PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)
Cannes Lions Festival Internacional de Criatividade: a busca dos iguais pela
diferença – uma abordagem bourdiana.1
Maria Aparecida da Silva Abranches2
Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM, São Paulo, SP
Resumo
Este artigo busca problematizar como se dá os processos de consagração no subcampo da
criação publicitária, tendo como contextualização um dos principais festivais do mundo: o
Cannes Lions Festival Internacional de Criatividade. A partir do referencial teórico construído
pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, o texto discorre sobre a autonomização do subcampo
da criação publicitária, sobre os agentes dominantes e suas estratégias de legitimação e sobre
as estratégias de pertencimento dos entrantes. Em seguida foi analisada uma seleção de
reproduções das falas dos jurados e participantes, coletadas em duas edições do Jornal
Propaganda & Marketing (propmark) que circulou nas semanas seguintes ao Festival. Através
desse corpus, buscou-se problematizar a questão dos critérios que qualificaram as peças
consagradas com a distinção de criativas dentro do contexto do Cannes Lions, detentor do
volume de capital simbólico necessário para ser considerado hegemônico no campo.
Palavras-chave: Campo; Criação publicitária; Critérios; Diferença; Distinção.
Introdução
Pierre Bourdieu dedicou longas análises ao estudo dos espaços sociais que ele
chamou de campo. Segundo ele:
“Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há
dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de
desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um
campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada
um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho GT 9 – Comunicação, Discursos da Diferença e
Biopolíticas do Consumo, do 4º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de
outubro de 2014.
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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da ESPM,
integrante do grupo de pesquisa CNPq "Comunicação, discursos e poéticas do consumo" PPGCOMESPM. E-mail [email protected]
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outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e,
em consequência, suas estratégias.” (BOURDIEU, 1997, p.57)
Muitos pesquisadores brasileiros se propuseram a olhar o campo da
comunicação através dos estudos de Pierre Bourdieu. Nomes como Clovis de Barros
Filho, Fábio Hansen, Juliana Petermann, Liráucio Girardi Júnior, Luciano Miranda,
Maria Immacolata V. de Lopes, Rodrigo Stéfani Correa, Tatiana Aneas e Vander
Casaqui, cujos trabalhos constam das referências bibliográficas do presente artigo, já
se propuseram a estudar o campo da comunicação e alguns de seus subcampos, como
o campo midiático, o campo jornalístico e o campo publicitário, utilizando o
referencial teórico desenvolvido pelo sociólogo francês. Este artigo pretende ser uma
contribuição ao estudo do subcampo da criação publicitária, também a partir do
referencial bourdiano.
Como ensina Bourdieu, um campo é um espaço de luta no qual os agentes,
dependendo da posição que ocupem, lutam ou para preservar a correlação de forças
que lhes é favorável ou lutam para mudar essa situação, quando ela lhes é
desfavorável. Assim, criam-se os grupos dominantes e os dominados. Acreditamos
que, no caso do campo da publicidade, a posição hegemônica foi historicamente
conquistada pelo subcampo da criação publicitária.
Os agentes do subcampo da criação publicitária souberam criar estratégias que
foram bem sucedidas para a conquista dessa hegemonia. Podemos constatar uma
dessas estratégias no grande número de premiações existentes na área de criação
publicitária, muito mais do que as existentes em outras áreas da publicidade. Este
artigo irá abordar especificamente as premiações ocorridas durante a edição do 61º.
Cannes Lions Festival Internacional de Criatividade, que aconteceu entre os dias 15 e
21 de junho de 2014 na cidade francesa do mesmo nome. O Cannes Lions é detentor
do capital simbólico necessário para poder ser considerado hegemônico no campo.
A proposta deste artigo é problematizar a dinâmica das premiações no Cannes
Lions e como essas premiações têm na criatividade o critério mais importante, ainda
que não o único. Para isso, reunimos um corpus específico: uma seleção de
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depoimentos de participantes do júri do Festival, coletados em duas edições do Jornal
Propaganda & Marketing (propmark) que circulou nos dias 23 e 30 de junho de 2014.
É bom que se esclareça logo de início que o objetivo deste artigo não é questionar os
critérios de avaliação dos jurados aqui mencionados.
O aprendizado dos agentes para o pertencimento ao campo
Quando se fala de aprendizado lembra-se imediatamente das instituições
escolares. Dentro da sociologia bourdiana, contudo, essa questão ganha contornos
bem específicos. Para Bourdieu, aprende-se na escola, mas também fora dela.
Aprende-se na família, aprende-se no local de trabalho, no contato com colegas. No
quadro da sociologia bourdiana, esse aprendizado ocorre, sobretudo, quando o agente
internaliza esquemas responsáveis pela operacionalização no campo, através das suas
múltiplas instituições. No caso específico da criação publicitária, um campo
caracteristicamente “prático”, essas disposições são adquiridas não só nas instituições
de ensino, mas também em outras instituições do campo, caso dos festivais de
premiação. Em outras palavras, “aprende-se” a ser publicitário quando, por exemplo,
se frequenta um festival, particularmente um Festival com o capital simbólico do de
Cannes Lions. Vale lembrar que o evento aqui tematizado promove diversas ações de
caráter pedagógico, caso das palestras conhecidas pelo nome informal de “after
Cannes”, ação especificamente dedicada a informar não só as novidades apresentadas
durante o evento mas principalmente os bastidores do júri àqueles que não
participaram do evento.
Bourdieu ensina que um campo é um espaço de conflitos no qual os detentores
das posições hegemônicas visam mantê-la, enquanto os ocupantes de posições
dominadas estabelecem suas estratégias – de alinhamento ou de confronto – no
sentido de superar a posição em que se encontram. As relações de força que se
estabelecem no campo são resultado justamente das relações estabelecidas entre os
diferentes agentes.
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A formulação bourdiana de estrutura estruturada tendente a funcionar como
estrutura estruturante é particularmente fecunda para entendermos como são
desenvolvidos os critérios de distinção criativa no Cannes Lions. Para Bourdieu, as
estruturas constitutivas de determinado campo são apreendidas de maneira empírica,
e, pode-se dizer, até mesmo de maneira tácita, através de práticas regulares às quais
todos os agentes estão submetidos e subordinados. Nesse sentido, ir ao Cannes Lions
buscando tornar-se mais visível dentro do campo é um “exemplo” de como a estrutura
estruturada vai estruturando comportamentos e ações.
A teoria de Bourdieu observa que o funcionamento do campo – que tem
caráter dinâmico – se dá através de práticas e representações objetivamente
reguladoras. Em outras palavras, a teoria de Bourdieu contempla uma dinâmica
relacional baseada em cálculos estratégicos, que podem ser de alinhamento ou
confronto, visando à ocupação de espaços que conferem maior quantidade de capital
simbólico e, consequentemente, garantem espaço entre as posições hegemônicas.
Para o correto entendimento da dinâmica das distinções e das premiações no
contexto do Cannes Lions é necessário entender, do ponto de vista da teoria
bourdiana, que o campo não determina, mas condiciona modos de ser e de
comportamento. Para que esses comportamentos se deem, desenvolveram-se antes
complexos sistemas de percepção, responsáveis por determinar a estratégia que será
adotada pelo agente.
O que faz um agente dentro do campo, e como o faz? Para que seja
considerado participante do campo, o agente 1) tem que adotar práticas reconhecidas
como pertencentes ao campo (homogeneização), mas deve também, estrategicamente,
2) diferenciar-se dos demais agentes. O comportamento adotado pelo agente – falas,
silêncios, posturas corporais, vestimenta, os aplausos que dá e os aplausos que não dá,
a escolha dos interlocutores, os locais frequentados – será estrategicamente usado
para a obtenção de determinado capital simbólico e para o atingimento de
determinados fins. Sobre isso, observa Bourdieu:
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“Sabendo que a maneira é uma manifestação simbólica, cujo sentido e valor
dependem tanto daqueles que a percebem quanto daquele que a produz,
compreende-se que a maneira de usar bens simbólicos e, em particular,
daqueles que são considerados como os atributos da excelência, constitui um
dos marcadores privilegiados da “classe”, ao mesmo tempo que o instrumento
por excelência das estratégias de distinção (...)” (BOURDIEU, 2006, p. 65)
É preciso ser semelhante para ser reconhecido pelo grupo, mas é preciso
também ser diferente para se tornar visível e conquistar uma posição mais destacada,
e é isso, aliás, que ocorre também com a distinção das peças criativas, que são
premiadas por se distinguirem das demais. Para ser reconhecida como “publicitária”,
a peça precisa estar de acordo com algumas especificidades, considerando a
subcategoria em que se enquadra (peça impressa, rádio, TV etc.). Mas, ao mesmo
tempo em que precisa “pertencer ao campo”, a peça precisa também ser “diferente”,
para se destacar das demais. E como essa diferença é descrita pelos agentes do
campo? Na segunda parte deste artigo abordaremos esta questão mais detidamente.
A competência no agenciamento desses comportamentos será responsável pelo
sucesso ou insucesso da estratégia adotada e essa competência é justamente a
competência do agente em adquirir e internalizar as disposições responsáveis pelos
comportamentos que farão com que ele seja visto pelos outros agentes como “um
deles”, pertencendo, portanto, ao campo comum a todos. Para que se dê o
pertencimento ao campo, os novos entrantes devem ficar de olhos e ouvidos atentos
ao que fazem e dizem e como se comportam os agentes mais experientes. Observa
Bourdieu:
“A competência do connaiseur, controle inconsciente dos instrumentos de
apropriação que é o produto de uma lenta familiarização e serve de
fundamento à familiaridade com as obras, é uma “arte”, controle prático (...) e
cuja aprendizagem pressupõe o equivalente do contato prolongado entre o
discípulo e o mestre em um ensino tradicional, ou seja, o contato repetido
com obras culturais e pessoas cultas.” (BOURDIEU, 2006, p. 65)
A teorização sobre o pertencimento ao campo é dos capítulos mais fascinantes
dos estudos do sociólogo francês. Segundo Bourdieu, os princípios fundamentais de
uma prática são aprendidos (e apreendidos) justamente quando e enquanto a prática se
dá. Observar o comportamento de agentes mais experimentados nas práticas do
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campo permite que os entrantes aprendam como devem ser explicitados todos os
códigos de operação deste mesmo campo. Desta forma, o agente mais experimentado
e de maior capital simbólico se constitui em um modelo exemplar para o agente
menos experiente. Observando como um agente modelar responde às tensões e
demandas do campo, o aspirante à profissional de criação prestigiado aprende como
também ele “deve” respondê-las. No caso específico da criação de uma peça
publicitária, essas demandas são diversas, por exemplo: como escrever um título?
Como desenvolver um texto? Qual o argumento mais adequado? Qual deve ser o
mote da campanha? Como desenhar um layout? Qual o melhor ângulo para uma foto?
Qual deve ser o estilo da ilustração? Ao se perguntar como o agente modelar as
responderia, o entrante internaliza as disposições do campo. Sobre essa influência do
agente modelar, diz Bourdieu:
“A homogeneidade das disposições associadas a uma posição e seu ajuste,
aparentemente miraculoso, às exigências inscritas na posição, são o produto,
por um lado, dos mecanismos que fornecem orientação para as posições aos
indivíduos ajustados de antemão, seja por se sentirem feitos para
determinados cargos como se estes tivessem sido feitos para eles – trata-se da
“vocação” como adesão antecipada ao destino objetivo que é imposta pela
referência prática à trajetória modal na classe de origem –, seja por
aparecerem como tais aos ocupantes desses cargos – nesse caso, trata-se da
cooptação baseada na harmonia imediata das disposições – e, por outro, da
dialética que se estabelece, no decorrer de uma vida, entre as disposições e as
posições, entre as aspirações e as realizações.” (BOURDIEU, 2006, p. 104)
Ao se constituir como modelo, um agente mais experimentado está
desempenhando
dois
papeis
simultaneamente:
produtor
e
reprodutor
de
comportamento, reforçando assim as forças do campo. Faz-se necessário observar que
deve haver algum tipo de concordância entre os agentes neófitos e os agentes
modelares. Em outras palavras, o interesse dos agentes mais experimentados em
reproduzir seu comportamento deve estar alinhado com as aspirações que os neófitos
desejam ver atendidas. Desta forma, é possível que as disposições sejam
compartilhadas sem que haja para tanto um ambiente marcadamente didático. O
aprendizado se dá sem que ele seja visto como aprendizado.
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A importância dos troféus e a estratégia tácita que oculta os critérios que os
garantem
Dentre as muitas estratégias que fazem parte de um campo estão aquelas
responsáveis por distinguir os seus agentes mais notórios e detentores de maior capital
simbólico. Bourdieu chama de troféus a materialização dessa distinção. Cumpre
observar que, para Bourdieu, essa materialização distintiva pode se dar de diversas
maneiras – o troféu propriamente dito é apenas uma dessas materializações. No caso
do campo da criação publicitária, o objeto troféu (a estatueta) representa o que há de
mais desejado pelos pertencentes deste campo. E, dentre os diversos festivais criados
pelo campo para distinguir seus agentes hegemônicos, o Cannes Lions é um dos mais
bem sucedidos. Não por acaso, é o Festival ao qual os agentes dedicam suas
estratégias mais interessadas.
Para termos uma breve ideia do prestígio do Cannes Lions Festival
Internacional de Criatividade no campo da propaganda, o evento reuniu na sua edição
de 2014, aproximadamente 12 mil delegados de 95 países. Foram exibidas mais de 35
mil peças. O Festival contou com uma programação especial de 50 seminários e 30
workshops e diversos fóruns de discussão, ministrados ou comandados por mais de
250 líderes do pensamento criativo, organizados por alguns dos nomes mais
hegemônicos da indústria da comunicação.
Historicamente, o Cannes Lions sempre esteve associado à criatividade e
recentemente inseriu, inclusive, o termo criatividade em seu nome. Considerando,
portanto, que a criatividade é um critério decisivo, como seria possível quantificá-la
ou qualificá-la? Na busca pela descrição dos critérios de avaliação, verifica-se que a
“criatividade”, ao mesmo tempo conceito e atributo, foi explicitamente mencionado
ou implicitamente sugerido em quase em todas as declarações dos participantes do
Festival.
Segundo o sócio e vice-presidente de criação da Leo Burnett Tailor Made,
Marcelo Reis, “O maior desafio para uma agência é conseguir manter a regularidade
criativa e a consistência do trabalho, e nossa performance no Cannes Lions 2014 é um
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sinal de que estamos no caminho certo.” (PROPMARK, 30.06.14, p. 12). Da mesma
maneira, ou seja, com o termo criatividade sendo sugerido ou explicitado, pode ser
entendido o comentário do diretor de criação da Loducca e membro do júri da
categoria Promo & Activations Lions de Fabio Saboya:
“O futuro da nossa atividade passa pela ousadia nas abordagens. Esse GP
[Grand Prix, vencido pela marca Harvey Nichols] não discute o óbvio, mas
algo que, por assim dizer, as pessoas têm vontade de fazer, mas ficam meio
intimidadas. Dentro de uma estrutura de comunicação, esse senso provocativo
e objetivo ganha espaço.” (PROPMARK, 23.06.14, p. 24)
Nesse mesmo sentido, vejamos a declaração do CCO da Havas Life de São
Paulo, Mauro Arruda, participante do júri da categoria Pharma:
“Acho que é o caso de abalar um pouco as estruturas. Estamos acostumados a
fazer de um jeito e com uma premiação como esta, damos um recado sobre o
que é considerado criativo dentro desta indústria. Isso vale para agências e
anunciantes.” (PROPMARK, 23.06.14, p. 26)
A partir das colocações acima, poderíamos questionar: o que pode ser
considerado criativo dentro dessa indústria? Os agentes do campo da publicidade,
mais especificamente do subcampo da criação publicitária, sabem que esta última é
marcada pela busca incessante da diferença. Cada mensagem publicitária é produzida
para se diferenciar das milhões de peças produzidas com igual interesse de se
diferenciar. Diferenciar-se é uma ação que só consegue êxito entre iguais. Apenas no
confronto com – ou contra – uma situação estabelecida é possível destacar aquilo que
faz a diferença. Em outras palavras, o profissional de criação será considerado
criativo e será contemplado com uma premiação distintiva dessa criatividade se for
bem sucedido ao produzir um trabalho que tanto preserve a linguagem publicitária
quanto apresente com este e neste trabalho um grau de diferença em relação à essa
linguagem.
Classificação e reclassificação de critérios e categorias – uma estratégia para a
manutenção da hegemonia
O Cannes Lions passou por diversas mudanças, reflexo das tensões do campo
e da mudança de posição ocupada pelos agentes. Parece-nos oportuno notar que se
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durante muito tempo o Festival analisava a criação de peças (anúncio de jornal ou
revista; spot ou jingle de rádio; vídeo comercial; outdoor; cartaz de rua; pôster;
folheto de marketing direto; e, mais recentemente, peças digitais, como banner ou
anúncio mobile), de uns anos para cá foram ganhando relevância crescente as assim
denominadas ações.
De definição ainda ambígua, pode-se, de qualquer forma, entender uma ação
como toda e qualquer realização que vá além dos formatos acima citados e que, além
disso, reúna diversos daqueles formatos em um conjunto conhecido genericamente
como campanha integrada. Assim, para a avaliação criteriosa de uma ação, será
necessário considerar não apenas os três atributos básicos, por exemplo, de uma peça
impressa (o conteúdo, a forma e a execução), ou, no caso de um jingle, a excelência
da narração, ou, no caso do filme publicitário, a pertinência do roteiro. Será, antes,
necessário entender o que seria uma avaliação “criteriosa”, que, nos termos
bourdianos, são justamente os critérios com que essa categoria – ação – terá sua
criatividade avaliada. E – tão importante quanto – entender por que a ação passou a
fazer parte do portfólio criativo exigido pelo campo.
Segundo os agentes do campo, a demanda se explica, entre outros motivos,
porque a ação representa o procedimento capaz de “superar” a “limitação” das peças
criativas “meramente convencionais” (por mais que o próprio campo continue
premiando essas peças em outras categorias do Festival). Segundo os agentes do
campo, a nova comunicação – integrada, por definição - não pode mais ser pensada
como o resultado da soma de peças. Do ponto de vista da análise acadêmica, estamos
diante de uma nova categoria classificatória. E, segundo Bourdieu,
“A dialética da desclassificação e da reclassificação – que se encontra na
origem de toda a espécie de processos sociais – implica e impõe que todos os
grupos envolvidos avancem no mesmo sentido, em direção aos mesmos
objetivos, ou seja, as mesmas propriedades, aquelas que lhes são designadas
pelo grupo que ocupa a primeira posição na corrida e que, por definição, são
propriedades inacessíveis aos seguintes já que, sejam elas quais forem, em si
mesmas e para elas próprias, são modificadas e qualificadas por sua raridade
distintiva; além disso, elas deixarão de ser o que são desde que, multiplicadas
e divulgadas, vierem a se tornar acessíveis a grupos de condição inferior.”
(BOURDIEU, 2006, p. 157)
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A teoria de Bourdieu ajuda a entender porque o Cannes Lions vem criando
novas categorias a cada edição. Durante décadas o Festival que premiava apenas os
formatos tradicionais, como comercial para TV, anúncio de revista e jornal, material
para rádio e outdoor chega na 61ª. Edição com 17 categorias diferentes: 1)Branded
Content and Entertainment, 2) Creative effectiveness, 3) Cyber, 4) Design, 5) Direct,
6) Film Lions, 7) Film Craft, 8) Innovation Lions, 9) Media, 10) Mobile Lions, 11)
Outdoor Lions, 12) PR Lions, 13) Press Lions, 14) Product Design Lions, 15) Promo
& Activation, 16) Radio Lions e 17) Titanium and Integrated Lions. Além de ter
criado, nesta edição, um festival dentro do Cannes Lions, o Lions Health com duas
subcategorias: Pharma e Health & Wellness. Ao adicionar novas categorias e
reformular os critérios das categorias existentes a Instituição provoca uma nova
tensão no campo e na disputa pelas posições hegemônicas.
Acreditamos que a declaração do Chairman e CCO do McCann World Groupe na
Índia e presidente do júri da categoria Titanium & Integrated Lions, Prasson Joshi,
agente dominante no campo, “reflete” bem o que apontou Bourdieu:
“Esse trabalho [Sounds of Honda, da agência DENTSU de Tóquio] excede o
universo do marketing e da comunicação porque não trata apenas de um
comercial de 30 segundos, mas algo que mobiliza e transfere uma emoção
impactante. É totalmente desafiador, inovador, pertinente e sólido. Não
vivemos mais no tempo de uma publicidade óbvia.” (PROPMARK,
23.06.2014, p. 22)
Capital simbólico e financeiro no contexto do Cannes Lions – uma influência
reciproca
O Cannes Lions foi criado para distinguir a excelência criativa do mundo
publicitário como um todo e de seus membros em particular. Entretanto, a crescente
autonomia do campo publicitário fez com ele crescesse igualmente em importância no
mundo empresarial, ao mesmo tempo em que o departamento de marketing, do qual a
propaganda faz parte, passou a ser fundamental nas organizações. Um dos reflexos
dessa nova posição pode ser constatado no budget (orçamentos) com que o marketing
e a publicidade passaram a contar. Esses valores passaram a atingir, não raro, cifras
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milionárias. Essa situação provocou mudanças na estrutura da indústria da
propaganda como um todo e certamente nos festivais de premiação publicitária.
Tendo em mente a influência recíproca que os capitais simbólico e financeiro
têm entre si, achamos pertinente destacar nesse sentido a declaração do chairman
criativo da Clemenger BBDO Group da Austrália e presidente do júri do Direct Lions,
James Mcgrath: “sabemos do impacto de um Grand Prix. Ele pode mudar uma
carreira. Havia uma imensa dose de intensidade sobre essa decisão e escolhemos
muito cuidadosamente”. Em outras palavras, o triunfo em um festival como o de
Cannes não se esgota durante a duração do evento. Ao contrário, a consagração obtida
irá apresentar reflexos posteriores na composição das forças do campo, mais
especificamente: ganhar um dos cobiçados “Leões” pode significar, na prática, uma
nova e melhor proposta de trabalho ou uma promoção na empresa ou agência atual.
A consagração no Cannes Lions é um troféu de tamanha importância no
campo que, todos os dias, profissionais de criação ao redor do mundo criam peças e
campanhas pensando em inscrevê-las na premiação. Em alguns casos, pode-se dizer
que há uma inversão de propósito: o objetivo não se restringe a criar uma peça que
atenda as necessidades mercadológicas do cliente, mas uma peça que poderia, por
suas qualidades criativas, ser inscrita no Cannes Lions. Criar objetivando
primeiramente a inscrição do trabalho no Festival é uma atitude criticada por grande
parte dos agentes do campo. Em certa medida esse fenômeno, que não será esmiuçado
neste artigo, seria o responsável pelos casos de inscrição de peças “fantasmas”, peças
que foram criadas e produzidas com o propósito de ganhar um prêmio em Cannes.
Algumas dessas peças não são veiculadas na grande mídia, daí a terminologia de
“fantasmas”, ou seja, apenas algumas pessoas as viram. Quando uma peça nessas
condições é inscrita e premiada gera-se um mal-estar que tem pelo menos duas
dimensões: 1) representa uma violação das regras de operação do campo,
particularmente em relação à validade da estratégia utilizada no Festival; 2) traz à
tona uma questão com a qual a propaganda tem de lidar periodicamente, a questão da
credibilidade da própria atividade publicitária. A crítica a essa inversão de propósitos,
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que parece buscar valorizar mais a carreira de quem criou a peça do que a própria
marca do cliente, está alinhada com o momento atual de Cannes, que é o de valorizar
o negócio da publicidade como um todo, o que inclui os anunciantes.
Nesse sentido, o campo publicitário foi desenvolvendo estratégias para dar
conta dessa situação. Observe-se nas declarações abaixo, por exemplo, como agentes
dominantes do campo da propaganda visam a um só tempo mostrar que são
responsáveis no trato da verba e consideram que o dono dessa verba, o cliente, tem
direito inclusive de estar sob as luzes dos holofotes, ao lado dos publicitários que
estão sendo premiados: “O mais importante para qualquer jurado é a evidência de que
o foco é o cliente e que a ideia foi a base para nortear todos os processos. (...) O
cliente paga a conta para ter resultados pertinentes e não para experiências pessoais de
publicitários.” Luis Sanches, CCO e diretor-geral de Criação da Almap BBDO e
integrante do júri da categoria Mobile (PROPMARK, 23/06/14, p. 28) E, no mesmo
sentido, diz o sócio e vice-presidente de criação da Leo Burnett Tailor Made, Marcelo
Reis:
“Não tenho saudades de como era a competição. Antes, era tudo muito
voltado para a criação. Hoje, o Cannes Lions prestigia todos os
departamentos, como é o caso de planejamento, mídia e produção. Além do
cliente, que também está no palco recebendo prêmio.” (PROPMARK
30.06.14, p 12.)
Observe-se, contudo, que a importância recentemente adquirida pelo cliente
no jogo de forças dentro do campo não garante essa distinção para todo o cliente
indistintamente, em que pese o fato de ser ele o detentor da verba. Em outras palavras,
pertencer ao campo é uma conquista que também o cliente deve fazer por merecer.
Nesse sentido, é sintomática a situação do cliente Neymar Júnior (NJ), jogador de
futebol altamente dominante em seu campo original. Neymar Júnior protagonizou
uma campanha, criada pela Agência Loducca, em que ele foi a celebridade-modelo e
também a “marca” que assinou a peça. O júri, porém, considerou que NJ não é um
“anunciante tradicional” como o campo assim entende: “O placar foi apertado, mas o
que pesou contra a ação assinada pela Loducca foi que o craque do Barcelona é um
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jogador de futebol e não um cliente tradicional como a Harvey Nichols” (Paulo
Macedo, repórter, PROPMARK, 23.06.14, p. 24)
O critério da credibilidade – uma nova tensão no campo
Desde a edição de 2009, Cannes vêm premiando ações de Relações Públicas,
na categoria denominada PR Lions. Como veremos abaixo os agentes hegemônicos
estão privilegiando, além de criatividade, um outro critério: o da credibilidade. Para q
presidente do MSL Group dos Estados Unidos, divisão de comunicação estratégica do
Grupo Publicis e presidente do júri da categoria, Renne Wilson, “PR é a área que dá
credibilidade ao marketing mix” (PROPMARK, 23.06.14, p. 31). Observe-se, no
entanto, que o citado critério da credibilidade vem sendo alvo de disputas no campo,
como relatado no texto da jornalista Claudia Penteado:
“O velho embate entre agências de publicidade e de PR parece mais vivo do
que nunca, e cada vez mais complexo. Este ano, por exemplo, alguns jurados
deram a entender, em off, que houve discriminação em relação aos trabalhos
inscritos por agências de publicidade, em um júri dominado por empresas de
PR – uma espécie de acerto de contas para compensar os anos anteriores em
que prevaleceram trabalhos de essência mais publicitária.” (PROPMARK,
23.06.14, p. 31)
Para o vice-presidente de criação e planejamento da Live/Ad e um dos
participantes do júri da categoria PR Lions Mauro Silva, “Há um conflito grande entre
PR e Propaganda dentro do júri. Foi claramente um júri que privilegiou agências de
PR e buscou trabalhos que tivessem os fundamentos que são importantes para PR.”
(PROPMARK, 23.06.14, p. 31)
Nos termos da sociologia bourdiana, uma obra que é considerada legítima
(Bourdieu, 2006, p. 32) “tende a impor, de fato, as normas de sua própria percepção e,
tacitamente, definir o modo de percepção que aciona certa disposição e certa
competência como o único legítimo (...)”. Nesse sentido é que são construídas as
estratégias dos agentes do campo, mais exatamente, no sentido de que, para ser
considerada legítima pelo campo, uma obra deve, antes, ser bem sucedida em definir
o modo de percepção que acionará a disposição que irá considerar essa obra legítima.
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No esforço de legitimar-se, o subcampo de PR elaborou, em 2010, um conjunto de
critérios conhecido como “Princípios de Barcelona”3. Mesmo tendo sido utilizados
como critérios no Cannes Lions de 2014, esses “Princípios” ainda não foram
“percebidos” como norma dominante. Segundo a repórter Claudia Penteado,
“Entre os critérios utilizados pelo júri para resultados em PR estão os dos
‘Princípios de Barcelona’, um conjunto de critérios internacionais validado
em 2010. Segundo Silva (Mauro Silva, vice-presidente de criação e
planejamento da Live/Ad), ainda falta alinhamento dos critérios de PR, algo
que precisa ser ainda melhor trabalhado no futuro. Em muitos casos,
prevaleceu a visão da presidente do juri, Renne Wilson, como não avaliar
bem projetos de orçamento mais modestos.” (PROPMARK 23.06.14, p. 31).
Como dissemos anteriormente, este artigo não traz qualquer juízo de valor
sobre as peças em si, nem, muito menos, juízos sobre a pertinência ou relevância dos
critérios que o campo desenvolve para efetivar seus mecanismos de consagração
visando à hegemonia. Ao verificarmos nas declarações selecionadas que os
participantes do Cannes Lions, particularmente os jurados, falaram muito sobre
criatividade sem defini-la objetivamente, constata-se a pertinência das ideias de
Bourdieu: os critérios devem ser internalizados sem que seja necessário explicitá-los.
Assim não esperávamos encontrar, no corpus selecionado, uma sistematização
metodológica para a avaliação da criação publicitária e nem mesmo indícios de que
essa sistematização fosse pretendida pelos profissionais. Essa sistematização cabe ao
pesquisador: ele é que poderá problematizar como esses critérios constituem parte
fundamental da operacionalização do campo. Neste ponto, poder-se-ia indagar: será
possível, além disso, elaborar uma taxionomia explícita dos critérios de criatividade,
quantitativa e qualitativamente? Essa é uma tarefa a ser desenvolvida em artigos
futuros.
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http://www.slideshare.net/iprmeasure/barcelona-summit-declaration-slides-final-22-july-20105407374 - Acessado em 01-08-2014
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)
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