Evolução Urbana
de São Luís de Paraitinga
referência
Luis Saia
“E porque huma das couzas que as Nacçoens mais cultas costumão ter grande cuidado no tempo prezente
hé a semetria, e armonia dos edeficios que de novo se levantão nas Povoaçõens das Cidades, e Villas para
que da sua disposição não rezulte a comodidade publica mas tambem o agrado com que se fazem mais
appeteciveis, e habeis as Povoações, conhecendo-se da sua boa ordem com q’estão dispostas a policia, e
a cultura dos seus habitadores...” – Morgado de Mateus, S. Paulo, 15-9-1766 (D.I., vol. 65, p.106)
T
aubaté, no vale do rio Paraiba, entre S. Paulo e Rio
de Janeiro, foi o principal foco de atividades ban­
deiristas servindo à penetração de Minas Gerais e à
des­coberta do ouro. A ligação imediata de Taubaté
na faixa da marinha era Ubatuba. Entre as duas
cidades, subida a escarpa da serra, um “mar de
morros” ocupa todo o planalto, desde a serra da
Bocaina até a serra de Gua­rarema. A mesmice de
toda esta área é ligeiramente mo­dificada por algumas
serras, Quebra-Gangalha, Jambeiro e Mococa, e
pelas calhas dos formadores do Paraiba, Pa­ribuna e
Paraitinga, responsáveis pelo sistema de dre­nagem
deste planalto e pela cobertura de matas que com­
punha a fisionomia da região desde o cabeço da
serra do Mar até os campos que margeiam o rio
Paraiba.
1
PIZARRO E ARAUJO (J. S.
A.), Tricentenário de Paratí,
DPHAN, MEC, no 22, Rio de
Janeiro, 1960, pg. 46, nota
19. OLIVEIRA, J. J. Macha­
do D’, Quadro Histórico da
Província de São Paulo, São
Paulo, 1864, pg. 116.
2
DI, vol. XLVII, pág. 144.
3
DI, vol. XXIV, pág. 421.
4
DI, vol. LXXII, págs. 27,
28 e 45.
10 2[2009
A diretriz Taubaté-Ubatuba, supostamente a serviço
dos índios desde antes da descoberta, foi convertida
numa trilha certamente trafegada a partir do século
XVII, época em que aí são cedidas sesmarias. Com
a desco­berta do ouro em Minas, instalou-se um
canal de escoa­mento nesse traçado, que no lugar
chamado “Encruzi­lhada” abandonava o sentido de
Ubatuba, dando pri­mazia à alternativa que levava
ao Porto de Parati, na divisória do litoral paulista
e fluminense: a casa de Fun­dição de Taubaté e o
Registro da Guarda para inspeção e controle já no
ramo de Parati, denunciam tal movi­mento.1
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo
A vila de S. Luís do Paraitinga foi localizada nessa
diretriz, à beira do rio que lhe emprestou o nome,
no limiar do último quartel do século XVIII, como
expres­são da tentativa do Morgado de Mateus de
reativar a produção da Capitania de São Paulo, então
restaurada e posta sob o seu comando ambicioso
e progressista.2 Cunha e Paraibuna, São José dos
Campos, Vila Bela da Princesa e Caraguatatuba,
na banda norte de São Paulo; Atibaia e Bragança,
na diretriz de Minas Gerais; Mogi Guassú e Mogi
Mirim e Campinas na diretriz do cami­nho de Goiás;
Piracicaba e depois Itapetininga, Fachina e Apiaí,
nos caminhos do sul; Sabaúna e Ararapira, no
litoral sul; nas baías de Paranaguá, Larangeiras e
Gua­ratuba; Antonina, Baraquessaba, Guaratuba
e Porto Novo de Cima; no planalto do sul, Santo
Antonio do Registro (Lapa), Iapó (Castro) e Nossa
Senhora dos Prazeres (Lages) 3, todas vilas fundadas
a partir do citado governante, como suporte de uma
pretendida revi­talização da produção e da área sob
o seu comando, incluindo-se nisso a perspectiva
ambiciosa configurada pela colonia militar de
Iguatemí. Embora tenha tomado paralelamente
iniciativas destinadas a garantir resultados positivos
para seus gestos de ambição: vigilância impla­cável e
cuidados inteligentes, como o do censo de popu­lação
que promoveu 4, graves percalços perseguiram as
ações do Morgado. Porto Novo de Cima representa
um retrato de tais percalços: vila fundada e municiada
programa de pós-graduação do departamento de arquitetura e urbanismo
eesc-usp
129
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
com equipamento principal, igreja, cemitério, guias
nas calçadas, não teve condições de ser populada
porque o assoreamento do Nhundiaquara, que
lhe daria acesso fluvial, frustrou seu destino. Nesse
conjunto, as vilas da baixada paranaense visavam a
produção de farinha de mandioca, ou de pau, como
diziam, munição essencial para a guerra que estava
na mira do Morgado, preo­cupado com Iguatemi.
* O “Ensaio d’um quadro
estatístico da Província de
São Paulo” foi um amplo
levantamento da população
e das atividades econômicas
realizadas em São Paulo, feito
por Daniel Pedro Muller em
1937. (Nota da Risco)
5 DI, vol. LV, pág. 203. SAINT-
HILAIRE, Segunda Viagem a
São Paulo e Quadro Histórico
da Província de São Paulo.
Biblioteca Histórica Paulis­
ta, vol. VI, S. Paulo, 1954,
pág. 57.
6
MULLER (Daniel Pedro,)
Ensaio d’um Quadro Esta­
tístico da Província de São
Paulo, S. Paulo, 1923, págs.
125 e 130.
7
Cartório do 2o Ofício,
São Luís do Paraitinga, Livro
no.54, fl. 8.
8 DAESP, População, cx. 160,
ord. 160, anos 1814/1843,
mss. 1822.
9 Inventários, 2o Ofício,
São Luís do Paraitinga, ano
1828.
10 Inventários, 1o Ofício, São
Luís do Paraitinga, ano 1909,
doc. 1770.
11 Inventários, 1o Ofício, São
Luís do Paraitinga, doe. 1770,
fl. 25.
12 SAIA (Luís), Morada Paulis­
ta, col. “Debates”, ed. Pers­
pectiva, São Paulo, 1972,
págs. 165 e seguintes.
13 DAESP, População, cx.
159, ord. 159, mss. 1813,
2o Cia. de Ordenanças.
14
Livro de Vereanças, São
Luís do Paraitinga (18001814), fl. 24.
10 2[2009
Diversamente daquilo que ocorria na bacia de Pa­
ranaguá, as cidades paulistas fundadas pelo Morgado
de Mateus ganhariam substância com a produção
de açucar e cereais, num compasso de espera, até
que o café lhes trouxesse uma produção colonial
volumosa. Produção de açúcar e cereais, bem assim
um criatório ralo, apenas aqui e ali mais avivado pela
exportação de toucinho, queijo e fumo, e desta região
transportados para Taubaté e Ubatuba no lombo de
bestas, em bruacas, jacás e canudos5. Ao tempo do
Quadro Estatístico de Daniel Pedro Muller*, já bem
entrado o século XIX, no seu segundo quartel, com
a zona de Bananal, Areias, etc., plenamente invadida
pelos cafezais, e suas cidades florescentes, a área
de S. Luís oferecia o quadro de uma produção de
16.000 arrobas de café, com três fa­zendas principais
e mais duas distilarias de aguarden­te.6 O domínio
era completo para a produção de subsistência,
com pequeno excedente comerciável. A fisionomia
regional de “mar de morros” cobertos de matas
teria sido ligeiramente afetada pela abertura de
clareiras e de destruição pela coivara. É nesses
morros e aproveitando o humus dessas matas que
vai se instalar o grosso da produção cafeeira que
faria a riqueza de S. Luís do Paraitinga.
Dos testemunhos da primeira fase de instalação da
vila e de ocupação da região, restavam até pouco
tempo dois edifícios: a fazenda Pedro Alves e a
Igreja das Mercês, a primeira instalada a beira-rio,
a segunda no sopé do morro que constrangia o
âmbito urbano no redu­zido terrapleno existente,
aí, junto à calha do Paraitinga.
Um dos documentos mais antigos que se conseguiu
a respeito da fazenda Pedro Alves, data de 1809.
Trata-se de uma escritura de compra e venda de
terras na paragem Santa Cruz, “que Principiam
aonde se acabam as terras de Salvador Alves”.7
Este Salvador Alves (Ferreira), que aparece como
proprietário de um enge­nho8 e cujo inventário, de
1828, menciona “casas de citio com benfeitorias
engenho que foi visto e ava­liado”9, e era pai
de outro de mesmo nome, por sua vez, pai de
Pedro Alves Ferreira, e cuja mulher, Ana Joa­
quina de Andrade, falecida em 11-9-1908, levou
ao inventário que refere “uma chácara além da
ponte desta cidade”. 10 No auto de avaliação
correspondente vem mencionada “uma chácara
onde reside o cidadão Pedro Alves Ferreira (...) no
bairro do Turvo”. A casa de morada dessa chácara
— isto vem igualmente mencio­nado — era “toda
coberta de telhas, assobradada’, rela­cionando
ainda os móveis: “1 marqueza estreita,1 mar­queza
estragada, 1 mesa de jantar velha, 1 armário, 1
catre e 1 par de canastras velhas”. Esta residência
chegou a ser documentada pelo IPHAN em 1946,
época em que não havia mais sinal de engenho, mas
existia uma pequena capela para cujo patrimônio
o inventário de 1909 deixa “uma reserva de vinte
braças”.11 Jamais me perdoarei não ter promovido
seu tombamento. Devia te-lo feito, em que pese
se tratar de uma peça de interesse estritamente
regional.12 Foi demolida há uns 10 anos.
A capela das Mercês foi documentada numa história
manuscrita, de autor desconhecido, que existe no
Museu de São Luís do Paraitinga: “Relato da História
de São Luís do Paraitinga de 1686 a 1913”. No
capítulo — Edifícios — se lê: “Capella das Mercês
— Em 1808 chegaram a villa nova de S. Luís a
velhinha Maria An­tonia dos Prazeres e uma filha por
nome Izabel que vinham da villa de Guaratinguetá
para rezidirem aqui — Maria Antonia trouxe uma
imagem de N.S. das Mercês (...) Em 1809 Nha
Antonia ajudada pela família Pe­reira e devotos,
começaram a edificar a Capella (...) e em 1814 foi
inaugurada”. Tal relato vem sofrer cor­reções pelos
textos de documentos oficiais onde, num deles, de
1813, encontramos Maria Antonia dos Prazeres, aos
62 anos de idade, morando no Bairro da vila onde
vivia das agências de seu filho, e com 2 escravos,
dada como natural de “Caithé” (Minas Gerais).13
Por outro lado, a Capela das Mercês seria, na
verdade, anterior à data “tradicional”, posto que
já em 1801 aparece uma reclamação respeitante
ao “esgoto das agoas que empedem a servidão
do povo na Rua que vai da ponte para a capella de
Nosa Senhora das Merses”.14 Além disso, d. Maria
Antonia aparece como “Protetora da Senhora das
Mercês”, requerendo à Câmara “um pedaço de
terreno para ajuda do Patrimonio da mesma Senhora,
ao que se deferiu concedendo-lhe seis braças de
referência
130
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
15
Livro de Vereanças, São
Luís do Paraitinga (18001814), fls. 242, 242v, 250 e
250v, ano de 1814.
16 “Lançamento da Receita
da Dessima dos Predios Ur­
banos da Vila de São Luís,
para o Anno finansseiro do
1o de julho de 1841, a 30
de junho de 1842”, rua da
Quitanda, n. 17.
17
Inventários e Testamen­
tos, Cartório do 1o Ofício,
São Luís do Paraitinga, ano
de 1840.
18 Inventários, Cartório do 1o
Ofício, São Luís do Paraitinga,
ano de 1846, fl. 22.
terreno” e mais, que atentando à segurança da dita
igreja, queria-se fazer o corredor dela.15 Embora tal
capela tenha sido objeto de reformas sucessivas e
desfiguradoras, mantem sua validade integral, do
ponto de vista de referência certa para análise da
estrutura urbana.
Como testemunho do período anterior ao café
deve ser mencionado ainda o sobrado da Praça
(Osvaldo Cruz no 2) atualmente desfigurado por
uma platebanda com ameias. Na décima urbana de
184116 se encon­tra o fogo de Manoel José Pereira,
cujo testamento (1840) conta que tem casa de
sobrado no centro da vila17 e cujo inventário, de
1846 cita “umas mo­radas de casas de sobrado
com seis portas na frente, três em baixo, três
em cima citas na rua da Quitanda em o largo da
Matriz”.18 Tal sobrado tem um pé direito de 6,40
m. pelo que se distingue dos demais sobrados
que obedeciam as posturas de 1834 e 1854 que
man­davam:
Postura de 1834 — art. 1o
“os edificios serão levantados de taipas, madeiras
ou pedras, e as casas terreas terão dezoito palmos
de altura para cima, e as de sobrado 34 ...“
Postura de 1854 — folha 20 — § 1o
19 Livro de Provimentos Ge­
rais, posturas da Câmara e
contratos, ano de 1834, fol.
16, art. 1o; e ano de 1854,
fl. 20, §1o .
20
DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx. 470,
ord. 1265, ano de 1835.
21
Livro 1o do Tombo, São
Luís do Paraitinga, fl. 13.
“os pés direitos nunca terão menos de 18 palmos
da soleira à sacada do telhado, e sendo de sobrado
poderão ter os pés direitos de 16 palmos sendo
sempre as soleiras levantadas da terra pelo menos
1 palmo, e calçada de pedra”.19
Os edifícios citados, a igreja do Rosário, a matriz,
a casa de Câmara e Cadeia (cujo local primitivo
se sabe qual era), o próprio rio que tangencia a
Cidade, e as ruas que podem ser identificadas por
tais elementos confrontados com a documentação
primária encontrada, são pontos fixos que servem
à identificação dos imóveis e dão as indicações
suficientes sobre a estrutura urbana de São Luís
do Paraitinga.
O termo de ereção da vila, de 31 de março de
1773, conta que se levantou o pelourinho, “um
madeiro grosso quadrado e Lavrado de quatro
faces de pau de Lei chamado de peroba, com
quatro braços em cada face, e um cutelo no alto do
10 2[2009
remate olhando para Oeste na forma determinada
pela Lei, e Ser aquele Lugar des­tinado o melhor
por ficar fronteando todo o Circuito da Praça por
se achar esta Vila fundada Tantos as ruas como a
arrumação das casas pela direção que mandou o
mesmo Ilustríssimo, e Exmo. Senhor que em tudo se
Seguio pela admirável formalidade com que o mesmo
Ilustríssimo Sr. com a Sua doutissima idéia fundou
no seu pensamento tão acertada, e justa fundação a
qual se acha já com Cinqüenta, e duas Casas, além de
varios Lugares Limpos para Se Levantarem avultado
número de Casas pelo gosto, e alegria em que na
dita Vila se querem Estabalecer todos os Povoadores
pela festividade de terras, e alegria do terreno, e
Saude que nele logram todos até o presente Cousa
maravilhosa que em três anos perto de quatro não
tem havido molestia em todos os Povoadores, e
Suas familias que lhes tenha causado Despesa em
procurar, medicinas e o dito Pelourinho fincado
olham as duas faces de Norte a sul, e outras duas
de Leste, a Oeste, e fazendo o dito Pelourinho Pião
o dito Juiz fundador, e administrador, a beneplacito
de todos os Povoadores, consignou de Rocio, a dita
Vila correndo pelo Rio abaixo seiscentas braças no
Rumo do Sul Sudeste, e quatrocentas braças do
Pelourinho para Cima do Rumo norte nordeste, e
do mesmo pelourinho para Leste oeste duas mil
braças para reditos do con­selho dando-se de foro a
quem as quiser ficando Livre e sem pensão alguma,
as Casas que Se quiserem fazer com seus fundos
para Quintais, tudo em virtude da mesma Portaria
que a ele Juiz fundador, e administrador foi enviada
pelo mesmo Ilustríssimo, e Exmo. Sr. Ge­neral desta
Capitania...”20
A ereção oficial da vila, expressa pelo documento
citado, representou uma correção da situação de
fato existente, posto que já contava a localidade
com 52 casas. Tanto tais habitações como as
daqueles que em 1772 pedem um pároco que lhes
administre sacramentos e que são povoadores do
sertão21, nada indica que esti­vessem alinhadas de
acordo com alguma norma ou idéia de conjunto,
previamente estabelecida. Que os povoadores,
de início estabelecidos na paragem, não estariam
dispostos numa situação semelhante ao que se
poderia chamar de arcabouço urbano, há sinais
seguros, inclusive e principalmente o próprio rigor
com que posteriormente são tratadas as questões do
alinhamento. O que se vê, por volta de 1780, quando
a Câmara é solicitada pelo governo da Capitania
referência
131
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
22
Livro de Vereanças (17761785) e Rematações (17771792), São Luís do Paraitinga,
fl. 48v.
23
Idem, fl. 32v, ano de
1778.
24
Livro 1o do Tombo, São
Luís do Paraitinga, fl. 74, ano
de 1774.
25
DI, vol. LXIV, págs. 79 e
95.
26 DAESP, Ofícios das Câma­
ras de Lorena, São Luís, Uba­
tuba, etc., anos 1721/1822,
cx. 7, ord. 233, doc. 7-3-24.
27
Livro do Registro Geral da
Câmara, São Luís do Paraitin­
ga, 1828/1873, fl. 148.
28 DAESP, Ofícios das Câ­
maras de Lorena, São Luís,
etc., 1721/1822, Pasta 3,
doc. 7-3-19.
29
Autos de Requerimentos,
Cartório do 1o Oficio, São
Luís do Paraitinga, ano de
1801, fl. 16v.
30
DI, vol. LV, pág. 83.
31
Livro do Registro Geral
da Câmara, São Luís do Pa­
raitinga, 1828/1873, fl. 155
(22.10.1838).
32
Livro de Atas da Câmara,
São Luís do Paraitinga (18291839), fls. 29, 29v, 37v a 44,
85, 86v e 87.
33
Idem, fl.
(21.11.1833).
120v
34 DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx.
471, ord. 1266, Pasta de
1839, ofício de 12.8.1839.
35 Inventários, Cartório do 1o
Ofício, São Luís do Paraitinga,
ano de 1840 (testamento),
fl. 2 e 3.
10 2[2009
a “Respeito de poder haver ou não capitam mor”
na vila, é a informação de que “nesta vila não há
carencia de Capitam mor pela decadencia da mesma
villa porque nesta villa só se achão dez cazas de
telhas fechadas e tres cubertas de capim e as mais
com seos Esteios fincados desde o principio da villa
e não podem Redificar nem Levantar...”22 E nesses
nove ou dez anos depois de fundada a vila e aberto
um caminho novo que alcançava a povoação pelo
rio abaixo, com ponte sobre o Turvo (sic), caminho
esse que ainda aparece numa planta de 1850, surge
um pro­blema com os moradores do caminho velho,
“o primeiro por onde se começou esta povoação”23:
fora tran­cado por um tal Vicente Ferreira, com
prejuizo para os 12 moradores aí estabelecidos.
Uma petição do vigário da vila protesta contra a
situação emergente.
Esta correção da instalação original dos colonos é
coisa comum na vida colonial e povoa a história com
expressões como caminho novo, vila velha, etc. No
pre­sente caso, de vilas fundadas por iniciativa do
governo e segundo uma idéia preestabelecida de
colonização — e este é o caso específico do Morgado
de Mateus — a racionalidade que transpira no texto
do termo de ereção de São Luís, representaria um
reflexo do iluminismo europeu que desembocaria
na revolução francesa e que povoaria a cabeça de
um estudioso como Luís Antônio de Souza Botelho
Mourão, o Morgado de Mateus. Antes do século
XVIII, salvo uma ou outra iniciativa do go­verno
metropolitano, e em contraposição ao que acon­
tecia na América Espanhola, onde a colonização era
orientada pelo espírito organizado das Leis das Índias,
a formação das cidades brasileiras era matrizada
pelo empirismo da geografia, do sítio escolhido, da
topografia e do rendimento imediato da instalação.
O virus ins­tilado pelo racionalismo do Morgado de
Mateus perse­guiu a vila de São Luís do Paraitinga,
onde se estabe­lece uma luta surda entre o que os
dirigentes chamam de “elegância” da praça, das ruas
e da cidade, e o interêsse imediatista dos moradores,
sempre dispostos a se aproveitar das circunstâncias
para receber um qui­nhão mais refarto da situação
urbana. Em 1774, um ano apenas depois de ereta
a vila o Juiz Medidor Manoel Antônio de Carvalho
baixa um edital em que faz saber “a todas as pessoas
que tem tomado chãos de terra para fazer casas
e as não tem levantado dentro de três meses as
ponham cobertas e do Contrário se dará a quem as
queira levantar principalmente nas ruas principais e
nos cantos das próprias ruas”.24 O que aconteceu
com a praça e o adro da matriz, cujo acaba­mento
se prolongou por toda a primeira metade do século
XIX, é uma expressão dessa luta.
A matriz, provalvemente edificada em termos
pre­cários desde a primeira hora25 foi uma das
preocupações da cidade. Ao fim do governo de
Bernardo de Lorena, por 1797, pretendendo-se
“fazer nova Matriz, por ser a antiga muito pequena,
da creação da Vila, e já arruinada, o Reverendo Vigario
daquele tempo fez abolir o corpo da Igreja, em razão
de alargar o terreno para a nova, deixando somente
a Capela Mor: e dando-se princípio às paredes de
Taipa, se não pôde conseguir pela incapacidade da
terra, perdendo-se o que se achava feito...”26 Com
lugar previamente destinado27, ainda em 1800, os
vereadores se declaram consternados principalmente
pela falta de Matriz e “obrigados / grande parte
dos mesmos / a assistirem ao Sto. Sacrifício da
Missa expostos ao Rigor do Tempo”.28 Em 1801, o
“colono e Povoador” Antônio Domingues de Castro,
português casado em Sabará, declara que trabalhara
como pedreiro (que era seu ofício) na construção
da matriz.29 Em 1803, numa carta à Câmara de
São Luís, o governador Franca e Horta proteje
a construção da nova matriz assegurando “não
mandar fazer ali nenhum recrutamento enquanto o
Povo nela trabalhar, e a nossa Monarquia estiver em
Paz”.30 Esta segunda tentativa foi depois demolida
“por ser superior às forças do Povo”.31 Em 1830 se
decide afinal sua recons­trução.32 Três anos depois,
a quem pede uns chãos no local, a câmara resolve
que somente depois de demar­cada a nova matriz,
para o que o povo já aplainara o terreno, é que isso
deve ser resolvido.33 Em março de 1839, “em virtude
do mandado da Camara Municipal, e por resolução
da mesma, e em cumprimento do Oficio do Exmo.
Senhor Governador desta Provincia, em data de 18
de dezembro de 1838 (...) para efeito, de se proceder
na Demarcação do Adro, que deve ficar livre, para a
Elegancia da Igreja Matriz, e Pateo principal (...) foi
determinado ao Arruador Antonio Mariano Bueno,
que procedesse ao Alinhamento, seguindo a linha
da Rua do Império, a entestar com a Rua Lateral do
Rosario, e que de parte da Rua da Praça seguisse
o Ali­nhamento das casas do falecido Cap. Mor
Joze Gomes de Gouvêa a entestar com a mesma
Rua do Rosa­rio...”34 Em 1840, no inventário de
Manoel José Pereira, se lê: “deixo para a coberta da
Igreja Matriz desta Vila que se está principiando...35
referência
132
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
36 Livro de Provimentos Ge­
rais, posturas, e contratos da
Câmara, São Luís do Parai­
tinga, ano de 1831, fl. 10,
art.o 12.
37 “‘Relato da História de São
Luís do Paraitinga de 1686 a
1913” (manuscrito), capítulo
— Edifícios.
38 Livro de Vereanças , São
Luís do Paraitinga (18151829), fl. 215v e 225v, ano
de 1827.
39
DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx.
470, ord. 1265, ano de
1828.
40
Livro de Atas da Câmara,
São Luís do Paraitinga (18291839), fl. 276 (12.5.1839).
41
Livro de Atas da Câmara,
São Luís do Paraitinga (avul­
so), de setembro de 1849
a dezembro de 1850, fl. s/
no, 5o sessão, de 5.4.1850;
e Livro da Atas da Câma­
ra, São Luís do Paraitinga
(1841-1867), anos de 1841,
1857, 1860, 1861, 1862, respectivamente fls. 12, 55, 131,
135v, 136, 177 e 188v.
42
Livro de Atas da Câma­
ra, São Luís do Paraitinga
(1841-1867), anos de 1863
e 1867, respectivamente fls.
204 e 387v.
43 Papéis avulsos, Câmara de
São Luís do Paraitinga, ofício
de 18.4.1871.
4 4 T e s ta m e n t o s , C a r t ó ­
rio do 2. Ofício, São Luís
do Paraitinga, Livro n. 54,
anos 1809/1812, fl. 76, ano
1811.
45
Livro do Registro Geral da
Câmara, São Luís do Parai­
tinga (1806-1826), fl. 127,
registro de carta de data, de
7.8.1815.
46
DAESP, Poder Judiciário,
Juízes de Lorena, Areias, Gua­
ratinguetá, etc., Pasta 2, doc.
74-2-5 (de 6.4.1784).
47 Livro de Registro de Cartas
de Data de Terras, São Luís
do Paraitinga (1816-1910),
registro de 4.2.1834.
48 DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx.
471, ord. 1266, Pasta de
1849 (of.o de 8.11.1849)
e Pasta de 1850 (Of.o de
6.4.1850).
10 2[2009
Outros documentos manifestam igual preocupação
de liberar a envoltória da igreja, a fim de preservar
sua postura.36 Já em fins do século passado a igreja
matriz, então construída, recebeu novo tratamento
arquitetônico37, mantendo entretanto o local, porém
não a posição que a definira no início da vida de
São Luís.
O mesmo não ocorreu com a casa de Câmara e
Cadeia. Essa mudou de lugar, pulando da frente da
igreja para um lugar que seria a trazeira do templo,
se este permanecesse com o frontespício voltado para
o Sul. Na verdade, uma vez decidida a nova direção
deste frontespício, voltado para Oeste, houve um
remaneja­mento geral do binário matriz-praça e foi
em função deste novo arranjo que se configurou
o centro principal de São Luís. Essa cadeia estava
atrás do pelourinho, indicam antigos documentos.38
Para esta construção, o governo provincial enviou
à Câmara de São Luís, em 1828, um projeto.39
Mas ainda em 1839 a cadeia estava funcionando,
provisoriamente, muito distante do centro, “sem
comodidade alguma para os presos e guar­das, e sem
segurança alguma”.40 Numa reunião da vereança,
em 1850, o assunto da cadeia foi discutido: sua
construção estaria arrematada “de quatro para cinco
anos e não se acabava, o que somente ocorreu em
186041, para ser destruída por uma enchente em
1863.42 Para a sua reconstrução, já agora na outra
banda da matriz, a Câmara recebeu novo projeto,
em 1871. Sobre esta matéria a Câmara envia ao
Presidente da Província, em 18-4-1871, um ofício
que diz: “Tendo a Camara Municipal desta Cidade
resolvido em sessão de hoje dar principio às Obras
da Cadeia, e conside­rando que não pode ela ser
Edificada no lugar onde existiu a antiga por ser
sujeita às inundações do rio que circula esta Cidade,
e atendendo ao Conselho de V. Exa.; resolveu
tambem comprar os terrenos perten­centes ao Tte.
Flavio José de Toledo com as paredes existentes e
madeiramentos, bem como os terrenos per­tencentes
aos herdeiros do finado Padre João Roiz de Morais
anexos a aqueles, situados ao lado da Igreja Matriz
desta mesma cidade e em lugar elevado e proprio
para edificios semelhantes, pela quantia de 4:000$
rs., sendo tres contos e setecentos pelo terreno e
casa do dito Toledo, e 300$000 pelos outros...”43
Este edifício, cujo projeto se encontrou, com a
respectiva memória, foi demolido em época recente
para que em seu lugar se construísse um Centro
de Saúde.
A igreja do Rosário, cuja posição e acesso (ruas)
constituem outros dados fixos e sabidos para a
análise da estrutura urbana de São Luís, teve a sua
primeira instalação na segunda década do século
XIX. Em 1811, na declaração de última vontade de
Ignês Ferreira de Castilho se lê: “que seu marido
Francisco Jorge dos Santos Logo que ela falecesse
tomasse posse de (...) seis escravos, e um Citio,
e Casas da Vila, e umas ca­beças de gado, e tres
cavalos, e duas salas, e um forno de Cobre e duas
Panelas de ferro, e um tacho, e um Nicho com
quatro imagens, uma Balança com oito libras de
peso duas caixas, e o que mais houver (...) fazendo
sepultar seu corpo na Capela de Nossa Senhora
do Rosario caso no tempo de meu falecimento ja
esteja Benta, e se não estiver sera na Matriz desta
Vila...”44 Já em 1815, o registro de uma carta de
data de terras menciona a “nova rua que vai do
Rosario para as Mercês”45.
Além destes pontos documentadamente bem locali­
zados, e de outros como as pontes antiga46, que apa­
rece na planta da cidade de 1850, e a nova que neste
gráfico é indicada como pretendida, os problemas de
datas de chãos cujas confrontações esclarecem sobre
os proprietários e construções, as próprias ruas se confi­
guram como dados fundamentais para a marcação da
estrutura urbana. Nessa época, 1850, praticamente
a dis­ponibilidade local de áreas para construir estaria
esgo­tada, inclusive com o aproveitamento de locais
alcanti­lados, como o da residência em que depois morou
Osvaldo Cruz e que existia em 183447, dada inicialmente
como prédio rústico destinado à agricultura, mas que
originou uma rua chamada Boa Vista. Dessa ocupa­
ção intensiva partiu certamente o morador Rochalles
de Souza e Silva para uma tentativa de lotear o outro
lado do rio Paraitinga.48
As ruas fundamentais para a marcação da estrutura
urbana foram:
1) Rua da Ponte. Provavelmente vinculada ao ca­
minho de Ubatuba, desde o início da Vila é chamada
rua da Ponte49 (que assistia na sua extremidade
noroeste), ou, por vezes, de Mercês, como num
do­cumento de 1834.50 Em 1859 é nomeada rua
Di­reita51 e com este nome vai até 187352, para, no
ano seguinte53, receber o nome de 31 de Março,
com que prossegue por muito tempo.54 Atualmente
é a rua Cel. Domingues de Castro, como sempre a
saída principal para Ubatuba.
referência
133
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
49 Escrituras, Cartório do 2o
Ofício, São Luís do Paraitinga
Livro no 54, anos 1809/1812,
fl. 97, ano 1812.
50 Livro de Registro de Cartas
de Data de Terras, São Luís
do Paraitinga (1816.1910),
registro de 4.2.1834.
2) Rua do Rosário. Aparece invariavelmente com
este nome55, embora sua denominação seja por
vezes tumultuada pelo fato de ser indicada como
levando às Mercês.56 Com a abertura da rua dos
Fazendei­ros57 foi prolongada para além da rua da
Ponte, che­gando até as margens do Paraitinga. É
a atual rua Monsenhor Gióia.
51
Escrituras, Cartório do 2o
Ofício, São Luís do Paraitin­
ga, Livro no 48, fl. 14, ano
1859.
52
Escrituras, Cartório do 2o
Ofício, São Luís do Paraitin­
ga, Livro no 23, fl. 73, ano
1873.
53
Escrituras, Cartório do 2o
Oficio, São Luís do Paraitin­
ga, Livro no 55, fl. 7v, ano
1874.
54 Livro de Provimentos Ge­
rais, posturas, e contratos da
Câmara, São Luís do Paraitin­
ga, fl. 184v, ano de 1895.
55
Livro do Registro Geral da
Câmara, São Luís do Parai­
tinga, (1806-1826) fl. 127,
registro de carta de data de
terra, de 7.8.1815; Escrituras,
Cartório do 2o Ofício, São
Luís do Paraitinga, Livro no
66, fl. 26, ano 1894.
56
Escrituras, Cartório do 2o
Ofício, São Luís do Paraitin­
ga, Livro no 5, fl. 110, em
18.5.1838.
57
Livro de Atas da Câma­
ra, São Luís do Paraitinga
(1841-1867), fl. 24v, sessão
de 19.6.1855.
58
Papéis Avulsos, Câmara
de São Luís do Paraitinga,
ofício de Fiscal da Câmara aos
srs, vereadores, de 4.7.1832;
e Atas da Câmara (avulso)
de maio de 1842 a abril de
1843, fl. s/n. 4a sessão ordi­
nária demaio de 1842.
59
Inventários, Cartório do
2o Ofício, doc. 1283, fl. 52,
ano 1886.
* Palmo: antiga medida de
comprimento corresponden­
te a 8 polegadas ou 0,225
m. Cf. Corona & Lemos;
Dicionário da Arquitetura
Brasileira. São Paulo: Edito­
ra e Distribuidora Art Show
Books Ltda., 2ª ed., 1989.
(Nota da Risco)
10 2[2009
3) Rua da Cadeia ou Beco da Cadeia58, depois
nomeada rua D. Pedro 11 59, sendo atualmente
deno­minada rua 31 de Março. No plano primitivo
da cidade, aí foi instalado o pelourinho, a cadeia
ficando atrás, com frente para a matriz. Foi
também denominado Largo da Forca60, e Largo
da Cadeia61, no espaço mais largo que ficou livre
com o remanejamento geral desta quadra. Este
Largo da Forca, depois da União62, e agora Largo
Euclides Vaz de Campos, na Décima Urbana de
1841 não aparece.
4) Rua do Comércio. Em documento de venda
de casa, de 1811, já comparece, como rua da
Quitanda.63 Na Décima Urbana permanece o nome,
depois conver­tido em rua do Comércio.64 Começava
ao “pé da ponte” que rematava a rua da Ponte65 e
terminava no ponto que depois se aproveitou para
a construção da ponte nova — o chamado beco
do Império66 — con­forme pretensão exarada na
planta de 1850.67
5) Rua da Praça. De ambos os lados do Páteo ou
Praça da Matriz.68 A definição do Adro e das ruas que
ladeiam a igreja matriz foram objeto de pendência.
Em 1833, alguns interessados reiteram o pedido
de chãos aí, cada um deles “cinquenta palmos de
terreno, entre o lugar designado para matriz, e a
nova cadeia”.69 A Câmara reunida em 21-11-1833,
resolve “que depois de principiada, ou demarcada
a nova matriz voltassem para serem deferidos”.70
Efetivamente a matriz pri­mitiva teria seu eixo a
900 do atual, ficando livre um espaço entre ela e a
cadeia-pelourinho. A pretensão era simplesmente
ocupar esse intervalo, “entre o lugar desig­nado para
matriz e a nova cadeia”. Três anos depois, apesar
da oposição de outros proprietários, antigos donos
da situação política, já se havia feito um movimento
de terra no sítio do terreno “aplainado pelo Povo,
e des­tinado para a obra da Igreja”71, e mudado a
direção do templo, conforme trata um documento
justificativo: “Acontece que há longos anos Foi feito
um desaterro pelos Povos para nele plantarem, a
Matriz, o que não conseguiram, Sim de presente é
mudada sua direção tem principiada a Capela-mor,
e Corpo da Igreja ja mar­cado, e restam do alem
do Pateo que deve ficar, aos lados da mesma uma
porção de terreno que admite dois alinhamentos
de Ruas (...) houveram varios requeri­mentos de
Cidadãos, pedindo Datas para, edificarem suas
casas que muito Servem para formosiar, a praça,
mesmo delas pagarem emolumentos à Nação...”72
Resol­vida a mudança, houve larga distribuição de
terrenos a parentes e amigos. Mais tarde, em 1838,
o sr. Castro, que naturalmente votara a favor dos
pretendentes, retira o voto que dera em favor de
seus íntimos.73 Estou­rado o escândalo, sugere-se
cometer ao Presidente da Província a tarefa de
resolver o assunto, instruindo a informação com
os pareceres do pároco e do fabriqueiro da matriz,
a fim de que se resguarde “toda a elegancia do
Pateo principal deste Municipio”.74 Como sem­
pre, agiam os açodados interessados, alegando
urgência na construção de suas moradas. Por
um ofício dirigido pela Câmara ao Presidente da
Província se verifica que todos os requerentes tem
moradas na cidade, “exceto o padre (Morais) e
José Basilio, este até ja não mora neste Municipio,
por se ter mudado para o de Uba­tuba75, todos
empenhados em “distrair a atenção do fim a
que esta Camara se dirige, que é não consentir
que com tais edificios se tolha a vida e elegancia
da Praça que fica de fronte do Frontespicio que
deve ter a Igreja principiada porque a Praça que
os suplicantes denominam — Pateo —, com 330
palmos* de comprido e 310 de largo, fica muito
mais baixa que o nivel do pequeno Adro da Igreja
e por isso não se deve con­fundir a dita Praça com
o Adro, como pretendem os suplicantes”. 76 A
Câmara cassou os títulos conce­didos.77 A muito
custo se conseguiu uma reserva de terrenos nos
laterais da igreja matriz, em que pese o desfavor
de, cedidos tais terrenos, a terra para as taipas
terem que vir de longe.78 Afinal em 1839 foi o
ter­reno demarcado, em “virtude do mandado da
Camara Municipal e por resolução da mesma,
e em comprimento do oficio do Exmo. Senhor
Presidente desta Provincia, em data de 18-121839”.79 Para rematar o fato con­sumado aparece
outro documento: um requerimento do Cap.
José Lopes Figueira de Toledo, e outros, pedindo
a “demarcação dos terrenos que lhes foram
concedidos, no Lado esquerdo do Pateo da Igreja
na conformidade da Portaria de 5-3-1840”.80
referência
134
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
60
Relatto da Historia de São
Luís do Paraitinga de 1686 a
1913, § “Edificios”.
61
Idem.
62
Escrituras, Cartório do 2o
Ofício, São Luís do Paraitinga,
Livro no 26, fl. 31, ano 1879.
63
Escrituras, Cartório do 2o
Ofício, São Luís do Paraitin­
ga, Livro no 54, fl. 63, ano
1810.
64
Escrituras, Cartório do 2o
Ofício, São Luís do Paraitin­
ga, Livro no 57, fl. 47, ano
1861.
65 Inventários, Cartório do 2o
Ofício, São Luís do Paraitinga,
doc. 783, fl. 10v, ano 1868.
66
Escrituras, Cartório do 2o
Ofício, São Luís do Paraitinga,
Livro n. 55, ano 1874.
67
DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx.
471, ord. 1266, Pasta de
1850 (Of. de 6.4.1850).
68 “Lançamento da Receita
da Dessima dos Predios Ur­
banos”, ano de 1841.
69
Livro de Atas da Câmara,
São Luís do Paraitinga (18291839), fl. 120v, sessão de
21.11.1833.
70
Idem, idem.
71
Idem, fl. 39v a 43v, ano
de 1830.
72
Livro de Registro Geral da
Câmara, São Luís do Parai­
tinga (1828-1873), fl. 303,
ano 1836.
73
Livro de Atas da Câmara,
São Luís do Paraitinga (18291839), fl. 255v, sessão de
27.8.1838.
74
Idem, idem.
75
Livro do Registro Geral da
Câmara, São Luís do Paraitin­
ga (1828-1873), fl. 148.
76
Idem, idem.
77
Livro de Atas da Câmara,
São Luís do Paraitinga (18291839), fl. 255v, sessão de
27.8.1838.
78
DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx.
471, ord. 1266, Pasta de
1839 (Of. de 12.8.1839).
10 2[2009
Em conseqüência desta mudança, o terreno da ca­deia
ficou separado do espaço inicialmente estabelecido
como área livre. A cadeia teria que ocupar outro
terreno, como realmente ocorreria, à esquerda da
matriz.
Ao tempo do lançamento da Décima Urbana, em
1841, a cidade estava portanto com a sua estrutura
armada, inclusive com a rua do Catumba, atual rua
do Carvalho, que era simétrica da rua do Rosário
no acesso a esta igreja.
Na rua Boa Vista, no topo da qual se estabelecera,
a partir de 1826, o Ajudante Joaquim José Ferreira,
na casa em que futuramente nasceria Osvaldo
Cruz, aquele morador relutou em se considerar
participante da órbita urbana. Seus cafés (6.000 pés)
e plantações, o alcan­tilado do sítio que escolhera,
e o que teria que pagar em função dos escravos e
produção, pretendia que o eximissem das obrigações
de contribuinte urbano. Em­bora, é claro, levasse as
vantagens da cidade ali aos seus pés.82
Em 1841, pela Décima Urbana, era a seguinte a
ocupação da área da cidade, traduzida em ruas e
nú­mero de prédios correspondentes a cada uma
delas: Rua da Quitanda, 33; rua da Praça, 13; rua
da Ponte, 49; rua do Rosário, 37; rua do Catumba,
45; rua da Boa Vista, 1.83 Em 1844, por um ofício
do Juiz de Paz ao Pres. da Província, se sabe que,
na vila, dividida em quarteirões, o número de
fogos era o seguinte: 1o quar­teirão, 100 fogos; 2o
quarteirão, 64 fogos; aditamento, 16 fogos.84 Foi
provavelmente nessa época que a região foi tomada
pela cultura do café, em que pesem aqueles 6.000
pés de café do Ajudante J. J. F erreira, em 1840.
Em 1852, com uma produção de 6.000 arrobas,
as maiores fazendas de café seriam as seguintes: a
do padre João Roiz de Morais, a do alferes Manoel
Pereira de Castro, a do ajudante Luís Gomes de
Gouvêa e a do Cap. mor José Lopes Figueira, as
quais “vão seguindo sofrivelmente”.85 A atual
sede da fazenda Pinhei­rinho, cujos elementos
construtivos e organização do espaço a aproximam
da sede da fazenda Pedro Alves, pelo que deve
ser interpretada, pelo menos por enquanto, como
sede de antigo engenho do início do século XIX,
teria sido igualmente sede de uma fazenda de café.
Caso comum, de resto; antigo engenho aproveitado
para a cultura do café.86
Das informações encontradas depreende-se que na
década de 40 da centúria passada, a estrutura urbana
de São Luís já estaria inteiramente moldada, com ruas
e logradouros perfeitamente definidos, bem assim os
dife­rentes setores da cidade já caracterizados na sua
função citadina. Pouca coisa do que aconteceu dessa
época em diante foi capaz de introduzir modificação
sensível; nem os sumidouros que surgiam nas ruas
sem calçamento87, nem a feitura de uma ponte sobre
o rio Paraitinga em nova localização.88 O páteo da
matriz repartia com a rua da Ponte, a preferência
para as melhores habita­ções.89 Nem mesmo a
abertura de uma rua Nova, entre a rua da Ponte
e o rio, paralela àquela, a rua nova Municipal, ou
rua dos Fazendeiros, nem mesmo essa mudança
veio atingir a estrutura já estabelecida. Apenas lhe
acrescentou uma nova testada para construções.
Para a abertura da rua dos Fazendeiros foi necessário
der­rubar pelo menos uma casa que ficara fora do
novo ali­nhamento, a do morador Lourenço José
da Cunha, o qual por isso pede 20 mil réis de
ajuda para a Câmara, nume­rário esse necessário
para reconstruir sua habitação, em 1858.90 Nessa
rua dos Fazendeiros se instalou o Mercado cuja
construção é anterior a 1879, posto que comparece
no inventário desse ano da Baronesa de Pa­raitinga,
como confinante de casas dela.91 O Mer­cado atual,
no mesmo lugar, data de 1902.
É claro que nem o desenho da cidade resultante
representa uma reprodução fiel daquele racionalismo
hipodâmico que povoaria a cabeça do Morgado
de Mateus, posto que alguma modificação foi
introduzida pelas con­d ições particulares dos
povoadores de São Luís, como se verifica pelo que
houve nos casos da matriz e da cadeia, ou pela
introdução tumultuária de um edifício como o da
igreja das Mercês, nem equivale ao predo­mínio
completo daquele empirismo que fazia as cidades
brasileiras serem literalmente desenhadas pelos
caminhos e cruzamentos.
Do ponto de vista da arquitetura que encheu a
ci­dade de São Luís há influências visíveis a olho
nu. In­fluência da longínqua Côrte, que faz os mais
abastados optarem pelo partido de sobrado, em
construções cujo andar térreo era relegado às funções
de acesso e depó­sito, desprezo este ao qual não
seria estranho o perigo de enchentes, como aquela
que inutilizou a cadeia, em 1863. A qualificação de
status por via de residências pretenciosas era uma
referência
135
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
Figura 1: Planta do centro
da cidade. Desenho a mão.
Fonte:
79
Idem, idem.
80
Livro de Atas da Câmara,
São Luís do Paraitinga (18411867), fl. 12, 4a sessão de
8.7.1841.
81
Livro de Vereanças, São
Luís do Paraitinga (18151829), fls. 206v e 207, ano
de 1826.
82
DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx.
471, ord. 1266, Pasta de
1840 (Of. de 16.3.1840); e
cx. 470, ord. 1265, Pasta de
1838 (Of. de 15.10.1838).
83 “Lançamento da Receita
da Dessima dos Predios Urba­
nos...“, ano de 1841.
84
DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga cx.
471, ord. 1266, Pasta de
1844 (Of. de 7.9.1844).
85
DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx.
ord. 1267, Pasta de 1852 (Of.
de 17.3.1852).
10 2[2009
condição da classe dirigente do segundo reinado,
o que fazia cada cidade pretender ser a Côrte, na
observação de Zaluar.92 Atrás dessa influência da
Côrte estava a experiência da arquitetura urbana de
Minas Gerais, modelo disponível, seja pela presença
dos próprios mineiros, seja porque havia ca­rência de
outros modelos. Não se deve esquecer con­tudo que
a região do vale do Paraiba representa na arquitetura
paulista a área de encontro dessa influência mineira
aliada, especialmente na arquitetura do café, com
a experiência dos engenhos da baixada fluminense,
e a taipa de pilão. Especialmente nas cercanias
dos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, as
construções mais antigas, do começo do século
XIX, têm um esquema construtivo baseado no
embasamento de pedra e parte superior de pau-apique ou adobe, e uma solução central de gaiola.
A sede da fazenda Pedro Alves denuncia influência
mineira, pelo partido geral, encostado no barranco,
com um pavimento de “sobrado”, dois alpendres
e acesso pela frontaria, estrutura em gaiola com
recheio de pau-a-pique, telhado com solução de
prolongo e organização do espaço interno, com
salas de travessia obriga­tória mas sem corredores.
O Salvador Alves Ferreira, que comprara as terras
e residia nelas93, aparece no recenseamento de
Ordenanças de 1805 como “soldado de a Cavalo”,
com 36 anos, solteiro, e planta para o consumo. No
ano seguinte, ele aparece “cazado de novo” com
Gertrudes Maria, como agricultor e miliciano, na
“esquadra do Ribeirão”. Em 1807 já tem um filho,
e colheu milho, feijão, algodão e criou porcos. Em
1808 vendeu 15 capados. Já em 1811, Salvador
aparece no Mapa dos Engenhos da Vila, tendo
vendido 144 medidas de águas ardentes; tem 2
escravos. Em 1818 é apontado como agricultor
em “seu engenho”, com 4 escravos. Pelo maço de
população de 1825 (Mapa dos Engenhos) os 10
engenhos de São Luís produziam apenas 526 barris,
resultado pouco, que “estes ditos engenhos não
trabalham efetivamente, porque seus donos mais
se ocupam em outras lavouras que na de cana”, por
exem­plo “lavoura de porcos”, dizem lá.94 Procedia
de Cunha, pelo que se conclui que o “mineiro” da
sua ha­bitação resultaria mais do construtor do que
do dono. Tal hipótese é reforçada pelo fato de se
ter encontrado na mesma região de São Luis outra
sede de fazenda —a Pinheirinho — que, tudo leva
a crer, desde o partido geral até os detalhes de
tratamento da madeira, tenha sido obra do mesmo
construtor.95 A Pinheirinho traz a diferença de, ao
referência
136
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
86 Levantamento IPHANCONDEPHAAT (São Luís do
Paraitinga), 1972, arq. 4o Dis­
trito — IPHAN, São Paulo.
87
DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx.
472, ord. 1267, Pasta de
1852 (Of. de 17.3.1852).
88
Livro do Registro Geral da
Câmara, São Luís do Parai­
tinga (1828-1873), fls. 198v
e 199, ano de 1902.
89
DAESP, Ofícios Diversos,
São Luís do Paraitinga, cx.
471, ord. 1266, ofício de
18.5.1888.
90
Livro de Atas da Câma­
ra, São Luís do Paraitinga
(1841-1867), fl. 85v, sessão
de 30.8.1858.
91
Inventários, Cartório do
2.o Oficio, São Luís do Parai­
tinga, doc. 1058, ano 1879.
92 ZALUAR (Augusto E.),
Peregrinação Pela Província
de São Paulo (1860-1861).
Biblioteca Histórica Paulis­
ta, vol. II, São Paulo, 1953,
pág. 50.
93 DAESP, Tombamento (ter­
ras) de 1817, registro n. 20.
94
DAESP, População, São
Luís do Paraitinga, cx. 159,
ord. 159 e cx. 160, ord. 160,
anos de respectivamente,
1803 a 1813, e 1814 a
1830.
invés da solução de alpendre, oferecer uma sacada
corrida.
O partido “de sobrado”, com o pavimento principal
parcialmente térreo, se converteu em tradição
mineira, mesmo nos lugares onde o sítio não
sugerisse tal solução. Embora tal partido fosse
usual também nos engenhos do litoral norte de São
Paulo, a sua aplicação em pontos desse Estado sem
possibilidade alguma de contato com a marinha,
como é o caso da sede da fazenda Jaborandi, em
Altinópolis, quase na divisa de Minas Gerais, e da
qual se sabe foi dos Garcia Figueiredo vindos de
Minas, em torna viagem, para São Paulo, parece
uma indicação aceitável de influência mineira.
Mesmo porque essa influência se verifica nas mais
antigas fazendas paulistas de café, procedentes
sem dúvida da experiência das arquiteturas mineira
e fluminense, como é o caso da fazenda Paud’Alho, em São José do Barreiro, de 1819. O mesmo
partido, porém, com uma organização de espaço de
influência paulista (alpendre entalado, central, entre
capela e quarto de hóspede, sotão) encontrado em
Paraibuna, apresentando um esquema construtivo
de sobra­do, gaiola, recheio de pau-a-pique, e acesso
pela frontaria, mesmo aí é possível discernir uma
influência mi­neira... no tratamento construtivo
de um partido paulis­ta. Tão paulista que se fôsse
construído em taipa de pilão, como seria a solução
mais corrente, não aceitaria de forma alguma a
solução “de sobrado”.
95
DAESP, População, São
Luís do Paraitinga, cx. 159,
ord. 159, mss. de 1811, 2a
Cia. de Ordenanças (indica­
ção de um carpinteiro natural
de Baependí, Minas Gerais,
de idade de 23 anos).
96
Inventários, Cartório
do 1o Ofício, São Luís do
Parai¬tinga, ano de 1861,
2o volume, de Joaquim José
Ferreira.
97 Livro de Provimentos Ge­
rais, posturas e contratos da
Câmara, São Luís do Parai­
tinga, fl. 20v, § 4o, ano de
1854.
98
SAIA (Luís), op. cit., págs.
61 e segts.
99 Idem, págs. 173, 174 e
175.
10 2[2009
Como organização do espaço interno, com todos os
compartimentos voltados para o exterior, também
nisso a sede da fazenda Pedro Alves parece influência
de mi­neiro. Na já citada sede da fazenda Paud’Alho, em São José do Barreiro, onde comparecem
vários alpendres, os compartimentos se voltam
invariavelmente para o exte­rior, mesmo que este
exterior esteja alpendrado.
O prolongo do telhado é também uma solução
geral­mente afeiçoada pela arquitetura de Minas
Gerais, prin­cipalmente pelo arquiteto rural. E é, em
contrapartida, uma solução inusitada na arquitetura
paulista.
Se o esquema construtivo, utilizado na fazenda Pedro
Alves, comparece usualmente nas construções dos
sobra­dos de São Luís, é verdade que ao lado das
construções de taipa de pilão, das quais o exemplar
local mais antigo é certamente a residência do
Ajudante Joaquim José Ferreira, na rua Boa Vista, o
mesmo não se poderia dizer do tipo de organização
do espaço que fez praça na cidade, especialmente
nos sobrados de frontaria voltada para as ruas. Vale a
pena estabelecer um confronto entre esta construção
de 1834 e a sede da fazenda Pedro Alves.
O Ajudante Ferreira procedia de Mogí das Cruzes.96
Sua residência é de taipa de pilão, tem alcovas, e um
dos lados é de oitão, sem envasaduras. Este projeto
tem procedência urbana, pois de outra forma não
se expli­caria nem sua fachada principal, de nítida
feição cita­dina, nem a parede do oitão, cega, apesar
das condições fáceis de aí abrir envasaduras. Mesmo
que estivessem em vigor as posturas aprovadas em
1854, que mandam que “nenhuma porta ou janela
se abrirão nos oitões das casas que tem saída para
terrenos que tenham de ser ocupados com prédios (..)
salvo quando se abram para quintais”97, a verdade é
que a casa do Ajudante Joaquim desfrutava de 3600
de liberdade. Além disso, este mesmo Ajudante fez
questão, para se furtar ao pagamento da Décima
Urbana, de afirmar a sua casa como sede de uma
produção rural. Não adiantou: ele paga a Décima
Urbana.
Duas indicações podem ser extraídas do confronto
acima: o paulista prefere, quando possível, o uso
da taipa de pilão; e o faz usualmente para as
paredes en­voltórias e para uma parede interna, de
travamento, o demais de pau-a-pique; o oitão cego
é uma condição que conduz à solução de alcova.
A primeira indicação é matéria de constatação, e
vale para a arquitetura não bandeirista, isto é, do
século XVIII em diante. No sé­culo XVII a residência
do homem abastado de São Paulo tem todas as
paredes de taipa de pilão, quer externas, quer
internas. Esta preferência é largamente comprovada
pelas residências paulistas do segundo século, já
estu­dadas98, inclusive, na sua ocorrência urbana,
em Par­naíba (SP).99 Isto não exclui é verdade, a
tradição de esquemas construtivos de pau-a-pique,
tanto para as paredes do arcabouço, como para
as paredes divisórias. O pau-a-pique, tantas vezes
desavisadamente chamado de taipa, é solução
universal, e usada por quase todos os povos. A taipa
de pilão é, ao contrário, uma forma já elaborada
pelos povos de vinculação mediterrânea, e sujeita,
por­tanto, a determinadas leis de dessiminação e
uso. É, por exemplo, uma solução aristocrática,
referência
137
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
pelo menos mais aristocrática que o tijolo, tanto
o crú (adobe), como o cosido. No caso presente,
trata-se de verificar em que medida tais soluções
construtivas eram adotadas de um modo sistemático.
Na arquitetura paulista de residência de abastados
do século XVII e começo do XVIII, a taipa de pilão é
uma solução sistemática; o pau-a-pique é eventual.
Na construção paulista de residência do século XIX,
especialmente residências das classes mais abasta­das,
a solução sistemática foi: paredes externas e uma
parede interna, de travamento, de taipa de pilão;
pare­des internas, divisórias, de pau-a-pique. Em São
Luís tal esquema se encontra largamente aplicado:
na Praça Osvaldo Cruz, nas residências números
3, 21, 23 e 24; na rua 31 de Março, no 11, na rua
Cel. Domingues de Castro, no 33; na rua Cônego
Bueno, esquina da rua Monsenhor Gióia; na rua do
Carvalho, no 14 e 9, e na rua Osvaldo Cruz, no 4, que
é a casa do Ajudante Joaquim e onde depois nasceu
o cientista Osvaldo Cruz. Nem sempre, é claro, o
esquema vem aplicado na sua totalidade; mas na
maior parte dos casos ou se trata de uma solução
onde o pavimento térreo é de taipa de pilão e o
superior de pau-a-pique, ou se encontram modifica­
ções acrescidas ao projeto primitivo. No demais das
construções mais volumosas, geralmente sobrados,
o embasamento (se é que se poderia chamar de
embasa­mento todo o pavimento térreo) é de pedra
entaipada, especialmente com a disposição de
colunas, e o restante de pau-a-pique. Esta última
solução, tudo leva a acre­ditar que se trata de uma
influência procedente do litoral ou das bandas do
leste. Realmente, nesses lugares cons­tituia uma
prática usual. A notícia de uma inundação destruindo
a antiga cadeia, em 1863, parece indicar que este
perigo constituiria um obstáculo sério anteposto ao
uso da taipa de pilão.
100 RODRIGUES (José Wasth),
Documentário Arquitetônico,
Livraria Martins Editora, São
Paulo, s/data, Fascículos IV
e V.
10 2[2009
A condição do oitão cego levar à solução de alcova
ou camarinha, isto é, um compartimento sem
abertura para o exterior, é uma tese a ser estudada.
Sempre tendo em vista as soluções sistemáticas,
pode-se conjecturar desde logo, que a envasadura
nos oitões teria levado a arquitetura residencial
urbana do Nordeste brasileiro a uma evolução de
tal modo elaborada que chegou a for­mular partidos
que implicavam no “tratamento” arqui­tetônico dos
oitões como fachadas... decoradas. Como aparece,
por exemplo, na esplêndida casa de Feira de Santana,
na Bahia, ou como é corrente na arquitetura nórdica
transplantada para certas regiões do sul do Brasil,
notadamente em Santa Catarina, na zona de in­
fluência alemã. Neste último caso a ocorrência é
tanto urbana como rural; no Nordeste a tipicidade
se restringe ao âmbito urbano.
No caso genérico da arquitetura residencial urbana
paulista do século passado, o modelo ideal é o de
um espaço residencial dividido em três lanços: o
fronteiro, nobre, de salas ou quartos; o posterior,
de estar, com sala de jantar; e o intermediário com
alcovas que se abrem para um ou outro lanços
extremos, ou para ambos; como apêndice, os
serviços se instalavam num puxado, num dos lados
da face posterior. Independente de ser sobrado ou
não, uma considerável percentagem de habi­tações
de sedes de fazendas paulistas do café mantem
este esquema para a sua organização do espaço
residen­cial, mesmo quando as condições favorecem
a abertura de envasaduras laterais. Tudo leva a crer
que a elaboração de tal partido tenha ocorrido no
âmbito urbano, onde frequentemente a proibição
de envasaduras nos oitões e a profundidade da
área ocupada, levariam ao aproveita­mento de uma
faixa intermediária, cuja compleição construtiva,
como que forçada pelos apôios para a estru­tura
do telhado, sugeria um espaço a trabalhar. A
saida, facil e enganosa, de se lembrar a influência
árabe depo­sitando nos costumes nacionais um
reclusionismo exage­rado para as mulheres, se
afigura inteiramente destituida de objetividade.
Realmente não rende como explicação de coisa
alguma. A pesquisa de uma sistemática equiva­
lente nas cidades já então estabelecidas, no litoral
ou em Minas, também não parece levar a nada.
Nem naquele e especialmente neste caso de Minas
o testemunho dos “restos” encontrados nega tal
sistema. Em Minas, nota­damente, de onde viria
uma experiência urbana e rural bastante volumosa,
o que ocorre é uma procura pertinaz de voltar os
compartimentos para o exterior, às vezes abrindo
vários páteos internos, como nos esplêndidos
exemplares de plantas mineiras levantadas por Wasth
Rodrigues.100 A alternativa, observada por Vauthier
em Pernambuco, de especializar o espaço no sentido
ver­tical, dando a cada pavimento uma função bem
definida, também não encontra similar no sul, cuja
arquitetura residêncial sempre demonstrou pouca
desenvoltura neste sentido. Quanto à solução
expressa pelo citado esquema, de três lanços
com funções especialisadas bem definidas, é bem
possível que seja encontrada mais de uma ocasião
referência
138
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
101 SPIX E MARTIUS, Viagem
Pelo Brasil, Imprensa Nacio­
nal, Rio de Janeiro, 1938, 1o
vol., pág. 193.
102
MULLER (Daniel Pedro),
Op. cit., pág. 43.
103 HOLANDA (Sérgio
Buarque), História Geral da
Civilização Brasileira (sob a
direção de), Difusão Européia
do Livro, São Paulo, 1967,
Tomo 2, 2o vol., págs. 438
e 439.
10 2[2009
eventualmente aplicada, tanto na zona urbana
como nas residências rurais. Igualmente outras,
como a da sala central, ou a dos páteos internos.
Teria acontecido então o preceito evangélico: muitos
serão os chamados e poucos os escolhidos. Dentre
todas as propostas de organização do espaço interno
das residências paulistas do século XIX, rurais ou
urbanas, essa foi sem dúvida a escolhida, posto
que sempre que foi possível se a encontra aplicada
em inúmeras variantes, das quais a da casa do
Ajudante Joaquim é uma e a dos sobrados da praça
de São Luís é outra. Restaria entretanto observar
que neste último caso o minguado da frontaria
leva o esquema a uma expressão resumida que
por pouco não o faz esquecer a fisionomia original.
As residências Rua Barão do Pa­raitinga no 28 e
Praça Osvaldo Cruz no 1, geminadas, e certamente
construídas ao mesmo tempo, apresentam uma
organização do espaço interno, no pavimento supe­
rior, perfeitamente enquadrada nessa fórmula: pelo
caixão da escada estão separadas duas alcovas que
ficam no miolo da construção, ladeadas pelo corredor
e um compartimento que se abre para as duas salas,
anterior e posterior. Nos fundos, as áreas de serviço,
também geminadas, ocupam apenas uma parte da
frontaria dispo­nível. As variantes deste esquema
resumido são realmen­te poucas. Mesmo naqueles
edifícios que desfrutam de frontaria mais generosa,
dando margem a uma sequência de camarinhas,
se observa que todo o problema gira em torno do
aproveitamento do espaço que sobra entre salas
anterior e posterior. Na residência da Praça Osvaldo
Cruz no 24, na qual se constata a aplicação mais
orto­doxa do esquema paulista de construção no
relativo aos edifícios de taipa de pilão, a disposição
das camarinhas em série é apenas obstaculada pelos
corredores de passagem e pelo caixão da escada.
Qualquer que seja a va­riante aplicada em cada caso,
é fundamental a condição deste espaço conter um
apôio decisivo para a estrutura do telhado. Coisa
equivalente ocorre nas casas térreas onde a aplicação
do mesmo esquema espacial se verifica em inúmeros
exemplos, embora neste caso de casas térreas surjam
igualmente espaços organizados de modo a pre­ferir
compartimentos voltados para o exterior.
Nas casas populares, nas quais a pobreza e a
pou­quidão de compartimentos não impõe uma
complexidade maior na organização do espaço,
tudo se resume, na prá­tica, a duas salas do extremo
anterior e posterior e mais um compartimento
intermediário, cego, ventilado pela telha-vã. Embora
não se tenha encontrado nenhum exemplar de
habitação com a antiga disposição da cozi­nha em
alpendrado, nos fundos, como a que Martius en­
controu em Taubaté101, algumas casas populares
ofe­recem uma planta que sugere tenham sido os
comparti­mentos dos fundos fechados em épocas
mais recentes. O esquema primitivo seria: um
compartimento na frontaria, uma passagem e um
compartimento cego no lanço inter­mediário e um
alpendrado nos fundos. Este último seria a cozinha
ou, em geral, o dos serviços domésticos.
Embora São Luís do Paraitinga não possa ser con­
siderada uma cidade característica da economia do
café, economia essa responsável por cerca de 90%
das atuais cidades paulistas, posto que tangenciou
apenas a proble­mática cafesista, como produção
e como consequências urbanas, a verdade é que
essa cidade representa um marco daquilo que
posteriormente passaria a caracterizar as ci­dades
nascidas e crescidas em função da produção do café.
Realmente inaugura-se com o governo do Morgado
de Mateus a preferência pela cidade em xadrez, de
tipo hipodâmico, que vai fazer praça, no Estado de
São Paulo e sul de Minas, na região que se povoou
e viveu cem anos sob o signo do café.
O que teria levado a povoação à condição de “me­
díocre, apesar de ser antiga” no dizer de Daniel Pedro
Muller,102 fosse o peso do recrutamento que se abatia
sobre as vilas paulistas no início do século XIX, fosse
o vulnerável de suas terras, postas rapidamente em
incon­tornável decadência pelo estilo predatório da
cultura cafesista, ou fosse ainda o fato de situar-se
afastada da trama viária principal que acentuou a
geografia humana da região paulista, a verdade é que
os cincoenta anos de relativa vitalidade econômica
foram insuficientes para estruturar uma unidade
urbana capaz de um desenvolvi­mento autônomo
do quadro de azares que perseguiram a economia
colonial do café. Os motivos acima citados influiram,
a cada um deles cabendo quota ponderável. A
carência e a qualidade dos habitantes foi um fato
que não pode ser desconsiderado. O repovoamento
da provín­cia de São Paulo, sofreu sangrias sérias,
pelo recrutamen­to, no início do século XIX. Por um
documento de 1824 103, sabe-se que a província de
São Paulo socorreu a fronteira do sul com 12.000
homens, e quatorze expe­dições. Além disso, cerca
de 1.300 pessoas se bandearam para a Côrte. A isto
referência
139
Evolução Urbana de São Luís de Paraitinga
104
Idem, idem.
105 DAESP, Ordenanças de
São Luís e Ubatuba, cx. 59,
ord. 298, doc. 59-1-32.
106 MULLER, (Daniel Pedro),
Op. cit., pág. 241.
Figura 2: Sede da Fazenda
Pedro Alves já desaparecida.
Fonte:
10 2[2009
se somariam cerca de 16.000 paulistas desertores
emigrados para as Minas Gerais “pelos contínuos
e anuais recrutamentos”.104 Nessa época, recruta
era “a palavra que horroriza tanto a estes povos
como a morte”.105
Nessas condições, em que pese a relativa pujança
demográfica originada do surto local cafesista no
en­torno de 1850, responsável pela tentativa de
loteamento do outro lado do rio Paraitinga, cedo as
lavouras muni­cipais foram alcançadas pelo cansaço
do salmorão des­protegido de matas. A construção
de sobrados nas áreas mais categorizadas da cidade,
não revela uma riqueza equivalente ao que aconteceu
noutras cidades do vale do rio Paraíba, nem significa
a montagem de um equipa­mento urbano que
delate riqueza mais permanente. Raro um indício ou
outro de especial significado, como a exis­tência de
uma relativamente notável quantidade de ferreiros
sediados na cidade.106 Isso se explicaria mais por São
Luís se encontrar no roteiro de tropas cargueiras
que trafegavam para a marinha, transportando
a produção de outros municípios do vale. Com
a entrada em cena da estrada de ferro, estaria
decretada a irremediável de­cadência de São Luís,
entregue então à sorte da produção local.
Apesar de toda essa aparente desimportância,
São Luís do Paraitinga é, no quadro da ocupação
do estado de São Paulo durante o século XIX,
uma preliminar decisiva, na medida que expressa
uma orientação que vai se firmar nas quinhentas
cidades paulistas que vão ser fundadas em função
da economia do café.
referência
140
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