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Nuances culturais: o fazer festeiro de São Luís
Álvaro Roberto Pires
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Resumo: Os tambores, as danças de rua compõem o mosaico das manifestações culturais
produzidas em São Luís (MA). Instrumentos e movimento (re)criam as estruturas da cultura
popular, produzida num ambiente social que experimenta, há bem pouco tempo, conviver
com o paradigma da modernidade tardia.
Existe uma mulher chamada Catirina, muito provavelmente assemelhada às diversas
moças que habitam as cidades nordestinas. Catirina possui um desejo intenso de comer a
língua do boi mais bonito da fazenda onde mora e trabalha, compelindo Pai Francisco, seu
marido, a satisfazê-lo, furtando o tal boi. O boi é roubado e levado para longe da fazenda,
ato logo descoberto pelo “amo”, dono do animal que furioso manda perseguir o culpado.
Pai Francisco é capturado, confessando seu crime; o “amo” perdoa sua falta e tudo acaba
em festa com muita música e celebração. O auto se desenvolve “...com cenas e cantorias,
às vezes cômicas, às vezes conceituais, críticas e até filosóficas, quando não poéticas”.
(Carlos de Lima, Comissão Maranhense de Folclore, Boletim 11,agosto/98).
A pantomima, revisitada todos os anos nas diversas comunidades, Centro Histórico,
arredores da cidade de São Luís, estado do Maranhão, faz parte dos eventos juninos. Os
festejos presenciam grande afluência de pessoas espalhadas pelos quatro cantos da ilha,
empurradas pela bonita poesia que sai da boca dos cantadores em forma de cantigas,
repetidas pela multidão sempre no compasso das matracas1 e pandeiros2. O cancioneiro faz
ecoar seu canto:
1
“As matracas são duas peças de madeira, que batidas uma contra a outra provocam um som
estridente. Elas podem ser de madeira rústica, polidas ou enceradas, usadas em separado ou juntas
pôr um fio ou cordão. São de tamanhos variados, as quais podem trazer um furo no meio para
darem melhor som e serem penduradas no pescoço de seus donos, que funciona como ponto de
apoio para que sejam tocadas com as mãos de maneira ágil e rápida”. (CARVALHO, 1995:196).
2
“Os pandeiros representam rodas de madeira, que são os aros do instrumento, geralmente
cobertos de couro de cabra, que tem pele mais fina, daí “esquentar” mais depressa, propiciando
um melhor som. [...] Na sua confecção o couro é bem esticado e pregado sob os aros com pregos
2
“As matracas e pandeiros
É que faz tremer o chão
Esta herança foi deixada por nossos avós
Hoje cultivada por nós
Prá compor tua história Maranhão”3
O desejo de Catirina em comer a língua do boi serve de pivô para que aconteça um
dos momentos mais criativos e verdadeiros das manifestações populares desenvolvidas na
capital do “meio norte”: a brincadeira do bumba-meu-boi. A motivação para o desenrolar
desse folguedo possui variados significados além da pequena estória narrada acima. Outras
interpretações dessa brincadeira popular dizem que o
“bumba-meu-boi maranhense é, tradicionalmente realizado na
intenção de São João, com base na crença de que agrada a esse
Santo organizar um boi ou participar de um que já se ache
organizado. Através dos cantos, danças e demais elementos do
ritual de bumba, seus participantes rendem homenagens a São
João, pagam promessas feitas, ou seja, o boi funciona como veículo
de comunicação espiritual, como ponte de ligação entre o Santo e o
devoto. [...] Embora essa explicação de cunho religioso ligada à
figura de São João seja a mais forte, a mais evidente e comumente
aceita como justificativa e motivação para a realização do Bumbaboi maranhense, existe, secundariamente, como um componente da
fértil imaginação popular, uma ligação entre o Bumba-boi e a
curiosa “Lenda de Dom Sebastião”, rei de Portugal. Conta-se que
esse rei, depois de desaparecer em Alcácer-Quibir, veio com toda a
corte de Queluz, encantar-se na Praia dos Lençóis, localizada no
município de Cururupu, no Estado do Maranhão. A partir daí,
ou “arestas”, isto é, “taxinhas”. Para serem bem afinados, os pandeiros são sempre trazidos
“quentes”, e, para tal são esquentados sistematicamente no fogo. Pôr isso, onde chega o boi
precisa improvisar uma fogueira, pois o vento vai batendo nos pandeiros e eles vão esfriando,
amolecendo, necessitando de um calor para poderem “soltar” o seu som. [...] (op. cit., p.196).
3
Trecho da cantiga “Maracanã e suas raízes”, interpretada por Humberto do Maracanã, CD “25
anos de toadas do guriatã no Maracanã”.
3
justamente durante o período das festas juninas, ele se transforma
em luzente touro coberto de pedras preciosas, com olhos de fogo,
fulgurante estrela na testa, chifres de ouro e boca de brasa. E,
assim, transfigurado, aparece em desabalado galope e apavora os
pescadores incautos.” (CARVALHO, 1995:40).
O certo é que as explicações ancoradas na presença de Catirina e seu esposo Pai
Francisco ou na lenda de Dom Sebastião proliferam o imaginário popular ludovicense4,
tornando-o incomum. A bem da verdade, o cotidiano social da cidade de São Luís já se
encontra repleto de lendas habitadas por répteis míticos e figuras lendárias (conta-se, por
exemplo, que abaixo da ilha mora uma grande serpente encantada, que está num sono
profundo. Quando a tal serpente acordar – caso isso aconteça um dia! – a ilha
desaparecerá). Sob a base real do fazer social construído, quase sempre, de maneira penosa
pelos habitantes desta cidade, em sua maioria de negros e mestiços, reside um inesgotável
conteúdo simbólico, repleto de lendas, sabiamente contadas pelos ludovicenses. Da mesma
forma é lícito afirmar que as festas juninas são realizadas com a aprovação dos santos
católicos – São João, São Pedro, São Marçal – cuja população da cidade rende-lhes
homenagens nos dias apropriados quando o evento acontece (dias 24, 29, 30 do mês de
junho, respectivamente). A festança, no entanto, inicia-se a partir do mês de abril, quando
acontecem os vários ensaios nos arraiais espalhados pela cidade.
É durante o mês de junho que a cidade-ilha, transforma-se num grande arraial para
receber turistas, gente da terra, na celebração coletiva e de rua, pois a brincadeira do
bumba-meu-boi só pode acontecer nos logradouros públicos, nos locais onde a alegria, o
sonho, a pantomima, o brilho possam prevalecer, contagiando todos os brincantes. Um
deles diz:
“é, o boi é que domina mesmo tudo. O pessoal todo fica doidinho
quando ele aparece e vai atrás como se tivesse enfeitiçado. Deixa
tudo mais de lado prá seguir de perto a danada dessa nossa
brincadeira gostosa, que mexe tanto com a gente. E nenhum arraial
4
Termo usado para designar as pessoas que nasceram na cidade de São Luís.
4
que se preze pode deixar de apresentar ela, senão, sabe como é,
não anima. Sei lá, São João sem boi fica sem graça, uma coisa
assim fria, esquisita, que não é da gente, por isso não pega mesmo,
não ganha aquele pique”. (CARVALHO, 1995:45).
O bumba-meu-boi é uma manifestação cultural bastante difundida em todo país,
possuindo nuances em cada região onde ela é desenvolvida. Luís da Câmara Cascudo
(1972) chama a atenção para o caráter nacional que possui esse evento popular. Afirma que
a região Nordeste é indiscutivelmente a área de desenvolvimento dessa manifestação,
chegando a dizer que o Brasil Central, como os estados do extremo Norte e Sul do país
receberam a exportação do folguedo a partir do conjunto de estados nordestinos. O bumbameu-boi vem a ser uma manifestação popular desenvolvida a partir das influências culturais
dos conjuntos étnicos negro, indígena, branco, conforme os comentários de Câmara
Cascudo:
“...o Bumba-meu-boi surgiu no meio da escravaria do nosso país,
bailando, saltando, espalhando o povo folião, suscitando grito,
correria, emulação. O negro que desejava reviver as folganças que
trouxera da terra distante, para distender os músculos e afogar as
mágoas do cativeiro nos meneios febricitantes de danças lascivas,
teve participação decisiva nessa criação genial, nela aparecendo
dançando,
cantando,
enfim,
vivendo.
Os
indígenas
logo
simpatizaram com a “brincadeira”, foram conquistados por ela e
passaram
a
representá-la
incorporando-lhe
também
suas
características. O branco entrou de quebra, como o elemento a ser
satirizado e posto em cheque pela sua situação dominante”.
(CASCUDO apud CARVALHO, pp.35-6).
Assim sendo podemos identificar no bumba-meu-boi os traços do amálgama
produzido na confluência de culturas, aparentemente tão distintas mas que nos milhares de
quilômetros que compõem o território brasileiro foram “historicamente obrigadas” há criar
5
a mínima socialidade, a despeito das diferenças políticas, étnicas, sócio-econômicas que
possam existir entre sujeitos distintos. Em nosso país
“dependendo da região, além da diferença de denominação,
identificam-se, igualmente, variações quanto ao processo de
elaboração e forma de apresentação da dança, do auto, das
personagens, da música, das cantigas, dos instrumentos...
Entretanto onde quer que exista no território brasileiro, o bumba,
em meio a essas diferenciações, tem um ponto comum: encarna
comprovadamente um dos mais populares exemplos do teatro
popular nacional, que é adaptado às peculiaridades regionais”.
(CARVALHO, 1995:39).
Podemos encontrar também em determinados bairros da cidade, um conjunto
formado por mulheres negras que mexem-se animadas, numa dança buliçosa, cheia de
malícia. Estamos falando do tambor de crioula, dança feminina, sempre realizada em
círculo, espécie de samba de roda, cantado com solo coreográfico, no qual introduz-se a
umbigada (chamada “punga”); as dançantes, denominadas de “coreiras”, revezam-se na
roda à frente dos tambores. O conjunto formado pelo tambor grande, meião, pererengue ou
crivador, compõem juntos o que se chama de “parelha”. O mais importante deles é
chamado de tambor grande. As coreiras dançam à sua frente, enquanto outros membros da
comunidade, incluindo-se os homens, entoam as cantigas apropriadas para este evento.
Os homens tocam os tambores, batem palmas, cantam... As mulheres rodopiam
graciosas no círculo formado, usando saias estampadas, blusas brancas bordadas, turbantes,
geralmente na mesma padronagem que a saia, colares, maquiagem, deixando transbordar a
satisfação de lá estarem junto à comunidade, com os devotos, os santos. Uma mulher de
cada vez dança no meio do círculo, requebrando o corpo em movimentos circulares,
cadenciados, insinuando-se para o tambor e seu tocador. Em determinado momento outra
“coreira”, que estava fora do círculo, fabrica um movimento com seu corpo, dando a
entender que pretende entrar na roda. Intensifica-se o canto, o toque dos tambores para que
as duas mulheres, no centro da roda, comecem a se aproximar para o momento esperado da
“punga”, onde a coreira que entrou no círculo assumirá a continuidade do folguedo.
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Esta dança, em ocasiões especiais – naquelas onde uma pessoa encontra-se
devedora de alguma promessa feita ao seu santo de devoção - é realizada com todo o
cerimonial que a ocasião exige: todos os presentes cantam as ladainhas, geralmente em
latim, na devoção do santo que fez a graça. As ladainhas são entoadas por um longo tempo.
As pessoas mais próximas da pequena capela, improvisada algumas vezes para cumprir
uma finalidade religiosa, acompanham a reza; aquelas que se encontram do lado de fora
conversam em pequenos grupos ou observam os tocadores esquentarem os tambores junto
ao fogo. Somente após a saudação realizada em latim aos santos devotos, os tambores
começam a tocar seguindo noite adentro até o raiar do dia para satisfação dos presentes.
Com o dia amanhecendo, as cozinheiras servem a todos mocotó ou feijão.
São diversas as manifestações populares no Maranhão onde podemos observar a
inclusão do tambor de crioula na estrutura organizacional desses eventos. Por ocasião do
ciclo das festividades do Divino Espírito Santo, realizado na cidade de Alcântara (MA),
pudemos constatar a prática de um tambor em frente a igreja de São Benedito, o qual
contou com a participação de diversas coreiras, o revezamento de vários tocadores, além de
um número significativo de pessoas que lá estiveram, vindas de diferentes partes de São
Luís, para participar dos festejos. A festa trouxe consigo novo colorido à cidade de
Alcântara, geralmente pacata com seu cotidiano relativamente “previsível”, como é comum
acontecer em pequenos conglomerados urbanos.
Tanto o bumba-meu-boi como o tambor de crioula são manifestações populares nas
quais o povo se reconhece nelas; a simbiose entre profano e sagrado, existente na realização
dessas manifestações, é uma característica marcante no cotidiano construído neste pedaço
afastado do Brasil. Em São Luís, a cultura popular produzida possui, via de regra, enorme
facilidade para convergir às categorias de profano/sagrado, sem que existam antagonismos
no momento mágico (ou real) em que seus cidadãos (re)criam os eventos que alimentam o
vir-a-ser. Assim sendo, a força do bumba-meu-boi que estoura nas ruas e praças possui sua
razão de existir na crença de que os santos católicos aprovam a realização da brincadeira,
numa vertente da compreensão popular maranhense sobre o significado da festa; o tambor
de crioula quase sempre é realizado a pedido de alguém que recebeu a graça do santo
7
devoto, devendo retribuir-lhe com a dança das coreiras, o som dos tambores, a reza cantada
em latim antes do folguedo tomar corpo e atravessar a noite.
A diversidade rítmica e melódica de São Luís é surpreendente; pode-se encontrar na
ilha além dos folguedos destacados neste texto, outras danças típicas da cidade como: coco,
bambaê de caixa, cacuriá, fita, boiadeiro, todas elas marcadas fortemente pelo elemento
percursivo. A força dos tambores é tão marcante que a ilha foi cenário para a realização de
uma obra-prima da literatura brasileira, o romance Os Tambores de São Luís, de Josué
Montello. O autor foi acostumado, desde muito pequeno, a ouvir os tambores da centenária
Casa das Minas5, fato este que o possibilitou construir a bela narrativa que se passa
“durante uma noite e algumas horas da manhã seguinte. Mas, dentro desse espaço de
tempo, que constitui seu arco narrativo básico, outro arco se abre, para conter, ao longo
da epopéia romanesca, três séculos de lutas e insurreições negras”. (N. do E.). O mosaico
da cultura popular de massa estruturada em São Luís completa-se com as festas de reggae,
“...ritmo musical que se desenvolveu na Jamaica e, desde o início dos anos Setenta, foi
adotado como expressão cultural por amplo segmento da juventude negra que habita
principalmente as regiões formadas por ocupações e palafitas, na periferia urbana”.
(SILVA, 1995:12).
Desde a década de 70 para cá o reggae proliferou-se pelos quatro cantos da cidade,
bem como atingiu outros municípios circunvizinhos de São Luís; suas festas deixaram de
ser freqüentadas pelos jovens residentes nas periferias da cidade – desocupados, bandidos,
desclassificados, termos usados pelas elites locais quando queriam referir-se àqueles que
gostavam do reggae – para atingir os bairros médios e nobres, diversificando a população
que lota os salões. O reggae apreciado em São Luís possui uma característica própria: ele é
dançado aos pares, juntinho, como se fosse dança de salão. Explica-se para tanto que
devido a “...sua aproximação rítmica com algumas manifestações culturais da região,
5
“Casa das Minas é o nome pelo qual é conhecido o mais antigo terreiro de tambor de mina de que
se tem notícia no Maranhão, sendo provavelmente o que deu origem a esse culto em terras
maranhenses, e que aqui serviu de modelo a outras casas semelhantes. É também chamada de Casa
Grande das Minas ou Casa das Minas Jeje, por ter sido fundada por negros jeje, denominação
dada a grupos étnicos provenientes do sul do Benim – o ex-Daomé – vindos em grande número
para o Brasil no século passado”. (FERRETTI, S., 1996:11).
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como a dança do lelê, o bumba-meu-boi, o tambor de crioula, além das fortes influências
rítmicas caribenhas, predominantes nas festas locais como o merengue, a lambada...” (op.
cit., p.15) ele assumiu, hoje, a peculiaridade descrita acima.
Como é possível perceber, os pontos que demarcam a cultura popular de massa
produzida na cidade de São Luís e circunvizinhanças é rica, diversificada, cuja trama urdida
abusa das (re)leituras que são introduzidas pelos agentes cotidianos que dão vida ao fazer
social, criando, às vezes, concepções controversas a respeito das categorias que estão em
cena. Existe, por exemplo, um debate instituído há muito tempo entre os tradicionalistas e
os modernistas, no qual os segundos afirmam ser o reggae mais um produto cultural
ludovicense, ao passo que os primeiros argumentam que a legitimidade popular deve ser
dada ao bumba-meu-boi, genuinamente fruto da terra. Podemos apreender nesse debate, a
existência de duas visões bastante distintas acerca da produção cultural popular; aquela que
enxerga o resultado das inter-relações sociais como algo extático, fossilizado na “tradição”,
e outra que vislumbra o dinamismo, a mudança, nas construções culturais realizadas nas
cidades brasileiras, verdadeiros camaleões que trocam de pele a cada novo ciclo das
estações. O antropólogo Hermano Vianna, escrevendo a respeito da sobrevivência do
folclore ligada a capacidade de absorver novas influências argumenta que
“...Cada mestre de brincadeira, ou cada brincante, não atua como
o espectador passivo de uma tradição secular sobre a qual não tem
nenhum controle e só pode “preservar”. Seu papel é mais o de um
DJ, ou de qualquer outro produtor musical cibernético, que faz
suas próprias colagens a partir de determinado repertório: o
gigantesco e multiforme banco de dados da biodiversidade
brincante brasileira. Cada mestre recompõe os elementos de todas
as outras brincadeiras. Não existe, portanto, problema de origem.
(grifo nosso). Cada brincadeira é, nesse sentido de não estar presa
a nenhuma cartilha, absolutamente original.” (A circulação da
brincadeira, publicado no caderno mais! do jornal Folha de São
Paulo, 14/02/99).
9
Ficamos, pois, com a argumentação que demarca, de maneira indiscutível, os espaços
dinâmicos, abertos, fluídos de construção da teia relacional que vem a ser a cultura popular
de massa, não importando em qual universo social ela possa ser tecida. É mister, nos
tempos atuais, “...voltar-se para a “proliferação disseminada” de criações anônimas e
“perecíveis” que irrompem com vivacidade e não se capitalizam”. (CERTEAU, 1994:13).
Levando-se em conta a posição assumida pelos continuadores do status quo cultural,
Vianna diz que
“...O erro de muito preservacionista bem-intencionado é achar que,
para salvar um folguedo da ameaça de desaparecimento, é
necessário isolá-lo do resto do mundo, mantendo à força sua
“verdade” ou “autenticidade” (uma idéia avessa à mistura e à
circulação”)”. (artigo citado no mesmo jornal).
A bem da verdade o contexto sócioeconômico, cultural da cidade de São Luís vem
experimentando vertiginosas transformações que certamente lançarão indagações futuras
sobre a continuidade da produção cultural nesta cidade. Durante as décadas de 70 e 80 a
cidade experimentou um crescimento sem precedentes em sua história, obrigando-se dessa
maneira a enfrentar
“...os problemas decorrentes de pressões demográficas. (...) Concebida
desde 1979, a maior experiência de restauração e revitalização de
conjunto histórico edificado se deu em 1988, com o Projeto Praia
Grande6, atingindo 10 hectares de área tombada, dando um sentido
cultural a um espaço que surgira com vocação comercial.”7
A construção desse auspicioso projeto em área destinada ao embarque e
desembarque de mercadorias abriu o caminho para a edificação de outros empreendimentos
de grande porte, estes necessários a consolidação das estruturas sociais que pudessem
6
Este projeto foi a ação restauradora de toda a parte histórica de São Luís, área que ocupa alguns
quarteirões onde está localizado o maior acervo de azulejos portugueses do século XIX. Este
projeto só foi possível graças a elaboração do Plano de Preservação para São Luís e Alcântara,
idealizado pelo arquiteto Viana de Lima, a serviço da UNESCO.
7
Ananias Alves Martins e Deusdedit Carneiro Leite Filho, São Luís através dos tempos (16121997), álbum ilustrado. Prefeitura de São Luís/jornal “O Estado do Maranhão”, 1997.
10
colocar a cidade na órbita das metrópoles contemporâneas, determinando desta feita um
novo “fazer” na vida de seus cidadãos. Assim sendo,
“Ao
aglutinar
recursos
e
pessoas,
a
cidade
potencializa
o
desenvolvimento econômico, científico-tecnológico, político e cultural,
dando diversidade, mobilidade, instabilidade e transitoriedade aos
comportamentos e valores sociais.” (RUBIN, 1998:122-23).
O crescimento, embora tardio, experimentado pela cidade nas décadas de 70/80, foi
decisivo para o estabelecimento do projeto da pólis estruturada segundo os moldes das
metrópoles e grandes cidades brasileiras. Na São Luís de hoje, podemos ver largas avenidas
construídas para a demanda cada vez maior de automóveis, viadutos, shopping centers
espalhados nos bairros de classe alta e média tornando o consumo asséptico; expansão da
rede telefônica visando aumentar a demanda dos usuários que utilizam tais serviços;
telefonia móvel; expansão dos servidores que conectam-se a rede mundial de computadores
(Internet); concorrência pela expansão dos serviços desencadeada pelos servidores locais e
de outras cidades que dão acesso a navegação na Internet; implementação do turismo, etc.
Diríamos que os ventos da modernidade chegaram em São Luís.
Qual é a modernidade instaurada na cidade? Para responder a pergunta,
começaríamos dizendo que nada será como antes na pouco conhecida São Luís, a capital do
reggae, patrimônio cultural da humanidade, segundo título outorgado pela UNESCO. Seus
cidadãos serão lançados “...num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta
e contradição, de ambigüidade e angústia.” (BERMAN, 1988:15). A ilha-cidade que
experimentou o crescimento tardio, cuja urbanização mais acelerada somente efetivou-se a
partir de 1958, atraso este marcado pelas iniciativas desenvolvimentistas implementadas em
1955 pelo presidente Juscelino Kubtchek privilegiando a industrialização da região Sudeste
em detrimento do investimento em outras regiões, interrompendo, pois, as expectativas de
crescimento de São Luís. O século XX trouxe em seu bojo o processo de modernização
cuja expansão abarcou todas as sociedades; ao expandir-se
“...o público moderno se multiplica em uma multidão de fragmentos,
que falam linguagens incomensuravelmente confidenciais; a idéia de
modernidade, concebida em inúmeros e fragmentários caminhos, perde
11
muito de sua nitidez, ressonância e profundidade e perde sua
capacidade de organizar e dar sentido à vida das pessoas.” (op. cit.,
p.17).
À luz das recentes transformações que ainda estão iniciando-se na vida social
ludovicense, poderemos compreender o significado da “modernidade tardia” reportandonos a noção de “descontinuidades”, utilizada por Anthony Giddens quando menciona que
“... os modos de vida colocados em ação pela modernidade nos
livraram, de uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais
de ordem social. Tanto em extensão, quanto em intensidade, as
transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do que
a maioria das mudanças características dos períodos anteriores. No
plano da extensão, elas serviram para estabelecer formas de
interconexão social que cobrem o globo; em termos da intensidade, elas
alteraram algumas das características mais íntimas e pessoais de nossa
existência cotidiana”. (Giddens apud Hall, 1998, p.16).
Enxergando o mesmo fenômeno, porém sob outro ponto de vista, Ernest Laclau argumenta
que as sociedades atingidas pela modernidade “...são caracterizadas pela “diferença”; elas
são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma
variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para os indivíduos”.
(Laclau apud Hall, 1998, p.17).
Os argumentos lançados pelos autores muito embora estejam tratando de sociedades
nas quais a modernidade já esteja consolidada, também podem ser aplicados àquelas cujo
processo inicia-se agora. É o caso da cidade de São Luís. As grandes transformações que
atingiram em cheio a vida social ludovicense, num processo irreversível, muito antes que o
conjunto dos seus cidadãos possa entender o que ocorre, afetarão todos os níveis do fazer
comunitário, da trama social, até atingir as individualidades (ou partindo delas). É nesse
contexto que está sendo delineada a cultura popular maranhense e suas produções.
O fazer social de São Luís encontra-se, hoje, sob a pressão paradoxal de aceitar, por
um lado, os conteúdos transformadores que compõem a modernidade e, criar as defesas
necessárias para preservar o cotidiano provinciano que ainda prevalece nas relações dos
12
ludovicenses, por outro lado. Talvez a Catirina do próximo século se canse da língua do boi
e parta em busca de alimento e diversão em outros lugares, sob o movimento de novas
brincadeiras. Um possível caminho, entre tantos, na construção do fazer festeiro de São
Luís.
13
Referências bibliográficas
BERMAN, Marshall
Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade. São Paulo,
Cia. das Letras, 1986.
CARVALHO, Maria Michol Pinho de
Matracas que desafiam o tempo: é o bumba-boi do Maranhão – um estudo da
tradição/modernidade na cultura popular. São Luís, [s.n.], 1995.
CASCUDO, Luís da Câmara
Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro, Ediouro, 1972.
CERTEAU, Michel
A invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994.
FERRETTI, Sergio
Querenbentã de Zomadônu: etnografia da casa das Minas do Maranhão. São
Luís, EDUFMA, 1996.
HALL, Stuart
A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1998.
LIMA, Carlos de
Comissão Maranhense de Folclore, Boletim nº 11, agosto/98
MONTELLO, Josué
Os tambores de São Luís. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
RUBIN, Antonio Albino Canelas
Viver na cidade da Bahia. In: Lugar comum – estudos de mídia, cultura e
democracia, nº 5-6 (maio-dezembro de 1998), Núcleo de estudos e projetos em
comunicação/Pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.
SILVA, Carlos Benedito Rodrigues da
Da terra das primaveras à ilha do amor: reggae, lazer e identidade cultural.
São Luís, EDUFMA, 1995.
14
VIANNA, Hermano
A circulação da brincadeira. Artigo publicado no caderno mais! do jornal Folha
de São Paulo, 14/02/99.
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Nuances culturais: o fazer festeiro de São Luís Álvaro