma tecnologia de governar
condutas, prolifera sustentada por discursos, práticas e técnicas através das quais as
capacidades de autogoverno podem se instalar em “indivíduos livres” fazendo com que
as diversas formas de se conduzirem e de se avaliarem estejam alinhadas com os
objetivos do governo neoliberal das almas.
Enfatizamos o PROTEJO como um dispositivo de produção de subjetividades.
No conteúdo programático do projeto (anexo II), noções como empreendedorismo,
história de vida, autodesenvolvimento, auto-revelação, projeto de vida, “comprometerse consigo mesmo”, e tantas outras, são características de um determinado modo de ser
que é investido, produzido naquele espaço. Uma subjetividade produzida que investirá
em si mesma, como se investisse na bolsa de valores, para aumento de seu capital
78
humano. Uma subjetividade que participará com afinco do modo indivíduo-empresa.
Toda uma produção de subjetividade serializada fundamental para a construção e
manutenção da gestão neoliberal de governo da atualidade.
As técnicas utilizadas para a fabricação do individuo empreendedor e todo o
vocabulário sobre o empreendedorismo possibilita que uma “racionalidade política seja
“traduzida” em tentativas de controle de aspectos da existência social, econômica e
pessoal” (Rose, 2011, p.214). Empreendedorismo, nesse caso, não apenas
designa um tipo de forma organizacional, com unidades
individuais competindo entre si no mercado, mas também, de
forma mais ampla, oferece uma imagem de um modo de atividade
a ser incentivada em muitos cenários da vida – a escola, a
universidade, o hospital, os consultórios dos clínicos gerais, a
fábrica e as organizações de negócios, a família e as estruturas de
bem-estar social (...). Práticas regulatórias contemporâneas – desde
aquelas que procuram revitalizar os serviços públicos e civis,
remodelando-os como agências privadas ou pseudoprivadas com
orçamentos e alvos, até aquelas que buscam reduzir o desemprego
crônico através da transformação do indivíduo desempregado em
um indivíduo ativo à procura de trabalho – têm sido transformadas
para incorporar a pressuposição de que os seres humanos são,
poderiam ser, ou deveriam ser indivíduos empreendedores, lutando
por satisfação, excelência e realização (Rose, 2011, p. 214-215).
Tais tecnologias de produção de condutas, sonhos e afetos interligam a
objetivação do indivíduo com sua subjetivação, com a própria capacidade do indivíduo
se “autodirigir” e se governar a partir de seus interesses. Foucault analisa o governo
como mecanismo de poder e, aqui, importa analisarmos alguns dos efeitos que o modo
neoliberal de governo produz sobre a juventude “assistida”.
Entendemos que é no sentido de imprimir uma direção nas condutas e nas
consciências dos jovens que se organiza o projeto PROTEJO: três eixos:
“Autoconhecimento e autodesenvolvimento”, “Formação Cidadã” e “Emancipação
Juvenil” – além do “Plano de Desenvolvimento Individual” -, a partir dos quais são
propostas atividades num período de oito meses. A própria designação das atividades já
expressa sua intenção diretiva, convidando à observação e ao exame, voltadas para o
autoconhecimento e o autodesenvolvimento, para a reflexão sobre modelos de família e
sobre suas escolhas. As técnicas se alteram entre exercícios individuais e coletivos,
como “apresentando o outro eu”, discussões sobre “talentos perdidos” (com a utilização
do vídeo do MV Bill), questionários de autorevelação “Dizendo tudo”, roteiros para
79
construção de projetos de vida ou para se tornar empreendedor.
O processo de avaliação está assentado no saber sobre os jovens participantes,
extraído dos diferentes processos educativos, e legitima as próprias atividades do
projeto.
Nos moldes de um poder pastoral, essa direção das condutas e da consciência
não objetiva que os jovens assumam o controle sobre si mesmos, tornando-os senhores
de si, mas, ao contrário disso, têm como objetivo criar um estado de obediência integral
e permanente, assim como, uma renúncia á vontade própria. Como diz Foucault (2008),
só examinamos nossa consciência para poder ir dizer ao diretor o que fizemos, o que
somos, o que sentimos, as tentações a que fomos submetidos.
Eu sei que tenho feito muita merda! Mas quando tento fazer as
coisas certas que falam que eu tenho que fazer aqui, também não
dá certo! Acho que tem alguma coisa de errado comigo mesma.
Minha mãe fala que tenho que ir pra igreja. Que só aqui não
adianta. Tenho que estar aqui e na igreja (A.N., diário de campo,
15/06/2011).
Atividades como auto-revelação, autodesenvolvimento e autoconhecimento
servem para a fabricação de jovens dependentes de outros e das verdades que vão
construindo sobre si mesmos, ligando-os a um modo de controle pela individualização.
Uma individualização que, segundo Foucault, se dá de três maneiras. Primeiro, por um
jogo de decomposição que define a cada instante o equilíbrio, o jogo e a circulação dos
méritos e dos deméritos, pela busca por uma identificação analítica desses méritos e
deméritos. Em segundo lugar, uma individualização que vai se dar não pela designação
de um lugar hierárquico do jovem, nem se dará pela afirmação de um domínio de si
sobre si, mas por toda uma rede de servidões, que implica a servidão geral de todo o
mundo em relação a todo o mundo, “e ao mesmo tempo a exclusão do egoísmo como
forma central, nuclear do indivíduo” (Foucault, 2008, p. 243). Uma individualização por
sujeição. Em terceiro lugar, é uma individualização que não será adquirida pela relação
com uma verdade reconhecida, mas que será, pelo contrário, adquirida pela produção de
uma verdade interior, secreta e oculta, num processo de subjetivação.
Objetivação e subjetivação. Nesse dispositivo, jovens são convocados a
participar da produção de suas próprias escolhas, dos “seus interesses”, com “liberdade”
para a construção das suas próprias vidas. Gestão dos interesses. Administração das
liberdades. Jovens participam ativamente do processo relatando como pensam, o que
80
sentem, como agem, se relacionam, como vivem. Participam confessando a seus
pastores, seus temores e faltas. Os pastores que estão ali, para lhes protegerem!
Protegerem-se de si mesmos, da comunidade em que vivem, de suas famílias, de suas
crenças e das histórias que lhes constituem. De seu destino que estaria pré-estabelecido,
pré-determinado, traçado.
Agora temos um montão de projetos sociais aqui na comunidade
pra ajudar a gente. Mas tem um monte de moleque que não quer
saber de nada disso. A gente aqui tá estudando, vindo aqui pro
projeto, indo pra igreja, fazendo tudo certo (C. M., diário de
campo, 22/06/2011).
4. Empoderados.
Jovens como os “jovens PROTEJO” tentam “fazer sua parte”. Acordam cedo,
vão para a escola, se inscrevem em cursos e projetos sociais em suas comunidades ou
trabalham o dia inteiro e tentam continuar estudando à noite.
Buscam,
desesperadamente, fugir do roteiro de suas vidas inscrito sem a participação deles.
Porém, em sua corrida pela manutenção de suas vidas, pensam estar escrevendo, (pela
primeira vez, talvez), o roteiro de suas vidas. São convocados a falar da vida, a dizer o
que gostam e o que querem fazer, a ser o bom vizinho (aquele que cuida da vida do
outro praticando o controle social informal), a ser o policial de si e dos outros.
O conteúdo político-pedagógico do PROTEJO e seu conjunto de práticas visam
produzir o jovem como empreendedor, investidor de si mesmo, do seu capital. Só assim,
os jovens PROTEJO, habitante de seus campos de concentração a céu aberto, poderão
ser empoderados e incluídos no mercado. Mas para isso, antes, deve ser capturado,
enfraquecido, fragilizado para aderir aos projetos de vida que lhe são vendidos,
tornando-se apático, conformado, crente.
A gente ia aprender a trabalhar em hotel para os gringos. Mas
nada disso aconteceu. Agora nem podemos sair porque senão não
vamos ganhar o diploma. Estão segurando a gente aqui! (R. P.,
diário de campo, 22/06/2011).
Mas quem precisa de poder? Por que não se investe na potência de uma vida e,
sim, no empoderamento desta? Que vida fraca, frágil e infantilizada é essa, produzida
81
nesses dispositivos, que precisa ser empoderada?
Torna-se urgente problematizarmos todo o discurso sobre a produção de
empoderamento e autonomia nos jovens, pois, não se constitue como antítese ao poder
político dominante. Pelo contrário, são um dos objetivos e instrumentos da produção de
mentalidades e estratégias modernas de condução da conduta e controle do
intempestivo.
Autodesenvolvimento e autoconhecimento. Formação cidadã. Emancipação
juvenil. Produções de obediência, servidão voluntária, infantilização e fragilização da
vida. Captura do intempestivo pelo medo do risco ao que é imprevisto. Vida vazia.
Vontade de nada. Nada de vontade.
Jovens das comunidades empobrecidas das grandes cidades (mas não só eles,
todos nós) passam a integrar toda uma rede de instituições que os objetivam e
subjetivam produzindo nesses jovens a vida como projeto, o projeto de vida, a vida com
roteiro, um script da vida. Vai sendo produzido, e percebemos claramente isso no
conteúdo programático do projeto PROTEJO e nas falas dos jovens participantes, a
incitação de como devem dirigir suas vidas, seu mundo emocional, sua relação com
seus pais, com a escola, seus sonhos de futuro, de empregabilidade e de como dirigir
sua vida para alcançar esses sonhos que vão sendo produzidos neles. Um roteiro vai
sendo escrito para a perfeita condução da vida. Vida normal. Normalização do normal.
Os jovens (e todos nós) passam a ser reféns de um ideal. Inscrevem seu futuro
como se, este, fosse um muro branco. Esse ideal de vida é o ideal de uma vida sem
transformação, sem acontecimento, sem incômodos, sem nada que lhes tirem do script
pré-determinado, do roteiro de uma vida já definida. Ir nessa direção é buscar a
conservação, o repouso, a paralisia, o empoderamento. Ser cidadão hoje é investir em
segurança! Investir em segurança é investir na manutenção do mesmo, na ordem.
Não por acaso, que nossa sociedade busca segurança. Há uma produção
constante do enfraquecimento da vida, da mutilação de sua força, de sua potência, da
capacidade de viver intensivamente. Toda uma rede de práticas das quais estamos
ávidos em participar para o controle do risco e da nossa vulnerabilidade. Ao invés de
investir na potência, trabalhamos para o empoderamento. Vontade de poder. Vida fraca,
tornada fraca.
Vidas produzidas em direção a uma “moralidade mínima” necessária para a
gestão neoliberal da vida. Como afirma Augusto (2011) nossas políticas de assistência,
comumente denominadas como públicas, mesmo que em muitos casos não sejam
82
efetivamente públicas, e as de controle de incivilidades, como técnicas, se orientam por
uma busca por melhorias das condições de vida dos habitantes de determinadas
localidades. É necessário ressaltarmos que o objetivo é pela melhoria das condições de
vida, programas e políticas compensatórias, buscando-se a decantada qualidade de vida.
Em nenhum momento, o objetivo é a potencialização da vida, de suas forças vitais,
esmagadas pela miséria afetiva e na qual, muitas vezes, contribuímos ativamente de
modo reativo e passivo.
83
CAPÍTULO III
A domesticação da juventude empobrecida
Como uma determinada juventude se torna público-alvo de projetos que têm
como objetivo o enlace entre as esferas sociais e penais no neoliberalismo atual? Que
efeitos são produzidos sobre essa população que se torna alvo dessas políticas estatais?
Nesse modo neoliberal de governo da vida, o que tem status social é o consumo.
A população empobrecida passa a ser, ainda mais, criminalizada e alvo de políticas
sociais como prática de polícia como dispositivo privilegiado para sua gestão.
A potência inventiva do pobre é invisibilizada socialmente através de uma
política, baseada no modelo da representação, que constrói a figura do pobre aliançada
às categorias da falta e do negativo. Sua inventividade micropolítica que permite sua
sobrevivência mesmo com toda a materialidade da morte a sua espreita é apagada por
essa forma de pensar e produzir discursos sobre o pobre e suas pobrezas, carências,
vulnerabilidades e riscos a que estariam acometidos.
Atualmente são os jovens pobres os maiores alvos das políticas tidas como
públicas que atrelam o Estado, ONG´s e parcerias público-privadas, consideradas como
ações de “caridade e solidariedade” de empresas e pessoas mais abastadas
financeiramente. Hoje, esses jovens são tidos como os “excluídos por excelência”
(Forrester, 1997), pois não têm os meios necessários para alçar voo para o consumo
mínimo, condição para serem designados como cidadãos.
Esses jovens também são os maiores afetados pela violência das metrópoles. As
estatísticas demonstram que são os que mais morrem e os que mais matam nas grandes
84
cidades11. Tais dados possibilitam o surgimento de uma imensa quantidade de
especialistas e intelectuais a opinarem, construírem discursos e políticas “públicas” para
esses jovens. São esses discursos que atualmente produzem, sustentam e legitimam as
políticas para a juventude.
Neste trabalho buscamos perceber o que está atravessando tais políticas, o que
escapa, o que está à margem, e o que vem sendo construído nestes territórios. Não
objetivamos reforçar nem nos aliançarmos com as atuais políticas, discursos e formas de
pensar a juventude. Nossa aliança é com um modo de pensar que é efeito da implicação
que temos com esse campo problemático. Uma forma de pensar ativada por uma certa
sensibilidade aos riscos e devires de uma vida não preocupada com a conservação ou
gestão dos riscos e vulnerabilidades. Este trabalho busca ser uma ferramenta de
provocação que contribua para outras formas de enxergar a juventude pobre e as
políticas construídas para ela.
1. Da natureza do jovem à imanência do perigo
Nesta sociedade de controle globalizado, este se dá a céu aberto, trabalhando em
conjunto com as estruturas disciplinares e a rigidez de suas instituições. A
governamentalidade neoliberal captura as potências de criação e resistência sem que
estas mesmas percebam. Os guetos e favelas seguem sucedendo-se uns aos outros,
confirmando a sentença erigida por Deleuze (2007). São diversas as formas produzidas
pelo capitalismo neoliberal para anestesiar os movimentos de resistência e criação que
não cessam pelo planeta. Pelo contrário, encontrou neles o combustível para
potencializar seu domínio e governo global. Mas há sempre algo escapando, sempre
linhas sendo produzidas e fomentando práticas e saberes locais, subjetividades
interpelando a produção do mesmo e a homogeneização do socius.
Na história das práticas de assistência, proteção e cuidado, os jovens pobres
brasileiros vêm sendo constituídos como perigosos e maléficos para eles mesmos e para
a sociedade. O Código de menores de 1927 se pautava em uma política sustentada num
discurso preventivo e não punitivo, a partir do trinômio assistência-disciplina-proteção
11
Pesquisas constantemente divulgadas na grande mídia veem, de modo recorrente, afirmando que os
jovens são aqueles que mais morrem em decorrência de armas de fogo nas grandes cidades e que, por
outro lado, são também os que mais cometem tais crimes.
85
(tutela). No entanto, segundo Scheinvar (2002), na prática tais políticas serão punitivas
com fins “corretivos”, produzindo efeitos preventivos. O que vai se construindo é um
investimento cada vez maior num processo disciplinar que converte proteção em uma
preocupação permanente, “redundando no controle das virtualidades, que não é outro
que o controle dos corpos” (Scheinvar, 2002, p. 94).
Essa concepção de proteção constitui-se como um artifício por
meio do qual se retiraria o discurso da prevenção do âmbito
criminal para construí-lo como uma preocupação pedagógica, cujo
foco central é a família e o dispositivo privilegiado, a educação
(Scheinvar, 2002, p. 94).
Aparelhos de correção e vigilância vão sendo construídos como “instituições de
seqüestro” (Foucault, 1994) onde não se busca tanto corrigir as infrações, mas segundo
Foucault (2005), controlar as virtualidades. Surge no fim do século XIX o “escandaloso
conceito” em termos de teoria penal de periculosidade
o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas
virtualidades e não de seus atos; não ao nível das infrações efetivas
a uma lei também efetiva, mas das virtualidades do comportamento
que elas representam (Foucault, 2005, p. 97).
Podemos perceber como no Brasil o dispositivo da periculosidade vai sendo
construído associado à população empobrecida. Scheinvar (2002) salienta que as leis,
do século XIX até quase o século XXI – quando entra em vigor o Estatuto da criança e
do adolescente/ECA, não se destinavam a todas as crianças, mas àquelas que se
enquadravam na categoria „menor‟. “Pode-se dizer que a primeira construção burguesa
relativa à criança no Brasil se dá através da relação social „menor‟. Menor é um símbolo
de exclusão; é a afirmação da diferença estrutural entre os vários grupos, tornando-a
ineludível, naturalizada” (Scheinvar, 2002, p. 88). O termo menor diferencia jurídica e
socialmente, dessa forma, as crianças e os adolescentes que não vivem sob a régia dos
modelos hegemônicos. Estes passam a ser alvos constantes de toda uma rede de
proteção-vigilância-controle da infância e adolecência no Brasil.
A sociedade disciplinar é erigida e ordenada em torno da norma, com a
emergência de uma série de saberes que são construídos tendo como objetivo
determinar “se um indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não à regra, se
progride ou não, etc.” (Foucault, 1994, p. 88). Instituiem-se modelos e padrões de vida
86
que devem ser buscados constantemente.
Um desses modelos que se constrói e, para nós, se faz necessário sua
problematização é o de adolescência. A noção de adolescência emerge inteiramente
vinculada à lógica desenvolvimentista, sendo considerada como uma etapa do
desenvolvimento pelo qual todos passariam obrigatória e similarmente. Embasado por
pressupostos científicos, no século XX, surge a figura do adolescente como um objeto
natural e com características e atributos psicológicos bem marcados. Uma forma de
pensamento psicológico, até hoje infelizmente predominante em alguns aspectos,
institui características inerentes a esta etapa da vida, “diferenciando sujeitos normais e
anormais de acordo com seu grau de aproximação às normas estabelecidas para cada
período” (Coimbra, Bocco e Nascimento, 2005).
Dentro do princípio desenvolvimentista, a adolescência surge como
um objeto exacerbado por uma série de atributos psicologizantes e
mesmo biologizantes. Práticas baseadas nos conhecimentos da
medicina e da biologia, em especial, vêm afirmando, por exemplo,
que determinadas mudanças hormonais, glandulares, corporais e
físicas pertencentes a essa fase seriam responsáveis por algumas
características psicológico-existenciais próprias do adolescente.
Tais características passam a ser percebidas como uma essência,
em que „qualidades‟ e „defeitos‟ como rebeldia, desinteresse, crise,
instabilidade afetiva, descontentamento, melancolia, agressividade,
impulsividade, entusiasmo, timidez e introspecção passam a ser
sinônimos do ser adolescente, constituindo uma „identidade
adolescente‟” (Coimbra, Bocco e Nascimento, p. 05, 2005).
Pensar em etapas do desenvolvimento é ficar atrelado à visão cartesiana de
busca e construção da razão. Tal filosofia acredita que nesta etapa da vida se constrói a
“identidade do sujeito”, sendo uma etapa da formação da sua personalidade. Esta forma
de pensar a vida afirma um modo correto de ser e estar no mundo, uma natureza
intrínseca a essa fase do desenvolvimento humano. Pior do que construir a adolescência
como uma etapa do desenvolvimento é atrelar tal etapa como uma fase de transtornos e
problemas, como uma fase de transição na qual é necessária a construção de um
reajustamento e adaptação.
Conceitos como adolescência e desenvolvimento não surgem por acaso, não são
ingênuos.
Servem aos propósitos dominantes de homogeneização e
imobilização reificando determinadas práticas e relações presentes
na atual sociedade de controle globalizado. Portanto, subvertê-lo é
87
uma ação política importante nesse momento em que há tanta
insistência em individualizar e interiorizar as questões sociais, e em
psiquiatrizar e criminalizar os ditos desvios das normas impostas a
todos nós (Coimbra, Bocco e Nascimento, 2005, p. 08).
O conceito de adolescência massifica os sujeitos e suas experiências ao produzir
esse momento como uma etapa universal no desenvolvimento, ao torná-la a-histórica e
homogênea para todos. Para Coimbra, Bocco e Nascimento (2005) a noção de
adolescência ao mesmo tempo que massifica, também individualiza, pois a forma como
cada indivíduo passa por tal „etapa‟ e como dela emerge depende de seus méritos.
Se, por um lado, a lógica desenvolvimentista quer fazer acreditar
em uma etapa homogênea e universal para todos os sujeitos, a
chamada adolescência, a lógica individualista e culpabilizante da
subjetivação capitalística vai dizer que o modo como cada um
enfrenta e resolve tal fase será determinado pelo próprio indivíduo
e por sua capacidade, ou falta dela, para lidar com as questões de
seu desenvolvimento. É o modo de ser indivíduo intensificado pelo
neoliberalismo, no qual predomina a figura do self made man:
qualidades e defeitos, méritos e fracassos são atribuídos aos
indivíduos como sendo inerentes à sua natureza. Vir a ser um
adulto maduro, estável e integrante do mundo do trabalho ou vir a
ser um desempregado sem família nem rede social dependeria
exclusivamente de cada um e de suas competências individuais
(Coimbra, Bocco e Nascimento, 2005, p. 07).
A ótica construída de patologização dessa “etapa do desenvolvimento da vida”
favorece políticas de prevenção, atenção e proteção aos “adolescentes” e sustenta os
discursos e instituições que a fizeram existir. No Brasil, como vimos anteriormente,
com a construção de dispositivos jurídicos como a noção de “menor”, tais políticas se
dirigem às crianças, a jovens pobres e suas famílias, nutrindo e alimentando um
discurso de filantropia social e “caridosa irmandade para com os jovens” (Rago, 2008,
p. 13).
O discurso de moralização e criminalização da pobreza segue com cada vez mais
força e adesão. Os empobrecidos são classificados como vagabundos, desordeiros e
irresponsáveis. No que tange à população jovem empobrecida, o discurso psicologizante
construído é o da falta de lei, de carência da função paterna.
Por vezes o discurso do „dar limites‟ não chega a trabalhar com
referências familiares de viés psicológico, mas apenas com
referências claramente morais. O diagnóstico de ausência de
limites é feito com rapidez, mas os procedimentos quanto a como
88
se fará essa introdução de limites variam, ao ponto de, muitas
vezes, chegar-se à justificação da existência de grades e à volta a
instituições fechadas, como freio de tendências destrutivas que
habitariam a subjetividade (Rauter, 2003, p. 114).
Essa concepção corrente em algumas teorias sobre a tendência destrutiva do
psiquismo humano aponta para uma dicotomia entre civilização e barbárie, razão e
instintos, entre desejo e lei.
Os progressos tecnológicos da humanidade apenas teriam agravado
o frágil equilíbrio entre instintos e proibições sociais, tornando os
indivíduos mais infelizes. A tendência destrutiva e a sexualidade
reprimidas só fariam intensificar o potencial destruidor do homem
– as conseqüências do processo „civilizatório‟ seriam um mal-estar
crescente, (...) (Rauter, 2003, p. 108).
Preferimos pensar, apoiados por autores da Filosofia da Diferença como Deleuze
e Guattari, outro modo o campo pulsional. Pensar a partir da idéia de uma só substância
que engendra tudo o que existe, um campo pulsional de pura positividade, além do bem
e do mal (Deleuze, 2002) (Rauter, 2003). Uma substância que toma caminhos ou
descaminhos, “configurando-se em criação e construção, mas também em destruição,
sadismo, masoquismo, culpabilidade, nunca como derivados de uma tendência básica
para o negativo, mas como antiprodução, como envenenamento” (Rauter, 2003, p. 109).
Pensar de modo diferente da dicotomia lei e desejo, pensando em uma só substância
produz uma forma de perceber a dicotomia lei e desejo como secundária, produzida,
nunca como algo inerente ao humano, como uma espécie de natureza ou essência.
Ao utilizarmos o conceito-ferramenta produção de subjetividade não
entendemos o sujeito como portador de uma essência ou de uma natureza, mas sim,
como estando em constante processo de produção, produzindo e sendo produzido,
nunca como algo acabado. Sujeitos e objetos “não possuem identidades fixas e
impermeáveis, mas são atravessados por uma multiplicidade de forças que os
subjetivam incessantemente” (Coimbra, Bocco e Nascimento, 2005). O conceito de
subjetividade praticado aqui é o que se opõe aos de identidade ou personalidade e que
questiona a ideia de uma interioridade em separado a uma exterioridade.
Identidade refere-se a um quadro de referência, que reduz a singularidade e suas
múltiplas maneiras de existir a uma única “referência identificável” (Guattari e Rolnik,
2005). Quando a premissa da formação de uma identidade na adolescência prevalece ou,
quando assegura-se a existência de uma “identidade adolescente”, afirma-se um
89
“determinado jeito correto de ser e estar no mundo, uma natureza intrínseca a essa fase
do desenvolvimento humano” (Coimbra, Bocco e Nascimento, 2005), uma forma de ser
adolescente normal e dentro do padrão estabelecido. Porém, desta forma, o que tem
visibilidade é a homogeneidade, os modelos morais de condução da vida, identidades e
formas de ser que devem ser adquiridas nas prateleiras do mercado de reprodução das
identidades prêt-à-porter (Rolnik, 2000).
Quando se trata de jovens pobres a forma como são vistos e classificados já está
dada: potenciais marginais-criminosos-perigosos. A tal condição é dada toda
visibilidade enquanto que “inviabiliza-se o jovem que sofre esse registro” (Cordeiro,
2009, p. 64). Para problematizarmos esse registro de produção de determinadas
visibilidades e conseguirmos fomentar outros modos de perceber a juventude e seus
movimentos de resistências, seus processos de singularização, potencializando seus
devires, temos que além de sairmos da crença em essências e identidades, rompermos
com a temporalidade de caráter cronológico, engessada por uma ordem moral, um “deve
ser” eterno. Buscamos entender a juventude como devir, experiência, singularidade,
descontinuidade, como juventudes.
Deleuze (2006) faz referência a dois movimentos temporais: aion e chronos.
Chronos pensa o tempo marcado pelo caráter cronológico, baseado em linearidades e na
causalidade, limitado e infinito. Aion é ilimitado como futuro e passado, mas finito
como instante, expressão dos acontecimentos e das intensidades. Para Deleuze, o
acontecimento é algo singular, não da ordem do universal nem do individual. “Deriva
de algo que nos encontra no que acontece, numa relação de corpos, e por isso se efetua
em nós pelos enunciados, entre vozes polifônicas que se produzem nos encontros pela
vida afora” (Cordeiro, 2009, p. 66).
O acontecimento está na superfície da pele, a partir do momento em que
acontece, e se desdobra num tempo aion, um tempo que não é cíclico, pelo contrário, é
aberto e se produz no infinito no passado e no futuro a cada novo encontro, cada novo
agenciamento. “Muitos infinitos a cada instante, que se abrem para outros labirintos que
ninguém sabe aonde vão dar...” (Cordeiro, 2009). Ao discutir o acontecimento, Deleuze
(2006) fala do paradoxo, pois a Alice no país do espelho, de Lewis Carroll, não cresce
sem ao mesmo tempo encolher, e torna-se maior do que era, mas também menor do que
é agora. É “no mesmo lance” que nos tornamos maiores do que éramos e nos fazemos
menores do que nos tornamos. Essa é a simultaneidade de um acontecimento como
devir-ilimitado (Deleuze, 2006), que tem como propriedade furtar-se do presente. “Na
90
medida em que se furta do presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do
antes e do depois, do passado e do futuro” (Cordeiro, 2009, p. 66). É no devir que está a
bifurcação de sentidos. Deleuze, busca no acontecimento seu paradoxo, a afirmação
dele que puxa nos dois sentidos, ao mesmo tempo, não o vendo como experiência
dicotômica, reduzindo-o assim, à moralidade do certo e do errado.
O que importa no acontecimento é como reverberam seus efeitos nos sujeitos. A
noção do tempo aion, dessa forma de entender o acontecimento, é importante para
conseguirmos nos livrar dos modelos de ser jovem ou adolescente, na busca de
essências e identidades, das metodologias de pesquisa prontas baseadas no modelo da
representação, dos discursos especializados na juventude no contemporâneo. Buscamos
novos modos de pesquisar, de ser afetado pelo inusitado e perceber as fissuras que vão
sendo abertas entre estratégias e práticas de controle e disciplinamento da vida.
Estranhar o instituído e produzir incômodos. Construir encontros que nos tirem de
nossas acomodações, exercitando uma vida que sinta os movimentos moleculares que
compõem esse campo de experimentações e de intensidades onde esses jovens
constroem suas vidas entre modos de resistência e a acomodação moralizante.
Importante é dar visibilidade para a potência da juventude e analisar como tal
potência vem sendo mutilada por um arsenal de técnicas, dispositivos e estratégias de
contenção de sua força. Do modo como vem sendo operacionalizado o conceito de
vulnerabilidade fortalece a vida desses jovens?
O núcleo de sociabilidade libertário da PUC-SP, Nu-sol, lançou um verbete
sobre o conceito de vulnerabilidade no qual afirma tratar-se de um
conceito médico-biológico, proveniente do modelo médico da peste
ligada à contenção do risco ao contágio, baseado na estratégia do
modelo militar de esquadrinhamento do espaço. Na sociedade
disciplinar, assim como a lei se transmutou em norma, a
vulnerabilidade tornou-se estatuto correlato na construção do conceito
de periculosidade, designando um dos aportes da prevenção geral que
passou a ser articulada por dispositivos de normalização,
contemporânea ao surgimento da prisão moderna. Assumiu
correspondências imediatas à emergência da medicina social e
intervenções reguladoras sobre populações, coincidindo com o
aparecimento da estatística como um saber de Estado. Seus
desdobramentos histórico-políticos respondem a uma gestão de poder
específica – concomitante ao desenvolvimento do liberalismo –,
compreendida como biopolítica: governo sobre a vida. A normalização
é um dos efeitos de um poder que passa a investir sobre a vida,
associada, não mais à figura do infrator e defesa do soberano, mas à
defesa da sociedade parametrada pelos conceitos de periculosidade e
91
criminoso. O deslocamento atual do conceito de vulnerabilidade,
vinculado a programas e políticas de segurança, responde ao
gerenciamento de populações construídas como duplamente
vulneráveis, expostas ao risco da violência, equalizando pela
seletividade o duplo vítima-criminoso, inerente ao sistema penal. Sua
operacionalização, na sociedade de controle, provém de resultados de
pesquisas voltadas ao combate à pobreza, no início da década de 1990,
e baseia-se na qualidade de vida, articula a educação voltada à
responsabilidade
social;
a
estatística
redimensionada
em
georreferenciamento; o cálculo do algorítimo do risco, proveniente da
matemática, projetando índices de zonas e pessoas preferencialmente
expostas a sofrer ou cometer determinados crimes; referências
metodológicas extraídas da medicina epidemiológica e investimento em
equipamentos sociais, articulando polícia, comunidade, ong‟s e
governos. O conceito de vulnerabilidade é antiabolicionista penal; seus
efeitos histórico-políticos explicitam a continuidade da prevenção geral
e o redimensionamento do campo de concentração a céu aberto (Nusol, 2010).
Lopes (2009) enfatiza que não faz parte do capitalismo a carência de
dispositivos de integração, pelo contrário, desde a vila operária descrita por Foucault
(2005) desdobram-se procedências do difusor moral que é preciso impor aos pobres. O
capitalismo comporta “produção material na ilegalidade, democracia com expansão da
miséria, medo da maioria contemplada por difusão de direitos para as minorias. A
segurança total supõe a dizimação consentida. Estão todos incluídos, a sociedade de
controle funciona pela integração” (Lopes, 2009, p. 169).
Procuramos problematizar o conceito de vulnerabilidade e o que vem
produzindo sua utilização indiscriminada e a-crítica. Defendemos que o conceito de
vulnerabilidade, do modo como sem sendo operado, atualiza estigmas e a seletividade
imprescindível para nosso sistema penal homicida.
Direitos, inovações neoliberais da penalidade, tutela informática,
controle a céu aberto, não contém as desigualdades que não cessam,
mas certamente integram populações às armadilhas da
governamentalidade que gere o corriqueiro e se torna condição
hierárquica, seletiva e maior para a segurança da própria política, que
em nome da defesa de direitos, administra os graus de justiça de suas
violações como possibilidade de sua própria sobrevivência sob o
respaldo da prevenção que opera no confinamento da vida nas
periferias (Lopes, 2009, p. 171).
Outro conceito que acompanha o de vulnerabilidade é o de risco. Paulo Vaz
(1999) descreve o conceito risco como um mecanismo de poder fundamental em nossa
sociedade. Moraes e Nascimento (2002) assinalam que a gestão de riscos como
92
mecanismo de poder também vem marcar uma mudança com relação ao tempo, que
deixa de ser linear e passa a operar sobre o futuro. Assim, se a norma justificava intervir
sobre o presente a partir da projeção do futuro, a noção de risco visa à modificação do
próprio presente, mediante a antecipação do futuro – o qual é previsto a partir do
cruzamento de dados estatísticos, sendo fundamental a função dos especialistas e da
ciência. “A antecipação do futuro passa a reger a relação com o tempo presente: se essa
antecipação indicar algum risco de algo indesejado, é o presente que deve ser
modificado com o objetivo de mudar também o futuro” (Hillesheim e Cruz, 2009, p. 81)
A noção de risco reinante em nossa sociedade de controle globalizado baseia-se
na lógica da causa e efeito, na noção cronológica do tempo, com o futuro sendo
fabricado no presente. Busca, mediante cálculos de probabilidades, típicos do biopoder,
controlar todas as variáveis da vida, de modo a prever o que irá acontecer, permitindo a
modificação do que pode vir a acontecer e que não seja planejado ou desejado.
A prática da gestão dos riscos associa risco e futuro. Ao se relacionar os fatores
de risco do presente o que se busca é fabricar o futuro. Hillesheim e Cruz (2009) citam
Larrosa (2001) para quem a noção de futuro implica em um estreitamento do presente,
constituindo-se como uma figura de continuidade do tempo e dos caminhos retos: “o
futuro nomeia a relação com o tempo de um sujeito ativo definido por seu saber, por seu
poder e por sua vontade – um sujeito que sabe o que quer e que pode convertê-lo em
real, um sujeito que quer se manter no tempo” (Larrosa, 2001, apud Hillesheim e Cruz,
2009, p. 81). Segundo essas autoras, ao projetar-se o futuro, o presente é compreendido
como um tempo utilitário.
Em época de campo de concentração a céu aberto e controles generalizados, a
população se torna uma grande amostra de dados, considerando os sujeitos e seus riscos
(de acordo com sua idade, classe social, local de moradia) passíveis de serem
controlados. Jovens infratores e “perigosos” são recolhidos nas instituições austeras
para serem “ressocializados, reeducados, reenseridos”, denominadas por Batista, (2009)
como “ilusões re”, que veem acompanhadas por uma demanda de cada vez maior por
um endurecimento penal. Atualmente, através da percepção repleta de negatividade e de
falta que o conceito de vulnerabilidade porta, se possibilita que jovens das camadas
mais pobres da população sejam adestrados em projetos e programas de Ong‟s mesmo
que não tenham cometido nenhum ato infracional (ainda). O discurso da prevenção
encontra-se em seu auge atrelado como sempre ao controle e à disciplina produzindo
subjetividades homogeneizantes, serializadas, moralizadas e, agora, pacificadas.
93
O objetivo é o governo da vida desses jovens “vulneráveis” e que estão “em
risco” e que nos colocam “em risco”. Temos que ocupar seu tempo, retirá-los das ruas,
ocupar sua mente – Mente vazia é oficina do diabo. Como diz uma respeitada
pesquisadora da área
os jovens e suas necessidades de desenvolvimento físico e
espiritual dispõem de tempo livre em demasia e que o trabalho com
essa população deve desconstruir a concepção de masculinidade
violenta, que alguns autores denominam hipermasculinidade e
outros, ethos guerreiro, significando atuar na fase de crescimento
dos jovens em que tal concepção se cristaliza ou se consolida no
seu psiquismo e nas suas atitudes para com os outros jovens e
mulheres (...) (ZALUAR, 2004, p. 411).
Somente deixando à margem e nas “sombras” a potência dessa juventude e seus
modos de produzir vida, se torna legítimo construir discursos e práticas que contenham
sua virtualidade. Os escapes e dribles diários que dão na sentença social a qual estão
atrelados são invisibilizados. Práticas preventivas são produzidas atreladas aos discursos
de verdade dos especialistas. A ideia de que sempre falta algo para esse jovem atualiza a
suspeição como prevenção geral, contida nos Códigos de Menores, de 1927 e 1979, é
justificada pela necessidade de proteção integral. “Mais uma vez os pobres, pretos ou
quase pretos, moradores de favelas e periferias são vistos como suspeitos e virtuais
infratores (...). Mais que isso, agora, investe-se em controlá-los para antecipar a prática
do ato infracional e para defendê-los de quem a lei determina que deva lhe dar proteção
integral” (Augusto, 2009, p. 59).
O que está em jogo é a proteção integral ou o controle total? Passetti (2007) nos
alerta que a participação democrática, a decantada cidadania, a medicalização e a
punição, combinadas, servem para a “normalização do normal, que articula e flexibiliza
modulações de normalizações” (Passetti, 2007, p. 16). Uma rede de novas técnicas,
estratégias e fluxos de controle e contenção da vida produzem acomodação e
“moderação asfixiante” (Augusto, 2007, p. 17). Entra em cena a governamentalização
policial da vida onde o jovem passa a ser o seu próprio policial. Os muros da prisão se
esgarçam e a periferia se torna campo de concentração a céu aberto.
As penas ou medidas de contenção da liberdade e esses projetos preventivos
para jovens são
tecnologias do governo da vida que alargam o aprisionamento em
modulações de encarceramentos que funcionam por dentro e para
94
fora da instituição prisional; que operacionalizam os controles ao
ar livre e produzem uma vida encarcerada contida no interior dos
bancos de dados, nos projetos assistenciais dos governos, nas
parcerias público-privadas e na disseminação da conduta do
policial-cidadão” (Augusto, 2007, p. 23).
O discurso de prevenção no qual se atrelam os projetos sociais nas periferias são
uma das inúmeras estratégias contemporâneas na metamorfose das tecnologias de saber,
poder e subjetivação, acopladas aos controles da virtualidade dos jovens pobres em seus
campos de concentração a céu aberto.
A receita prescrita para a juventude pobre está dada. A inflação dos projetos
sociais nas periferias brasileiras que, nem de longe, visa mudar a realidade social do
país, mas sim, viverem e lucrarem com ela. Realizar uma série de atividades culturais,
profissionalizantes, esportivas para jovens e convocá-los a participar de tais projetos nas
parcerias tecidas com a escola, com a família, a Vara da Infância ou com o Conselho
Tutelar. Os jovens, o público-alvo, estão muitas vezes imobilizados pela malha de
captura do colorido da vida, pronta para a produção da sobrevida e do extermínio dessa
população. “Assim, consomem de tal maneira suas vidas, seu espaço e seu tempo até
levá-los ao cansaço, à apatia. Nesse momento, estão prontos para serem policiais de si
mesmos, apáticos, estão com as vidas programadas, vivem por dentro e para fora das
prisões-prédio, na servidão” (Augusto, 2007, p. 88).
A gente tá aqui, estamos tentando mudar de vida. Tem muito
muleque que podia tá aqui, na igreja com a gente, mas tá aí, na
vida (diário de campo, A.L., 24/06/2011).
Para aqueles que se atrevem a resistir a essas modulações do controle e da
produção da obediência cidadã, o destino pode estar traçado: ser mais um número na
estatística alarmante que confirma o genocídio cometido contra a população jovem e
pobre, principalmente no estado do Rio de Janeiro. Entre o ano de 2000 e maio de 2009,
a polícia do estado matou, utilizando-se do recurso denominado “autos de resistência12”,
9.179 pessoas, a grande maioria jovens pobres e negros ou quase negros de tão pobres
entre 15 e 24 anos. São quase três pessoas mortas todos os dias pela polícia fluminense.
12
Auto de resistência consiste em dispositivo jurídico criado durante o período de ditadura civil-militar
no Brasil e utilizado quando, teoricamente, há um confronto contra agentes do Estado e, nesse confronto,
há a morte daquele que resistiu a prisão que seria efetuada pelo agente do Estado. Tal procedimento vem
sendo utilizado, indiscriminadamente, desde seu surgimento, para encobrir homicídios praticados por
agentes do Estado contra a população. Atualmente, os que mais sofrem com os efeitos letais de tal
dispositivo são os jovens pobre e negros, moradores das favelas.
95
Outra “opção” para esses jovens “rebeldes e subversivos” é fazer parte da estatística de
desaparecidos (políticos?) que somam cerca de 9 mil somente entre os anos de 2007 e
2008.
Não podemos deixar de ressaltar que mesmo fazendo parte dos projetos e
programas produtores da obediência cidadã, os jovens pobres estão sujeitos a serem
alvos da atual política de segurança pública e engrossarem tais números pelo simples
fato de serem quem são. Serão mais um na estatística da histórica guerra do Estado
brasileiro contra sua população pobre insurgente.
Esses jovens inseridos em projetos sociais e programas governamentais ligados a
Ong‟s são muitas vezes os sobrantes de uma rede que vai da pobre política educacional
brasileira ao outro pólo, o gigantesco aparato penal e seus inúmeros tentáculos
(medicalização, judicialização) e suas práticas de extermínio. Duas faces de uma mesma
moeda. Polícia da vida.
Mas quando esses jovens, habitantes da borda, das fronteiras da sociedade de
controle globalizado, são capturados por projetos e programas sociais, como o
PROTEJO, o que acontece? O que produz essa inclusão? Como vivem? Suas vidas
perdem o brilho, a cor, sendo pacificadas? Tornam-se “animais ariscos que
domesticados esquecem o risco?”
2. Invisibilidade do jovem pobre ou impossibilidade de enxergar a potência?
Muito se tem falado sobre uma suposta invisibilidade dos pobres, mas
especificamente dos jovens pobres. Essa perspectiva sociológica dominante é utilizada
como base de sustentação para os últimos planos de segurança pública brasileiros. O
Projeto de Segurança Pública para o Brasil, datado de 2003, instaura que arma é
símbolo de poder, restaurador de visibilidade social perdida. Utiliza as estatísticas
oficiais para designar o jovem pobre como alvo de suas ações ao afirmar que o
jovem pobre é quase um ser social invisível, sobretudo se lhe falta um
lugar afetivamente sólido e estável na família e na comunidade (...).
Com a arma, graças à arma, ele é visto, reconhecido, respeitado e passa
a pertencer a um grupo, que lhe dá funções importantes e lhe atribui
responsabilidades. Graças à imposição, sobre o outro, do medo
provocado pela ostentação da arma, o outro reconhece sua presença e
96
lhe devolve a visibilidade social, no jogo cruel e perigoso de uma
dialética perversa (PSPB, 2003, p.12).
Essa é a forma predominante do pensamento sobre a pobreza e os pobres.
Sabemos que o Brasil historicamente segrega, humilha, discrimina, criminaliza e
extermina parte de sua população empobrecida. São pensamentos como esses que
embasam os atuais projetos de segurança pública e legitimam as práticas que atualmente
dizimam parte da população jovem pobre brasileira.
Agora o importante é ressaltarmos que há outras formas de enxergar a pobreza e,
consequentemente, os pobres. Destes, devido principalmente à concretude material que
lhes é apresentada, são exigidos diariamente que tenham uma potência sempre
renovada, sendo o pobre, nas palavras de Negri (2003), a desmedida, o futuro. Nessa
perspectiva, os pobres muitas vezes, reinventam a realidade em práticas de vida que
refletem suas carências materiais, mas também as superam, reinventando-as
cotidianamente.
Pimentel (2009) pensando a partir da questão da reformulação do mundo do
trabalho como efeito da resistência da classe trabalhadora enxerga os trabalhos
realizados pelos pobres como sendo muitas vezes considerados ilegais, porém, tais
trabalhos são apanhados, capturados nas malhas da rede de acumulação do capitalismo
pós-moderno, fazendo emergir uma nova figura produtiva, o pobre.
O pobre, enquanto figura produtiva fundamental do capitalismo
cognitivo tem a oferecer sua intelectualidade, sua criatividade, sua
afetividade. Habilidades que precisam ser mobilizadas intensa e
continuamente para o equacionamento de suas vidas, sobretudo quando
trabalham numa atividade ilegal, como o tráfico de drogas (Pimentel,
2009, p. 312).
Não podemos esquecer que queremos enfatizar uma perspectiva micropolítica
nesse trabalho e que a questão de classe deixa de ser referência fundamental já que a
produção de subjetividade funciona para todos de forma homogeneizante, para ricos e
pobres, pessoas do sul ou do norte, do centro ou da periferia do capitalismo neoliberal.
Temos de ter um certo cuidado para que o pobre não ocupe aqui o lugar de proletário e,
assim, fique apenas como uma categorização, segmentarização, o que nos afastaria
sensivelmente de nossa propostas micropolítica. Mas no Brasil com sua herança
escravagista, higienista e com uma das maiores diferenças de distribuição de renda do
mundo, não podemos deixar de ter uma perspectiva de classe quando estamos buscando
97
intervir nessa realidade de contenção, disciplinamento, controle, aprisionamento e
extermínio da população jovem pobre brasileira.
é a concretude material apresentada ao pobre que lhe exige uma
potência sempre renovada, assim o pobre é a desmedida, o futuro
(...). dessa forma, os pobres reinventam a realidade em práticas de
vida que refletem suas carências materiais, mas também as
superam, as reinventam (Pimentel, 2009, 312).
O fato de ser pobre e entregue à desmedida da miséria, para tais autores, parece
favorecer a criação de possíveis, de mundos, porém, acreditamos que o fundamental é se
essa pessoa em sua condição material de pobreza consegue sair da anestesia imposta
pela subjetivação capitalista, sentir sua vulnerabilidade, fazendo desta não uma questão
de falta ou carência, mas de abertura de possíveis e construção de linhas de fuga inéditas
e singulares.
A questão da potência muitas vezes vem atrelada à discussão da invisibilidade
da população pobre, mas especificamente, a juventude. Talvez seja o momento de nos
perguntarmos por que o esforço da governamentalidade neoliberal em dar visibilidade
aos jovens pobres ou, de acentuar que esses jovens são invisíveis e que só se tornam
visíveis quando “pegam em armas” e impõem medo aos “cidadãos de bem”? Quando
um jovem pobre e negro anda em nossa direção e mudamos o caminho com medo,
mesmo que ele não esteja armado, ele está invisível? Ou está usando sua “tatuagem
hedionda” (Cocco, 2009) de morador de favela e, por isso, sempre um possível
criminoso?
Pelbart (1993) propõe alterarmos o estatuto do invisível, conferindo-lhe uma
dimensão propriamente política, dando-lhe um lugar na polis. Esse autor esquematiza
uma tipologia da relação das culturas com o invisível, a partir de quatro regimes de
invisibilidade. O autor se preocupa em afirmar que não se trata de diferentes tipos de
invisibilidades em uma história evolutiva.
O primeiro diz respeito ao invisível imanente, tal como aparece nas culturas
primitivas ou arcaicas. É o invisível habitando a Terra, coextensivo a ela e presente no
meio dos homens. O segundo tipo de invisível habita o Céu, acima dos homens, tal
como se vê nas grandes religiões monoteístas ou nas formações bárbaras despóticas. É o
invisível transcendente. O terceiro tipo seria mais conhecido de nós, um invisível
enredado na interioridade da alma e, por extensão, constituindo o domínio do nosso
psiquismo. O invisível habitando o Sujeito, e privatizado na forma do fantasma
98
individual. “A hipótese um pouco extravagante que assedia este percurso grosseiro, que
eu gostaria de postular mas também de contestar, é que estaríamos assistindo agora à
passagem desta última configuração, a do invisível subjetivo, para uma outra forma, em
que está em jogo o aniquilamento progressivo do invisível” (Pelbart, 1993, p. 50). O
invisível não seria mais imanente, nem transcendente, não mais subjetivo: o invisível
estaria, segundo o autor, entrando num regime novo, com uma figura estranha que
mereceria uma análise também estranha. Não mais presente entre os homens, nem
planando acima deles, nem encarquilhado dentro deles, mas substituído ou engolido
pela visibilidade imaterial da imagem.
Em nosso atual regime ecológico de visibilidade total não há mediação, a
imagem se propõe a mostrar tudo. O jogo entre o revelado e o oculto desaparece. Para
Pelbart seria um regime de promiscuidade tátil com as imagens.
Esse autor sublinha que o estatuto do invisível que a imagem coloca em xeque,
malgrado a tentação pós-moderna, jamais será capaz de substituir. O invisível, a rigor,
não é da ordem da linguagem, nem da imagem, e muito menos do imaginário. Por isso é
tão falaciosa sua redução a uma interioridade psíquica, ou a um imaginário social que se
sobreporia à realidade. “O invisível é parte da realidade, ele é da ordem da Cidade, ou,
para sermos mais espinosistas, da ordem da Natureza. Uma ecologia que pretendesse
preservar o ar relativamente despoluído, isto é, invisível, deveria preocupar-se em
manter arejado o invisível” (Pelbart, 1993, 54). Segundo ele, o regime da visibilidade
total é incapaz de substituir o invisível, porém é capaz de poluí-lo.
Como exemplo do que seria invisível, Pelbart cita os espaços de confinamento
da loucura, onde há uma espécie de densa invisibilidade entrelaçada nos objetos, nas
pessoas, nos lugares, nas palavras, nos silêncios, e não é precisamente o que está na
cabeça de cada paciente, mas entre eles, entre um e outro, entre um olhar e um objeto,
entre as palavras e as coisas, entre um som e um retalho, como se esse invisível fosse
outra coisa que um oculto, outra coisa que um segredo, outra coisa que um mistério
acessível a um sujeito privilegiado, seja ele médico ou louco.
Como se esse invisível fosse essa camada que envolve e permeia as
coisas, ou as duplica, ou que lhes dá espessura, ou leveza, ou peso, ou
as torna relevantes, miraculosas, fantásticas, inéditas, mágicas, brutas,
inertes... Sim, uma camada intensiva, que tem a ver com as imagens
mas não deriva delas, que tem a ver com a linguagem mas não deriva
dela. Como quando vemos um morto, paira sobre ele uma camada de
invisível que não é o morto, e sim a morte, esse acontecimento
99
imemorial que sobrevoa todos os mortos e os vivos, e os incrédulos e os
estarrecidos da Terra (Pelbart, 1993, p. 53).
A operação que visa despoluir o invisível é estética, filosófica, clínica, mas
também segundo Pelbart, eminentemente política, pela simples razão de que esse
invisível é imanente às grandes máquinas técnicas e sociais. O invisível, esse invisível
virtual, parte integrante e constitutiva de realidade, de subjetividade, de sentido, atrelado
que está às máquinas tecnológicas e sociais e seus agenciamentos, deve ser pensado
politicamente. Para tanto, é preciso desprivatizá-lo, desimaginarizá-lo, mas ao mesmo
tempo restituir-lhe sua densidade de acontecimento e de virtualidade, sua distribuição
esparsa, singular, processual, de engendramento de realidade e de subjetivações. “É bem
difícil, em meio às guerras mais cruentas, falar daquilo que não é propriamente da
ordem do Ser, mas do entre. Tanto pior ou tanto melhor se isso pressupõe uma outra
ontologia em que não está em jogo o Ser do ente, mas o Entre do ser” (Pelbart, 1993, p.
55).
O que estamos referindo quando falamos de um invisível que não é da ordem de
um visível oculto, ou de uma imagem interna, ou de um imaginário coletivo, mas que
tem a ver com o coletivo e o singular, que diz respeito ao subjetivo, que tem a ver com
as palavras e as coisas e as máquinas sociais, que está entre elas, e que deveria ser,
conforme explícita Pelbart, desobstruído, arejado, por esgarçamento, rarefação, ou
outros procedimentos?
Para o autor, esse invisível tem a ver com o espaço reservado ao intempestivo e
com uma necessidade urgente de nos desgarrar desse presente sem espessura que a
mídia nos oferece, imagem móvel de uma eternulidade, para introduzir em nossas vidas
o inédito.
É uma operação que exige a desobstrução de um invisível como campo
virtual para um devir-intempestivo. Que me seja perdoado o
pleonasmo: é claro que o devir já pertence à ordem do intempestivo, do
contra-tempo, do inatual, do desvio na história, da contra-efetuação,
mas por inflação de uso o termo devir acabou sendo facilmente
identificado com a simples mudança ou progresso ou evolução, mesmo
dialética, o que oblitera sua relação essencial com esse intempestivo
(Pelbart, 1993, p. 57).
Pensando dessa forma, trata-se sempre, nesse trabalho sobre o invisível
entendido como o espaço de surgimento do intempestivo, de desbloqueá-lo do tempo
homogêneo, nas suas diversas formas de captura, seja a forma eternificada do universal,
100
a forma linear da evolução, a forma achatada da emissão, ou ainda a nova forma
modulada, ondulatória de controle.
Com a contribuição caríssima de Pelbart podemos aludir que a suposta
invisibilidade dos jovens pobres favelados brasileiros é, na verdade, uma imensa
tentativa de dá-lhes visibilidade e, dessa forma, impossibilitar o surgimento do
intempestivo que tanto amedronta os que lhes querem acorrentados. Esse intempestivo
de tempo-invisível é sua potência. Potência essa, que sua condição de jovem pobre lhe
concede, porém, não lhe garante, dependendo, como já dito anteriormente, de que modo
vai lidar com sua condição paradoxal de vulnerabilidade, quais agenciamentos vai
realizar, quais encontros terá e o que produzirá.
Foucault (2003) em um de seus mais brilhantes textos, já nos alertava sobre a
vida dos homens infames, existências destinadas a passar sem deixar rastro, porém que
em algum momento, um feixe de luz a ilumina. “O que as arranca da noite que elas
teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder”
(Foucault, 2003, p. 207).
Segundo ele, o ponto mais intenso dessas vidas, aquele em que se concentra sua
energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam
utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas.
“Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do
choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas
que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, (...)” (Foucault, 2003, p. 210).
O que está por trás, nos bastidores da política de visibilidade total para a
juventude pobre brasileira? O que se pretende fazer aparecer que antes não aparecia, ou
que não deveria aparecer?
Pelbart (1993) nos lembra que esse invisível está entrelaçado aos saberes,
poderes e modos de subjetivação bem como a seus dispositivos, que nos circundam e
nos fundam e também nos afundam. No caso específico dos jovens pobres brasileiros,
essa prática vem com os programas de segurança pública, com os PRONASCI e PACs,
embasados por saberes que colocam esses jovens como os autores da violência e,
também, as suas vítimas, que precisam ser “conquistados” por tais projetos ditos como
públicos. Corroborando a isso, se produz uma percepção do jovem pobre como um
possível infrator, para o qual torna-se necessário a criação de
mecanismos e
dispositivos de regulação, gestão e controle, como medidas preventivas aos riscos aos
quais estão indefinidamente atrelados por sua condição de vulnerável.
101
Uma questão surgia com força em nós. Essas tecnologias, essas
praticas que faziam parte da política de visibilidade total da
juventude pobre exacerbava territórios, relações, forças invisíveis.
Ao procurar produzir visibilidade total o efeito é aumentar a zona
de sombra. E, o que permanecia invisível era a força da amizade
daqueles jovens, a potência do afeto entre eles. O comum estava
ali com força e, custou muito tempo para percebermos. As alegrias
dos jovens quando um dos facilitadores das diversas oficinas do
projeto não comparecia, e com isso, podiam passar a manhã toda
juntos, conversando, brincando, sem obrigações a cumprir. Em
meio a isso, a tristeza quando falavam dos inúmeros amigos
mortos nas disputas pela venda varejista de drogas ou mortos pela
polícia quando se deparavam com o poder (Diário de campo,
17/08/2011).
A tristeza deles também ficava evidente quando falavam dos
amigos que não estavam mais morando no complexo. Tiveram que
se mudar quando o exército invadiu a comunidade. Era perigoso
para eles estarem ali. Eram considerados perigosos. Jovens em
risco criminal. Os jovens do PROTEJO também eram
considerados jovens em risco criminal. Por isso, estavam naquele
dispositivo. A amizade de infância com jovens que vendiam drogas
no varejo no complexo fazem com que esses jovens sejam
classificados desse modo. “Risco criminal”??? Nunca tinha
ouvido essa classificação, rotulação, esse esquadrinhamento. As
amizades que tinham, faziam com que fossem classificados como
em “risco social”, assim como, o lugar que moravam, a cor da
pele, sua situação econômica, suas carências, suas
vulnerabilidades, e tantas outras características que são
construídas e possibilitam tais classificações, tais diagnósticos
(Diário de campo, 17/08/2011).
Ficava cada vez mais claro para nós, a força que, mesmo com
todas as tentativas de captura, estava ali, tornando a vida daqueles
jovens ainda colorida, mesmo com o cinza daquelas manhãs.
Força que surgia com alegria estonteante nas piadas que
rapidamente apareciam quando alguém dava brechas. Quando a
porta da escola do Alemão bateu devido ao vento, enquanto a
coordenadora me apresentava, e um jovem mais que depressa
gritou: “olha aí, é o fantasma do Tim Lopes!” Todos riram,
inclusive a coordenadora que não aguentou e caiu em risada. Ou
quando num de nossos últimos encontros contavam como jogavam
“cabeções de nêgo” nos soldados que revistavam as ruas embaixo
das suas casas. Como não rir disso? Resistência. Alegria.
Inconformismo (Diário de campo, 17/08/2011).
3. A Falta e a Incapacidade
102
Os jovens selecionados pelas “mulheres da paz” para ingressarem no PROTEJO
eram os considerados vulneráveis, em risco criminal, sujeitos por excelência de uma
periculosidade, necessitados de controle, disciplina, inserção. É importante destacarmos
a produção histórica e social desses regimes de verdade que fabricam tais categorias
humanas como faltosas e vulneráveis, alvos legítimos de intervenções assistencialistas,
produzindo
tutela,
enfraquecendo
essas
vidas.
Projetos
que
só
reificam,
compensatoriamente, o “processo de contenção e disciplinamento da energia juvenil
como estocagem, excessos de mão-de-obra, a ser categorizado como população de
risco” (Batista, 2012).
Prevenção e controle. Dois lados de uma mesma moeda.
Com a crescente oferta de projetos sócio-educativos, esportivos, culturais e
cursos profissionalizantes para jovens em suas localidades, oferecidos por Ong‟s no
imenso mercado de rentabilização da miséria, há o reforço do discurso de que “esses
jovens não querem nada”. Estão lá, sempre devendo algo, nunca capazes de satisfazer o
que “devem fazer de suas vidas”. Sempre aquém do que devem e além do que podem.
Quando começamos os encontros com os jovens do complexo do alemão
percebemos que aqueles tidos como em “risco criminal” não estavam ali. Os integrantes
do PROTEJO relatavam estar vivendo momentos difíceis, pois seus amigos não
estavam mais ali. Aqueles jovens que brincavam desde crianças com eles saíram da
comunidade com a invasão do exército, poucos meses antes dos nossos encontros. Além
do sofrimento de não estarem mais ao lado dos seus amigos, os jovens passavam por
revistas diárias realizadas pelos militares, reforçando o lugar de perigosos, hipervisibilizados. As jovens relatavam o assedio sexual que sofriam dos militares presentes
nas localidades onde moravam.
À invasão dos militares e das forças da ordem precedia a entrada de bancos,
redes de lojas, crédito estatal para o consumo e praças comunitárias. A ocupação do
território procura construir novos territórios subjetivos na população local. Essa é uma
das estratégias da “tomada do território”. Para o segundo momento do PRONASCI, que
é “permanecer na comunidade”, a produção de territórios subjetivos é essencial.
Todo esse esforço para a inclusão dos jovens aos diversos projetos sócioeducativos e seus projetos de vida reforça nos jovens a sensação de incapacidade e
ineficiência, ao colarem neles projetos ideais de vida, sequestrando vontade, minando
virtualidades.
103
Parece que tudo que fazemos não dar certo. Tudo para nós é mais
difícil. Aqui tudo é difícil, não tem nada e o que tem não funciona
direito. Até esse projeto, prometeram um monte de cursos legais
pra gente, mas veio nada pra cá. O que vocês querem que a gente
faça? A gente tá fazendo, mas tá difícil (A. C., diário de campo,
24/06/2011).
Uma equação perversa parece se formar: jovens construídos como vulneráveis,
incluídos em projetos que só reforçam seu sentimento como faltosos e incapazes e o
estigma que os acompanham. Ao longo dessa pesquisa vetores de composição desse
dispositivo foram sendo traçados por nós. Sujeitos faltosos e vulneráveis, territórios
perigosos, constroem jovens e suas localidades de moradia como campos de
concentração a céu aberto. Territórios ocupados por políticas neoliberais, travestidas de
progressistas, para a normalização do normal e manutenção dos jovens nos espaços
esquadrinhados para eles.
O efeito de liberdade que, apostamos aqui, como efeito entre os jovens que
frequentam tais projetos, fortalece a versão de falência da capacidade de cada um:
mesmo investidos de liberdade, não dão certo. Mesmo com projetos sócio-educativos,
culturais e esportivos, “não querem nada”. Dispositivos de ajuste à lógica neoliberal que
reafirma tal sentença no próprio jovem. Efeito perverso.
Vidas programadas e consumidas de tal maneira, que têm como efeito o cansaço,
a apatia, o conformismo, a culpabilização e a resignação. Nada de vontade.
104
CAPÍTULO IV
E nós com isso? Os Intelectuais-militantes-pesquisadores e os campos de concentração
na atualidade
Após um tempo de espera, consegui a chave da sala de vídeo do
CIEP. Os jovens não estavam acostumados a frequentar aquele
lugar, tão bem protegido. Iniciei a atividade com uma fala séria
sobre a questão da criminalização da juventude pobre,
principalmente, no estado do Rio de Janeiro. Falei um pouco do
documentário que iríamos assistir em seguida. Que era um pouco
diferente dos filmes que costumamos ver na televisão, que era um
documentário feito por um grupo de pessoas que estavam
preocupados com o que está acontecendo com os jovens, a questão
da violência policial contra os jovens, e falei que veriam os relatos
das mães que perderam seus filhos devido a essa violência. Que
tudo que veriam era verdadeiro, não era uma ficção como num
filme (...).
Após a exibição do documentário, e da sua cena final, muito
impactante, o clima era pesado. Contribui para ficar ainda mais
pesado, iniciando a discussão sobre o documentário. Aí um dos
jovens começou a rir, e outros jovens riram depois, outros ficaram
chateados e xingaram o rapaz. Só sei que fiz uma fala da pesada
em cima disso, colocando que aquela situação era a nossa, que
não podíamos rir disso que está acontecendo, milhares de mortos,
que poderiam ser um de nós, como eles mesmos já conheceram
vários, que o fato de nós não nos indignarmos com isso, era um
dos fatores que contribui para que continue acontecendo, e tantas
outras coisas.
Saindo de lá, parei o carro, logo depois da saída da comunidade.
Comecei a me perguntar sobre o que estava fazendo ali. Queria
105
doutrina-los? Estava eu, produzindo má-consciência naquele
jovem que riu, como se fora um pastor? Queria fazer daqueles
jovens ovelhas militantes da minha causa?
Fiquei tonto...meio enjoado Estaria eu, reproduzindo um pouco do
que tentava combater ali? (diário de campo, 24/06/2011).
Governo da vida. Estamos de algum modo, participando ativamente da prática
policial expandida como políticas sociais na busca por melhoria das condições de vida
de jovens que compõem a população diagnosticada como vulnerável e em risco
criminal, tornando-os empreendedores de si e bons cidadãos, ou, simplesmente,
controlando-os e domesticando suas forças e capturando resistências. Programando-os
dentro de scripts da vida, da construção de projetos de vida longe dos perigos e riscos da
própria vida. Sobrevida. Biopoder. Políticas de cuidado.
Somos agentes da prática de atualizar “políticas públicas como sinônimo de
polícia e como prática que não se restringe à ação do Estado” (Augusto, 2012, p. 166).
Foucault diferenciou Politik (do alemão, política), como a função repressiva da razão de
Estado contra seus inimigos internos e externos, de Polizei (do alemão, polícia), como
tarefa positiva do Estado e da sociedade civil para favorecer a saúde e dirigir as
condutas dos que compõem a população garantindo a moralidade e obediência dos
cidadãos (Foucault, 2003).
Não por analogia, semelhança ou aproximação, mas como técnica,
já seria possível afirmar que não estamos muito distantes de
contemporâneas políticas assistenciais e de controle de
incivilidades que se orientam por uma busca de melhorias das
condições de vida dos habitantes adultos e oferta de atividades
atrativas direcionadas às crianças e aos jovens de determinado
local, envolvendo a comunidade em que vivem. Políticas
assistenciais invariavelmente se combinam com uma presença
expressiva da polícia repressiva, como integrante dessa
comunidade, tanto relacionadas às formulações da teoria
criminológica da ação ecológica desenvolvida pela sociologia da
Escola de Chicago, como à contemporânea, e tributária desta
teoria, política de tolerância zero (Augusto, 2011, p. 23).
Vida segura. Invulnerável. Governável. Moralidade mínima, obediência
máxima.
106
1. Segurança...
Uma atualidade regida por mecanismos e dispositivos de segurança. Foucault
(2008) em seu curso no College de France intitulado “Segurança, território e população”
elabora um estudo, ainda no final da década de setenta, sobre a gradual instalação junto
ao mecanismo legal ou jurídico e ao mecanismo disciplinar, que enquadra a lei por
mecanismos de vigilância e correção, de uma terceira forma de funcionamento social
que nomeia como dispositivos de segurança.
Assim, elabora um triângulo das formas de governo dos homens – a soberania,
que não é de forma alguma eliminada pelo surgimento de uma nova arte de governar,
pelo contrário, é tornada mais aguda que nunca; a disciplina, que também não é
eliminada, pois para uma arte de governo das populações, se faz necessário administrar
essa população também em profundidade, com sutileza e em detalhe; e a gestão
governamental cujo alvo principal é a população e que tem como mecanismos
essenciais os dispositivos de segurança (Foucault, 2008).
Os dispositivos de segurança inserem um fenômeno, que, por exemplo, pode ser
o roubo ou a escassez alimentar, numa série de acontecimentos prováveis e as reações
do poder a esse fenômeno vão ser inseridas em cálculos de custo. E, posteriormente, em
vez de instaurar uma divisão binária entre o permitido e o proibido, se fixa de um lado
uma média considerada ótima e, depois, se estabelece os limites do aceitável, além dos
quais não se pode passar. É toda uma nova distribuição de mecanismos que se esboça.
O que Foucault procura evidenciar é que mesmo nos séculos XVII-XVIII,
quando o que predominava era o código jurídico-legal, os mecanismos disciplinares e
de segurança já se faziam presentes, da mesma forma quando diagnostica o predomínio
dos dispositivos de segurança, há a presença marcante do código jurídico-legal e dos
mecanismos disciplinares. Tomando como exemplo a ordem penal no fim da década de
setenta, aponta para o alargamento gigantesco do conjunto das medidas legislativas, dos
decretos, dos regulamentos, das circulares que são os instrumentos que permitem a
implantação dos mecanismos de segurança. Toda a inflação legal, a inflação do código
jurídico-legal que já chamava atenção do filósofo há três décadas, é fundamental para o
estabelecimento desse sistema de segurança.
Do mesmo modo, o corpus disciplinar também é amplamente ativado e
fecundado pelo estabelecimento desses mecanismos de segurança.
Porque, afinal de contas, para de fato garantir essa segurança é preciso
107
apelar, por exemplo, e é apenas um exemplo, para toda uma série de
técnicas de vigilância, de vigilância dos indivíduos, de diagnóstico do
que eles são, de classificação de sua estrutura mental, da sua patologia
própria, etc., todo um conjunto disciplinar que viceja sob os
mecanismos de segurança para fazê-los funcionar (Foucault, 2008, p.
11).
Segundo Foucault, o que temos é, na verdade, uma série de edifícios complexos
que vão se aperfeiçoando e que hora ou outra, a dominante muda, ou mais exatamente, é
o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos
disciplinares e os mecanismos de segurança que sofrem alterações. Algumas das
técnicas, das tecnologias de segurança consistem, em grande parte, na reativação e na
transformação das técnicas jurídico-legais e das técnicas disciplinares. Assim, a
segurança seria uma maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos mecanismos
propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina.
Foucault cita quatro características gerais desses dispositivos de segurança: os
espaços de segurança, o problema do tratamento do aleatório, a forma da normalização
específica da segurança (e que difere da normalização disciplinar), e a emergência da
população como objeto e sujeito desses mecanismos de segurança.
Nesse momento, vamos nos deter na característica da forma como é efetuado o
tratamento do aleatório pelos dispositivos de segurança. Tais dispositivos têm como
característica geral, a gestão de séries abertas que, por conseguinte, só podem ser
controladas por uma estimativa de probabilidades. O que se procura controlar são as
séries de acontecimentos, que indivíduos, populações e grupos produzem, e interferir
em acontecimentos de tipo quase natural que se produzem ao redor deles. Começa a
constatar-se que o “natural” da espécie irrompe como problema da artificialidade
política de uma relação de poder.
Os dispositivos de segurança, conforme descritos por Foucault, engendram os
cálculos nos mecanismos de poder e essa preocupação ganha relevo principalmente em
relação aos acontecimentos e à noção de risco. Os cálculos dos riscos mostram logo que
eles não são os mesmos para todos os indivíduos, nem para todas as idades, em todas as
condições, em todos os lugares e meios. Assim, há riscos diferenciais que revelam, de
certo modo, zonas de mais alto risco e, ao contrário, de risco menos elevado. Dessa
forma, pode-se identificar o que é perigoso.
As preocupações com os riscos e com os acontecimentos são, para Foucault,
noções novas, pelo menos no seu campo de aplicação e nas técnicas que requerem, já
108
que se faz necessário uma série de formas de intervenção que vão ter por meta não fazer
como se fazia antigamente, ou seja, tentar anular o acontecimento em todos os sujeitos
acometidos ou separá-los, como no caso das doenças, para impedir que esses sujeitos
doentes tenham contato com os que não estão. Os mecanismos disciplinares, aqueles
que são postos a funcionar nos regulamentos de epidemia e nos regulamentos aplicados
às doenças endêmicas, como a lepra, tendem a tratar a doença no doente e, em segundo
lugar, anular o contágio pelo isolamento dos indivíduos não doentes em relação aos que
estão doentes.
Diferentemente dos dispositivos disciplinares, os dispositivos de segurança que
aparecem com a variolização-vacinação consistem em não realizar essa demarcação
entre doentes e não-doentes. Esses dispositivos levam em conta o conjunto sem
descontinuidade, sem ruptura, dos doentes e dos não-doentes, em suma, a população, e
vêm nessa população qual é o coeficiente de morbidade provável, isto é, o que é
normalmente esperado, em matéria de acometimento da doença, em matéria de morte
ligada à doença, nessa população.
A forma de lidar com esses acontecimentos exemplifica a diferenciação da
normalização no sistema predominantemente disciplinar e nesse que Foucault designa
como de segurança. Nas disciplinas, partia-se de uma norma e era em relação a um
adestramento efetuado por essa norma que era possível distinguir posteriormente o
normal do anormal. Nos dispositivos de segurança, o que acontece é o inverso.
Tem-se uma identificação do normal e do anormal, e uma identificação
das diferentes curvas de normalidade, e a operação de normalização vai
consistir em fazer essas diferentes distribuições de normalidade
funcionarem umas em relação às outras e em fazer de sorte que as mais
desfavoráveis sejam trazidas às que são mais favoráveis. São essas
distribuições que vão servir como norma. A norma está em jogo no
interior das normalidades diferenciais. O normal é que é primeiro, e a
norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a
norma se fixa e desempenha seu papel operatório. Logo, eu diria, que
não se trata mais de uma normação (como nas disciplinas), mas sim, no
sentido estrito, de uma normalização (Foucault, 2008, p. 83).
Para Castel (2005), a necessidade de proteção e segurança que presenciamos é
uma aversão aos riscos, o que promove uma sensação de insegurança permanente. A
partir dessa constatação, pergunta o que poderá nos proteger – a não ser Deus ou a
morte – “se, para estar plenamente em paz, é necessário poder controlar completamente
todas as circunstâncias imprevisíveis da vida” (Castel, 2005, p. 10-11).
109
Esse autor salienta que desde Hobbes sabemos que a busca por uma utópica
segurança total só se faz possível se o Estado for absoluto, podendo, dessa forma,
impedir todas (será?) as veleidades que possam atentar contra a segurança das pessoas e
de seus bens. Nesse raciocínio, a propriedade funciona como dispositivo de proteção,
permitindo aos que a possuem protegerem-se por si mesmos, através de seus próprios
recursos, por isso a necessidade do Estado de proteger as propriedades. Assim, têm uma
segurança social garantida com a propriedade de modo que esta se torna uma verdadeira
“instituição social” (Gide, C., in Castel, 2005, p. 22).
Mas num Estado que busque se constituir como democrático há limites ao
exercício desse poder que não se realiza plenamente a não ser através do despotismo ou
do totalitarismo. Portanto, para Castel, o sentimento de insegurança extrema que
percebemos hoje, provém menos de uma insuficiência de proteção do que do caráter
radical dessa demanda de proteção cujas raízes Hobbes identifica já há algum tempo, no
fim da proteção por proximidade.
Essa proteção por proximidade é produzida por relações presentes no espaço
familiar, na convivência com vizinhos e amigos ou numa comunidade. Para Castel
(2007) este tipo de proteção constrói coletivos protetores, nos quais um sistema de
regras ligam diretamente os membros de um grupo, que dessa forma, participam de uma
rede de interdependência, sem a mediação de instituições específicas. Esta proteção por
proximidade permite, segundo o autor, que a sociedade mobilize suas potencialidades
para proteger os indivíduos desestabilizados. Porém, sabemos que hoje, as ameaças são
outras e o processo de desestabilização também.
Com a emergência do social, segundo Davila e Nascimento (2007) aos poucos
vai acontecendo a transformação da proteção por proximidade para uma proteção estatal
e jurídica que surge com o advento da sociedade industrial.
Entendemos o social como um campo problemático que emerge a partir de um
determinado conjunto de práticas com funções normativas e reguladoras. Conforme nos
diz Neves (2005), podemos dizer que o social existe entre os indivíduos, numa espécie
de interstício, marcado por uma multiplicidade de acontecimentos e de práticas que
atravessam uma formação histórica num dado momento (Neves, 2005, p. 16). Esta
autora busca compreender a partir de que momento o social passa a ser formulado como
um problema que requer um tipo de intervenção específica. Isso acontece quando alguns
modos de relação ou de vida passam a ser denominados como “disfuncionais” não mais
regulados de maneira relativamente informal no tecido da sociedade.
110
Neves (2005), através de sua pesquisa genealógica, identificou uma primeira
configuração do social tendo como pano de fundo uma problemática formulada em
torno do campo assistencial. O que a autora denomina como configurações do social
não tem relação com as origens das mesmas em termos cronológicos, mas sim, como
uma superfície de inscrição de um conjunto de práticas que adquirem consistência em
um determinado momento. Neste sentido, traduzem “um certo arranjo entre as
estratégias de poder e as técnicas de subjetivação que atravessam uma formação
histórica em um determinado momento, atualizando sistemas de referência distintos
quanto ao modo de organização do tecido social” (Neves, 2005, p. 18).
Neste momento, no qual vai sendo construído o campo assistencial, surgem
diversas instituições como os asilos e os orfanatos, com o objetivo de assistir certas
categorias de populações carentes cujas necessidades não eram suprimidas dentro do
próprio tecido informal das relações sociais. Este conjunto de práticas que levam à
criação de determinados espaços institucionais constroem um novo arranjo do tecido da
sociedade. Na primeira configuração do social, este arranjo vai se caracterizar por um
modelo
denominado
por
Castel
(1995)
como
“social-assistencial”,
com
o
desenvolvimento de práticas com funções de proteção e integração, cujo objetivo é o
atendimento de certos segmentos da população tida como “carente”. O fato de pertencer
à comunidade e a incapacidade de trabalhar foram os dois critérios formulados para
distinguir os que receberiam ajuda dos que não a receberiam.
Segundo Donzelot (1994), uma “questão social” propriamente dita só começa a
surgir a partir da segunda metade do século XIX ligada ao fato político da democracia.
É a preocupação com a sobrevivência do projeto republicano que contribui para que se
extrapole o modo de intervenção característico do campo assistencial. Para esse autor, o
“social” surge para mediar à incompatibilidade entre os dois princípios que sustentavam
o projeto republicano, a saber, o princípio que concede uma soberania igual a todos e
um princípio que estimula uma liberalização do mercado.
O social emerge como problema específico a fim de preencher um vazio
resultante de uma fratura entre, de um lado, uma ordem política fundada sobre o
“reconhecimento dos direitos do cidadão e de outro, uma ordem econômica que,
obedecendo às leis do mercado, revela a trágica inferioridade da condição civil de
alguns, exatamente daqueles que se encontravam mais afastados dos meios de
produção” (Neves, 2005, p. 22).
É a constituição de outro tipo de relação entre trabalho e pobreza (o cidadão tem
111
direito ao trabalho, mas não há trabalho para todos) que esboça uma segunda
configuração do social que ultrapassa o campo do ”social-assistencial”, inscrevendo-se
no centro do processo de produção de riquezas das sociedades capitalistas. Em outras
palavras, é a reorganização do mundo do trabalho provocada pelas novas regras do
modo de produção capitalista que precipitará o que se convencionou denominar como
“questão social”.
A diferença existente entre a primeira e a segunda configurações do social não é
somente a diferença entre as problemáticas oriundas da dinâmica própria da sociedade
industrial e suas novas intervenções. O social, nesta segunda configuração, além de
caracterizar-se por um conjunto de práticas que buscam regular os disfuncionamentos
da sociedade, constitui-se também, como objeto de conhecimento.
Esses saberes surgem atravessados pelos dispositivos de segurança. Surgem
criando mundos, definindo normas, legitimando formas e modos de estar no mundo. Vai
se criando um paradoxo de difícil apreensão no qual uma sociedade demanda uma
segurança que somente um Estado absoluto pode fornecer, porém, ao mesmo tempo,
desenvolvem-se exigências de respeito à liberdade e a autonomia dos indivíduos que
não podem expandir-se a não ser num Estado dito como democrático de direito13. A
busca por justiça e liberdade de um lado e, do outro, o desejo por proteção e que esta
seja capaz de assegurar-se nos ínfimos detalhes da vida cotidiana. O paradoxo está na
segurança constituir-se como direito, mas na medida como vem sendo requerida, não
pode ser efetivada plenamente sem utilizar meios que atentem contra o próprio direito.
Será possível que o excesso de autoridade que se exige de um Estado de direito possa
ser exercido num quadro dito como democrático?
2. Normalizando a Exceção
No primeiro capítulo dessa tese mencionamos o lema do liberalismo para
Foucault:
“viver
perigosamente”.
Todo
o
condicionamento
produzido
para
experimentarmos cada situação da vida, nosso presente, como portadores de perigo,
toda uma educação do perigo, formando uma cultura do perigo, o que vem produzindo?
13
Problematizar “Estado democrático de Direito”. Ver: MONTEIRO, A. COIMBRA, C. e MENDONÇA
FILHO, M. Estado Democrático de Direito e políticas públicas: estatal é necessariamente público? In:
Psicologia e Sociedade, n. 18 (2), 2006, 7-12).
112
O que tem possibilitado?
Na sociedade neoliberal de controle globalizado, chegamos a um momento
crucial da cultura do perigo e do medo, assim como da fragilização e domesticação da
vida. Todo um correlato da liberdade vem produzindo efeitos perversos de controle pelo
medo e pela guerra como política.
Consideramos que vivemos em um período de Estado de exceção ou de
Emergência como uma nova forma de regime político, que tem por vocação,
paradoxalmente, uma suposta defesa da democracia e dos direitos humanos.
Diferentemente de Agamben (2004), para quem há uma indefinição jurídica em
nosso tempos, Paye (2004) não acredita que o Estado de exceção assuma o caráter de
uma suspensão das leis ou de um vazio jurídico. Segundo ele, estamos assistindo, em
escala planetária, uma instrumentalização do aparelho judiciário pelo poder executivo,
no qual uma nova ordem jurídica se instaura, uma espécie de “ditadura constituinte”,
capaz de assegurar as condições políticas e militares de uma gestão global da força de
trabalho e, principalmente, de seu excedente.
Hardt e Negri (2002) enfatizam que a exceção contemporânea se expressa pela
passagem de um paradigma político de “defesa” para um pautado na “segurança”, que
emerge, principalmente, com a política estadunidense pós-11/09 em sua “guerra contra
o terrorismo”. Para esses autores a guerra se tornou
a matriz geral de todas as relações de poder e de todas as técnicas de
dominação, havendo ou não banho de sangue. A guerra se tornou um
regime de biopoder, isto é, um modo de governo que visa não só
controlar a população, mas também produzir e reproduzir todos os
aspectos da vida social (Hardt e Negri, 2002, p. 20).
A guerra como fundamento do político não segue o ordenamento jurídico, mas
produz novas formas de direito. A diferença está que, antes, a guerra era regulada por
estruturas jurídicas e agora se torna reguladora ao produzir e impor seu próprio
enquadramento jurídico.
Assim, a guerra surge como modalidade de controle ainda mais sofisticada, que,
tem dentro de si a disciplina e o controle, porém, conseguindo ir além deles. Para esses
autores, na atualidade, a guerra se torna de fato um elemento que perpassa os
funcionamentos da vida ao traduzir-se numa ação contínua e invasiva a uma
determinada população. Isso é possível através do controle que invade a profundidade
das consciências e dos corpos dessas populações, atravessando as relações sociais e
113
integralizando-as, tornando-se permanente, tornando o estado de sítio, de exceção, a
norma.
Ao estudar os projetos de leis posteriores ao 11/09, Paye (2004) indica uma
ruptura da ordem jurídica ocidental instaurando um “Estado de Exceção Imperial”. O
que surpreende o autor é que, tradicionalmente, a instauração de um estado de exceção
corresponde à manutenção da ordem pública devido a uma situação excepcional. Porém,
na atualidade imperial observa-se que as medidas de exceção são justificadas por seu
caráter emergencial, mas estão regulamentando leis e se tornando permanente, o que
vem produzindo o desmantelamento das garantias constitucionais das populações e
criminalizando quem se opõe a esse poder punitivo avassalador.
Nos Estados Unidos, através do projeto de lei “Domestic Security Enhancement
Act” dirigido a todos os cidadãos, as restrições à liberdade individual foi destinada a
toda a população, embora na prática os grupos denominados como perigosos recebam
atenção especial da nova política americana de segurança.
Mas como se dá esse estado de exceção no Brasil atual? Mais especificamente,
no estado do Rio de Janeiro, em nossa versão da exceção Imperial?
Para falarmos de estado de exceção no Brasil contemporâneo e, mais
especificamente no estado do Rio de Janeiro é importante problematizarmos a
denominada por grande parte da mídia “guerra civil”, condição na qual estaria o estado
do Rio de Janeiro nos últimos anos.
É importante também, enfatizarmos a diferença entre dizer que há uma
modalidade de controle que se faz a partir da guerra, da suposta guerra civil no Rio de
Janeiro, alardeada pelos grandes veículos de comunicação de massa. A guerra como
produção de controle produz o estado de exceção enquanto o discurso da guerra civil no
Rio a legitima. Tal discurso “justifica perseguições, violações e o domínio de certos
grupos sob outros” (Coimbra, 2005). Além disso, o discurso da guerra civil fluminense
produz medo, terror, pânico e insegurança, o pano de fundo para políticas públicas
genocidas de controle social (Batista, 2003). E, há muito, as ditas políticas de segurança
pública implementadas no estado do Rio de Janeiro só fazem intensificar o cenário do
medo generalizado permitindo, com isso, práticas fascistas como gratificações
faroeste*, o desaparecimento e extermínio de um número ainda incalculável de jovens
negros, moradores das favelas cariocas, choques de ordem, internações compulsórias
para jovens moradores de rua e desaparecimento de outros tantos.
114
Coimbra14 demonstra como esse discurso vem sendo utilizado para regulamentar
e permitir o retorno das forças armadas às ruas das cidades brasileiras e, também, a
militarização da segurança pública percebida claramente no Rio de Janeiro com a
presença ostensiva de carros blindados e táticas de guerrilha utilizadas pela polícia.
Este
estado
de
guerra
permanente
designado
pela
grande
mídia,
convenientemente, no Rio de Janeiro como uma guerra civil é possibilitado pela
continuidade de práticas utilizadas durante o período de ditadura militar no Brasil, como
a tortura, desaparecimento e homicídios praticados por agentes do Estado designados
como autos de resistência. O que há no Brasil não é um estado de guerra civil, mas sim
um estado permanente, desde sua fundação, de criminalização da pobreza e de guerra
contra os pobres.
O governo de polícia atual só é possível pela implantação de um estado de
exceção no qual a política é transformada em prática de polícia, e todos nós, como
policiais de nós mesmos e dos outros, em um imenso governo policial da vida.
O que está em jogo na vida governada pelos dispositivos de segurança é a
regulação do intempestivo, o controle das virtualidades. Um dos modos de realizar o
controle da vida é através da produção de subjetividades policialescas e empresariais de
si mesmo. A vida como capital. É pungente que nós, intelectuais-militantespesquisadores analisemos como estamos participando da “normalização do normal”
(Passetti, 2007) e do controle do intempestivo-jovem e de suas virtualidades. E que
analisemos, também, que modo de vida vem sendo produzida?
3. A Segurança e a capilarização da Insegurança
Deleuze e Guattari (2008), dizem que o capitalismo mundial e integrado
administra uma grande segurança molar organizada que tem como correlato toda uma
microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança molecular permanente, “a tal
ponto que a fórmula dos ministérios do interior poderia ser: uma macropolítica da
sociedade para e por uma micropolítica da insegurança” (Deleuze e Guattari, p. 94,
2008).
14
Para saber mais sobre esse assunto indicamos a leitura do livro “Operação Rio” de Cecília Coimbra.
Rio de Janeiro: Intertexto, 2001.
115
Uma micropolítica da insegurança que produz indivíduos moldados pela
máquina social dominante que são
demasiados frágeis, demasiado exposto ás sugestões de toda
espécie: droga, medo, família, etc. (...). O resultado desse trabalho
é a produção em série de um indivíduo que será o mais
despreparado possível para enfrentar as provas importantes da
vida. É completamente desarmado que ele enfrentará a realidade,
sozinho, sem recursos, emperrado por toda esta moral e este ideal
babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz de se desfazer.
Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está
prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais
organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o
aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo
trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar do resto
(...) (Guattari, 1985, p. 13-14).
Os movimentos moleculares contrariam e furam a grande organização mundial.
Deleuze e Guattari (2008) são enfáticos ao afirmar que do ponto de vista da
micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares.
Sempre vaza ou foge alguma coisa, sempre algo escapa às organizações binárias, à
máquina de sobrecodificação. Para esses autores, indivíduos ou grupos são atravessados
por linhas que não seguem o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza. São linhas que
nos compõem, três espécies de linhas. Ou, antes, conjuntos de linhas, pois cada espécie
é múltipla. Uma linha molar ou costumeira com seus segmentos; uma linha molecular,
com seus quanta que a fazem pender para o lado molar ou para a terceira espécie de
linha, a linha de fuga. Mas essa, a linha de fuga, deve ser inventada, traçadas sem
nenhum modelo ou acaso: “devemos inventar nossas linhas de fuga, se somos capazes
disso, e só podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida” (Deleuze e Guattari,
p. 76, 2008).
Linhas de segmentaridade dura ou molar em que tudo parece contável e previsto,
o início e o fim de um segmento, a passagem de um segmento a outro. Grandes
conjuntos molares (Estados, instituições, Classes), mas as pessoas como elementos de
um conjunto, tudo para garantir e controlar a identidade de cada instância, inclusive
identidade pessoal. “Todo um jogo de territórios bem determinados, planejados. Tem-se
um porvir, não um devir” (Deleuze e Guattari, p. 67, 2008).
116
Outra linha, a de segmentaridade molecular, é aquela onde os segmentos são
como quanta de desterritorialização.
É nessa linha que se define um presente cuja própria forma é a de
um algo que aconteceu, já passado, por mais próximo que se esteja
dele, já que a matéria inapreensível desse algo está inteiramente
molecularizada, em velocidade que ultrapassam os limites
ordinários de percepção (Deleuze e Guattari, p. 68, 2008).
Essas duas linhas, a de segmentaridade dura ou molar e a linha flexível, não
param de interferir, de reagir uma sobre a outra, e de introduzir cada uma na outra uma
corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez. Já a linha de fuga, não admite
qualquer segmento, sendo a explosão das duas séries segmentares. Entretanto, esses
autores salientam que essas três linhas não param de se misturar (Deleuze e Guattari,
2008).
Mas dizer que uma sociedade se define por suas linhas de fuga não é dizer que o
contrário não exista, que quanto mais a organização molar seja forte, mais ela própria
suscita uma molecularização de seus elementos, suas relações e seus aparelhos
elementares. Quando a máquina torna-se planetária ou cósmica, os agenciamentos têm
uma tendência cada vez maior a se miniaturizar e a tornar-se microagenciamentos.
Importante entendermos que o molar e o molecular não se distinguem somente pelo
tamanho, escala ou dimensão, mas pela natureza do sistema de referência considerado.
Nesse capítulo, buscamos, num movimento de implicação com o campo
problemático no qual intervimos, pensar como participamos desse movimento de
capilarização do capitalismo mundial integrado e seu controle globalizado. Como
participamos dessa microgestão de pequenos medos, dessa produção de insegurança
molecular permanente, parte integrante e necessária dessa ampla administração da
segurança molar e seus inúmeros dispositivos atuais de polícia da vida.
Os encontros com os jovens da Chatuba e do Complexo do Alemão traziam
sempre uma alegria e, ao mesmo tempo, um incômodo para nós. Em tempos de
conservadorismo disfarçado de avanços na política, “normalização do normal”,
produção de obediência e moralidade mínima nos jovens, estado de exceção e gestão de
campos de concentração a céu aberto, para quê estávamos participando do PROTEJO?
117
Qual seria o efeito de nossas intervenções naqueles jovens? E, em nós? Acreditávamos
estar participando para contribuir para a potencialização da vida ou contribuíamos para
potencializar os dispositivos construídos para a captura?
Primeiramente, é importante pensarmos o PROTEJO como uma política. Faz-se
necessário distinguirmos políticas de Estado, de políticas de governo e de políticas
públicas. Estes três modos de políticas se conectam, mas não se confundem. A política
de Estado é aquela que tem a constituição como base e são políticas e ações que o
Estado se propõe a realizar oficialmente. Políticas de governo são formadas por equipes
de governos montados a cada mandato, interpretando de certa maneira o texto
constitucional. Com relação à política dita pública, não podemos pensar que sua autodefinição como pública, garanta o caráter “público” da política. O “público diz respeito
à experiência concreta dos coletivos de forças sempre em movimento. Daí estar em um
plano diferente daquele do Estado enquanto figura paralisada e transcendente da
modernidade” (Monteiro, Coimbra, Mendonça Filho, 2006, p. 5). O público significa
que é de todos, não no sentido de abranger tudo de todos, mas no sentido de algo que
diz respeito a todos e a cada um, conseguindo congregar as singularidades ao traçar e se
tratar de um plano comum, por isso heterogêneo. Nesta perspectiva, o “público” da
política não se confunde com a ideia de “social”.
Mas como pensarmos em público como sendo de todos e de cada um, se hoje,
vivemos uma verdadeira crise do comum? As formas que antes pareciam garantir aos
homens um contorno comum, e asseguravam alguma consistência ao laço social,
perderam sua pregnância e entraram definitivamente em colapso, desde a esfera dita
pública, até os modos de associação consagrados, comunitários, nacionais, ideológicos,
partidários, sindicais (Pelbart, 2008). Sem, com isso, tentarmos comparar o passado
com o presente, qualificando-os como melhor ou pior.
Para Pelbart (2008), se de fato há, hoje, um sequestro ou uma expropriação do
comum,
sob
formas
consensuais,
unitárias,
espetacularizadas,
totalizadas,
transcendentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tais
configurações do “comum” começam a aparecer finalmente naquilo que são, puro
espectro.
Tanto a percepção do sequestro do comum como a revelação do caráter espectral
desse comum transcendentalizado se dá, hoje, segundo Pelbart, sobre condições muito
específicas. O contexto biopolítico atual permite ao comum, e não sua imagem, a
aparecer na sua potência máxima de afetação, e de maneira imanente.
118
Diferentemente de algumas décadas atrás, em que o comum era
definido mas também vivido como aquele espaço abstrato, que
conjugava as individualidades e se sobrepunha a elas, seja como
espaço público, seja como política, hoje o comum é o espaço
produtivo por excelência. O contexto contemporâneo trouxe à tona,
de maneira inédita na história, pois no seu núcleo propriamente
econômico e biopolítico, a prevalência do “comum”. (Pelbart,
2008).
Segundo Pelbart, o trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista e o
capitalismo cognitivo são fruto da emergência do comum.
Eles todos requisitam faculdades vinculadas ao que nos é mais
comum, a saber, a linguagem, e seu feixe correlato, a inteligência,
os saberes, a cognição, a memória, a imaginação e, por
conseguinte, a inventividade comum (...). Pôr em comum o que é
comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer
proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isto a
linguagem, a vida, a inventividade (Pelbart, 2008).
O comum no contexto biopolítico passa pelo bios social propriamente dito, pelo
agenciamento vital, material e imaterial, núcleo da produção econômica, segundo
Pelbart (2008), mas também, da produção da vida comum. É essa potência de vida, no
seu misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, e da capacidade de invenção de
novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, que
“é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo, mas é esse
comum igualmente que os extrapola, fugindo-lhe por todos os lados e todos os poros”
(Pelbart, 2008).
Sendo assim, seríamos tentados a redefinir o comum a partir desse
contexto preciso. Parafraseando Paolo Virno, seria o caso de
postular o comum mais como premissa do que como promessa,
mais como um reservatório compartilhado, feito de multiplicidade
e singularidade, do que como uma unidade atual compartilhada,
mais como uma virtualidade já real do que como uma unidade
ideal perdida ou futura. Diríamos que o comum é um reservatório
de singularidades em variação contínua (...). Apesar de seu uso um
tanto substancializado, em alguns casos o termo „multidão‟ tenta
remeter a um tal conceito, na dinâmica que propõe entre o comum
e o singular, a multiplicidade e a variação, a potência desmedida e
o poder soberano que tenta contê-la, regulá-la ou modulá-la
(Pelbart, 2008).
A partir disso, podemos pensar que, apesar da descartabilidade que muitos
119
jovens pobres são sujeitos hoje, esses mesmos jovens precisam estar sendo a todo
momento, monitorados, com seus movimentos controlados, previstos, para que
permaneçam onde se encontram, em seus campos de concentração a céu aberto, na linha
dos territórios da precariedade, ligados a uma falta e uma vulnerabilidade. O intuito é
impedir esses jovens de experimentações desse comum imanente, pelas redistribuições
de afetos produzidas nos encontros que esses jovens têm em perceber e viver esse
comum, o que, irremediavelmente, possibilidade a abertura e invenção de novos campos
de possíveis. É esse paradoxo vital que temos que tornar visível. É sobre o paradoxo
que nós, intecletuais-militantes-pesquisadores vivemos, que temos que nos aproximar.
4. Intelectuais-militantes-pesquisadores
Passetti (2007) vem ao longo de alguns anos nos alertando para o controle
realizado pela dita participação democrática. Controle pela participação. Participação no
controle.
Incômodo. Angústia. Em alguns momentos, paralisia. Em outros, alegria
radiante. Paradoxo. Habitantes do paradoxo.
Em tempos de pacificação, infantilização e fragilização, o que nós, intelectuaismilitantes-pesquisadores, temos produzido em favor da vida? Não pelo cuidado com a
vida, mas por sua potencialização e por seu colorido? O que nós produzimos em favor
da vida daqueles jovens em nossos encontros na Chatuba e no Complexo do Alemão?
Essa era uma questão que nos acompanhava desde antes dos encontros com os jovens.
Que práticas os intelectuais vêm corroborando e legitimando com seu saber?
Como temos exercido nossa militância, e em defesa do quê? E nossas pesquisas, como
têm intervido nas realidades que constroem?
Estávamos nós, ali, em dois territórios totalmente diferentes, com jovens com
vidas um tanto diferentes, porém, com tanto em comum. O comum...
Nós intelectuais-militantes-pesquisadores, habitantes de um paradoxo, naquele
dispositivo de saber-poder onde incide o poder sobre a vida e, no qual acreditamos que
também, poderiam funcionar linhas de resistência e criação. Deveríamos nos manter no
paradoxo. Afirmar o paradoxo.
Poderíamos construir com nossas práticas antidispositivos naquele dispositivo?
Poderíamos, ao invés, de sequestrar a vontade daqueles jovens, produzindo uma
120
vontade de nada, captar aquela zona virtual na qual o intempestivo pode surgir e se
efetuar como uma máquina de guerra?
Neves (2004) nos dá uma pista para nossas intervenções. Para ela, o desafio é
escapar das “máquinas sociais produtoras de paralisia, percorrendo as linhas nômades
habitadas pelo devir, pelo inesperado e conectadas com o desejo e a expansão da vida”
(Neves, 2004, p. 34).
Voltámos às inquietações do início desta tese. Não poderíamos procurar por
segurança, por métodos que, de antemão, garantissem o sucesso de uma meta a ser
alcançada. Não buscávamos isso. Mas tínhamos que trabalhar isso em nós. O Estado em
nós. Sabíamos o que queríamos. Encontros. Experiência. Virtualidade. Intempestivo.
Vontade. Mas, sabíamos também, que nada disso se garantia por decretos, conceitos ou
palavras de ordem. Se quiséssemos experimentar a experiência, captar o virtual e
perceber o que, aparentemente estava invisível, tínhamos que realizar um trabalho sobre
nós mesmos. Um trabalho permanente sobre nós mesmos para deixar de ser o que
somos. Práticas de si. Cuidado de si.
Foucault (2006) nos alertara que não há outro ponto, primeiro e último, de
resistência ao poder político que não na relação de si para consigo. Fazer o dever de
casa, nos liberar do Estado em nós e do tipo de individualização que ele promove.
Um trabalho sobre nós mesmos que problematizasse os afetos do medo, da
incapacidade de transformação, do sentir a realidade através do “tá tudo dominado!”
tantas vezes sentido por nós e pelos jovens naqueles territórios. Um trabalho sobre nós
mesmos nos qual possamos identificar em que grau estamos contaminados pelos
artifícios do Capitalismo mundial integrado, pois o primeiro deles é esse “sentimento de
impotência que conduz a uma espécie de „abandonismo‟ às suas fatalidades” (Guattari,
1981, p. 224), nem, tampouco, agir no imediatismo e de forma sobreimplicada15, nos
tornando uma espécie de “militontos16”. Para isso, a ferramenta da análise de
implicações é fundamental, guiada por um cuidado de si, imerso em técnicas para deixar
de ser o que somos e, percebendo o devir dos encontros, nos construirmos de outras
maneiras que não estas impostas pelo CMI.
Um exercício constante para percebermos o que estamos ajudando a fazer de nós
mesmos, que nos auxilie a nos perceber como espaços-tempo ocupados por “multidões
15
A sobreimplicação é o sobretrabalho, crença no ativismo da prática que, muitas vezes, tem como efeito
a dificuldade de realizar uma análise de nossas implicações (René, L. 1990).
16
Militonto, segundo Betto (2001), é aquele militante de esquerda que está em várias frentes de lutas,
porém, sua linguagem é repleta de chavões e os efeitos de sua ação são superficiais.
121
intensivas capazes de fluir com prudência por linhas de fuga, de resistir ao controle e de
estabelecer relações ardilosas com o duplo incontrolável17 que nos atravessa” (Orlandi,
p. 237).
Os combates hoje, segundo Orlandi (2009), são na imanência. Não podemos cair
na armadilha de acharmos que lutamos contra uma realidade que produz jovens como
vulneráveis e em risco social/criminal e que tais esquadrinhamentos possibilitam
praticas de proteção/controle, fragilização, infantilização, criminalização e extermínio
da vida desses jovens, pois, essa realidade é a mesma que nos constitui. Tais forças
estão em nós e, por isso, de algum modo, somos cúmplices disso tudo que criticamos.
Portanto, a questão ética é a de um duplo combate – de um lado, o combate de
resistência contra o que consideramos intolerável e que identificamos em nossa
exterioridade e, por outro lado, o combate que se passa entre forças e afetos de que nós
mesmos somos portadores – é a “questão das alianças com forças que recriem, em cada
um de nós, múltiplos pontos de recepção e de replicação de uma potente coexistência
dos bons encontros” (Orlandi, 2009, p. 208).
Mas esses combates exteriores, esses combates-contra encontram
sua justificação em combates-entre que determinam a composição
de forças no combatente. É preciso distinguir o combate contra o
Outro e o combate contra si. O combate-contra busca destruir ou
repelir uma força (lutar contra „as forças diabólicas do futuro‟),
mas o combate-entre é o processo pelo qual uma força enriquece
apropriando-se de outras forças e se juntando a elas num novo
conjunto, num devir (Deleuze, 1997, p.150).
Deixarmos de lado um antagonismo, por vezes confortável, que nos faz
identificar o poder e seus efeitos nos outros e realizar a crítica contra isso, para
pensarmos com Foucault em uma agonística, “de uma relação que é, ao mesmo tempo,
de incitação e de luta; trata-se menos de uma oposição termo a termo que os bloqueia
um em face do outro e mais de uma provocação permanente” (Foucault, 1994).
Como intelectuais-militantes-pesquisadores lutamos para que os jovens possam
lutar contra os aparatos do capitalismo neoliberal de controle generalizado e que
consigam, por vezes, se libertar das amarras que os produzem para desejar o que
desejam e para investirem em si mesmo como se fossem livres e autônomos hoje. Mas
para isso, é necessário, libertarmo-nos dos conceitos duros da academia; libertarmo-nos
17
Duplo intolerável, uma potência que atravessa os dispositivos de controle e a nós mesmos. Luta na
imanência.
122
da militância e seus ideais de mundo e seus decretos que, muitas vezes, só fortalecem os
poderes aos quais queremos combater; libertarmo-nos de clichês e conseguir
experimentar o acontecimento e, com isso, outros modos de pesquisar.
A dura que dei no jovem com a risada dele após o documentário
produziu vários afetos em mim. Posso dizer que hoje, saio aqui da
Chatuba, extremamente incomodado comigo, um pouco
transformado, um pouco sem saber o que fazer.
Lembro de um texto do Deleuze que ele cita Nietzsche falando do
riso, da intensidade. E eu ali, produzindo má-consciência. Como
caíamos nessas armadilhas. Acho que foi uma grande experiência
(diário de campo, 24/06/2011).
Estar no dispositivo PROTEJO talvez seja, de algum modo, sim, contribuir para
dispositivos de controle do intempestivo jovem e para a produção de subjetividades
voltadas para si e para o mercado neoliberal. Porém, acreditamos que ao longo dos
meses que nos encontramos com aqueles jovens contribuímos para processos subjetivos
e objetivos de autonomização que se opõem às técnicas de individuação e normalização
dos dispositivos de poder e controle. Em muitas ocasiões superamos os inúmeros limites
impostos pelo dispositivo e, em nenhum momento, nos reportamos a apostilas ou
manuais que nos indicassem o que falar, como falar, qual meta alcançar.
Quando saímos da sala e resolvemos ficar no pátio, pois a sala de
vídeo não estava agendada e não foi liberada pela diretora da
escola, percebi a angústia da coordenação do núcleo do projeto e
de algumas funcionárias da escola com o grupo sendo realizado
ao ar livre, no pátio. Não era costumeiro isso, definitivamente. Os
jovens também reagiram com surpresa, mas rapidamente,
começaram a rir de tudo aquilo e a escolher aonde queria sentar
ou deitar, se queriam ficar no sol ou na sombra. Olhavam para a
coordenadora e as funcionárias da escola e riam da angústia
delas. O script estava sendo quebrado e os jovens percebiam isso e
começavam a construir situações e falas a partir disso. Muito
bom! (Diário de campo, 31/06/2011).
Para estar naquele dispositivo era necessário além de “uma dose” de prudência,
uma postura que possibilitasse não reforçar tudo aquilo que criticávamos. Foram
necessárias conversas constantes nos encontros de orientação coletiva, num exercício
constante de análise de nossas implicações, para potencializar um modo de relação
reflexiva sobre nosso presente. Atitudes nos encontros com os jovens em que a crítica
sobre a realidade se transformava em crítica-prática, na forma de ultrapassagens
123
possíveis. Tais ultrapassagens que nos aproximaram do modo diferenciado dos jovens,
que construiu uma relação pautada nos encontros que tivemos e não nos títulos que
detínhamos ou na boa vontade de nossas práticas e interesses.
Ainda bem que tem um psicólogo aqui. Se eu ficar muito nervoso
agarro nele. Nunca fui num psicólogo, mas todo mundo fala que eu
tinha que ir. E agora eu tenho um aqui do lado indo conhecer o
teleférico. Minha mãe não vai acreditar! (A.D., diário de campo,
19/07/2011).
Como poderia imaginar um primeiro encontro com os jovens do
complexo como esse. Já conseguimos sair da sala e passear por
várias comunidades e eles foram me contando inúmeras histórias
das vidas deles e do complexo. O mais engraçado foi que a
coordenadora ficou “super sem graça” achando que tinha
atrapalhado meu „plano de aula‟ pois ao invés de ficar falando de
direitos humanos, fomos conhecer o teleférico e as comunidades
juntos. Foi demais! (Diário de campo, 19/07/2011).
Reconhecer o intensivo dos encontros. Durante os meses de encontros com os
jovens do complexo do Alemão e da Chatuba, os acontecimentos forçaram
transformações em nós. Diferente de saber que havia a necessidade de realizar um
trabalho sobre nós mesmos, foram os acontecimentos ocorridos nos encontros com
aqueles jovens que possibilitaram que esse exercício “sobre si” ocorresse.
Habitar o paradoxo é tarefa árdua, na qual se faz necessário experimentar as
experiências, percebendo que mesmo nos dispositivos mais duros e segmentados, há
espaços para interferências intensivas e a criação de linhas de fuga. Mas as intervenções
extensivas (molares) e intensivas (moleculares) que coexistem em um mesmo
movimento não podem ser pensadas fora dessas relações que as constituem. Para isso,
temos que estar nessas relações, habitando-as em toda a sua intensidade. Só assim, é
possível, hoje, não cairmos na sentença do “tá tudo dominado!” que tantas vezes
escutamos dos jovens, educadores, coordenadores, gestores, familiares, pesquisadores e
militantes. Que tantas vezes, nós mesmos, acreditamos e para a qual nos rendemos.
Importava para nós, distinguirmos o regime de afetos que envolvia nossa
participação naqueles encontros. Acompanhar os movimentos e avaliá-los a todo
instante. Produzir interferências em dispositivos como o PROTEJO é fazer vazar “as
multiplicidades que constituem a nós mesmos e as coisas. A modulação da interferência
neste sentido implica e requer mutação subjetiva” (Neves, 2004, p. 11).
Interferir, segundo Neves (2004), é estar presente em um jogo de forças e,
124
portanto, em um complexo jogo de poderes, entendendo que poder implica sempre
correlações plurais de forças. Imersos neste labirinto de linhas que constituem o
dispositivo PROTEJO, só podíamos experimentá-las, mapeando e acompanhando as
combinações efetuadas. São os aspectos extensivos e intensivos da interferência que,
coexistindo nos movimentos do dispositivo, nos lançaram em meios a outros
movimentos que perturbaram nossos “portos seguros”, e nos possibilitaram nos
contagiar com o novo produzido ali em cada encontro.
É difícil saber quando estamos fazendo o jogo do capital e de tudo
isso que está aí, ou quando estamos fazendo a diferença,
produzindo diferença. Às vezes é difícil saber se não estamos
querendo doutrinar com nossa militância ou se estamos
contribuindo para novos pensamentos nos jovens. Eles conversam
comigo depois das oficinas falando que estão pensando em coisas
que nunca pensaram, que estão gostando dos encontros, apresar
que uns atrapalham, que não conseguem levar tão a sério, que não
conseguem entender. Eles querem saber o que podem fazer pra
mudar, para continuar a pensar mesmo depois do fim das oficinas.
Falam do sofrimento deles, de como estão tentando fazer tudo
certo, mas que as coisas não dão certo pra eles. Por mais que
tentem. É nítido o sofrimento desses jovens. Estão em um grande
paradoxo também. Questão de vida ou morte para eles! (diário de
campo, 30/08/2011).
Experimentar o combate na imanência. Combater na imanência é potencializar
guerrilhas que não fazem o jogo cômodo das máquinas produtoras de universais (como
os de contemplação, de reflexão e de comunicação), máquinas que “impondo os seus
próprios problemas, submetem outros aos domínios de estratégias ou focos
transcendentes, sejam estes a razão, a racionalidade de presidentes da república, líderes
de grupelhos, interesses poderosos ou deuses quaisquer” (Orlandi, 2009, p. 13).
Buscamos nessa tese, acompanhar o delineamento de linhas de fuga, só possível
com a abertura para a potência dos encontros como aposta e atitude metodológica. São
essas linhas de fuga, produtoras de singularização, que podem afirmar, mesmo que por
breves momentos, outros modos de sentir, pensar e existir.
Fiquei surpreso quando falaram que a amizade entre eles era mais
forte do que a grana que ganhavam para estar no projeto. Até
aquele momento, só havia surgido a questão do quanto achavam
que estavam se vendendo estando aqui, que a grana comprava a
presença deles. Eles tinham, em sua maioria, expectativas muito
altas para o projeto e como não foram satisfeitas, a frustração
também é grande. Mas como foi fabricada essa expectativa? Isso
125
as coordenadoras não percebem. Só reclamam dos jovens, o velho
discurso, que não querem nada, que agora têm tudo. Nesta semana
para piorar surgiu um senhor lá, indicado por deputado para
trabalhar no núcleo do projeto no Alemão. O discurso moralista
do cara é repugnante!
Não deixei a questão da amizade passar sem ser percebida desta
vez. Pois ela era algo que sempre esteve ali e que não havia
percebido ainda. Perguntei pra eles se percebiam como isso é
bonito, forte, potente? Que ninguém falava nisso, mas poderia
fazer muita diferença na vida deles. Eles pararam pensando um
pouco e disseram que muitas vezes não percebem o quanto são
importantes essas relações. Falaram que estavam presos demais
às questões de como arrumar grana e que não percebiam que
essas questões não eram só deles. Eram de todos ali. E agora que
percebiam como a amizade entre eles era bom pra eles, pois
começaram a lembrar momento em que uns deram força para os
outros, viam até o projeto de forma diferente. Bem diferente,
inclusive, dos funcionários do próprio projeto (diário de campo,
17/06/2011).
Experimentar o campo relacional no qual estamos inseridos implica a
problematização e o mapeamento dessas linhas que compõem o dispositivo. O pensar só
se dá como condição nestas experimentações. É fundamental que desloquemos o campo
problemático, o campo de verdades produzidas e legitimadas sobre jovens pobres no
Brasil. E isto só pode ser realizado caso consigamos colocar o problema de outro modo,
potencializando o pensar, a partir dos problemas suscitados pela experimentação.
É na passagem que nos produzimos. Abrir os poros para a experimentação da
experiência, para o devir, para o virtual era nossa aposta. Cuidar de si é, para Fuganti
(2012), se fazer como potência de acontecer, acontecer no acontecimento, sendo ativo
produzindo realidade.
Foucault fez isso como poucos, ao entender que o intelectual é aquele que pode
realizar um diagnóstico do presente, mas para isso, é necessário que este tenha uma
relação singular com seu próprio corpo e consiga realizar um procedimento de
desprendimento. Artières (2004) diz que o trabalho de diagnóstico da realidade passa
primeiramente por uma relação física com a atualidade. Esse intelectual, a quem
Foucault denomina “técnico da atualidade” não expõe um discurso sobre os
acontecimentos, mas atravessa fisicamente cada um deles, e é dessa experiência única
que um verdadeiro diagnóstico pode emergir.
Atravessando esses acontecimentos com o corpo, transformamos e nos
transformamos. Acreditando no intempestivo mais inusitado que irrompe nos encontros
e nos surpreendem, buscamos interferir na produção social da existência, em um plano,
126
ao mesmo tempo, ético, estético e político.
Ético, no que se refere ao desejo de diferir e acolher a
diferenciação constante; estético, no que se refere tomar a
existência e as práticas nas quais as interferências se produzem
como matéria de criação e outramento; político, porque requer a
problematização e a desnaturalização constante dos intoleráveis
que atravessam a nossa existência e servem como indicadores de
nossas ações em relação a nós mesmos e aos outros (Neves, 2004,
p. 11).
Passetti (2011) situa os incômodos produzidos pelas indagações de autores como
Foucault não em um caminho com respostas corretas, uma conduta profética do
pesquisador e muito menos sua colaboração com o aperfeiçoamento do estado das
coisas. Segundo ele, tais indagações exigem nossa disposição para novas batalhas,
habitando seus interiores, para pensar os efeitos de nossas práticas e ultrapassar as
dificuldades inéditas.
Talvez, nesse atravessamento, constatemos que o intelectual não
esteja mais confortavelmente estabelecido como parâmetro crítico
das opiniões e que a crítica acadêmica conforta e neutraliza;
compreendamos para onde nos levamos nas práticas cotidianas, em
nossas lutas específicas e o que elas provocam nos novos arranjos
das dominações. Deslocados da relação posicionamentocontraposicionamento, própria da sociedade disciplinar, somos
desafiados a compreender o novo jogo da produção de verdades e
que, por dentro e por fora dele, os intelectuais e os movimentos
sociais tornaram-se cúmplices colaborativos nas programações em
nome da participação na política, gerando saberes que acentuam
vantagens econômicas e políticas relacionadas à variedade de
maneiras de governar e produzir riquezas (Passetti, 2011, p. 215).
Foucault difere o intelectual específico do intelectual universal da esquerda que,
representando a consciência de toda a sociedade, seria o detentor e o portador da
verdade e da justiça, possuindo uma visão global da sociedade que lhe permitiria
discernir o verdadeiro do falso. Uma visão que, passando pela defesa dos cidadãos mais
fracos, visaria alcançar uma sociedade justa e igual para todos: “O intelectual seria a
figura clara e individual de uma universalidade da qual o proletariado seria a forma
sombria e coletiva” (Adorno, 2004, p. 41).
Para Foucault, essa figura de intelectual foi substituída pelo intelectual
específico, que age segundo uma outra relação entre teoria e prática. O intelectual
específico possui certo número de conhecimentos, que põe em ação de maneira
127
imediata, para operar uma crítica determinada, em um campo que recobre suas
competências, sobre um ponto específico.
O intelectual específico, para Passetti (2011) é aquele que se situa, pronuncia e
atravessa o interior de um combate de forças, no espaço em que elas se dão,
comprometido com a dissolução da relação fora-dentro, interior-exterior, alienaçãoconsciência. O intelectual específico é aquele que propicia o rompimento.
Porém, Passetti (2011) diz que a sociedade disciplinar ao ceder espaço à
sociedade de segurança ou mesmo de controle, como indicou Deleuze (2007),
redesenhou a especificidade possível destacada por Foucault como uma nova cara para
as especializações. “Ampliou-as com direitos de minorias, acomodando as resistências
capturáveis em participação contínua e variada” (Passetti, 2011, p. 218).
As especializações ganharam outras amplificações contínuas, e pelo exercício
variável de ocupações o intelectual especialista metamorfoseou-se em agente propenso à
participação colaborativa e, como tal, disponível a alternativas e as negociações.
Nesta sociedade de controles, com costumes modificáveis e
austeros, o intelectual exercita práticas de direito, programações,
monitoramentos de condutas como o astuto favorecedor de novas
mentalidades relativas ao incessante aperfeiçoamento democrático.
Exige-se que ele saiba e transite pelos inconstantes meandros das
localidades e medeie organizações, compondo os muitos fluxos
que relacionam os cidadãos portadores de direitos (Passetti, 2011,
p. 219).
Passetti sentencia que o intelectual específico, nesta nova consolidação de
articulação entre sociedade civil organizada e governos produzindo participação
continuada, negociada e apta, com seus inúmeros perfis ajustados e variáveis que situa o
intelectual entre diversos fluxos velozes e modificáveis, é agora um intelectual
modulador.
Este intelectual modulador, agente ativo das participações asseguradas e
variações contínuas e da consolidação dos direitos de minorias, contribui, segundo
Passetti (2011) para a continuidade das prisões com seu humanismo, de reformatórios,
manicômios e demais instituições disciplinares acopladas às novas caracterizações do
controle a céu aberto e sua imensa produção de normalização dos normais com
fragilização da potência da vida, infantilização e servidão voluntária para todos.
Convocados a participar por dentro e por fora da materialidade e das
imaterialidades e, convencidos da prática democrática participativa, Passetti afirma que
128
os intelectuais moduladores colaboram para a institucionalização de um novo outro
novo dentro do Mesmo. “Cabe ao intelectual específico produzir uma nova política da
verdade e, corajosamente, colocar-se como um parresiasta na ágora democrática atual”
(Passetti, 2011, p. 220).
Foucault (2010) se interessa pelo conceito de parresia por entender que nele,
conseguimos perceber a articulação entre os modos de veridicção, as técnicas de
governamentalidade e as práticas de si, tarefa filosófica que empreendeu durante a vida.
Em seu último curso do College de France, Foucault (2010) esclarece-nos que
parresia significa falar franco, dizer a verdade sem dissimulação, sem reserva, sem
clausula de estilo, sem ornamento retórico que pode mascará-la. Mas para, além disso,
enfatiza que a parresia só ocorre quando o sujeito, ao dizer uma verdade que marca sua
opinião e seu pensamento corre certo risco, um risco que concerne à relação mesma que
mantém com o destinatário de suas palavras.
Neste último curso, Foucault exalta essa coragem de enfrentar o risco ao dizer a
verdade como sendo uma arte de vida, uma técnica da existência, uma estética de si.
Gros (2004) diz que a parresia para os cínicos, como estudada por Foucault, é uma
filosofia que se dá a pensar, não sendo mais um discurso metafísico sobre a verdade
divina da alma, mas uma certa prática da verdade que seja ao mesmo tempo uma prática
de si. É a vida, e não somente o pensamento, que “é passada ao fio da navalha da
verdade (...). Trata-se de fazer explodir a verdade na vida como escândalo” (Gros, 2004,
p. 163).
Neste curso de 1984, Foucault a partir do seu estudo sobre o cinismo antigo,
realiza uma reelaboração de sua teoria entre o pensamento greco-latino e o cristianismo
que efetuou desde 1980. Essa relação estava sendo estudada como uma oposição entre
um modo de subjetivação antigo que implicava uma construção de si, uma formulação
da própria existência, a prática contínua de um cuidado de si como exercício de uma
liberdade, e outra, um modo de subjetivação condizente com a renuncia de si mesmo,
através da aplicação de um conhecimento de si e uma obrigação permanente a obedecer.
Neste curso de 1984, Foucault elabora o conceito de “vida outra”.
Ao trabalhar na espessura mesma de sua vida os valores da verdade
tradicionalmente relacionados com o discurso, o cínico produz,
como efeito, o escândalo de uma „verdadeira vida‟ que está em
posição de ruptura com todas as formas habituais de existência. A
verdadeira vida já não se representa como a existência cabal que
leva a perfeição, a qualidade ou virtudes que os destinos comuns e
129
correntes somente ressaltam um débil esplendor. Se converte, com
os cínicos, em uma vida escandalosa, inquietante, uma „vida outra‟,
rechaçada e marginalizada de imediato (Foucault, 2010, p. 363).
A “vida verdadeira” faz explodir a verdade na vida como um escândalo. O
parresiasta é um interpelador incessante, permanente, insuportável, segundo Foucault. A
verdadeira vida é uma técnica de estilização da existência que, em si mesma, se
constitui como uma provocação. A ética cínica da parresia é para Gros, “a verdade
colocando a vida à prova: trata-se de ver até que ponto as verdades suportam ser vividas
e de fazer da existência o ponto de manifestação intolerável da verdade” (Gros, 2004, p.
165).
Foucault atrela-se a uma verdade como ruptura, como um escândalo
intempestivo. Uma estética da existência intensa, provocativa, que faz aflorar por sua
ação verdades que todo mundo conhece, mas que ninguém se dá ao trabalho de fazer
viver, a coragem da ruptura, da recusa, da denuncia. Esse seria o trabalho do intelectual
engajado, do intelectual específico, do intelectual-militante-pesquisador.
A “verdadeira vida” se manifesta como uma “vida outra” que faz irromper a
exigência de um mundo diferente. A ascese através da qual o cínico força sua vida à
exposição permanente, ao despojamento radical, à animalidade selvagem e a soberania
ilimitada, não tem a pretensão de garantir uma tranquilidade interior que constitua um
fim em si. O cínico parresiasta se esforça para chegar à “verdadeira vida” com o
objetivo de provocar os outros a entender que se enganam, se extraviam e, com isso,
legitimam a hipocrisia dos valores vigentes.
É com a irrupção dissonante da “verdadeira vida” em meio às injustiças aceitas,
às mentiras e ao jogo de aparências que o cínico, segundo Foucault, faz surgir no
horizonte um “mundo novo” cujo desenvolvimento necessita da transformação do
mundo presente. Esta crítica, que supõe um trabalho contínuo sobre nós mesmos e uma
intimação insistente dos outros, deve ser interpretada como uma tarefa política
(Foucault, 2010). Uma intensa militância filosófica.
Radicalizando ainda mais sua filosofia do cuidado de si, Foucault percebe o
momento em que a ascese de si só é válida se dirigir-se como provocação aos demais,
pois se trata de constituir-se em um espetáculo que coloca cada um frente as suas
próprias contradições. De modo que o cuidado de si se converte exatamente em um
cuidado com o mundo, e a “verdadeira vida” convoca o desenvolvimento de um
“mundo outro”.
130
Tratando da verdadeira vida e do mundo outro, Foucault se preocupa em
distinguir tais conceitos daqueles do platonismo, “o outro mundo” e a “a outra vida”.
No platonismo, o outro mundo é o reino das formas puras, das
verdades eternas, que “transcendem as realidades sensíveis,
móveis, corruptíveis. A outra vida é a prometida a alma, quando
separada do corpo, descobre um outro mundo como sua pátria
natal, para viver uma vida transparente, luminosa, eterna. Se
entende então que estilo deve adotar, na linha do platonismo, o
cuidado de si. Preservar e purificar a alma para mais a frente,
esperar o destino autêntico. O cristianismo deverá precisamente
sua originalidade, a juízo de Foucault, ao cruzamento do objetivo
platônico de “outro mundo” com a exigência cínica de uma “vida
outra” (...) (Gros, 2010, p. 365).
Se “vida outra” requer ruptura e transgressão, se torna difícil pensarmos esta
militância filosófica realizada pelos intelectuais moduladores, segundo Passetti (2011),
gestores dos atuais campos de concentração do modo neoliberal de governo da vida.
Essa “vida outra”, esse modo de vida manifestada pelo cinismo irrompendo, de
forma violenta e escandalosa a verdade, forma e é formada por uma prática
revolucionária. A revolução é um projeto político, mas, também, uma forma de vida. A
militância como a maneira como se define, caracteriza, organiza, regula a vida enquanto
atividade revolucionária, e a atividade revolucionária enquanto vida.
Ao descrever três formas de militância na Europa nos séculos XIX e XX,
Foucault (2010) se detém na terceira. A primeira seria uma possibilidade de vida
revolucionária em uma sociedade secreta (associação, complôs contra a sociedade
presente e visível, etc.). A segunda, uma militância em uma organização visível,
reconhecida, instituída, que busca fazer valer seus objetivos e sua dinâmica em um
campo social e político. Seriam os sindicatos e os partidos políticos de função
revolucionária. E a terceira maneira importante de ser militante seria a militância como
testemunho pela vida, uma forma de estilo de existência. Esse estilo de vida próprio da
militância revolucionária e que assegura o testemunho pela vida, rompe e deve romper
com as convenções, os hábitos, os valores da sociedade. E “deve manifestar
diretamente, por sua forma visível, por sua prática constante sua existência imediata, a
possibilidade concreta e o valor evidente de outra vida, outra vida que é a verdadeira
vida” (Foucault, 2010, p. 197).
Pensamos que nos momentos em que nos enredávamos pelo sentimento do “tá
todo dominado!” junto com os jovens poderíamos estar num estado crucial, traçado por
131
Pelbart (2010) na esteira de Nietzsche como uma espécie de niilismo. O niilismo
diagnosticado por Nietzsche (2011) como grande motor da história, no qual a
depreciação da vida atinge seu grau extremo, sintoma de decadência e aversão pela
existência. Uma depreciação metafísica da vida, tirando desta, o centro de gravidade, a
partir de valores considerados superiores à própria vida, com o que fica reduzida a um
valor de nada, derrocando em seu valor extremo, um grande cansaço, predominando a
sensação de que “tudo é igual, nada vale a pena” (Nietzsche, 2011). Um nojo pela
existência repetitiva e sem sentido.
É o fim do otimismo moral, a consciência de que com o mundo
sem Deus e sem finalidade nada mais há a esperar, intensificandose os expedientes compensatórios, de tranquilização, cura,
inebriamento, hedonismo, reconforto, „estado transitório
patológico' (Pelbart, 2010, p. 28).
Mas há aí, um paradoxo típico de Nietzsche. Esses mesmos sintomas poderiam
significar direções opostas: o pessimismo extremo simbolizado aqui pelo “tá tudo
dominado!”, pode ser indício de um esgotamento vital, por um lado, mas também pode
ser o signo de um crescimento de forças, de uma potência requerendo novos valores.
Geralmente os jovens empobrecidos são caracterizados pela vulnerabilidade e o
risco social e criminal que portam. Construídos como “em desenvolvimento”,
“rebeldes”, “que não querem nada”, um nada de vontade. Mas aqui, nessa tese,
buscamos enfatizar e dar visibilidade a potência da vida desses jovens, mesmo cada vez
mais apáticos e fragilizados devido a dispositivos como o PROTEJO, há também, uma
vontade de nada, pululando, ali, o tempo todo, viva, destruindo nossas certezas e
convicções na tentativa de construção de novos agenciamentos.
Os jovens que aderem a projetos como o PROTEJO, nos quais há uma produção
constante de captura da vontade e produção de apatia e obediência cidadã, tendo como
efeitos o enfraquecimento e empoderamento da vida, a necessidade de anestésicos para
a existência, pois, ávidos estão por reconhecimento, projetos e programas
compensatórios. Prontos para acreditarem em searas como as promessas de felicidade,
qualidade de vida e inclusão neoliberal. Porém, ao mesmo tempo e paradoxalmente,
esses jovens travam uma luta microscópica, quase imperceptível aos olhos pouco
atentos, pela sobrevivência e pelo intempestivo de suas vidas. Encontrar esses jovens foi
ser afetado pelos movimentos intensos de resistência e criação de modos de vida, sem
os quais, muitos deles já teriam padecido nos diversos campos de concentração a céu
132
aberto que estão atrelados. Potencializar esses movimentos, permitir que criassem
consistência e novos territórios existenciais era o que nos levava até os territórios
ocupados pelo exército e pelos meios de comunicação, pelas empresas e suas promessas
de responsabilidade social. Ocupar aqueles territórios de outro modo, de maneira que
possibilitasse a criação de outros territórios. Não os territórios da guerra contra as
drogas, contra os jovens ou contra a população pobre que o habita. Mas contribuir para
a produção de territórios subjetivos que ousem pensar e habitar movimentos intensos,
movimentos estes que os jovens estão sempre tecendo fora desses projetos para uma
vida fabricada e pré-moldada.
Com os encontros com esses jovens foi possível que não nos paralisássemos em
um cansaço apático, ou em um pessimismo extremo ao pensarmos a nossa realidade e
os efeitos das políticas que os tem como alvo. Defender seus direitos é um movimento
que, muitas vezes, produz um sentimento de desgosto com a vida, pois está sempre
repleto de uma impotência e incapacidade. Mas nos encontrar com esses jovens e nos
relacionarmos com eles foi contribuir para a produção de outros modos de vida. Deles e
em nós.
Nossos encontros com os jovens que relutavam em ser o “Jovem Protejo”
possibilitaram que detectássemos movimentos, afetos, comportamentos, políticas, em
vias de perecer e, ao mesmo tempo, o que estava ali, em vias de surgir, em cada
encontro, reinventando a nós mesmos.
Estar ali com os jovens da Chatuba e do Complexo do Alemão era viver a
vulnerabilidade de um modo diferente. Não aquela vulnerabilidade a ser enfrentada ou
mitificada, mas percebê-la como ela é, ou seja, a precariedade da própria vida.
A vulnerabilidade inerente à vida, a potência da vida é o que buscamos afirmar.
Não em discursos, postulações acadêmicas ou declarações de intenção. Mas como
atitude, como modo de vida.
A população tida como vulnerável por sua condição de pobreza é capturada para
uma rede de assistências e tutelas que deixam a vida pálida, enfraquecida, pacificada.
Há potências no mundo desregulado e exposto as crises e vulnerabilidades. Antes dos
especialistas, intelectuais e seus governos, foram os pobres, hoje classificados como
vulneráveis, que entenderam que o “combustível do luxo do capitalismo mundial
contemporâneo” (Rolnik, 2002, p. 113) é a força de criação, de invenção da própria
vida. São eles, os denominados pelas políticas públicas e por especialistas como
“vulneráveis” e pessoas em “situação de risco”, que diariamente utilizam de sua
133
condição de “precariedade” e “fragmentação social”, para construir novos horizontes de
possíveis, linhas de fuga, sem as quais, a realidade aterradora da miséria já os teriam
exterminado.
Nós, nessa tese, estivemos em contato, muitas vezes, com nossa vulnerabilidade.
Para uma atitude de abertura à experimentação dos acontecimentos naqueles encontros,
viver nossa vulnerabilidade foi condição para que o outro deixasse de ser simplesmente
objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas, clichês, e pudesse se tornar uma
presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos
cambiantes de nossa subjetividade e o trabalho sobre nós mesmo. Rolnik (2008) diz que
ser vulnerável hoje depende da ativação de uma capacidade específica do sensível, que
nos permite apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e
se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. Atitude. Experimentar a
experiência. Acontecer no acontecimento. Potência. Vida. Uma vida.
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto no final da frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
135
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens.
E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.
Manoel de Barros
Despropósitos. Descaminhos de uma vida que ousa. Ousa caminhos outros
daqueles já estabelecidos e determinados. Que ousa uma vida fora de projetos e ideais.
Quais são os despropósitos dos jovens pobres, negros, moradores das favelas
brasileiras? Será que o despropósito que os marcam é, de serem quem são? Jovens
pobres, negros, moradores das favelas brasileiras?
Despropósitos. Vulnerabilidade. Vida. O perigo da vida. Vida. Que vida? Essa
vida? Sobrevida? Uma vida...
***
Fragilização da vida, enfraquecimento, infantilização. Conformismo e apatia.
Nada de vontade. Eis alguns ingredientes para a macropolítica da segurança e seus
inúmeros dispositivos e mecanismos, técnicas e práticas de controle, disciplinamento e
contenção da vida.
Vidas pautadas na ilusão da assepsia e invulnerabilidade. Uma vida que nega o
extraordinário da existência, pois fechada em seus esquemas de percepção do já dado e
do já sentido, bloqueiam todas as possibilidades para o que não é ordinário. Vida em
busca de sua manutenção e alicerçada nas forças reativas. Poros obtusos ao inédito e ao
devir.
Um conservadorismo moderado que constrói uma “adesão subjetiva à barbárie”
(Batista, 2012) e a práticas fascistas do cotidiano, principalmente, quando os alvos de
tais práticas são jovens, pobres, negros e moradores de favelas. Todo um desejo de
136
enquadramento, de garantias de vida, de segurança. Mais do mesmo.
Uma sociedade governada pelos dispositivos de segurança que clama por mais
segurança. Estão dadas as possibilidades para um Estado de exceção permanente que se
associa plenamente, não por acaso, ao governo neoliberal de controle globalizado.
O neoliberalismo, além de ser um sistema econômico, é um modo de vida. Vai
da gestão dos interesses, da veridicção dada pelo mercado, passando pela produção e
consumo, ininterruptos, de liberdade até a cultura do perigo.
Ao perigo e sua cultura neoliberal, se responde com toda uma política penal
preventiva, repleta de homens de bem para operacionalizá-la. Ao investirmos na
fabricação, proliferação e aplicação de medidas cautelares de vigilância e prevenção em
nome do insuspeito ideal de “segurança” e de “preservação da vida”, enfraquecemos,
infantilizamos, tutelamos e criminalizamos determinadas vidas em determinados
espaços e tempos.
Surgem políticas, programas e projetos que, se idealizando como de esquerda,
associam práticas penais a projetos sociais. A vulnerabilidade social atualizando a
periculosidade dos mesmos. Sempre eles!
O PRONASCI elege três pilares: intervenções nos territórios indicados por
estatísticas criminais; a questão social, ou seja, os pobres; e um enfoque etário: a
juventude.
Pacificar o território, como se estivéssemos numa guerra. Conquistar os jovens
para a cidadania, como se estes fossem, naturalmente, alheios a isso; repactuação do
contrato social para a coesão do território. Que pacto social? Pautado em que? Na vida e
em sua potencialização ou no mercado e no capital?
A Escola de Chicago, fundadora do neoliberalismo estadunidense, e seu modo
de governo da vida, pauta, através da sua teoria da ecologia criminal, os programas mais
“progressistas” na área da segurança pública.
Tais perspectivas neoliberais atualizam o sentido de polícia, conforme descrito
por Foucault (2003), como política social. Uma política que não deve ser executada
apenas pelo Estado. A sociedade civil é fundamental na gestão das atuais políticas de
assistência social com funções policiais, deixando o Estado, apenas como fiador e
fiscalizador dessas ações.
O social vem a reboque do penal, com seus choques de ordem, seus
“acolhimentos compulsórios”, suas remoções e extermínio seletivo. Tolerância zero!
Construir um “estado de espírito” em todos os habitantes da cidade, pois disso
137
depende qual cidade teremos. Essa teoria ecológica defende o aumento do controle
social informal a fim de minimizar a desorganização social próprias dessas áreas de
delinquência, com seus distintos códigos morais e modelos de comportamento
diferenciados do dominante. Para isso, é necessário, fazê-lo através do sentimento de
vizinhança, produzindo policiais de si e dos outros. Não á toa, que a dificuldade na
mobilidade dos jovens força-os a permanecer, cada vez mais, em suas comunidades
(Cordeiro, 2009). Os moradores dessas localidades, principalmente, os jovens devem
ser educados para uma moralidade mínima.
Alguns projetos políticos-pedagógicos servem a isso. O PROTEJO se propõe a
produzir o jovem PROTEJO, aquele que investirá em seu capital humano, em ser o
empresário de si mesmo. Uma retórica busca por uma autonomia que, na verdade,
reforça um “dever ser” nos jovens. Investir em empoderamento é investir numa vida
fraca e frágil, desejosa de uma suposta liberdade que só produz demanda por mais
segurança.
Mostra-se para os jovens como devem conduzir suas vidas. Uma vida com
roteiro escrito por outros. Um ideal de vida. O PROTEJO, como projeto socioeducativo,
serve como dispositivo de ajuste, pois funciona para o desenvolvimento de capital
humano, combustível do modo neoliberal de controle globalizado. Porém, o que
percebemos nos jovens participantes é um efeito de liberdade, no qual, o que realmente
é produzido, é o fortalecimento do sentimento de incapacidade e da falta.
Mapeamos vetores que compõem o campo e o corpo do jovem PROTEJO. Entre
eles, a atualização de discursos que engendram esses jovens como vulneráveis, em risco
criminal, e como sujeitos faltosos. Paixões tristes e conformismo são os produtos
construídos com essas práticas. Como efeitos, a paralisia e estagnação. Por mais que
façam, estão sempre devendo.
Esses jovens estão, cada vez mais, confinados em seus campos de concentração
a céu aberto e participando com maior ou menor vigor de seu próprio assujeitamento.
Presos a um desejo que é imanente ao campo social que os classificam e os rotulam
como perigo iminente ou fracasso total. Presos a uma lógica que julga a todos por
aquilo que não podem, pelo que não conseguem, pela incapacidade.
Esses jovens, se tornando mais e mais enfraquecidos e infantilizados, estão
prontos para aderirem aos projetos de vida que só os fragilizam ainda mais. Tornam-se
acomodados. Crentes.
Nosso desejo ao estar com os jovens na Chatuba e no Complexo do Alemão era
138
provocá-los, desacomodá-los, incomodá-los. Os documentários exibidos, produzidos
por movimentos sociais, mostravam uma realidade que eles conheciam melhor que nós,
mas para a qual, pareciam anestesiados.
De um lado, um território ocupado pelos militares, pelo marketing
governamental, pela mídia. No outro extremo, a baixada fluminense, esquecida, evitada,
esfacelada. No Alemão, um projeto modelo. Na Chatuba, um projeto sem atividades.
Como efeito, de ambos, a confirmação de incompetência e inadequação desses jovens
tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão parecidos.
Mas, ao deslocarmos o campo problemático, e analisarmos os intelectuaismilitantes-pesquisadores, percebemos como através de nosso modo afetivo e nossas
práticas corroboramos com todo esse cenário que tanto combatemos. Nossa imersão
nesse campo possibilitou que colocássemos em análise nossa cumplicidade e
implicação.
Percebemos o quanto ainda temos em nós uma moral e um processo de
normalização que buscou, por várias vezes, pautar o que deveríamos fazer. Uma prática
de si, voltada para um cuidado conosco e com a potencialização da vida, que permitiu
que práticas de moralização e doutrinamento, quando efetuadas por nós, fossem
analisadas e problematizadas. Assim, a intensidade de um riso, passou a deixar de
constituir-se como um problema a ser questionado.
Os acontecimentos ocorridos nos encontros com os jovens nos “empurraram”
para fora do modelo “oficina de direitos humanos” e propiciaram encontros intensivos
com aqueles jovens. Passeio no teleférico e encontros no pátio do CIEP desarranjaram o
que estava estabelecido, abrindo passagem, para encontros inéditos e impensados.
Esse trabalho sobre nós mesmos possibilitou que mapeássemos um campo de
forças que estava ali presente, porém, invisibilizado pelo sentimento de “tá tudo
dominado!”. A força da amizade entre eles garantia a alegria daqueles encontros.
Apesar da apatia, do conformismo e da disposição de se tornar um policial de si mesmo
e do outro, pois estavam sendo empoderados como Jovens PROTEJO, e do efeito de
liberdade que os fazia “cair no buraco” da incapacidade e da falta, aqueles jovens
lutavam contra o assujeitamento e o modo de subjetivação ali produzido.
A experimentação desses encontros com aqueles jovens nos forçaram a
problematizar o movimento de recusa. Os coordenadores do projeto e demais
educadores relatavam que “os jovens não querem nada”, pois, agora, havia uma grande
quantidade de projetos socioeducativos e eles não estavam em nenhum. Ou quando
139
estavam nos projetos “não chegavam aonde deveriam”. Mais uma vez a falta e a
incapacidade como vetores importantes nesse dispositivo.
Mas a relação com os jovens fez com que pensássemos que, talvez, essa recusa,
essa não aderência aos projetos e ideais de vida aos quais os jovens são convocados a
participar podem ser mais do que apenas conformismo e um nada de vontade. Saíamos
dos encontros com várias sensações diferentes e duvidando da captura total do
intempestivo daqueles jovens. Os encontros eram alegres, vivos, às vezes, tensos, mas
nunca, monótonos, sem vida. Começamos a pensar que ali, aonde a falta e a
incapacidade são hipervisíveis, uma vontade de nada poderia estar presente,
virtualmente. Essa vontade de nada é a revolta contra as condições fundamentais da
vida, sendo ainda uma vontade de potência, uma vontade afirmativa (Nietzsche, 2011).
Toda vez que nos encontros algo acontecia, os jovens também aconteciam.
Respondiam aos acontecimentos com vida, alegria e entusiasmo. Os jovens podem não
saber o que querem, mas, ali, naqueles encontros, sabiam muito bem o que não queriam.
Essa recusa, esse movimento de “eu prefiro não”, de aparente conformismo e
estagnação, pode ser considerado, de algum modo, um pessimismo extremo. Pelbart
(2010) numa leitura do niilismo que procura não ser niilista sugere que esse pessimismo
extremo, que pode ser indício de um esgotamento vital, por um lado, pode ser o signo
de um crescimento de força, de uma potência ampliada a requerer novos valores.
Tal paradoxo se apresentou a nós em diversos momentos dessa jornada. Imersos
nesse labirinto, só pudemos experimentá-lo, mapeando e acompanhando as
composições e combinações de forças que o habita e que nos habitam. Um cuidado para
com nossos afetos e práticas que poderiam legitimar e potencializar os dispositivos de
contenção da potência daqueles jovens.
Potência essa que é o alvo desses projetos. Essa potência deve se tornar capital
humano para o mercado neoliberal. Mas o que produz capital mesmo é a juventude
pobre.
A
juventude
como
capital.
Modulações
da
vulnerabilidade
e
sua
operacionalização pelos mecanismos e técnicas de poder na atualização do dispositivo
da periculosidade. O jovem pobre a ser, supostamente, formado como empreendedor,
movimenta um mercado no qual faz tudo para entrar, sem saber, que já está dentro. O
empreendedorismo social é um grande negócio, onde seu produto sai, sempre, com
defeito de fabricação.
Esses jovens têm na vida seu único capital. Suas vidas precarizadas e
vulneráveis aos próprios movimentos da vida. Recusam, sempre que podem, e do modo
140
como conseguem, a rentabilização de suas vidas. Nem sempre conseguem resistir ao
furto de suas energias e de sua vontade. Os incluídos estão cada vez mais incluídos, “até
a medula”. Os ditos excluídos, que não estão nas escolas, nas igrejas, nem nos projetos,
estão aonde? Provavelmente, nas estatísticas de mortos ou desaparecidos; nas “prisões”
juvenis, ou em seus inúmeros campos de concentração a céu aberto, pois de lá não
podem sair. São considerados perigosos, vulneráveis, em risco criminal. Podem fazer
qualquer coisa a qualquer momento. Não seria essa uma boa definição para liberdade?
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