ARTUR MONTE CARDOSO Burguesia brasileira nos anos 2000 – um estudo de grupos industriais brasileiros selecionados Campinas 2014 i iii iv v Esta dissertação é dedicada à memória do meu avô, Milton Monte, brasileiro e amazônida exemplar, e eterno professor da disciplina “Felicidade”. vii Agradecimentos Ao meu professor, orientador e camarada Plinio Soares de Arruda Sampaio Jr. O jefe Plinio foi responsável por me introduzir aos pensadores da formação e por lançar o desafio de compreender a burguesia brasileira como forma de buscar respostas aos desafios da revolução brasileira. Agradeço por seu exemplo de um Mestre tão raro hoje na universidade, por sua amizade e pela orientação precisa até a última hora. Ao professor Fernando Cezar de Macedo Mota, por aceitar gentilmente presidir a banca, pelas sugestões e críticas ao trabalho e pelo incentivo que me deu desde a monografia. Ao professor Edgard Pereira, que participou decisivamente do exame de qualificação e da banca. Particularmente por me motivar a apresentar claramente minha visão sobre o processo de reversão neocolonial, pelas inúmeras sugestões de organização do trabalho e pelos desafios lançados para a agenda de pesquisa futura. Ao professor Julio Sergio Gomes de Almeida, pelos conselhos no exame de qualificação, ao apontar os limites do meu trabalho, revelando a complexidade da burguesia brasileira e por dar a confiança de que a seleção dos grupos permitiria explorar o problema pretendido. Ao professor Sebastião Velasco e Cruz, do IFCH/Unicamp, por aceitar prontamente participar da banca e, principalmente, pelas críticas que impulsionam o pesquisador a aprimorar o seu conhecimento e os seus argumentos. Aos meus antigos colegas da Refinaria de Paulínia (REPLAN), na Petrobras, pela acolhida no primeiro emprego e pelo apoio ao meu retorno aos estudos. Em especial, à Rosana Macedo, à Dirce Frasseto e demais colegas da Engenharia; à minha equipe da Dotec: Ana Paula Silva, Aparecida Serafim (Cida), Luis Abner, Marselha Costalonga e em especial Daniele Paduan Machado, minha professora e amiga; aos colegas arquivistas: Marco Marsari (IERN), Elisa e Marcelo (REVAP), Rômulo (REDUC) e Teresa (RLAM); e aos colegas do concurso (os "TAC Jr."), Bruno Cruvinel, Carlos Polidoro, Luis Clemente, Lincoln Sakai, Marcus Vinicius Fernandes, Monique Menendez, Tadeu di Giacomo e Thiago Pinho. Aos trabalhadores e trabalhadoras do Instituto de Economia da Unicamp, em especial da Pós-Graduação, Biblioteca e Informática, pelo trabalho invisível aos olhos dos estudantes, mas ix crucial para nossas atividades. Ao me tornar eu mesmo funcionário é que tive a dimensão de quão imprescindíveis são os servidores técnico-administrativos na universidade. Aos colegas do Instituto de Física “Gleb Wataghin” da Unicamp. No Apoio Financeiro (SFP), tive todo o apoio, generosidade e amizade de Alcides Nascimento, Eduardo Alfredo, Eduardo Sakanaka, Eduardo Spinelli, Ivone Pereira, Miguel Gonçalves Filho, Vasco Queiroz e em especial de Marlene Capodali, minha professora dedicada e exemplo de servidora pública. Aos demais colegas do IFGW, muito obrigado pelo grande ano que passei por lá. Aos colegas da pós-graduação do IE, em particular aos da turma Teoria 2011 – Fernando Chafim, Ítalo Pedrosa, Julia Bellinetti, Leon Egidio, Lídia Brochier e Pedro Loureiro – e aos do doutorado – Leonardo Bispo e Marina Sequetto – pela amizade ao longo do curso. Aos colegas do “Futebol da Pós”, por me permitir o retorno aos gramados em tão boa companhia. Aos colegas do Grupo de Estudos "Florestan Fernandes" (GEFF): João Paulo Camargo Hadler, Leandro Ramos Pereira, Gustavo Zullo, Henrique Braga, Jaime León, Jean Peres, Joana Salém, Mauricio Esposito, Rebeca Bertoni, Sarah Franciscangelis, Tatiana Henriques e Theo Lubliner. Foram todos indispensáveis para que este trabalho fosse adiante e responsáveis por algumas das observações e críticas mais importantes. Em especial ao João Paulo, ao Leandrão e ao Jean, por sua amizade de longa data, as discussões e as críticas. Aos camaradas do Coletivo Domínio Público e do PSOL, em especial do Coletivo Primeiro de Maio. Sua luta firme pela revolução brasileira inspira e orienta a formação intelectual do militante. Agradeço por tolerar a minha ausência em tempos árduos, na esperança de que este trabalho ajude a entender melhor a realidade que queremos transformar. À minha mãe, Ana Rosa Monte Cardoso, e ao meu pai, José Maria Machado Cardoso Jr., por proporcionarem tudo a seu alcance para nos dar a melhor educação. Aos meus irmãos Felipe e Daniel, que são minha vida, por sua amizade e pelas boas conversas. Ao irmão "adotivo", Caio Matsui, pela alegria e sua imensa amizade. À Thalita, companheira querida, por atravessar ao meu lado todas as batalhas nos últimos anos, pelo apoio desde a prova da Anpec até a redação final da dissertação, por insistir em adotar a nossa cadela Fera e pelo amor paciente e persistente. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de estudos concedida para o Mestrado. x A “burguesia nacional”, tal como é ordinariamente conceituada, isto é, como força essencialmente antiimperialista e por isso progressista, não tem realidade no Brasil, e não passa de mais um destes mitos criados para justificar teorias preconcebidas; quando não pior, ou seja, para trazer, com fins políticos imediatistas, a um correlato e igualmente mítico “capitalismo progressista”, o apoio das forças políticas populares e de esquerda. Caio Prado Júnior (A Revolução Brasileira) Enquanto houver burguesia Não vai haver poesia Cazuza (Burguesia) xi RESUMO: Esta dissertação pretende contribuir para a discussão sobre o caráter da burguesia brasileira nos anos 2000 e, desta forma, entender o sentido, os limites e as possibilidades do capitalismo brasileiro contemporâneo. Para isso, é apresentado um estudo de quatro dos maiores grupos industriais privados do Brasil: Vale (mineração), JBS (agronegócio/carnes), Gerdau (siderurgia) e Cosan (agronegócio/sucroalcooleiro). A intenção é fornecer elementos concretos para uma melhor compreensão sobre o caráter da burguesia brasileira. A investigação dos grupos se concentrou na compreensão da base material da burguesia e sua força relativa frente aos demais capitais. Foram mapeados os mercados, a base produtiva e a base financeira, os vínculos com o Estado e a estratégia de cada grupo no período de estudo. As informações foram extraídas de dados públicos das companhias, de relatórios de instituições governamentais e internacionais, da imprensa especializada e de estudos acadêmicos. Para embasar teoricamente esta discussão, foram utilizados quatro autores da tradição da formação nacional: Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Celso Furtado e Florestan Fernandes. A hipótese é que a burguesia brasileira combina o aproveitamento de oportunidades de negócios gerados pela dependência externa com a exploração predatória da força de trabalho e do meio ambiente, bem como a mobilização arbitrária dos recursos do Estado, caracterizando-se como uma verdadeira burguesia dos negócios. A pesquisa aponta que os grupos aproveitam oportunidades dentro de um processo de desindustrialização e reprimarização, mas são incapazes de controlar variáveis estratégicas da acumulação, os que as torna vulneráveis às oscilações internacionais. O impulso dos seus mercados foi resultado direto do ciclo econômico internacional, via elevação da demanda e dos preços, ou indireto, através do surto de crescimento interno. Sua base produtiva é em segmentos de tecnologia simples, livre e com baixos encadeamentos. Sua base financeira foi principalmente o capital financeiro internacional, como o apoio complementar de recursos oriundos do Estado. Por fim, a estratégia de crescimento dos grupos, inclusive de internacionalização, se deveu ao processo de aquisição de concorrentes e não de construção de capacidade produtiva, chegando ao caso extremo de associação direta com o capital internacional. PALAVRAS-CHAVE: burguesia brasileira; desenvolvimento econômico; reversão neocolonial; Cosan; Vale; Gerdau; JBS. xiii ABSTRACT: This dissertation aims to contribute to the discussion about the character of the Brazilian bourgeoisie in the 2000s and thus understand the direction, the limits and possibilities of contemporary Brazilian capitalism . For this, it is presented a study on four of the largest private industrial economic groups in Brazil: Vale (mining) , JBS (agribusiness/meat) , Gerdau (steel) and Cosan (agribusiness /sugar and ethanol). The intention is to provide concrete elements for a better understanding of the character of the Brazilian bourgeoisie. The research of the groups has focused on understanding the material basis of the bourgeoisie and its relative strength compared to other capitals. Markets, the productive base and financial base, the ties with the State and the strategy of each group were mapped for the analyzed period. The information is drawn from public companies' data, governmental, international institutions and associations reports, specialized media and academic studies about the selected companies . The theoretical basis for this discussion uses four authors of the national formation tradion: Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Celso Furtado and Florestan Fernandes. The hypothesis is that the Brazilian bourgeoisie combines the advantage of business opportunities generated by the external dependency with the predatory exploitation of the workforce and the environment, as well as arbitrary mobilization of state resources, characterizing itself as a true business bourgeoisie. The research shows that groups seize opportunities within a process of deindustrialization and reprimarization, but are unable to control the strategic variables of the accumulation, which makes them vulnerable to international fluctuations. The thrust of its markets was a direct result of the international economic cycle, via rising demand and prices, or indirect result, through the outbreak of internal growth. Its productive base is located in segments of simple, free and low technologies, with low linkages. Its financial base was mainly international financial capital, as the additional support of funds from the State. Finally, the growth strategy of the group, including internationalization, was due to the acquisition process and not bulding of productive capacity, reaching the extreme case of direct association with international capital. KEYWORDS: Brazilian bourgeoisie; development; neocolonial reversion; Cosan; Vale; Gerdau; JBS. xv Lista de Tabelas Página Tabela 1. 200 maiores grupos no Brasil em 2011, por receitas (R$ mi), por setores e país de origem do controlador 69 Tabela 2. 200 maiores grupos econômicos no Brasil em 2011, por receitas (R$ mi) 70 Tabela 3. Maiores grupos industriais de controle brasileiro privado por receitas (2011) 71 Tabela 4. Setores mais mencionados nos grupos industriais privados brasileiros (2011) 72 Tabela 5. 10 maiores grupos industriais privados brasileiros (2011) 73 Tabela 6. Posição da Cosan no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas) 76 Tabela 7. Cosan – endividamento por tipo (%) 79 Tabela 8. Cosan - Receita Operacional Líquida do setor Açúcar e Álcool (%) 80 Tabela 9. Cosan – Principais compradores de Açúcar (%) 80 Tabela 10. Cosan – Principais compradores de Etanol (%) 81 Tabela 11. Cosan - Receita Operacional Líquida (ROL) por segmento (%) 84 Tabela 12. Posição da Vale no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas) 85 Tabela 13. Vale – exportações de minério de ferro, por região (milhões de ton.) 86 Tabela 14. Vale - Minério de Ferro e Pelotas – índice de quantidades e preços (2001=100) 87 Tabela 13. Vale – valor das aquisições por ramo (em US$ de 2012) 90 Tabela 14. Vale – Endividamento Geral e algumas categorias (US$ mi) 91 Tabela 15. Posição da Gerdau no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas). 93 Tabela 16. JBS – Posição no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (por receita) 104 Tabela 17. Principais Exportadores e Importadores de carne bovina 107 Tabela 18. JBS – Capacidade de abate diário por segmento e região (%) 110 Tabela 19. JBS - Composição do Controle Acionário 111 xvii Lista de Gráficos Página Gráfico 1. Brasil – exportações de açúcar – físicas (mi ton.) e valor médio (US$/ton) 77 Gráfico 2. Vale – Receita bruta por país ou região (em US$ mi correntes) 88 Gráfico 3. Vale – Receita bruta por produto (em US$ mi correntes) 89 Gráfico 4. Produção Mundial de Aço Bruto (inclui todos os tipos), em mil ton. 96 Gráfico 5. Distribuição do valor dentro da cadeia – integrada (Hot-Rolled Cold Steel) 97 Gráfico 6. Capacidade produtiva (efetiva) e demanda mundiais por aço 98 Gráfico 7. Aço – Vendas internas por setor - maiores setores, exceto distribuidores (%) 99 Gráfico 8. Gerdau – Endividamento bruto e endividamento líquido (US$ mi) 101 Gráfico 9. Gerdau – Indicadores de margem (%) 102 Gráfico 10. Oferta mundial de carne por tipo (bilhões de toneladas) 105 Gráfico 11. Preços mundiais de carnes (termos reais) – em US$/ton. 106 Gráfico 12. JBS - Receitas líquidas, Resultados e Lucro/Prejuízo (em R$ bilhões) 109 Gráfico 13. JBS – Margens Operacional, EBITDA e Líquida (%) 113 Gráfico 14. JBS – Dívida Bruta (R$ mi) e razão Dívidas Bruta e Líquida/EBITDA (%) 114 xix Lista de figuras Página Figura 1. Bovinos - Fluxos de Comércio, inclusive vivos (2011-2012) xxi 108 Sumário Introdução 1 Capítulo 1: Burguesia brasileira: dependência e negócios 7 1. Introdução 7 2. A problemática da formação 9 3. A burguesia brasileira sob a ótica da formação 14 4. 3.1. Nelson Werneck Sodré: burguesia nacional na revolução democrática e nacional 15 3.2. Caio Prado Júnior: burguesia subordinada e oportunista 19 3.3. Celso Furtado: a burguesia dependente e subdesenvolvimento 26 3.4. Florestan Fernandes: burguesia dependente e a contrarrevolução permanente 31 Burguesia brasileira: dependência e negócios Capítulo 2: Burguesia brasileira e reversão neocolonial 36 43 1. Introdução 43 2. A crise do desenvolvimento brasileiro como tendência à reversão neocolonial 44 3. Os anos 2000 e o neodesenvolvimentismo 49 4. 3.1. O neodesenvolvimentismo 49 3.2. Uma crítica à origem do crescimento nos anos 2000 52 3.3. Uma crítica à natureza do pensamento neodesenvolvimentista 56 Reversão neocolonial nos anos 2000 Capítulo 3: Estudo de grupos industriais selecionados da burguesia brasileira 59 65 1. Introdução 65 2. Os maiores grupos econômicos no Brasil 65 2.1. O conjunto dos maiores grupos econômicos no Brasil 65 2.2. Os maiores grupos da burguesia brasileira na indústria xxiii 68 3. Metodologia de pesquisa 72 4. Síntese dos grupos selecionados 74 5. 4.1. Cosan 74 4.2. Vale 83 4.3. Gerdau 90 4.4. JBS 102 Discussão 112 Considerações finais 119 ANEXOS 129 ANEXO A: Grupo Cosan 177 1. Introdução 178 2. Histórico 178 3. Mercados principais 180 3.1. Açúcar e Etanol 180 3.2. Distribuição de Combustíveis 191 4. Crescimento e transformações 193 5. Base Produtiva 202 6. 5.1. Setor sucroalcooleiro 204 5.2. Distribuição de combustíveis 206 5.3. Lubrificantes 207 5.4. Logística para açúcar, etanol e outras commodities 208 5.5. Imobiliário Rural 209 5.6. Distribuição de gás natural 210 Base Financeira 211 xxiv 7. Síntese 215 8. Referências Bibliográficas 218 ANEXO B: Grupo Vale 221 1. Introdução 222 2. Histórico 223 3. Mercados 224 3.1. Minério de Ferro e Pelotas 225 3.2. Níquel 229 3.3. Fertilizantes 232 4. Crescimento e transformações 237 5. Base produtiva 246 6. Base financeira 250 7. Síntese 253 8. Referências Bibliográficas 255 ANEXO C: Grupo Gerdau 257 1. Introdução 258 2. Histórico 258 3. Mercado 261 3.1. Panorama da produção e consumo mundiais 261 3.2. Processos e produtos do aço 264 3.3. Custos e Preços na Siderurgia 267 3.4. A capacidade ociosa e a queda na rentabilidade 270 3.5. O mercado brasileiro 276 4. Crescimento/Transformações 280 5. Base produtiva 288 xxv 6. Base Financeira 292 7. Síntese 295 8. Referência Bibliográficas 298 ANEXO D: Grupo JBS 303 1. Introdução 304 2. Histórico 304 3. Mercado 306 3.1. Visão geral do mercado 307 3.2. Comércio internacional 312 3.3. Dinâmica dos preços 316 3.4. A cadeia da carne bovina 319 4. Crescimento/Transformações 324 5. Base produtiva 333 6. Base financeira 337 7. Síntese 341 8. Referências Bibliográficas 343 xxvi Introdução Após uma geração inteira de profunda crise econômica e social – uma crise de destino, diria Celso Furtado – o Brasil aparentemente encontrara novos rumos no início dos anos 2000. Sob o comando da força política que polarizara a transição da ditadura para a Nova República, o país voltou a ter algum crescimento econômico, a gerar empregos, ampliar salários e reduzir a desigualdade, ainda que de forma tímida e insuficiente. A atração de investimentos, o desempenho das exportações e a aparente busca por uma política externa independente e solidária com o terceiro mundo e os “emergentes” pareciam levar o país a se distanciar de sua história de submissão e apontar um futuro de protagonismo e soberania. Criou-se um clima e uma expectativa de que as mudanças tivessem vindo de forma definitiva e que apontassem para uma virada histórica. A palavra “desenvolvimento”, tão esquecida e deturpada nas décadas anteriores, voltava à cena, carregada de otimismo e confiança. No final da década de 2000, era corrente entre os políticos e intelectuais identificados com o governo a especulação sobre um “neodesenvolvimentismo” em curso, projeto e realidade de um país que crescia com distribuição de renda e soberania nacional1. A ideia de que estava em curso um projeto neodesenvolvimentista no Brasil, ou mesmo que ele ainda fosse projeto, mas um projeto inscrito nas novas possibilidades do país, tinha diversas implicações para o pensamento e para as forças sociais e políticas comprometidas com a solução dos problemas históricos do país. Os traços estruturais do subdesenvolvimento e da dependência, a posição subordinada do país ao grande capital internacional e um padrão social baseado na segregação, na desigualdade e na intolerância, persistiram mesmo após muitos anos de industrialização, urbanização, crescimento acelerado e modernização, sendo apenas reequacionados, repostos ou mitigados. Estaria esta dupla articulação, estes dois pilares da sociedade brasileira, em modificação? Todo o pensamento neodesenvolvimentista afirmava, em resposta, que não se tratava mais de um novo período de crescimento com subordinação externa e exclusão social, mas de um período de crescimento com soberania e com integração social. Ao mesmo tempo, questões fundamentais não se resolviam em definitivo ou mesmo davam sinais de 1 Ver: Oliva (2012b), Sader e Garcia (2010), 1 retroceder: não se executava a reforma urbana, a reforma agrária e não se garantiam direitos sociais; não se resolvera a posição subordinada da economia brasileira, a desindustrialização, a reprimarização da economia, a submissão do Estado ao pagamento da dívida em detrimento dos investimentos sociais, entre outros2. Para além das contradições do processo, um grande problema persistia em aberto: se se tratava de um novo período desenvolvimentista, quem seria seu protagonista? Na concepção clássica do desenvolvimentismo, anterior à ditadura militar, a resolução dos problemas históricos passava pela constituição de um Estado nacional correspondente a uma revolução democrática e nacional liderada pela burguesia nacional3. A burguesia nacional seria a classe capitalista cujos interesses estratégicos no mercado nacional motivariam o enfrentamento da submissão ao imperialismo e do atraso cuja marca era o latifúndio. Obviamente que uma revolução de caráter democrático e nacional capaz de promover um desenvolvimento no sentido mais forte da palavra – a capacidade de uma sociedade controlar seu próprio destino, conciliando capitalismo, democracia e soberania4 – exigiam a participação das classes populares. Mas enquanto se baseasse nos marcos de uma sociedade capitalista, nenhum desenvolvimento com um grau relativo de autonomia seria possível sem uma classe burguesa com base material para permiti-lo e um projeto político para conduzi-lo. Ao questionamento sobre qual burguesia seria o alicerce do novo momento, o neodesenvolvimentismo não apresentou resposta segura. Fixado em problemas concernentes à execução da política econômica, o neodesenvolvimentismo pouco tratou acerca de problemas estruturais, esquecidos por uma longa histórica de crise da teoria do desenvolvimento5.As diferentes correntes do pensamento neodesenvolvimentista se preocuparam em contrapor rentismo ao empreendedorismo produtivo, buscando a união da classes trabalhadoras em prol do crescimento sob a ação do Estado na melhor tradição keynesiana6, mas qual burguesia? A burguesia que prosperou aos pés da industrialização comandada pelas transnacionais 7? A burguesia que consolidou seu poder a partir de um delicado equilíbrio entre a negociação dos 2 Cf. Sampaio Jr. (2012c). Cf. Ianni (1984) e Sodré (1964). 4 Cf. Furtado (1981). 5 Cf. Sampaio Jr. (1999c; 2012b). 6 Cf. Monte-Cardoso (2013). 7 Cf. Furtado (1972). 3 2 termos de dependência externa e a superexploração do trabalho8? A burguesia que sobreviveu e enriqueceu às custas do rentismo fundado sobre o endividamento público nos anos 19809? A burguesia que resolveu seu impasse frente à nova ordem mundial optando por ingressar de maneira subalterna na globalização, abrindo mão do patrimônio nacional público e privado10? Para além do grande debate que estava por ser feito, havia um problema: a incrível falta de estudos que mostrassem concretamente as potencialidades da burguesia brasileira dos anos 2000 e em especial os seus limites. Houve, sim, uma farta produção de trabalhos acerca da burguesia brasileira que ascendeu à condição de capital com presença internacional, desde aqueles mais apologéticos de um capital brasileiro superpotente até as visões críticas do que seria um imperialismo brasileiro. Mas pouco se buscou para compreender de onde partem estes capitais, qual sua lógica de acumulação, quais os nexos estabelecidos com os mercados nacional e internacional, com o capital financeiro internacional, o Estado e as classes trabalhadoras. Esta dissertação tem como objetivo contribuir para o entendimento da natureza da burguesia brasileira a partir de elementos empíricos sobre o funcionamento de grandes grupos econômicos brasileiros nos anos 2000. Será feita uma análise qualitativa de quatro grande empresas de controle brasileiro: a Cosan, originária do setor sucroalcooleiro, a Vale, do ramo de mineração, a siderúrgica Gerdau e a JBS, do setor de frigoríficos. Esta análise tentará delinear, a partir de dados públicos das empresas, quais foram o seu padrão de acumulação, sua base tecnológica e financeira, sua participação nos mercados interno e externo, suas vantagens e desvantagens competitivas, sua participação na cadeia produtiva. A partir da pesquisa de cada grupo serão elaboradas sínteses que permitirão discutir se há algum padrão desta burguesia e qual é ele. O trabalho será fundamentado por autores da tradição da formação: Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes. Pensamento motivado pela busca pela compreensão dos processos históricos que bloqueiam a capacidade da sociedade brasileira de conquistar uma autonomia relativa frente ao todo e estruturar sua economia em função das necessidades de uma sociedade integrada, a tradição da problemática da formação se fundamenta 8 Cf. Fernandes (1976). Cf. Belluzo e Almeida (2002). 10 Cf. Gonçalves (1999) e Biondi (1999). 9 3 no estudo da História brasileira e na busca das permanências dos traços estruturais herdados do passado colonial e nunca superados: a dependência externa e a segregação social interna 11. As hipóteses mais gerais para interpretação da pesquisa dos grupos serão retiradas das análises feitas por estes autores sobre a natureza da burguesia brasileira. Contudo, não seria possível extrapolar diretamente destes autores os elementos que possam guiar a interpretação dos resultados obtidos. A distância temporal e a necessidade de realizar análises fundamentadas na história exigem elaborações feitas em cima das tendências em curso no século XXI, ou pelo menos sobre as manifestações das tendências de longo prazo. Identificado com a problemática da formação e com o esforço de compreensão de como as tendências da nova ordem mundial pós-Guerra Fria e a transnacionalização do capital impactam as possibilidades da superação da dependência e do subdesenvolvimento, tomaremos como base as reflexões que apontam para o risco de que o Brasil passe por um verdadeiro processo de reversão neocolonial12. A hipótese elaborada para os anos 2000 é que a nova ordem internacional tem impactado a capacidade de sociedades da periferia de se defenderem das tendências antinacionais e antissociais do capital13. O resultado é o aparecimento de fortes tendências a processos de reversão neocolonial, entendidas como o bloqueio da capacidade das sociedades e do Estado nacional de colocarem a acumulação de capital a serviço da integração nacional e de garantia de direitos e a promoção de políticas sociais14. Ao reduzir drasticamente a autonomia relativa das burguesias locais, como a burguesia brasileira, a transnacionalização do capital e a integração das sociedades periferias a esta nova lógica global de acumulação condiciona estas burguesias a se tornarem “burguesias dos negócios”, mais dependentes do capital internacional e altamente dependentes das oportunidades de negócios abertas pela globalização, em especial o comércio exterior, a especulação com ativos financeiros e a venda de patrimônio público e privado. 11 Cf. Ianni (1992) e Sampaio Jr. (1999a, 1999b). A hipóteses de que o processo de liberalização compromete a formação econômica do Brasil foi precocemente levantada por Celso Furtado em livro “Brasil: a construção interrompida” (FURTADO, 1992). A reflexão de Plinio de Arruda Sampaio Jr. sobre o impacto da nova etapa de desenvolvimento capitalista sobre o Brasil desenvolve a ideia sobre os condicionantes e as consequências do processo de reversão neocolonial (SAMPAIO JR., 1999a). 13 Cf. Sampaio Jr. (1999b, 2007, 2011) e Hadler (2012). 14 Cf. Sampaio Jr. (1999b, 2012a). 12 4 Esta dissertação está dividida em três capítulos e os anexos. No capítulo 1 será feita uma revisão bibliográfica dos autores mencionados, precedida de uma pequena apresentação da problemática da formação, paradigma de compreensão dos problemas da sociedade brasileira que é usado neste trabalho. No capítulo 2, será mostrado como a nova ordem mundial, marcada pela transnacionalização do capital e pelo fim da Guerra Fria, compromete o destino das sociedades dependentes, em particular do Brasil. Será feita breve apresentação do pensamento neodesenvolvimentista, representante máximo da visão de que o Brasil passou por uma mudança histórica nos anos 2000, que será contraposta por leituras críticas aos fundamentos do ciclo de crescimento do período, bem como da natureza de um pensamento desenvolvimentista. O capítulo é finalizado com uma discussão sobre a natureza do processo de reversão neocolonial e a tendência à consolidação das burguesias dependentes como “burguesia de negócios”. No capítulo 3, serão apresentados a seleção dos grupos estudados, a metodologia da pesquisa, a síntese da pesquisa de cada grupo e uma discussão final sobre os resultados. Por fim, serão apresentadas as considerações finais. Os Anexos A, B, C e D correspondem aos relatórios de pesquisa dos grupos Cosan, Vale, Gerdau e JBS, respectivamente. São estes anexos que deram base para a apresentação da síntese da pesquisa no capítulo 3. 5 Capítulo 1: Burguesia brasileira: dependência e negócios 1. Introdução Este capítulo tem como objetivo delimitar um marco teórico de compreensão sobre o papel da burguesia brasileira no desenvolvimento nacional. Serão reunidas reflexões sobre qual é o raio de ação da burguesia brasileira e, dentro dele, quais são as decisões estratégicas e como isso influencia a dinâmica econômica brasileira, para, com isso, lançar hipóteses sobre qual pode ser o espaço histórico desta classe no período estudado neste trabalho. Esta tarefa será executada assumindo como paradigma para a compreensão dos dilemas do desenvolvimento brasileiro a problemática da formação e resgatando a contribuição de quatro dos grandes pensadores desta linha, extraindo deles elementos essenciais para o entendimento da burguesia brasileira. A problemática da formação é o paradigma de uma tradição do pensamento brasileiro que teve por base a necessidade histórica de constituição de um Estado nacional como saída construtiva e como solução efetiva para os problemas históricos da sociedade brasileira. Neste trabalho utilizaremos, especificamente, a leitura feita por Plinio de Arruda Sampaio Jr. (SAMPAIO JR., 1999a; 1999b; 2012a) sobre o problema da formação15. Em síntese, trata-se de compreender quais os fatores que bloqueiam a autonomização relativa da sociedade brasileira frente à totalidade do mundo capitalista, que permitirá concluir a longa transição do Brasil colônia de ontem para o Brasil nação de amanhã. Deste ponto de vista, a consolidação do Brasil como nação exige a constituição de bases econômicas, sociais, políticas e culturais que consigam colocar os meios e os fins do desenvolvimento a serviço da coletividade. Para tanto, faz-se urgente o enfrentamento da dupla articulação: a dependência externa e a segregação social interna – os dois nós que atam a sociedade brasileira ao passado, que repõem seus dilemas no presente e que a ameaçam permanentemente de promover um processo de reversão neocolonial, saída negativa deste impasse histórico16. 15 Uma boa panorâmica da tradição da formação pode ser encontrada no trabalho de Octavio Ianni (1992). Alguns trabalhos paradigmáticos da tradição são: Prado Jr. (1942; 1966), Furtado (1959) e Fernandes (1976). 16 Para uma leitura sobre como a noção de reversão neocolonial aparece na tradição da formação, ver Sampaio Jr. (1999b). 7 O ponto de vista da formação foi um dos mais influentes do pensamento brasileiro e mesmo latino-americano17 durante o período do século XX marcado pela industrialização por substituição de importações. Contudo, os acontecimentos motivados na economia pelo aprofundamento do papel do capital transnacional – e consequentemente dos vínculos de dependência – e na política pela rodada de ditaduras militares inaugurada pelo Brasil em 1964 abriu espaço para uma revisão na abordagem dos problemas do desenvolvimento, mobilizando uma abordagem que propunha uma terceira via da conjugação da dependência externa com desenvolvimento18. À crise do desenvolvimento, como vista pela ótica da formação, correspondeu uma crise da teoria do desenvolvimento19, que por diferentes caminhos subestimou os alertas feitos aos limites do desenvolvimento dependente e superestimou as possibilidades do capitalismo latino-americano, em particular o brasileiro20. As décadas de crise econômica, social e política que se seguiram aos anos 1970 e os processos acelerados de crise social, rural e urbana, fiscal e externa, abertura, desnacionalização e privatização, entre outros processos, só deixam claro que os problemas próprios do subdesenvolvimento e da dependência estiveram e estão longe de ser resolvidos. O retorno a alguns dos pensadores da formação se faz necessário e urgente para ajudar a lançar luz acerca de qual é o raio de ação do capitalismo brasileiro e quais podem ser as escolhas das classes envolvidas nos conflitos que decidirão o futuro do país. Estudaremos em particular as contribuições de Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes acerca dos problemas do país, suas possíveis soluções e em particular o papel histórico cumprido neste processo pela burguesia brasileira – entendida como a classe burguesa local, sem qualificativo21. Suas visões contribuirão para montar o marco teórico 17 Na América Latina, o correspondente esforço teórico, intelectual e político do pensamento da formação teve como expressão a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). 18 Para conhecer uma obra que sintetiza a inauguração desta nova abordagem, ver Cardoso e Faletto (1970). Para uma das principais referências dos desdobramentos desta abordagem no pensamento econômico brasileiro, ver as obras da escola do “Capitalismo Tardio”: Cardoso de Mello (1982), Tavares (1986), Lessa e Dain (1984). 19 Cf. Sampaio Jr. (1999c). 20 Para uma abordagem crítica de uma tradição distinta da formação que também superestimou as possibilidades do capitalismo brasileiro, ver Marini (1969, 1973a, 1973b, 1977a, 1977b). Para uma crítica às abordagens da dependência de Cardoso e Marini por uma ótica da formação, ver Hadler (2013). 21 Como já foi mencionado na introdução desta dissertação, por burguesia brasileira entendemos a classe capitalista local, o que não é idêntico a uma burguesia nacional, que é uma categoria de análise carregada de qualificações. Ver adiante o item sobre Sodré. 8 necessário para buscar as explicações dos fenômenos que encontramos na pesquisa empírica realizada no trabalho. A conclusão fundamental é que a burguesia brasileira é uma classe cuja constituição histórica e suas bases objetivas e subjetivas a levam a ser dependente do capital internacional. Dentro desta dependência, cujos termos variam de acordo com os condicionantes de cada período histórico, a burguesia possui um papel ativo caracterizado por uma estratégia rentista e especulativa de aproveitamento e geração de negócios em cima dos dinamismos irradiados pelo imperialismo, utilizando da superexploração do trabalho, dos recursos naturais e dos vínculos com o Estado. O problema é quando os condicionantes externos se tornam desfavoráveis, tornando a economia nacional suscetível a crises de reversão. Este primeiro capítulo se divide em três seções além desta introdução. No item 2, apresentaremos em linhas breves o que entendemos por problemática da formação, paradigma que fundamenta a forma de compreender os problemas brasileiros de todo o trabalho. No item 3, serão apresentadas, em quatro subitens, as visões de Sodré, Prado Jr., Furtado e Fernandes. No item 4 e último, será feita a reflexão que tentará extrair das contribuições apresentadas as linhas mestras para interpretação das possibilidades e limites do papel da burguesia brasileira no desenvolvimento do país. 2. A problemática da formação A problemática da formação22 explica os dilemas do Brasil contemporâneo à luz do processo – e dos bloqueios ao processo – de constituição de um Estado nacional capaz de conciliar capitalismo, democracia e soberania. Sob esta ótica, a conclusão da transição do Brasil colônia para o Brasil nação - uma formação social relativamente diferenciada do todo e portadora de força própria e existência autônoma - emerge como necessidade histórica para a resolução dos problemas crônicos que prendem o país ao círculo da dependência externa, da desigualdade social, da instabilidade e do autoritarismo. O nó reside no fato de que a constituição das bases da formação é permanentemente bloqueada pela dupla articulação que polariza as sociedades 22 A “problemática da formação”, como está apresentada neste trabalho, deriva das interpretações de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado sobre o Brasil, resgatadas na tese de Sampaio Jr. (1999a). Também está presente de forma sintética em dois trabalhos, um contemporâneo da tese (SAMPAIO JR., 1999b) e em sua versão mais recente (SAMPAIO JR., 2012a). 9 dependentes: a condição de dependência econômica e política do capital internacional e a segregação social. Diante disto, compreender como o processo histórico de formação pode atingir sua conclusão, a revolução brasileira, exige uma reflexão teórica que explique os parâmetros de funcionamento do Estado nacional e uma leitura histórica capaz de explicar os problemas do presente à luz do passado. É de posse destes elementos que se torna possível propor um programa de transformações e identificar o conjunto de forças historicamente comprometidas e capazes de levar a revolução brasileira até fim, evitando que a formação inconclusa leve à uma outra saída histórica, regressiva: a reversão neocolonial. Fruto do amadurecimento da reflexão de pensadores brasileiros frente às transformações pelas quais passa o Brasil no século XX, em especial a partir dos anos 1930, o problema da formação da nação polarizou a consciência crítica e política nacional sobre a natureza das contradições econômicas, sociais e culturais, suas origens na permanência de traços do passado colonial e sobre a possibilidade desta sociedade controlar os meios e os fins de seu destino23. As mais distintas visões de matrizes diferentes que se somaram nesta elaboração convergem para a necessidade de entender a especificidade da condição histórica brasileira, entendem ser necessária a integração do conjunto da sociedade às modernas conquistas materiais e culturais e concluem serem necessárias transformações de fundo, estruturais, para atingir tais objetivos24. 23 "O pensamento brasileiro polariza-se em torno do problema central de sua formação econômica e social: a necessidade de consolidar as condições objetivas e subjetivas que permitam à sociedade controlar o seu destino" (SAMPAIO JR., 2012a: p. 30). “Desde a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, mas em escala crescente ao longo das décadas posteriores, muito estavam preocupados com a questão nacional. Interessados em recriar o país à altura do século XX. Queriam compreender quais seriam as condições e possibilidades de progresso, industrialização, urbanização, modernização, europeização, americanização, civilização do Brasil. Apaixonados ou indiferentes, aflitos ou irônicos, perguntavam-se sobre os dilemas básicos da sociedade nacional, de uma nação que se buscava atônita depois de séculos de escravidão: agrarismo e industrialização; cidade, campo e sertão; preguiça, luxúria e trabalho; mestiçagem, arianismo e democracia racial; raça, povo e nação; colonialismo e nacionalismo; democracia e autoritarismo” (IANNI, 1992: p. 26). 24 "Os que refletiram sobre os desafios da formação a partir de uma perspectiva democrática, de um modo ou de outro, vincularam a construção do Estado nacional à integração do conjunto da população, em condições de relativa igualdade, aos avanços técnicos e aos valores humanistas da era moderna. Acima de suas diferenças teóricas, históricas e ideológicas, um denominador comum unifica esta visão: a idéia de que os problemas do país não serão resolvidos sem transformações socioculturais profundas, que criem as bases de uma sociedade eqüitativa e autoreferida" (SAMPAIO JR., 1999b: p. 416). E ainda: "O pensamento sobre a formação é organizado pela contraposição de dois estados latentes na sociedade dependente: a condição de barbárie que se deseja evitar e o projeto civilizatório que se pretende alcançar. O desafio das sociedades que lutam pela construção nacional materializa-se na necessidade de superar o presente sombrio de um povo que não consegue ultrapassar a condição de 10 Em linhas gerais, a questão é a incapacidade de o Brasil se autonomizar frente ao todo, concluir a transição da colônia à nação25 e romper a dupla articulação que condiciona a perpetuação do subdesenvolvimento: as relações subordinadas frente ao capital internacional e a segregação social. O mecanismo de perpetuação da condição transitória do Brasil pode ser assim resumido: A questão central reside na continuidade de relações de produção que comprometem a instauração das condições necessárias, objetivas e subjetivas, para a internalização do circuito de valorização do capital. Em última instância, o problema fica reduzido à impossibilidade de consolidar a burguesia e o proletariado como sujeitos históricos plenamente constituídos. O controle dos elos estratégicos da economia pelo capital internacional e a presença de uma imensa superpopulação relativa em estado latente e intermitente ou que simplesmente se encontra em estado de pauperismo geram um vazio econômico e social que impede a internalização do circuito de valorização do capital. Nessas condições, a formação do proletariado e da burguesia como sujeitos históricos capazes de lutar pelos seus interesses estratégicos como classe social é solapada pela reprodução de um padrão de relação entre as classes sociais marcado pela segregação social e pela extraordinária debilidade econômica e política da burguesia em relação às suas congêneres do capitalismo avançado. A impotência da burguesia para enfrentar o imperialismo e a cristalização de um regime de classes que separa, em dois mundos antagônicos, as classes proprietárias e não proprietárias levam o padrão de concorrência econômica e de luta de classes a reproduzir as condições objetivas e subjetivas que solapam a formação da economia e da sociedade nacional. As especificidades do padrão de acumulação de capital e de dominação de classe daí decorrentes imprimem ao desenvolvimento capitalista características próprias que comprometem seu caráter civilizatório (SAMPAIO JR., 2012a: p. 32). A saída histórica possível e necessária é a revolução brasileira, conclusão do processo de formação de um Estado nacional. Nesta visão, a noção de desenvolvimento é intrinsecamente ligado à constituição de um Estado nacional, pois este é o instrumento por excelência que as sociedades possuem para se defender das tendências antissociais e disruptivas do capitalismo na etapa imperialista26. No entanto, a consolidação do Estado nacional não é um objetivo tomado a priori, nem é uma fatalidade histórica. Em sociedades como a brasileira, com problemas estruturais (os dilemas da formação) e um conjunto de conflitos que tendem a repor tais questões, subnação e de aproximar-se de uma situação paradigmática, associada ao funcionamento ideal do Estado nacional” (SAMPAIO JR., 1999b: p. 415). 25 Para a leitura do sentido da História do Brasil como processo de transição da colônia para a nação, ver Prado Jr. (1942). 26 “Nesta abordagem, o espaço nacional não passa de um instrumento para proteger a coletividade dos efeitos destrutivos das transformações que se irradiam desde o centro do sistema capitalista mundial e para planejar a internalização das estruturas e dos dinamismos da civilização ocidental de modo condizente tanto com o aumento progressivo do grau de autonomia e criatividade da sociedade, quanto com a elevação da riqueza e do bem-estar da totalidade do povo. Pensada como um centro de poder que condensa a vontade política da coletividade, a forma nacional é aqui - única e exclusivamente - um meio das sociedades que vivem sobredeterminadas pelo campo de força do sistema capitalista mundial controlarem o seu tempo histórico” (SAMPAIO JR., 1999b: p. 417). 11 a nação emerge como necessidade histórica para que possam se defender das tendências desagregadoras vindas de fora e de dentro27. Não se trata de um problema de como compreender ou impulsionar o desenvolvimento capitalista28, mas sim de colocá-lo a serviço dos interesses maiores da coletividade, de lhe impor limites, de subordiná-lo ao Estado nacional e à vontade coletiva nele inscrita. Por isso que é tão importante entender teoricamente como pode funcionar um Estado nacional e quais são os condicionantes históricos, concretos, da existência dos Estados na periferia latino-americana e, mais precisamente, no Brasil. O fundamental, desta forma, é compreender quais são os parâmetros que norteiam teoricamente a constituição de um Estado nacional29, entendido como uma formação social relativamente diferenciada, com uma autonomia perante a totalidade e portadora de força própria e existência autônoma. Uma referência para entender esta questão é Furtado (1981) que explica o desenvolvimento como um processo de adequação entre meios e fins de uma sociedade 30. A adequação passa fundamentalmente pela correspondência entre estruturas econômicas e estruturas sociais. As estruturas econômicas são caracterizadas pelo processo de inovação, baseado na constituição de um sistema econômico nacional integrado e fundado na industrialização (incorporação de progresso técnico) e na concorrência. As estruturas sociais são caracterizadas pelo equilíbrio de forças entre capital e trabalho que dê condições objetivas e subjetivas (organização sindical e política) de os trabalhadores imporem a difusão dos ganhos de produtividade (salários reais e direitos coletivos). O mercado interno é o início e o fim do sistema econômico nacional e é o que permite a reprodução ampliada do capital e a força econômica necessária para a ascensão de uma burguesia nacional. No centro do processo, comandando o todo, devem existir centos internos de decisão, submetidos à vontade coletiva (suposta 27 “Enfim, a nação surge como produto de uma necessidade histórica. Sua formação é o resultado das forças sociais que se mobilizam para enfrentar os problemas que decorrem da falta de instrumentos para impor parâmetros sociais ao desenvolvimento capitalista. Não se trata de um destino manifesto determinado metafisicamente. O processo de formação é um início, o marco zero de um ciclo histórico, que aponta para um devenir possível, que pode ou não se realizar” (SAMPAIO JR., 2012: p. 33). 28 No Brasil, o desenvolvimento capitalista atinge uma larga expressão em termos de relações de produção e de desenvolvimento de forças produtivas, a despeito das debilidades legadas pela sua ocorrência sob o solo de uma sociedade de origem colonial. Não é um problema, desta forma, de “insuficiência” de desenvolvimento capitalista, mas dos resultados deletérios do ponto de vista da integração nacional, social e regional. 29 Para uma elaboração mais completa sobre esses parâmetros, consultar o capítulo 2 de Sampaio Jr. (1999a). 30 Furtado (1981) mostra o desenvolvimento como adequação entre racionalidade substantiva e racionalidade instrumental (prefácio). Seu modelo de desenvolvimento, a diáletica inovação-difusão, é mostrada no capítulo 5. 12 democrática) e de posse de instrumentos e força para fazer política econômica e planejamento. Amparada por uma força econômica – técnica e financeira – de bases nacionais que a permitam enfrentar a concorrência externa e suportada por um Estado com capacidade de executar política industrial, a burguesia nacional se torna protagonista do desenvolvimento capitalista. Neste tipo ideal construído por Furtado, há condições de conciliar o progresso material do capitalismo com a integração e soberania nacionais. Do ponto de vista histórico, o problema é o de identificar os fatores que bloqueiam a formação do Estado nacional, a sua origem e a maneira de superá-los. Da independência à abolição, da imigração à industrialização, o Brasil acumulou passos, mas não atingiu a condição de nação31. O país não superou aquilo que de essencial herdou do passado colonial, que repõe permanentemente sua condição transitória e que, por isso mesmo, torna tão importante o estudo da História para os problemas do desenvolvimento32: a dependência externa e a segregação interna. O problema se torna mais grave quando estes dois fatores – a “dupla articulação” de Florestan Fernandes – se cristalizaram como base do capitalismo brasileiro, constituído como capitalismo dependente, dando à revolução burguesa no Brasil um caráter de contrarrevolução permanente a partir de 196433. Embora a estabilidade política adquirida pela dominação burguesa, dados condicionantes muito especiais do momento, tenha permitido abafar as contradições que mobilizam a formação, ela não foi capaz de resolvê-las. As tendências à saída destrutiva para o impasse, a reversão neocolonial, voltam com força redobrada na medida em que muda o caráter 31 “O Brasil ainda não é propriamente uma nação. Pode ser um Estado nacional, no sentido de um aparelho estatal organizado, abrangente e forte, que acomoda, controla ou dinamiza tanto estados e regiões como grupos raciais e classes sociais. Mas as desigualdades entre as unidades administrativas e os segmentos sociais, que compõem a sociedade, são de tal monta que seria difícil dizer que o todo é uma expressão razoável das partes – se admitirmos que o todo pode ser uma expressão na qual as partes também se realizam e desenvolvem” (IANNI, 1992, p. 177). 32 No caso brasileiro, e em favor da preferência pela abordagem historiográfica da questão do desenvolvimento, há que acrescentar o pequeno recuo no tempo de nossa história e a intensidade com que por isso um passado ainda tão recente pesa na situação atual cuja análise e interpretação não podem assim prescindir de suas premissas históricas. (…) o Brasil de hoje, apesar de tudo de novo e propriamente contemporâneo que apresenta – inclusive estas suas formas institucionais modernas, mas ainda tão rudimentares quando vistas em profundidade – ainda se acha intimamente entrelaçado com o seu passado. E não pode por isso ser entendido senão na perspectiva e à luz desse passado (PRADO JR., 1972, p. 18). 33 Esta leitura está desenvolvida em Fernandes (1973), Fernandes (1974) e particularmente Fernandes (1976). 13 das estratégias do grande capital internacional que possibilitaram a industrialização brasileira34 e o contexto político de Guerra Fria que tornou a burguesia brasileira uma aliada necessária35. A longa crise pela qual passa o Brasil desde os anos 1980 recoloca na agenda brasileira a compreensão de como o impasse da formação se manifesta hoje, como as tendências de reversão neocolonial solapam as bases objetivas e subjetivas constituídas para o Estado dependente e como condiciona a atuação das classes. Estes são os desafios do pensamento crítico comprometido com os dilemas da formação e é dentro deste quadro que este trabalho busca dar uma contribuição36. 3. A burguesia brasileira sob a ótica da formação O objetivo deste trabalho é compreender que papel tem cumprido a burguesia brasileira no desenvolvimento brasileiro atual, em particular a sua base material e sua estratégia de acumulação. Para isso, buscamos resgatar que papel esta burguesia brasileira, entendida como a burguesia local e não como uma burguesia nacional37, cumpriu ao longo do nosso desenvolvimento, em particular no meio século de 1930 a 1980, período que animou debates sobre os rumos do país. Em particular, desejamos entender como esta burguesia participou do processo de formação, de modo a jogar luz no que pode ser seu comportamento atual, considerados os determinantes – profundos – legados do passado. Nossa referência para uma burguesia comprometida com o desenvolvimento nacional é a do modelo apresentado no item anterior. Esta burguesia tem como principal caractere dirigir um sistema econômico nacional, uma estrutura integrada, baseada na indústria e cujo mercado estratégico é o interno38. É a interação desta burguesia com o mercado interno – suposto baseado no equilíbrio da correlação de forças entre capital e trabalho – que lhe impulsiona a inovar 34 Ver Furtado (1987; 1992). Para uma visão global de Furtado sobre o tema, ver Hadler (2012). Ver Sampaio Jr. (1999b: pp. 434-436). 36 Ver Furtado (1992) e, na mesma perspectiva, Sampaio Jr. (1999). 37 O termo “burguesia nacional” é uma categoria que carrega uma profunda caracterização sobre o papel, as possibilidades e o destino da burguesia brasileira. A polêmica a respeito dela pode ser sintetizada no confronto entre as posições de Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Jr., como será mostrado adiante. Por isso utilizaremos o termo “burguesia brasileira”. 38 Não quer dizer que as burguesias nacionais não possam extroverter seu desenvolvimento, mas que sua força reside em especial no seu mercado interno. 35 14 (ampliar a produtividade) e o que a força à difusão (generalizando e socializando os ganhos de produtividade). Orquestrado por um Estado nacional capaz de fazer política econômica e industrial, com poder de decisão, o sistema econômico dá base financeira e técnica para esta burguesia enfrentar a concorrência internacional. O modelo serve como uma referência teórica para confrontar os requisitos exigidos por uma burguesia nacional, comprometida com o desenvolvimento, com a burguesia brasileira. Para extrair os traços fundamentais da burguesia brasileira, reuniremos e debateremos o pensamento de quatro grandes pensadores comprometidos com a formação. Nelson Werneck Sodré sintetiza o pensamento do PCB e de uma parcela dos nacionalistas comprometidos com a revolução brasileira nos marcos nacionais e democráticos, liderados por uma burguesia nacional. Na crítica à tese anterior, Caio Prado Júnior busca no sentido da história a chave para os dilemas da revolução brasileira e conclui que a burguesia brasileira não é nacional, mas subordinada, associada e oportunista frente aos negócios do grande capital internacional. De uma matriz de pensamento reformista, Celso Furtado explica como uma burguesia cultural e economicamente dependente das empresas transnacionais subordina a industrialização à modernização dos padrões de consumo e é incapaz de promover a superação do subdesenvolvimento. Por fim, Florestan Fernandes, teórico da revolução burguesa no Brasil, explica como a cristalização da dupla articulação é necessária à perpetuação da dominação da burguesia dependente, que é impotente para fora, mas onipotente para dentro, capaz de manejar a superexploração do trabalho, dos recursos naturais e o Estado em benefício próprio. 3.1. Nelson Werneck Sodré: burguesia nacional na revolução democrática e nacional Nelson Werneck Sodré39 foi um importante teórico da revolução brasileira, contribuindo decisivamente na elaboração da via da revolução democrática e nacional. Nesta concepção, a revolução passaria por uma etapa dirigida pela burguesia nacional e apoiada pelas classes populares contra o latifúndio e o imperialismo, antes de atingir o socialismo. Para explicá39 Nelson Werneck Sodré (1911-1999) foi militar, historiador e escritor. Chegou a ser general do Exército, saindo reformado em 1961. Integrou o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) desde seu início até sua extinção, em 1964, com o golpe militar (TOLEDO, 1998). Sua obra exerceu grande influência teórica sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB). 15 la, é preciso remontar às diretrizes fundantes do Partido Comunista do Brasil (PCB), partido sobre o qual o autor exerceu relevante influência e cujo programa ele assimilou e desenvolveu em sua obra. A Internacional Comunista (ou III Internacional), organização da qual o PCB era representante no Brasil, formulou em seu VI Congresso em 1928 uma leitura comum para o conjunto dos países de baixo desenvolvimento econômico: Sob o influxo do BSA/IC [Birô Sul-Americano da Internacional Comunista] e com a disponibilidade dos comunistas brasileiros conformou-se então uma genérica visão que não discernia a particularidade das formações sociais desse Ocidente subalterno que é a América meridional e que, pelo contrário, observava no Brasil fortes tinturas “orientais”, enfatizando-se a força revolucionária propulsora do campesinato: era como se o Brasil fosse a China do Ocidente (DEL ROIO, 2000: p. 87). Neste quadro, antes de chegar à revolução socialista, tais países teriam que passar por uma etapa necessária de afirmação do desenvolvimento capitalista nacional. O caráter da revolução brasileira era definido como democrático-burguês, mas dentro de um país ‘semicolonial’. Sua particularidade se compunha pela questão agrária (luta contra o feudalismo e a grande propriedade territorial) e pelo antiimperialismo (luta pela independência nacional) (DEL ROIO, 2000: p. 87). A “revolução democrático burguesa de conteúdo antifeudal e antiimperialista” conduziria a um "regime democrático popular”, etapa anterior à revolução socialista propriamente dita (IANNI, 1984: p. 47). A luta pelo desenvolvimento e pelo domínio de forças produtivas e relações de produção capitalistas capaz de inaugurar esse estágio histórico – conclusão da revolução brasileira – sintetiza o problema brasileiros para o PCB e para Nelson Werneck Sodré40. A dificuldade dessa revolução, afirmava Sodré, é que se passaria em um país de origem colonial e já sob a fase imperialista do capitalismo. Em “Introdução à Revolução Brasileira” (SODRÉ, 1967), faz uma avaliação otimista da formação nacional após décadas de transformações econômicas, dentre as quais menciona: a ampliação de novas técnicas no transporte, na agricultura, na indústria etc., embora com difusão desigual “por força da estrutura colonial a que estávamos subordinados”; as novas fontes de energia, como o carvão mineral e a 40 Embora Sodré fosse um destacado elaborador teórico do programa pecebista, sua obra não é idêntica à tradição da terceira internacional ou dos documentos políticos do PCB (DEL ROIO, 2000: pp. 100-102). 16 energia hidroelétrica, embora dependente de importações do primeiro e da exploração do segundo por capitais estrangeiros; as alterações no comércio exterior, mais focadas as importação de máquinas e insumos industriais do que nas exportações, ainda concentrada no café e em outros gêneros primários; e, enfim, a industrialização, cujo impressionante crescimento fez seu produto superar o do setor agrícola, com correspondente ampliação do mercado interno (SODRÉ, 1967: p. 103-5). Persistiam, entretanto, diversos desequilíbrios estruturais que ameaçavam impedir a revolução burguesa, como a existência: (...) de massa camponesa numericamente preponderante e principal como produtora de bens econômicos; de numerosa pequena burguesia, com função política destacada; de proletariado pouco numeroso mas crescente, com formas de organização em desenvolvimento mas ainda fracas; de burguesia recente, ascensional, com amplas perspectivas nacionais. Externamente (...) de um lado, o imperialismo (...) particularmente , em nossos dias, dos Estados Unidos; e, de outro lado, de um país, hoje de alguns países onde se operou a construção do socialismo (SODRÉ, 1967: p. 245) No final dos anos 1950, uma série de pontos de execução fundamental para a revolução era indicada: desenvolvimento técnico e das fontes energéticas; industrialização e ampliação do setor estatal na economia para ampliar o mercado interno; mudança no padrão do comércio exterior e a luta contra o imperialismo (SODRÉ, 1967: p. 112). Dez anos depois, o autor afirmava que o significado da luta pelas reformas de base seria o de “(...) liquidar a dominação imperialista em nossa economia, liquidar o poder dos latifundiários como classe, [levar] à ampliação da base democrática do poder” (SODRÉ, 1967: p. 231). Em sua opinião, a revolução democrática e nacional ainda era possível, justa e necessária. Para uma realização acertada dessas tarefas, era necessária uma análise detida da luta de classes no país que, segundo o PCB, se polarizava em duas frentes: de um lado, o imperialismo, apoiado pelo latifúndio e na parcela dependente da burguesia brasileira; do outro, o polo da revolução, composto pela burguesia nacional e pelas classes populares (proletariado e campesinato); no período do pós-guerra, tal análise incorporou o fortalecimento de um setor estatal em conflito com o imperialismo e articulado com a burguesia nacional (IANNI, 1984: pp. 48-9). Nessa interpretação, é central o papel da burguesia nacional, entendida como “(...) a fração da burguesia objetivamente interessada na exploração do mercado nacional e, conseqüentemente, na eliminação do domínio dos monopólios imperialistas sobre esse mercado” 17 (SODRÉ, 1964: p. 368). A ela, e em especial à sua fração industrial, cabe o papel de vanguarda da revolução com uma dupla tarefa de luta, anti-imperialista e anti-latifundiária. Aprofundando essa análise em “História da Burguesia Brasileira” (SODRÉ, 1964), Sodré esclarece que no tocante ao latifúndio, a burguesia passara da etapa de coexistência à de antagonismo: liquidar a primeira já era uma necessidade para a segunda. O latifúndio brasileiro fundava-se em relações de produção pré-capitalistas, feudais, opostas à constituição de um mercado interno moderno. Durante largo período, essa classe esteve no poder, contrastando sua pujança econômica com as debilidades da economia para o mercado interno e manejando sua influência sobre o Estado para defender-se via “socialização dos prejuízos”. E, mesmo considerando concluída a ascensão da burguesia à classe dominante, o latifúndio manteve impressionante poder baseado na associação de interesses com o imperialismo, uma força que não se poderia subestimar ou desconhecer: Os vínculos entre latifúndio e o imperialismo, assim, são muito fortes, e a burguesia, em sua contradição com o monopólio da terra e com o que ele representa como estreitamento de mercado e obstáculo à generalização de relações capitalistas, é obrigado a considerar que atrás do latifúndio está o imperialismo e que, portanto, o latifúndio, débil quando encarado isoladamente, tem poderes que a razão não pode desconhecer (SODRÉ, 1964: p. 350). Portanto, para ampliar o mercado interno, acabando com a servidão via reforma agrária e garantindo o apoio camponês, a burguesia deveria enfrentar o latifúndio. E isso ela não poderia fazer sem enfrentar, também, o imperialismo. Dessa forma, o imperialismo aparece como principal inimigo da burguesia brasileira na revolução. No primeiro momento, ele buscou controlar o comércio exterior e as finanças, as fontes de matéria-prima e alguns setores de transporte, sufocando a burguesia nascente e reforçando o caráter colonial da economia. Mas com a mudança da composição do comércio internacional, o imperialismo altera sua estratégia para disputar também o mercado interno, via investimentos diretos, em especial na indústria (segunda metade dos anos 1950). E é nesta nova fase que o imperialismo aprofunda a especialização da economia nacional, se beneficia de altos lucros, subsídios e incentivos estatais e da remessa de vultosos lucros para os países de origem. Para isso, ele se apoia no latifúndio, na burguesia mercantil (setor sócio dos negócios imperialistas) e na parcela associada ou dependente da burguesia industrial. Da aliança, está excluída a outra parcela, nacional, da burguesia industrial. 18 Porém, o problema reside no fato de a burguesia estar no poder, mas não executar sua revolução até o final. Como diz Sodré (1964: p 364): “As suas vacilações e concessões decorrem de sua debilidade face ao imperialismo, e não de seus interesses, que são contrários aos do imperialismo”. Diz ainda: Seguir uma política econômica e financeira de conciliação com o Imperialismo, descarregando o fardo na classe trabalhadora e nas camadas médias é, para a burguesia, decorrência da correlação de forças. Na medida em que as forças populares resistirem a uma solução desse tipo, a sua única saída consistirá em enfrentar o Imperialismo (SODRÉ, 1964: p. 365). A chave para o sucesso da revolução passaria, então, pela relação estabelecida entre burguesia e proletariado. Para o proletariado, não é possível subestimar a força das posições antiimperialistas e antifeudais e superestimar o potencial revolucionário da burguesia. Aliado ao campesinato (ainda atrasado, mas em processo de ascensão política), o proletariado divergia da burguesia por estar mais interessado no caráter democrático da revolução. Mas Sodré sustentava que as forças populares poderiam e deveriam apoiar a burguesia nacional para superar suas vacilações e a ideologia anticomunista propagada pelo imperialismo, levando até o fim a revolução. Estava em jogo o futuro da revolução democrática e nacional e a própria existência do Brasil enquanto nação. Ele conclui este texto com um desafio: “(...) não é o proletariado, nem é o campesinato, que está com a sua sorte de classes em jogo. É a burguesia que está decidindo seu próprio destino”. (SODRÉ, 1964: p. 379). 3.2. Caio Prado Júnior: burguesia subordinada e oportunista A obra de Caio Prado Júnior41 (1907-1990) é outro marco no debate sobre a revolução brasileira, com destaque à compreensão das origens e dos problemas de formação do Brasil contemporâneo. Mesmo sendo militante do PCB, ele dedicou-se a criticar as concepções tradicionais do partido: Caio Prado negou por completo as teses de “restos feudais” no Brasil, a estratégia de apoio e a própria existência da suposta burguesia nacional. O livro A Revolução 41 Caio Prado Júnior (1907-1990) foi professor de direito, escreveu sobre economia, filosofia e história, terreno onde mais se destacou intelectualmente. Militou e foi deputado estadual em São Paulo pelo PCB em 1947-48. 19 Brasileira (1966), é o acerto de contas com essas concepções e a base para apresentação de sua ideia de revolução. Caio Prado dedicou parte de sua obra para a crítica aos dogmatismos metodológicos presentes nas teorias do desenvolvimento econômico (PRADO JR., 1972) e nos programas do marxismo e da esquerda brasileira, em especial do PCB (PRADO JR., 1966). O dogmatismo, afirma o autor, foi responsável pela transplantação mecânica de análises baseadas em outras realidades históricas42, originando concepções e programas equivocados. Contra isso, o autor faz um esforço de retorno à história e sintetiza seu método como sendo o de: “(...) pesquisar na evolução histórica brasileira e na formação econômica e social do país, algumas premissas essenciais da problemática atual” (PRADO JR., 1972: p. 17). Isso por que acreditava que o Brasil “(...) ainda se acha intimamente entrelaçado com o seu passado. E não pode por isso ser entendido senão na perspectiva e à luz desse passado” (Idem: p. 18). Em Caio Prado Jr., a síntese da história do Brasil está no longo e profundo movimento de superação do passado colonial para a constituição de uma nação, que o leva a compreender o problema do “sentido da colonização”, exposto em Formação do Brasil Contemporâneo (PRADO JR., 1942). Para ele, o Brasil esteve inscrito desde o seu início nos processos de expansão do capital mercantil europeu e de constituição do capitalismo como modo de produção dominante mundial43. Como a economia colonial foi constituída em função dos interesses da metrópole, com base na plantation (produção de gêneros primários para exportação em latifúndios monocultores) com trabalho escravo e técnicas rudimentares e predatórias, o país sempre significou um grande negócio para a metrópole (e posteriormente para o imperialismo). No processo de superação do passado colonial, se destacam quatro marcos históricos no século XIX. O primeiro é a independência política em 1822, que a despeito da manutenção da dependência externa sob a tutela inglesa foi o primeiro passo na constituição de um Estado nacional (com centralização política, constituição de finanças públicas etc.). Segundo, o fim do tráfico de trabalhadores africanos em 1850, diretamente ligado aos outros dois aspectos: a 42 PRADO (1966: p. 36) mostra que foi assumido de maneira geral que o conjunto de países coloniais, semicoloniais ou dependentes se aproximaria da formação social da China e desse movimento foram desdobrados programas e estratégias para partidos comunistas de diversos países do “terceiro mundo”. 43 O que não é igual a afirmar, como muitos leitores de Caio Prado o fazem incorretamente, que o autor considerasse o Brasil capitalista desde a colônia. 20 imigração de trabalhadores europeus a partir de 1875, aproximadamente, e a abolição do trabalho escravo em 1888. Do ponto de vista das forças produtivas, destaca-se seu largo desenvolvimento, particularmente a produção de café. Contudo, a ampliação súbita do mercado interno escancarou as fragilidades da economia de tipo colonial, incapaz de suprir mesmo os gêneros essenciais a sua população e fundada em baixíssimos patamares do custo de reprodução da mão-de-obra. Ainda sim, frisa Caio Prado, o período foi marcado pela integração de uma gigantesca massa de trabalhadores, outrora apenas força física explorada, no mercado interno e conclui: “Superava-se, assim, definitivamente, a natureza e a estrutura colonial da sociedade brasileira, abrindo caminho para a sua completa integração nacional” (PRADO JR., 1966: p. 85). Todavia, havia dois problemas em aberto. O primeiro dizia respeito ao caráter estruturalmente colonial da economia brasileira, primitivo e organizado para exportar gêneros primários, contrastando com as necessidades dos trabalhadores e até as da elite, atendidas somente por importações. A despeito do processo de diferenciação produtiva e industrialização que ocorrem desde fins do século XIX e em especial a partir dos anos 1930, permanecem severos traços que repõem em novas bases o padrão produtivo controlado desde fora e em função dos interesses externos44. Considerada por Prado Jr. um processo positivo dentro da formação até meados do século XX, a industrialização no pós-guerra passa a ser encarada como vetor da renovação da vulnerabilidade externa e da desintegração nacional (SAMPAIO JR., 1999b: pp. 420-421). Os problemas residem no caráter desta industrialização por substituição de importações, voltada para um mercado restrito à elite, pelo controle dos seus elos estratégicos pelos trustes internacionais e, corolário do dois primeiros pontos, o reforço do dualismo entre um setor vinculado ao mercado externo e outro ao interno. A indústria controlada pelos trustes precisa de setores exportadores para gerar superávit comercial e dele extrair a moeda internacional que remunerará os investimentos internacionais – daí o vínculo estratégico entre investimentos externos e o padrão produtivo de tipo colonial, baseado em gêneros primários, latifúndio, trabalho barato, recursos naturais e exportações: 44 “A diversificação das atividades produtivas e a industrialização – sobretudo esta última, com os efeitos e estímulos que comporta e que o Brasil agrário do passado desconhecia inteiramente – trarão grandes modificações da economia brasileira, e representam sem dúvida um passo considerável no sentido da superação do velho sistema de colônia produtora de gêneros de exportação. Mas doutro lado, reforça de certo modo esse sistema, e o renova sobre outras bases que, nem por serem diferentes das antigas, livram a economia brasileira das contradições que embaraçam o seu desenvolvimento e sua definitiva libertação (PRADO JR., 1966: p. 88). 21 Observamos aqui muito bem a ligação do imperialismo com o nosso sistema colonial, fundado na exportação de produtos primários, pois é dessa exportação que provém os recursos com que o imperialismo conta para realizar os lucros que são a razão de ser de sua existência. Considerada do ponto de vista geral, do imperialismo, a economia brasileira se engrena no sistema dele como fornecedor de produtos primários cuja venda nos mercados internacionais proporciona os lucros dos trustes que dominam aquele sistema. Todo funcionamento da economia brasileira, isto é, as atividades econômicas do país e suas perspectivas futuras, se subordinam assim, em última instância, ao processo comercial em que os trustes ocupam hoje o centro. Embora numa forma mais complexa, o sistema colonial brasileiro continua em essência o mesmo do passado, isto é, uma organização fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentares demandados nos mercados internacionais. É com essa produção e exportação que fundamentalmente se mantém a vida do país, pois é com a receita daí proveniente que se pagam as importações, essenciais à nossa substância, e os dispendiosos serviços dos bem remunerados trustes imperialistas aqui instalados e com que se pretende contar para a industrialização e desenvolvimento econômico. (PRADO JR., 1966: p 89). O segundo ponto era a reminiscência do sistema colonial nas relações de trabalho e no estatuto do trabalhador rural. A questão agrária para Prado Jr. (1966: pp. 100-101) residia no fato de que os baixos salários dos trabalhadores rurais (praticamente desprovidos de direitos e condições de reivindicá-los) equivaliam a um custo de vida correspondentemente baixo, denominador comum de interesses do imperialismo e da burguesia. E é no ponto da questão agrária que o autor passa à crítica aberta das concepções pecebistas sobre o “feudalismo” no Brasil: O que existe e tem servido de exemplificação e comprovação do ‘feudalismo’ brasileiro são remanescentes das relações escravistas, o que é bem diferente, tanto no que respeita à natureza institucional dessas relações, como, e mais ainda, no que se refere às conseqüências de ordem econômica, social e política daí decorrentes (PRADO JR., 1966: p. 104). Ele esclarece exaustivamente que as relações de produção no campo eram majoritariamente capitalistas, organizadas por empresas comerciais e com assalariamento, e que as relações não-capitalistas (como o colonato, a parceria e a meação) nada tinham em comum com a servidão feudal. O primitivismo das forças produtivas no campo se explicava pela insuficiência financeira, pelas deficiências do aparelhamento comercial e pelo baixo nível cultural dos empresários e o patamar reduzido de consciência de classe do trabalhador rural etc. (PRADO JR., 1966: pp. 107-108). O latifúndio (grandes proprietários, fazendeiros, etc.) seria na verdade uma “legítima burguesia agrária” (PRADO JR., 1966: p. 108), com negócios no campo ou outras atividades quaisquer. E, diferentemente do que afirmava a teoria equivocada, não havia qualquer prova de inclinação específica ao imperialismo; pelo contrário, havia até espaços de conflitos, como os dos 22 cafeicultores com as firmas comerciais internacionais, ou dos pecuaristas com os frigoríficos etc. (IDEM: p. 110-111). Quanto ao caráter da burguesia brasileira, outro ponto central da tese pecebista, Caio Prado tece novamente uma crítica severa. Para ele, a burguesia brasileira, heterogênea nas origens, era homogênea nos interesses, nos negócios, e na maneira de conduzi-los. No Brasil, não houve problemas com a existência de estruturas econômicas e sociais prévias ao capitalismo ou mesmo conflitos étnicos e sociais que o atrapalhassem; o Brasil já nasce como uma colônia, nos marcos dos negócios mercantis. Desta forma, a burguesia ascendeu de forma rápida e relativamente coesa, inclusive no setor agrário (PRADO JR., 1966: pp. 115-6). No que diz respeito à sua relação com o imperialismo, Prado Jr. (1966: pp. 117-118) afirma que a entrada do capital estrangeiro não dividiu a burguesia em antagonismos, mas abriu espaços e oportunidades de negócios para praticamente toda a classe dentro do país. Aliás, todos os grandes negócios no Brasil foram impulsionados pelo imperialismo (que também trouxe técnicas e valores “modernos”), até o último estágio da industrialização pesada e complexa. Em sua concepção, portanto, a despeito de conflitos menores existentes entre o imperialismo e a burguesia brasileira, nada seria suficiente para constituir uma oposição de classe entre elas. Por último, Caio Prado Jr. chega a uma crítica radical e nega a existência de uma burguesia nacional, classe capaz de dirigir a revolução brasileira. A industrialização no Brasil é fundamentalmente uma “substituição de importações” delimitada em dois planos: primeiro, é comandada pelos grandes grupos internacionais, que não a aprofundarão para além da capacidade de pagamento externo do país dependente; segundo, a industrialização visa tão-somente a fornecer bens outrora importados, por diferentes meios, ao mesmo mercado restrito (no máximo de alcance regional). Então, como a burguesia não controla a acumulação de capital, pois não tem base objetiva para isso, inexistem as condições objetivas e subjetivas para o anti-imperialismo e para a própria burguesia nacional no Brasil. Caio Prado revela, além da essência da burguesia brasileira, um fator de cisão interna, delimitada pela existência de um sistema de favorecimento de negócios privados pela administração e pelas empresas estatais em prol dos funcionários públicos e dos setores da burguesia associados. É este conflito – e não a divisão entre suposta burguesia nacional e uma “entreguista” –, isto é, entre o que o autor chamou de “capitalismo burocrático” e o setor burguês 23 marginalizado do sistema, que vê na ação estatal apenas promoção dos interesses burgueses gerais, o único fator de “divisão” da classe burguesa. Ao acreditar em uma divisão entre nacionais e entreguistas, a teoria pecebista acabou por colocar os trabalhadores ao lado do capitalismo burocrático, um setor burguês tão ou mais reacionário que o outro. Isso porque os interesses por intervencionismo estatal defendidos pela burguesia burocrática acabaram sendo entendidos como nacionalistas, atraindo apoio dos setores progressistas. O resultado foi a confusão dos setores populares, a paralisação da polarização para a revolução brasileira e o fortalecimento do outro setor que liderou a denúncia ao parasitismo do Estado e dirigiu politicamente a insatisfação popular com tal situação (PRADO JR., 1966: pp. 125-128). Segundo a leitura de Caio Prado Jr. feita por Sampaio Jr. (1999a: pp. 105-107), o resultado da permanência de uma subordinação completa ao capital internacional e da segregação social é que o mercado brasileiro é marcado pela existência de uma conjuntura mercantil precária. A mobilidade do capital internacional impede a constituição do mercado interno como a instância estratégica da acumulação, enquanto que a marginalização permanente impede a socialização dos frutos do progresso técnico e a retroalimentação do mercado interno. Como resultado o subdesenvolvimento se caracteriza pela incerteza estrutural: “A impossibilidade de previsões razoavelmente seguras quanto à trajetória futura da economia faz com que a expectativa de longo prazo de valorização da riqueza capitalista se transforme em um caleidoscópio ultra-sensível” (SAMPAIO JR., 1999a: p. 107). Esta incerteza estrutural implica dois padrões da acumulação capitalista no Brasil: o modo de organização do capital se torna a busca pela liquidez e a racionalidade burguesa se torna particularmente especulativa. Como consequência, a iniciativa privada nativa é permanentemente condicionada pelo estreito horizonte de acumulação do mercado interno e se torna incapaz de superar a dependência. Por outro lado, o capital internacional se caracteriza pela volatilidade dos vínculos com o mercado interno, sempre apoiado na garantia (especialmente institucional) de garantias da mobilidade espacial. É nesses marcos que a burguesia brasileira se desenvolve, subordinada e oportunista45, aproveitando as brechas geradas pelos ciclos que os negócios 45 “Os imperialistas europeus, logo em seguida também os norte-americanos, encontraram no Brasil uma civilização e uma cultura em essência análoga à deles, pois era da mesma origem. Burguesia brasileira e representantes do imperialismo poderão assim se entender perfeitamente. Tanto mais que a ação do imperialismo, excluídas as contradições que introduz na evolução brasileira, mas que de início se disfarçam suficientemente e somente se irão 24 internacionais geram na economia brasileira, sendo o da industrialização, no fundo, mais um destes ciclos46. O programa da Revolução Brasileira proposto por Caio Prado Jr. sintetiza-se na solução dos dois grandes problemas da formação nacional: superar a economia e as relações de produção herdeiras do colonialismo. As reformas necessárias seriam impulsionadas pelas classes trabalhadoras do campo e da cidade e executadas pelo Estado, visando dar melhores condições de trabalho e de direitos sociais. Mesmo sem acabar de pronto com a iniciativa privada (e daí o caráter não imediatamente socialista da revolução), estas medidas seriam capazes de equilibrar a correlação de forças entre capital e trabalho, abrindo espaço para consolidar a classe trabalhadora como força dirigente da revolução brasileira. Quanto à dependência, seria equacionada através do comando das contas externas e do monopólio do comércio exterior. Resume, enfim, o significado da revolução frente à dominação externa: “A revolução brasileira (...) significa a desconexão daquele sistema [capitalismo internacional imperialista] e o desmembramento (...) do mesmo sistema. O rompimento em sua periferia” (PRADO JR., 1966: p. 186). fazendo sentir com o correr do tempo, a ação do imperialismo representou um grande impulso para a vida econômica brasileira. (...) Esse estímulo e impulso econômico proporcionados pelo imperialismo reverteriam principalmente em benefício da burguesia em seu conjunto, pois lhe ofereciam oportunidades e facilidades novas para suas atividades e seus negócios em proporções para ela completamente insuspeitadas no passado. (...) mesmo posteriormente à Guerra de 1939, quando os aspectos negativos da penetração imperialista já começam a se fazer nitidamente sentir, essa penetração, que se realizará então em proporções consideráveis que deixam o passado a perder de vista, traz, ao menos para a burguesia em conjunto e para os interesses burgueses gerais, amplas e inestimáveis vantagens imediatas, e largas oportunidades para seus negócios” (PRADO JR., 1966: pp. 117-118). 46 “A incapacidade de suportar a concorrência externa fez com que a continuidade do processo de industrialização ficasse totalmente dependente da preservação dos parâmetros históricos que haviam permitido o insulamento da economia brasileira da concorrência de produtos importados e que haviam impulsionado a internacionalização dos mercados internos. No entanto, como era óbvio que a estabilidade dos parâmetros externos que haviam permitido essa situação não poderia perdurar para sempre, Caio Prado não cansou de alertar que a industrialização brasileira era extremamente vulnerável a crises de reversibilidade estrutural” (SAMPAIOR JR., 1999b: p. 422). “Não se ignora o papel singular, sem paralelo no passado, que as rápidas e contínuas transformações da tecnologia representam na indústria moderna. Já não se trata apenas, como ocorria há poucos decênios passados, do problema de aperfeiçoamento da indústria e de sua promoção e ampliação. O progresso tecnológico e a introdução contínua de inovações representa na indústria de nossos dias, em particular naqueles seus setores básicos e decisivos - como a indústria química, a eletrônica e outras semelhantes -, condição essencial e precípua de sua própria subsistência. O obsoletismo que se propõe aqui a cada momento, pode-se dizer, não é no caso apenas inconveniente ou mesmo intolerável. É simplesmente impossível. Transformar-se e progredir continuamente, ou então perecer, é esta a única alternativa que se apresenta” (PRADO JR., 1972 apud SAMPAIO JR., 1999b: pp. 422-423). 25 3.3. Celso Furtado: a burguesia dependente e subdesenvolvimento O problema central para o economista Celso Furtado47 é a superação da condição de subdesenvolvimento do Brasil. Isso implica superar, sob o pano de fundo mundial da estrutura centro-periferia, a modernização dos padrões de consumo da elite como vetor do desenvolvimento e a heterogeneidade estrutural (produtiva, social e regional) que constituem uma inadequação entre fins e meios no desenvolvimento. Contudo, dado que pelos próprios problemas impostos pelo subdesenvolvimento não se conformaram classes burguesa e populares fortes (capazes de impor fins), a solução dos problemas passa pela ação organizadora do Estado, sob a direção de uma intelectualidade comprometida com os interesses nacionais48. Para Furtado, o subdesenvolvimento não era uma etapa histórica, transitória para o pleno desenvolvimento; mas sim uma condição específica de alguns países da periferia do capitalismo e insuperável sem vontade política e social para concluir a formação nacional. O problema é entender a estrutura centro-periferia49, ou seja, a totalidade de relações mundiais polarizada pelo controle que o centro possui do Progresso Tecnológico e por sua capacidade de impor padrões de consumo e assim impor a perpetuação do subdesenvolvimento (FURTADO, 1967). A sua característica fundamental é a existência de dinâmicas econômicas distintas entre esses dois polos. Nos países do centro, as transformações ocorrem “(...) simultaneamente nas estruturas econômicas e na organização social” (FURTADO, 1981: p. 89), isto é, os aumentos de produtividade do trabalho, derivados de inovações tecnológicas50, e respectivos aumento da produtividade do trabalho e escassez relativa de mão-de-obra, são difundidos pela concorrência para o resto do mercado, ampliando o consumo e os salários reais – é a dialética inovação-difusão 47 Celso Furtado (1920-2004) foi um dos grandes pensadores do problema da formação do Brasil. Integrou a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), com importante elaboração própria sobre os problemas do continente e do Brasil. Também chefiou a SUDENE e foi ministro do Planejamento do governo Goulart e da Cultura no governo Sarney. 48 Para uma elaboração tipicamente desenvolvimentista de Celso Furtado, ver FURTADO (1962). Para a narrativa sobre a evolução do seu pensamento frente às transformações econômicas e políticas mundiais e brasileiras, ver suas obras autobiográficas (FURTADO, 1985; 1989, 1991). 49 Essa elaboração se remete à crítica original do pioneiro da CEPAL Raul Prébisch à teoria ricardiana do livre comércio. Devido à difusão lenta do progresso técnico e à deterioração dos termos de troca, as relações econômicas internacionais impunham obstáculos incontornáveis à superação do subdesenvolvimento pela via liberal, exigindo como saída a industrialização da periferia. 50 A noção de inovação usada Furtado é emprestada de Joseph Alois SCHUMPETER (1911), especialmente o capítulo 2. 26 (FURTADO, 1981: cap. 5). Na periferia, “as modificações do sistema produtivo são induzidas do exterior” (Idem: p. 89), implicando a especialização simples da produção. Isto resulta em uma inadequação entre a demanda (as necessidades do conjunto da população) e a oferta (atraso na capacidade de produzir um conjunto de bens) que resume o subdesenvolvimento. Para Furtado, o vetor do subdesenvolvimento é a modernização dos padrões de consumo da elite. No período pré-civilização industrial, nas regiões subdesenvolvidas que não se limitaram a meros enclaves, parte do excedente – produto total menos o custo de reprodução da população – ficou nas mãos de elites locais, que a utilizaram para importar bens de consumo do centro. Isso representou uma “irracionalidade”, por causa do baixo nível de renda per capita da periferia frente ao nível do centro, e um traço de colonialismo ou dependência cultural das elites, devido ao mimetismo do padrão de consumo e do estilo de vida importados. A permanência da modernização ao longo da história travou o uso do excedente para outros fins, como a acumulação produtiva e o aumento de salários e do mercado (FURTADO, 1981: cap. 7). Para o autor, o subdesenvolvimento é claramente uma inadequação entre um perfil de demanda modernizado e uma base produtiva especializada, ou o conflito gerado pela disparidade de “necessidades”, por parte de uma minoria, que estão muito além das possibilidades materiais desta sociedade (FURTADO, 1974: cap. 2). Por outro lado, o subdesenvolvimento é marcado pela heterogeneidade estrutural, isto é, as profundas assimetrias dentro do aparelho produtivo, combinando, de forma interdependente, setores ultramodernos e setores arcaicos de baixíssima produtividade51. A desigualdade e a concentração permitem o acesso a tecnologias inadequadas (pois projetadas para o centro) via importação de bens ou pela sua produção interna e impede a difusão das tecnologias adequadas às necessidades e possibilidades desses países. Decorre também a incapacidade de se gerar escassez relativa de mão-de-obra, inviabilizando a formação objetiva e subjetiva de classes trabalhadoras. O resultado é uma dessimetria que “manifesta-se sob a forma de heterogeneidade social e de rupturas e desníveis nos padrões de consumo” (FURTADO, 1981: p. 90), inviabilizando a dialética inovação-difusão. 51 A heterogeneidade estrutural poderia ser concebida sob aspectos que incluíam assimetrias sociais (expressa por um desemprego estrutural), produtivas e regionais. Para mais detalhes, ver PINTO (2000). 27 Em “Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico” (FURTADO, 1967: pp. 183185), o autor esclarece que a dependência imposta pela estrutura centro-periferia tende a se perpetuar por diferentes períodos na periferia. No primeiro, a etapa agrário-exportadora, a dinâmica da economia periférica se dava por impulsos externos sobre o setor exportador especializado em produtos primários, gerando um excedente que foi parcialmente retido e usado para diversificar o consumo da elite. No período seguinte, o de Substituição de Importações (S.I.) em países como Brasil, Argentina e México, a modificação na função de produção da periferia foi o elemento dinamizador, com a elevação do nível tecnológico do conjunto do sistema, embora desigual. No terceiro momento, consolidada a S.I., a difusão de padrões de consumo imitados do centro passa a ser o vetor de uma economia onde coexistem as três formas de dependência e que fica presa ao círculo vicioso do subdesenvolvimento: (...) a necessidade de elevar permanentemente o coeficiente de capital, no setor que produz para a minoria integrada no processo imitativo, impede uma mais ampla difusão do progresso técnico nos segmentos de economia dependente, que produzem para o conjunto da economia (FURTADO, 1967: p. 183) No último período, iniciado no Brasil no final dos anos 1950, é quando o domínio do centro é realizado por meio do investimento direto das Empresas Transnacionais (ETs). Para Furtado, na “nova economia internacional”, são tais empresas os elementos dinâmicos, ao deslocar a importância dos mercados internacionais para suas transações internas e ao controlar a produção e a difusão das novas técnicas: “(...) o desenvolvimento dependente implica a criação de vínculos com as grandes empresas que engendram a necessidade desses produtos e mantêm o controle das técnicas requeridas para produzi-las.” (FURTADO, 1967: p. 186). Em suma, “(...) trata-se da transplantação, do ‘centro’ para a ‘periferia’, de atividades produtivas ligadas a uma clientela perfeitamente condicionada e sob controle” (Idem: p. 183). Em um contexto de declínio dos termos de troca em detrimento dos países periféricos, a apropriação do excedente aí gerado pelas ETs gera uma grande contradição. Durante o período da substituição de importação, ela se manifestou em fortes pressões no balanço de pagamentos; consolidada esta fase, abre-se um período de forte endividamento externo. A superação do subdesenvolvimento torna-se mais urgente e a questão do agente do processo, crucial. Contudo, os próprios problemas do subdesenvolvimento inviabilizaram a formação de forças sociais, burguesia e classes populares, que pudessem superá-lo. Em primeiro lugar, 28 Celso Furtado nega a existência de uma burguesia nacional no Brasil. Em “Análise do ‘Modelo’ Brasileiro” (FURTADO, 1972), ele resume o que chama de burguesia nacional: Não era suficiente a presença de atividades mercantis (...). Os interesses nacionais definiam-se quando a atividade mercantil se apoiava em manufaturas locais, que podiam ser ameaçadas por concorrentes externos ou que eram utilizadas para exportação. É essa combinação de atividades manufatureiras pré-industriais (baseadas na organização corporativa ou no trabalho livre), com atividades mercantis que enfrentam a concorrência externa, que define o perfil das burguesias nacionais (FURTADO, 1972: p. 18). No Brasil, o pacto colonial inibiu qualquer iniciativa de burguesia nacional durante quatro séculos. Com a independência política, mesmo as atividades manufatureiras da segunda metade do século XIX são apenas complementos do comércio exterior: (...) a classe industrial que se forma no Brasil atua num quadro estrutural próprio que deve ser levado em conta se se pretende compreender o seu comportamento. Assimilá-la a uma burguesia nacional constitui simplificação que contribui mais para ocultar do que pra revelar a realidade. Seus interesses estão, de maneira geral, positivamente vinculados ao comércio exterior. São as exportação que criam o mercado interno e permitem a aquisição de equipamentos no exterior a bom preço; por outro lado, só excepcionalmente as indústrias locais concorrem com as importações, das quais são em muitos casos complementares (FURTADO, 1972: p. 19). Mesmo nos anos 1960, após a industrialização pesada, não se formou uma burguesia nacional. O que se tornou progressivamente hegemônico – e ascendeu ao poder junto com a tecnocracia com o golpe de 1964 – foi o que Furtado chamou de grupo industrial, composto por três partes: (...) um setor privado nacional formado pelos dirigentes de limitado número de grandes firmas que sobrevivem com maior ou menor grau de autonomia e de um numero considerável de pequenos empresários; um poderoso setor privado estrangeiro, constituído de dirigentes alienígenas e nacionais de filiais ou empresas subsidiárias de consórcios internacionais; um outro setor de importância crescente formado de quadros superiores de empresas públicas, quase sempre originários da administração civil ou militar (FURTADO, 1972: p. 35). Furtado destaca três aspectos do grupo industrial: primeiro, seu caráter heterogêneo, apesar de coeso e com partes muito mais complementares do que concorrentes 52; segundo diz respeito ao caráter internacional desse grupo industrial. Como se trata de uma boa parcela de empresas com inserção nacional e internacional, especialmente a dos setores mais dinâmicos, 52 As empresas estatais predominam na infraestrutura, nas atividades criadoras de economias externas e de grande imobilização de capital e pequeno progresso técnico; as empresas privadas nacionais controlam a construção e setores acessórios aos demais setores; e os grupos transnacionais comandam as indústrias de bens duráveis, químicos e farmacêuticos e o de equipamentos, em suma, os mais dinâmicos e de maior progresso técnico (FURTADO, 1972: p. 35). 29 “(...) os possíveis conflitos entre interesses ‘internos’ e ‘externos’ tendem a ser transferidos para o âmbito dos oligopólios internacionais” (FURTADO, 1972: p. 36). Desta forma, configura-se grande diferença com uma burguesia nacional: Como a formação profissional, as fontes de informação, os padrões de consumo, em muitos casos a carreira, enfim, o quadro cultural dos elementos dirigentes das empresas dos três setores indicados tendem a seguir os mesmos paradigmas, trata-se menos de emergência ou consolidação de uma burguesia nacional do que de implantação da nova burguesia internacional ligada ao capitalismo dos grandes conglomerados transnacionais (FURTADO, 1972: p. 36). Por fim, o único traço semelhante a uma burguesia nacional é a “preocupação de dar legitimidade ao sistema de poder mediante a tradução em linguagem de objetivos nacionais dos interesses do grupo” (FURTADO, 1972: p. 36). Do lado dos trabalhadores, a “grande reserva de mão-de-obra à disposição dos empresários [resultado da heterogeneidade] inibiria o processo de luta de classes”, como explica MORAES (1995, p.67) em estudo sobre Furtado. O capitalismo periférico caracterizava-se por “(...) uma pressão sindical insuficiente para empurrar os capitalistas à modernização e à concorrência” (Idem: p. 67). A força social motriz para superar o subdesenvolvimento, na concepção de Furtado e da CEPAL, seria uma “intelligentsia”, como mostra o estudo de MORAES (1995)53. Os planejadores tem nesse processo um papel especial: primeiro, seriam portadores da razão, um conhecimento “neutro” e acima dos conflitos das classes; segundo, detêm a capacidade de persuasão, isto é, elaboram a “imagem de uma realidade em crise iminente”, para a qual propõem um conjunto de valores substantivos capazes de gerar um consenso. Por fim, estes intelectuais têm, além da capacidade, o dever de governar. Na periferia, onde a livre expressão dos agentes era incapaz de oferecer saídas para o subdesenvolvimento, são os intelectuais que “põem o sistema para operar, que dão ao Estado aquela eficácia sem a qual ele não sobrevive” (MORAES, 1995: p. 76). O pressuposto em todas estas análises é uma concepção liberal de Estado, capaz de comportar as aspirações da coletividade, da nação. 53 Nessa concepção herdeira do pensamento do sociólogo Karl Mannheim, cabe à intelectualidade o papel de “'antecipar o consenso' e preparar o caminho para que ele se organize” (MORAES, 1999: p. 72), por meio do Estado e do planejamento estatal. Sob tal orientação, “Furtado aponta a necessidade de condicionar as formas de agir” (Idem: p. 68), sem, contudo, comprometer por completo os critérios de racionalidade dos agentes econômicos: “No interior desse confronto de alçadas macro/micro, revela-se também qual é o poder ordenador da sociedade, isto é, o centro que aloca os recursos e demarca previamente os destinos dos contendores” (Idem: p. 69). 30 Cabe assim, portanto, às classes um papel secundário frente aos dilemas do subdesenvolvimento. A saída passa pelo controle da modernização dos padrões de consumo, pela realização de reformas econômicas e sociais que acabassem com a heterogeneidade estrutural, em particular a Reforma Agrária e pela reorganização do sistema produtivo sob bases nacionais, além de, além ma mudança da ordem econômica internacional crescentemente transnacionalizada, que deveria ser reformas em prol de uma maior igualdade entre países do centro e da periferia 54. Mas são os intelectuais, através do planejamento estatal, os responsáveis pela execução das tarefas nacionais (e mesmo as internacionais) capazes de concluir a formação nacional. 3.4. Florestan Fernandes: burguesia dependente e a contrarrevolução permanente Florestan Fernandes55 afirma que as sociedades dependentes da América Latina, em especial no Brasil, tributárias de uma formação histórica e estrutural sob a articulação entre dependência externa e segregação social interna, não têm força própria para integrar-se nacionalmente e se autonomizar. Na etapa do Imperialismo Total, alimentada pela Guerra Fria e pela expansão das empresas transnacionais, a burguesia dependente brasileira opera uma permanente contrarrevolução para acelerar a modernização capitalista e reprimir as pressões populares. Ao limitar o circuito político às classes dominantes e institucionalizar um padrão de dominação compósito e autocrático que corresponde a uma revolução burguesa em atraso, ele aponta a superação da ordem capitalista como horizonte alternativo à concentração de renda e poder, à marginalização social e à barbárie. Para desbravar as relações entre desenvolvimento capitalista e luta de classes, o autor realiza alguns passos: compreender como o desenvolvimento capitalista condiciona a formação das classes; identificar o padrão da luta de classes (relações inter e intra-classes); e por fim, caracterizar o circuito político em que se passa a luta de classes e como ele determina as condições da mudança social. 54 Para considerações de Furtado sobre o tema, ver capítulos 11 e 12 da Pequena Introdução ao Desenvolvimento (FURTADO, 1981). Para o papel da transnacionalização do capital na ordem global e os problemas do desenvolvimento em Furtado, ver Hadler (2012). 55 O sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) foi o grande expoente da Escola Paulista de Sociologia que se desenvolveu na USP nos anos 1950 e 1960. Autor de vasta obra nas ciências sociais, foi deputado constituinte pelo PT nos anos 1980. 31 As economias subdesenvolvidas e dependentes são, para Fernandes, mais do que herdeiras de formas de dominação coloniais e neocoloniais: elas têm nessas formas (e em seus desdobramentos estruturais e dinâmicos) necessidades que as tornam substância do seu próprio desenvolvimento (FERNANDES, 1973: pp. 59-60). O autor afirma que os fluxos de modernização dos polos da dominação externa, em cada período histórico, irradiam instituições, valores e técnicas capitalistas, mas não geram as condições que viabilizam sua máxima eficácia para a mudança social (FERNANDES, 1995: p. 146). O resultado é que a articulação dos dinamismos externos e da sociedade dependente, calcada na heterogeneidade de formas sociais e de produção, não podem impulsionar um desenvolvimento autônomo56. Essa sociedade é fundada na superexploração do trabalho, que viabiliza a “apropriação dual” do excedente, isso é, sua divisão entre as classes dominantes externas e internas; as primeiras alimentam-se dessas relações, enquanto as segundas utilizam-se do desenvolvimento desigual para financiar a modernização e para proteger-se dos impactos devastadores dessa mesma modernização e da instabilidade de seu mercado (FERNANDES, 1974: p. 40; 1968: pp. 84-89). A importância do dualismo na obra de Florestan pode ser assim sintetizada: Em suma, a reprodução de mecanismos de acumulação primitiva e a depredação do meio ambiente são características inerentes ao capitalismo dependente. Elas derivam de um contexto histórico no qual o espírito burguês adquire um caráter “ultra especulativo” e uma natureza “ultra-extorsiva” (SAMPAIO JR. 1999: p. 140). Para além, o dualismo faz com que a ordem social competitiva seja bloqueada, pois a competição capitalista deixa de ser a racionalidade do sistema econômico e absorção de interesses divergentes pelo conflito, a racionalidade do sistema político. O esvaziamento das propriedades dinâmicas da economia pela sua sobrepolitização impede que ela sirva como um elemento motor da integração e/ou da diferenciação social e, portanto, do desenvolvimento. “Nestas circunstâncias, a ‘racionalidade econômica possível’ leva até as empresa mais modernas das economias dependentes a exigir suportes extra-econômicos que perpetuam o atraso (SAMPAIO JR., 1999a: p. 140). Cabe citar uma passagem em que Fernandes mostra o peso das consequências do processo de sobrepolitização para a racionalidade econômica capitalista: 56 “(...) a articulação dos dinamismos econômicos, sociais e culturais, internos e externos, apesar de tudo, não é suficiente para produzir a emergência e a consolidação de um padrão de desenvolvimento que pudesse se equiparar ao padrão de desenvolvimento auto-sustentado das Nações capitalistas hegemônicas” (FERNANDES, 1974: p. 39). 32 Qualquer problema econômico que envolva o equilíbrio, a existência ou o ritmo de crescimento do setor converte-se, automaticamente, em matéria política. Em consequência, as soluções econômicas passam para um modesto segundo plano, prevalecendo o poder político dos grupos em presença e as forças de acomodação política resultantes. No conjunto, evidenciam-se duas linhas concomitantes de influências: 1ª) a que se define ao nível das relações com os núcleos hegemônicos do exterior; 2ª) a que se define ao nível das composições entre o setor arcaico e o moderno. Em tais circunstâncias, o equilíbrio do sistema econômico e a eficiência de sua ordem econômica descansam sobre fatores e mecanismo econômicos capitalistas. Mas em nenhum momento o funcionamento e o desenvolvimento dessa ordem econômica deixa de traduzir a interferência de fatores e mecanismos extraeconômicos. É inerente ao capitalismo dependente, portanto, uma margem de insegurança crônica, que atinge especialmente os agentes econômicos que operam, enquanto classe, os processos econômicos internos de natureza capitalista. Na medida em que contam com condições para determinar, em bases puramente econômicas, os limites irredutíveis de sua autonomia real, os referidos agentes se veem impotentes para exercer controle completo sobre todas as fases ou efeitos dos processos econômicos incorporados à ordem econômica vigente (FERNANDES, 1968: pp. 64-65). O dualismo no nível econômico corresponde à composição (histórica e estrutural) no âmbito do poder entre os setores moderno e arcaico, cuja unificação, desde os tempos da independência, compete para sobrepor seus interesses ao resto da sociedade e para perpetuar a dupla articulação, a despeito da integração nacional e do fim da segregação social. O resultado é a cisão da sociedade entre “proprietários e não proprietários de bens” (FERNANDES, 1968: pp. 40-41, pp. 70-71), segundo as possibilidades de se estar (ou não) em uma posição no sistema que os valorize econômica e os classifique socialmente. Entre os “proprietários”, estão as classes dominantes e médias, além de uma parcela dos assalariados que se proletariza; nos “nãoproprietários”, os assalariados em vias de proletarização e os “condenados do sistema” ou marginalizados (Idem: pp. 72-74). A estrutura de classes pode ser vista através da análise de cada setor e da relação entre eles. Quanto ao proletariado, ele é uma classe objetivamente enfraquecida pela sobreapropriação e pela heterogeneidade, constitutivas do sistema, que restringem “(...) diretamente a participação econômica e, indiretamente, a participação sociocultural e política dos trabalhadores assalariados” (FERNANDES, 1973: p. 74). Também decorrência da heterogeneidade interna às classes trabalhadoras, a proletarização adquire um status de classificação e mobilidade sociais que polariza positivamente uma parcela dos assalariados (sua elite) com a ordem (FERNANDES, 1973: p. 74; 1968: p. 76). Paralisa-se, desta forma, a constituição da classe em si e para si. 33 Quanto à burguesia dependente, Florestan esclarece que o bloqueio à concorrência como racionalidade econômica com a composição de interesses das classes dominantes as torna uma “plutocracia” ou “burguesia compósita” (FERNANDES, 1973: p. 62). Ela objetiva a defesa comum de privilégios e da propriedade, além do desfrutar dos benefícios da modernização irradiada pelos polos hegemônicos, o que circunscreve seu horizonte histórico ao subdesenvolvimento econômico e à dependência cultural. Disso decorre, então, que o padrão de relação entre as classes fica sobredeterminado pela segregação econômica, social e política, o que inviabiliza a existência de mecanismos de solidariedade de classe em nível nacional capazes de dar motor autônomo à mudança social interna (FERNANDES, 1976: pp. 382-385). Esse capitalismo gera uma burguesia vítima de sua situação de classe: Ela possui poder para resguardar sua própria posição econômica e os privilégios dela decorrentes no cenário nacional. Mas é impotente em outras direções fundamentais, a tal ponto que induz e fomenta um crescimento econômico que a escraviza cada vez mais intensamente ao domínio dos núcleos hegemônicos externos (FERNANDES, 1968: p. 91). Respondendo a uma tripla fonte de pressões por mudanças – da dominação externa, das classes subalternas e do Estado burocrático e tecnocrático – a burguesia busca “congelar” a história no que diz respeito a seus privilégios e “acelerá-la” no que diz respeito ao dinamismo econômico. Para isso, engendra um padrão de dominação exacerbadamente político que restringe o Estado a um “circuito fechado” em torno das classes dominantes. É uma dominação ou hegemonia “compósita” porque feita de interesses burgueses diversos fundidos, não por motes capitalistas, mas pela concentração de renda, poder e privilégios (FERNANDES, 1995: p. 140; 2006: pp. 376-380) Isso implica que o regime de classes não é meio para dirimir conflitos e, por isso, impede a mudança social. Em “Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina” (FERNANDES, 1973) o autor explica que na segunda metade do século XX se constitui o “Imperialismo Total”, marcado pela expansão da grande empresa corporativa e, portanto, do capitalismo monopolista, e politicamente pela Guerra Fria, que é seu fator decisivo por representar a luta pela defesa e pela vitória do capitalismo em si. O novo padrão revela as debilidades das economias dependentes (mesmo as suas mais avançadas) e mostra a incapacidade das suas burguesias sobrepujarem o subdesenvolvimento por esforço próprio, porque modifica a dependência: 34 O traço específico do imperialismo total consiste no fato de que ele organiza a dominação externa a partir de dentro, em todos os níveis de ordem social, desde o controle da natalidade, a comunicação de massa e o consumo de massa até a educação, a transplantação maciça de tecnologia ou de instituições sociais, à modernização da infra e da superestrutura, os expedientes financeiros ou de capital, o eixo vital da política nacional etc. (FERNANDES, 1973: p. 27). No Brasil, com a industrialização pesada ocorre a concretização do capitalismo monopolista, que corrói as bases do “desenvolvimentismo”, reorganiza o mercado em função das corporações e anexa o país ao espaço socioeconômico, cultural e político dos Estados Unidos (FERNANDES, 1973: pp. 27-32). As empresas transnacionais tornam-se os polos ativos das economias dependentes, impondo sua influência estrutural e dinâmica: “As empresas anteriores, moldadas para um mercado competitivo restrito, foram absorvidas ou destruídas, as estruturas econômicas existentes foram adaptadas às dimensões e às funções das empresas corporativas, as bases para o crescimento autônomo e a integração nacional da economia, conquistadas tão arduamente, foram postas a serviço dessas empresas e dos seus poderosos interesses privados” (FERNANDES, 1973: p. 31). Mas a “fraqueza” dessa burguesia é relativa. Fernandes mostra em “A revolução burguesa no Brasil” que a burguesia ganha condições de negociação com o imperialismo – que demanda parceiros fortes devido ao contexto internacional - o que a permite a absorver e graduar a modernização. Internamente, movida pela resistência à mudança que se metamorfoseia em “medo-pânico”, ela supera suas vacilações e institucionaliza um regime autocrático com o golpe de 1964. Sua força reside em legitimar a ordem (capitalista e dependente) através do crescimento acelerado (no período do “Milagre”) e na repressão aberta ao dissenso. Resulta que as burguesias dependentes: (…) detêm um forte poder econômico, social e político, de base e de alcance nacionais; possuem o controle da maquinaria do Estado nacional; e contam com suporte externo para modernizar as formas de socialização, de cooptação, de opressão ou de repressão inerentes à dominação burguesa. Torna-se, assim, muito difícil deslocá-las politicamente através de pressões e conflitos mantidos 'dentro da ordem'; e é praticamente impossível usar o espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir as contradições de classe, agravadas sob as referidas circunstâncias (FERNANDES, 1976: pp. 344-345). Sob o controle da burguesia estão: alguma condição de negociação com os núcleos hegemônicos de um processo ampliado de acumulação de que ela faz parte de maneira subordinada; e a capacidade de manipular as condições sociais, econômicas e ambientais internas de forma quase absoluta, capacidade esta que se converte em seu ativo mais precioso. É uma burguesia impotente para fora, mas onipotente para dentro. 35 Em suma, a contradição da revolução burguesa é que o capitalismo dependente (e a sua burguesia) não consegue remover os entraves internos (a heterogeneidade estrutural) e externos (a dependência ao imperialismo) ao desenvolvimento capitalista autodeterminado, nem promover um Estado que, absorvendo interesses diversos, identifique positivamente as classes com a ordem burguesa. Para Florestan, isso acelera a história, ao tornar a “revolução contra a ordem”, feita pelas classes subalternas, a única saída para garantir a integração e a autonomia nacionais (FERNANDES, 1995: p. 138; 1974: p. 49). 4. Burguesia brasileira: dependência e negócios Em busca de uma síntese que ajude a nortear esta pesquisa, será feita uma breve síntese dos principais pontos levantados por cada autor, em particular no que tange ao papel da burguesia brasileira. Da síntese de cada autor e do confronto entre eles, será feita uma breve exposição do que consideramos ser o marco teórico fundamental que será contrastado com a pesquisa empírica dos grupos da burguesia brasileira nos anos 2000. Nelson Werneck Sodré afirma a existência de uma burguesia nacional, comprometida com o mercado nacional e potencial dirigente de uma revolução brasileira de caráter democrático e nacional. O problema é que a burguesia carrega o fardo do atraso e a pressão do imperialismo, que polariza forças internas – o latifúndio e a burguesia comercial e industrial associada – em favor da permanência da condição semicolonial. É importante frisar as nuances de Sodré sobre as debilidades constitutivas da economia e das classes sociais, o que torna necessária uma complexa equação de frente política das forças comprometidas com a nação, proletariado e campesinato dando suporte à protagonista burguesia. A política de conciliação com o Imperialismo ocorre a despeito dos interesses estratégicos desta burguesia e acumula tensões entre as classes. Nelson Werneck Sodré aponta que está em xeque a própria existência da burguesia nacional, colocando na ordem do dia que se leve a revolução até o fim. Por outro lado e por caminhos distintos, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes se contrapõem à ideia de existência de uma burguesia nacional. Isso resulta de uma condição herdada da origem colonial e da forma específica como ocorreu a transição neocolonial: sem a ruptura com a participação dos latifundiários e comerciantes nativos em negócios 36 estrangeiros e da utilização da força de trabalho escrava, que condicionou o país a um padrão de superexploração do trabalho. A dupla articulação se revela fonte permanente de tensão entre as classes à medida que o país se diferencia e se moderniza, inclusive com parcelas minoritárias da burguesia em formação, mas isto não significa que esteja no horizonte burguês a superação da dependência e a concretização da integração nacional como fonte de poder. Para usar os termos de análise de Prado Jr., a superação da dependência não está inscrita na história da burguesia brasileira. A constatação de que a dependência e a segregação constituíam traços estruturais e condicionantes, fato que ficou mais claro com o início da ditadura de 1964, tem influências tanto nos marcos do campo de pensamento da formação como em outras vertentes que virão da tese do “desenvolvimento com dependência” e que teriam profunda influência no debate público que se sucedeu57. Para o campo da formação, é fundamental tirar as lições, a partir destas orientações da dependência, sobre quais são os traços mais fundamentais da burguesia brasileira e as implicações para os dilemas da formação. Para Caio Prado Júnior, a extrema volatilidade que caracteriza a relação dos negócios estabelecidos pelo grande capital internacional no país e a precariedade do mercado interno de uma sociedade fundada na segregação criam um estado de conjuntura mercantil precária que leva à constituição de uma racionalidade capitalista particularmente especulativa e rentista. Dentro deste contexto, a burguesia brasileira precisa sobreviver tirando proveito de todas as oportunidades abertas pelo imperialismo, considerando a posição especializada, tributária e residual da economia brasileira dentro do sistema capitalista mundial. Como o mercado interno não se converte na instância estratégica da acumulação de capital, a burguesia brasileira faz sua opção por se ligar aos fluxos e influxos impulsionados e controlados de fora para dentro. Isto é uma verdade em todos os setores – agropecuária, comercial, industrial e financeiro – e em todos os ciclos econômicos da época colonial ou independente – açúcar, metais preciosos, algodão, fumo, café, borracha e até a indústria. A indústria é o caso mais especial, pois representa o gérmen de uma economia nacional no período de crise da divisão internacional do trabalho e em que, por um período, parte dos elos estratégicos estiveram sob controle nacional, mas também 57 A inflexão proposta por Cardoso e Faletto (1970), que propõem ser possível, desejável e necessário ao Brasil atingir o desenvolvimento em condições de dependência, é o marco de uma crise na teoria do desenvolvimento como havia sido elaborada até então, nos marcos da formação. Ver Sampaio Jr. (1999c). 37 constitui o símbolo máximo da crise da formação, quando passa a ser estrategicamente controlada pelos oligopólios internacionais. A análise de Prado Jr. sobre o significado da industrialização é crucial. Ela não só reforça a instabilidade por aprofundar a magnitude dos fluxos de capital a ser remunerados e a vulnerabilidade perante às estratégias exógenas às necessidades dos nacionais, como exige o aprofundamento do dualismo na economia, entre setores voltados para mercados externos e internos. Isso ocorre porque, para o capital internacional, os negócios externos são mais uma forma de ampliar sua valorização (D – D’). Mas acontecem dois problemas derivados da execução de parte do circuito de valorização dentro de uma economia periférica, como é o caso da indústria de substituição de importações que tem como mercado o interno. Os lucros são realizados em moeda local e precisam ser transformadas em moeda de uso internacional, além de ser necessária a livre mobilidade do capital para promover o retorno. O circuito (DUS$ – [ DR$ – M – D’R$] – D’ US$) passa a exigir o desenvolvimento e aprofundamento dos setores exportadores locais, capazes de gerar as divisas, e a garantia, por parte do Estado local, da livre mobilidade do capital internacional. Sob controle externo, a industrialização tem impactos desestruturantes na entrada e na saída do grande capital, no início e no fim do ciclo da indústria, assim entendido como mais um na história brasileira. Daí decorre que a diferenciação das forças produtivas e de que parte da burguesia brasileira participe da indústria não signifiquem industrialização nem uma burguesia nacional. Como economia reflexa, a economia brasileira está exposta a mais uma crise de reversão neocolonial (SAMPAIO JR., 1999a: pp. 113-114). Neste processo, a burguesia oportunista não está dividida, mas alinhada aos negócios estrangeiros, tendo somente uma cisão derivada de parte ter acesso privilegiado ao Estado – sua fração burocrática – e outra não. Do que depreendemos de Caio Prado que o importante é compreender como uma burguesia pode ganhar ao longo dos ciclos a que está exposta, e, dentre eles, o ciclo da indústria (SAMPAIO JR., 1999b: p. 425). Diferentemente desta noção de instabilidade exacerbada construída por Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes permitem enxergar como o capitalismo subdesenvolvido e dependente adquire alguma estabilidade, sem, é claro, resolver os problemas da formação (SAMPAIO JR., 1999a: p. 128). A crítica de Fernandes a Caio Prado inclusive busca mostrar como o segundo subestimou o impacto do capital industrial a partir do período de 38 substituição de importações: “Há deslocamentos na economia. O capital mercantil não desaparece. Mas perde sua função hegemônica e determinante. O círculo vicioso persiste, mas não por sua conta” (FERNANDES, 1988: p. 10). Por duas formas distintas apreendemos o significado da industrialização, portanto. Celso Furtado, apesar de não ser um teórico da burguesia brasileira – já que está orientado para a resolução do problema do subdesenvolvimento a despeito do que considera como as fragilidades das classes sociais brasileiras –, explicou traços fundamentais da relação entre a industrialização e a classe dominante interna. O fundamental reside em considerar que o motor do subdesenvolvimento é a dependência cultural das elites que buscam a permanente modernização dos padrões de consumo. Esta dependência cultural se converte em dependência econômica na medida em que a necessidade de mobilizar recursos para promover a modernização exige a concentração da renda e a busca da dinamização da economia pelo caminho mais curto: o setor agrário-exportador. A industrialização por substituição de importações caminha com a ambiguidade de um processo adaptativo: movido pelas exigências da modernização em condições internacionais adversas e promovendo bases materiais que apontam para uma economia nacional. Quando, contudo, a industrialização e a política econômica se constituem como funções das empresas transnacionais – o que se consolida entre o início da indústria pesada e a ditadura de 1964 –, a dependência se repõe em um patamar superior. Como a burguesia brasileira nunca foi uma burguesia nacional, já que desde a sua origem esteve vinculada a negócios de comércio internacional, os caracteres do grupo industrial formado entre os anos 1950 e 1960 explica o padrão de ação econômica e política desta burguesia. O grupo é uma composição de capitais com clara divisão de trabalho, onde a empresa transnacional lidera e chama a participação do capital local, privado ou estatal, no esforço industrializante. A industrialização, apesar de aprofundar os problemas típicos do subdesenvolvimento e exacerbar as taras pela modernização, fornece um espaço de valorização razoavelmente grande para as empresas transnacionais, o que faz Furtado compreendê-lo como processo mais estável, ao menos nas análises dos anos 1970. O futuro passa a depender da estratégia do capital internacional, o que pode colocar em xeque as propriedades 39 construtivas da industrialização para um país subdesenvolvido, prognóstico que se consolida mais tarde58. Florestan Fernandes tira lições sobre a dinâmica econômica, social e política da situação específica trazida pela consolidação do capitalismo dependente. O ponto fundamental é o reconhecimento de que a combinação entre o moderno e o atraso no capitalismo brasileiro responde pela necessidade de remunerar capitais internos e externos e pela necessidade de garantir condições de defesa dos capitais internos da violência da mudança econômica vinda de fora. Na medida em que esta combinação esvazia a esfera econômica da dinâmica da concorrência e da inovação e a esfera social da dinâmica do conflito, a sociedade se torna sobrepolitizada no que diz respeito à mudança socioeconômica. Do ponto de vista que mais nos interessa aqui, isto significa que a burguesia brasileira exige do Estado a intervenção para resolução de conflitos externos e internos, com o objetivo de garantir o que lhe é essencial em uma economia esvaziada de mecanismos endógenos de mudança: a propriedade, as oportunidades e os privilégios, buscando calibrar de dentro os impulsos que vêm de fora. Quando da consolidação do capitalismo dependente como contrarrevolução permanente, fica mais claro que a burguesia brasileira é impotente para fora, mas onipotente para dentro. Sua opção pela incorporação ao sistema econômico e social dos Estados Unidos se dá em condições especiais, sob o signo da Guerra Fria e da ameaça socialista na América Latina, o que lhe confere uma capacidade inusitada de barganhar as condições de dependência, acelerar a modernização e garantir sua parcela dos ganhos advindos da dinamização capitalista fundada na industrialização dependente. Por outro lado, a imposição de um padrão de dominação autocrático reforça o fato de que seu diferencial é a capacidade de manejar de forma quase que irrestrita as variáveis sociais, econômicas e ambientais internas, em particular a superexploração do trabalho, capacidade que é ao mesmo tempo ponto forte e fraco. Estes dois aspectos, externo e interno, conferem à burguesia brasileira a capacidade de “congelar” a revolução democrática e nacional, enquanto acelera a revolução capitalista, conferindo estabilidade ao capitalismo dependente. 58 Em especial em “Brasil: a construção interrompida” (FURTADO, 1992), Celso Furtado faz o balanço de mais de uma década de crise brasileira e dos resultados das mudanças operadas pelo capital transnacional na ordem internacional quem colocam em xeque o desenvolvimento nacional e aprofundam as dificuldades de países subdesenvolvidos. O apelo ao peso das tendências em curso – um país que foi da formação à construção interrompida – busca chamar atenção à gravidade dos problemas. 40 A despeito da força da interpretação de Furtado e Fernandes a respeito das condições que permitiram ao capitalismo dependente se tornar menos instável, eles apontam claramente algumas variáveis que condicionam este processo. Em especial, o contexto geopolítico marcado pela polarização entre o capitalismo e o socialismo e um período de dominância de estratégias transnacionais baseadas na concorrência pelo controle de mercados nacionais emergentes e relativamente fechados. Quando se torna claro, na virada dos anos 1980 para os anos 1990, que estes dois parâmetros haviam mudado, a relevância das tendências à reversão neocolonial se tornam maiores e urgentes. Na medida em que os condicionantes mais gerais que davam condição de estabilização do capitalismo dependente deixavam de existir, não só ficava explícita a interrupção do processo de formação, a insuficiência dos processos de mudança anteriores para dar uma dinâmica autodeterminada à economia e à sociedade brasileiras, como a dependência e a segregação seriam aprofundadas em novos termos, ainda mais dramáticos. É por isso que a essência da interpretação de Caio Prado Júnior passa a ser um guia fundamental das análises comprometidas em resgatar a problemática da formação para compreender e transformar o Brasil, feitas as devidas considerações a respeito do momento histórico. De qualquer forma, dadas as novas condições de participação na renovada ordem global transnacionalizada – um imperialismo em estágio superior –, é de se esperar que os caracteres especulativos e antissociais da burguesia em sua relação com o ambiente econômico interno sejam aprofundados. Como síntese, é crucial que uma leitura atual do capitalismo brasileiro e do papel da burguesia brasileira leve em conta como se dá a permanência e a reposição da dupla articulação. Do ponto de vista externo, é fundamental saber quais são o contexto político internacional, a lógica de operação das empresas transnacionais de base produtiva e financeira, e o sentido do ciclo econômico internacional e sua influência sobre a economia brasileira. Do ponto de vista interno, em que medida os objetivos da burguesia combinam a modernização dos padrões de consumo, a manutenção da propriedade e dos privilégios e os ganhos através da especulação e do rentismo. E particularmente de que maneira a burguesia brasileira depende, para atingir seus objetivos, do manejo das variáveis internas estratégicas: uma padrão de relações de produção marcadas pela superexploração do trabalho, pelo uso predatório dos recursos naturais e do acesso e do manejo privilegiado do Estado em função de seus interesses. 41 Mais especificamente, é fundamental entender quais são as estratégias desta burguesia: se o peso do mercado externo é maior que o do interno; se sua base técnica se apoia na inovação ou na cópia ou aquisição dos pacotes tecnológicos de fora; se sua base financeira é interna – própria de um grupo, da burguesia como um todo (a banca privada) ou do Estado – ou estrangeira; em que medida ela exige o Estado para sua realização; e como se utiliza das relações com o trabalho e os recursos naturais disponíveis. Quanto à sua estratégia de acumulação, o decisivo é entender qual o grau de dependência desta burguesia e como, no processo de mudança dos termos da dependência, a burguesia prossegue abrindo espaço para realização de negócios vinculados crescentemente às necessidades e interesses do capital internacional. 42 Capítulo 2: Burguesia brasileira e reversão neocolonial 1. Introdução Este capítulo tem como objetivo compor um quadro geral sobre o sentido das transformações em curso no Brasil nos anos 2000. Este quadro permitirá revelar os condicionantes que delimitam o espaço de atuação da burguesia brasileira e, desta forma, estabelecer conexões entre a mudança na economia brasileira e as estratégias dos grupos em estudo nesta dissertação. A ideia chave é que embora os anos 2000 sejam marcados, na superfície dos fatos, por uma mudança frente aos anos anteriores – cuja marca principal é o ciclo de crescimento –, o que ocorre na verdade é a continuidade do processo de crise do desenvolvimento das décadas passadas. A despeito das leituras que buscam afirmar haver um neodesenvolvimentismo em curso no Brasil, a explicação da origem do ciclo de crescimento que permitiu ligeiro aumento da já pequena margem de manobra do Estado brasileiro está nas possibilidades abertas por determinantes externos, um comportamento típico do reposicionamento do país na divisão internacional do trabalho. Trata-se de um conjunto de transformações que apontam, na essência, para o prosseguimento de um processo de reversão neocolonial, entendido como o comprometimento da capacidade do Estado nacional fazer políticas públicas, garantir direitos e submeter a acumulação às necessidades da coletividade59. Este capítulo contará com três seções além desta introdução. No item 2, será apresentada a visão básica sobre o sentido das transformações ocorridas entre o final dos anos 1970 até às vésperas do século XXI. Será mostrado como a junção de determinantes externos – a transnacionalização do capital e a mudança geopolítica advinda do fim da URSS – e de determinantes internos – o padrão de ajuste ao pagamento da dívida e de ingresso na globalização por políticas neoliberais – conduziram o país a um processo de reversão neocolonial. No item 3, apresentaremos o debate sobre o significado dos anos 2000 para o Brasil, subdividido em três partes. Na primeira, será apresentada a difundida visão “neodesenvolvimentista” de que houve uma mudança de qualidade frentes às décadas anteriores, 59 Cf. Sampaio Jr. (2012a: p. 44 e p. 98). 43 caracterizado pela retomada do crescimento, equacionamento da vulnerabilidade externa e pela distribuição de renda. Em resposta a esta visão serão apresentadas visões que lhe são críticas e que buscam explicar as mudanças no período a partir dos determinantes externos que deram alguma margem de manobra – dentro do exíguo campo existente – para o Estado brasileiro flexibilizar sua política econômica e atingir os resultados obtidos. Em seguida, será apresentada uma crítica ao neodesenvolvimentismo, buscando mostrar que este pensamento, desprovido de um processo de desenvolvimento nacional e limitado a uma análise que não enfrenta questões estruturais, se torna uma análise restrita a questões de gestão da política econômica e aos conflitos internos dos gestores. No item 4, por fim, serão apresentados o que consideramos ser os atuais e principais os nexos das transformações em curso nos anos 2000, buscando explicar como eles condicionam a continuidade, aprofundamento e aceleração do processo de reversão neocolonial e, desta forma, permitindo montar um quadro dos condicionante do raio histórico de ação da burguesia brasileira neste contexto. 2. A crise do desenvolvimento brasileiro como tendência à reversão neocolonial Como dito anteriormente, este item buscará apresentar alguns elementos que ajudem na compreensão das transformações conjuntas no plano mundial e no plano doméstico e como elas resultam em um processo de perda progressiva do controle sobre os fins e os meios que permitem subordinar a acumulação do capital à vontade coletiva de uma sociedade nacional, nos quadros da tradição desenvolvimentista60. Os ajustes promovidos nos anos 1980 e 1990, somados à reduzida capacidade do Estado resistir às tendências disruptivas do capitalismo transnacionalizado e à opção estratégica da burguesia brasileira por uma inserção subalterna na nova ordem, promoveram um acelerado processo de mudança nos parâmetros do capitalismo dependente, uma nova (e muito mais especializada) inserção na divisão internacional do trabalho, uma aceleração da desindustrialização além de uma gigantesca crise social que desintegram os laços de unidade nacional e entre classes que continha as contradições dos problemas históricos, 60 Ver o capítulo 1, itens 2 e 3. 44 legando aos anos 2000 um padrão de transformações que intensifica o processo de reversão neocolonial. Segundo a contribuição de Celso Furtado – sintetizada em Hadler (2012) –, a reorganização do capitalismo no pós-guerra tem como eixo principal o processo de projeção internacional do sistema econômico da potência hegemônica, os Estados Unidos – seus padrões técnicos, financeiros, culturais e éticos. Este processo de expansão, que se confunde com a expansão das grandes corporações, evolui de uma concorrência pela conquista de mercados internos para um processo de transnacionalização do capital. Trata-se da constituição de um circuito global de valorização do capital, que emerge com força na década de 1970, movida pela busca das empresas transnacionais pela combinação de recursos produtivos dispersos em escala mundial sob sua coordenação, apoiada por um braço financeiro igualmente transnacional capaz de prover liquidez na escala correspondente. A transnacionalização do capital é um fenômeno crucial devido às consequências trazidas para o desenvolvimento nacional. Para as sociedades do centro, que seriam, de certa forma, correspondentes ao modelo clássico de desenvolvimento de Furtado, a transnacionalização representa um confronto direto com os Estados nacionais, ao inviabilizar a sua governabilidade, deixando-as suscetíveis à instabilidade estrutural e rompendo os vínculos de solidariedade entre capital e trabalho construídas nos anos anteriores (HADLER, 2012: pp. 132-143). Nas sociedades marcadas pelo subdesenvolvimento e pela dependência, as consequências são muito mais graves, pois implicam o bloqueio das possibilidades de emergência de um Estado nacional com autonomia relativa. Como consequência, são intensificadas as tendências à reversão neocolonial, entendido como processo de dissolução das bases objetivas e subjetivas que permitem ao Estado Nacional manter uma autonomia relativa suficiente para defender os interesses estratégicos da sociedade nacional, bem como garantir direitos e políticas sociais que fomentem a integração nacional e regional (SAMPAIO JR., 2012a: p. 44, p. 98)61. Como a modernização dos padrões de 61 A reversão neocolonial é entendida como “um processo de mudança econômica, social, política e cultural que compromete definitivamente a possibilidade de conciliar desenvolvimento capitalista, distribuição de renda e soberania nacional. O processo coloca em questão a própria sobrevivência da sociedade nacional como coletividade capaz de controlar os fins e os meios das transformações capitalistas” (SAMPAIO JR., 2012a: p. 44). E também: “(...) o processo de reversão neocolonial não significa o fim do Estado nacional, mas apenas o comprometimento crescente de sua capacidade de fazer políticas públicas, baseadas nas noções de direitos universais e interesses estratégicos da nação” (IDEM: p. 98). 45 consumo é o fio condutor do processo de acumulação por substituição de importações, na medida em que se acelera o progresso técnico e se concentra o seu controle nas mãos das empresas transnacionais, se aprofunda permanentemente o fosso entre as possibilidades desta sociedade e seus objetivos, impondo custos crescentes da modernização, bem como a continuidade da heterogeneidade produtiva e social. A contrapartida da aceleração de um processo de modernização dos padrões de consumo é o aprofundamento da dependência financeira, que seria decisiva na crise do próprio modelo brasileiro a partir dos anos 1980 (HADLER, 2012: pp. 150161; FURTADO, 1983: pp. 34-38). A eclosão da crise da dívida nos anos 1980 e os desdobramentos que paralisam o Brasil desde então nada mais representam que o esgotamento do “modelo brasileiro”: No entanto, quando tudo parecia indicar que não havia incompatibilidade incontornável entre dependência e desenvolvimento nacional, os processos desestruturantes começaram a vir à tona. Em pouco tempo, a crise da dívida externa, o colapso das finanças públicas, a desarticulação do sistema monetário, a estagnação do crescimento, a submissão incondicional aos ditames da comunidade financeira internacional, o desmantelamento do Estado nacional, a exacerbação dos conflitos federativos, o aumento assustador do desemprego e do subemprego, a progressiva desnacionalização da economia e a elevada vulnerabilidade do parque industrial ao novo padrão de concorrência internacional começaram a evidenciar a pertinência de suas advertências. A total incapacidade do Brasil de reagir de maneira construtiva às profundas transformações provocadas na ordem econômica mundial pelo processo de globalização não deixa margem de dúvida em relação à elevada vulnerabilidade da industrialização brasileira às vicissitudes do capital internacional (SAMPAIO JR., 1999b: p. 426). O enquadramento do Brasil às necessidades dos credores internacionais e aos desígnios das instituições financeiras multilaterais nos anos 1980 impõe a geração de saldos comerciais geradores de divisas e a aquisição delas pelo Estado para o pagamento da dívida62. A viabilização deste ajuste passa, por um lado, por reorientar a economia brasileira para setores em que possa obter competitividade internacional, e por outro, pela contenção das importações (obtida através da recessão) e pelo endividamento público, constituindo uma “nova dependência” (FURTADO, 1983: cap.1). Dado que o padrão tecnológico da fronteira é ferrenhamente controlado pelas empresas transnacionais, ao capitalismo dependente resta uma combinação entre pagar o preço pela modernização produtiva e se especializar em ramos em que possuem vantagens comparativas estáticas, geralmente associadas à livre exploração da força de trabalho e de recursos naturais. E além: a entrada na guerra comercial global passa por abrir o mercado 62 Cf. Sampaio Jr. (1988). 46 interno à concorrência externa, expondo as conexões de um sistema econômico em formação, ainda que subdesenvolvido, à brutal competitividade acumulada pelas corporações transnacionais. O resultado desta equação só poderia ser a ênfase na reprimarização contra a industrialização e a ênfase no mercado externo contra o mercado interno, que conduz a uma conclusão dramática: “Já não se trata mais da interrupção do processo de formação das bases econômicas de uma nação autodeterminada, mas da possibilidade de reversão do processo, de destruição daquelas bases materiais e do elemento que lhe imprimia dinamismo [o espaço econômico nacional]” (HADLER, 2012: p. 168). Ficam, assim, comprometidas as bases objetivas e subjetivas de um desenvolvimento nacional: Pelo lado das condições subjetivas, abortou-se o processo de formação de uma burguesia nacional que se projetasse como classe dirigente, legitimando-se pela defesa dos interesses nacionais. Quanto às condições subjetivas, o controle das atividades industriais por empresas de atuação transnacional vem corroendo as bases de um sistema econômico nacional, aumentando o grau de desarticulação da economia nacional (HADLER, 2012: p. 151). Nos anos 1990, em vez de se interromperem as tendências regressivas, elas se consolidam em um novo patamar. A partir desta década, a transnacionalização do capital se converte em padrão único da economia global, correspondente a uma ordem internacional polarizada pela lógica de conquista da potência americana (SAMPAIO JR., 2012a: pp. 94-95). Período marcado pela abertura comercial e financeira e pela institucionalização da estabilização monetária como objetivo maior da política econômica, é nele que o receituário neoliberal ascende ao centro da agenda política nacional, confirmando uma opção das classes dirigentes pela incorporação do país à globalização e pelo desfrute – por poucos – da nova rodada de modernização dos padrões de consumo: Desde então [anos 1990], a economia brasileira passou a se organizar em função de dois objetivos primordiais: a abertura de novas frentes de negócios para o grande capital, nacional e internacional; e a viabilização de uma nova rodada de modernização dos padrões de consumo. Abandonava-se o padrão de acumulação baseado na industrialização por substituição de importações (SAMPAIO JR., 2005 apud SAMPAIO JR., 2012a: p. 99). Em consonância com a pressão do grande capital e as decisões pela integração ao todo, coube ao Estado nacional implementar modificações de caráter antinacional em diversos parâmetros econômicos e estabelecer uma política econômica que no fim sancionasse as 47 tendências externas63. A abertura comercial expôs definitivamente o parque industrial à predatória concorrência internacional, enquanto que a abertura financeira garantiu a mobilidade do capital internacional e a vulnerabilidade das contas externas aos fluxos internacionais (MACHADO, 2011). As privatizações criaram oportunidades de negócios, muitas vezes subsidiadas, para os grandes capitais nacional e internacional aproveitarem, não raras vezes associados (BIONDI, 1999). No mesmo sentido, diversos grupos privados partiram para a linha de menor resistência, promovendo uma onda de desnacionalização de grupos e setores (GONÇALVES, 1999). Um dos denominadores comuns foi a multiplicação do rentismo da grande finança apoiada sobre a dívida pública interna ou externa, lastro último do processo de estabilização monetária (FILGUEIRAS, 2000). Este rentismo não se limitou aos grupos financeiros, mas virou opção de negócio para parcela da burguesia (GONÇALVES, 1999), dando continuidade a um padrão de acumulação cuja origem remonta à década de 1980 (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002: cap. 5). Mais uma vez a recessão foi a contrapartida do ajuste, neste caso devido à estabilização, contribuindo para acumular uma gigantesca crise social a dar um golpe de morte no sistema econômico nacional, abalado pela separação entre mercado interno, crescentemente atendido por importações, e produção interna, pautada pela desindustrialização e pela especialização regressiva. O resultado, como não poderia deixar de ser, foram dramáticos do ponto de vista do emprego e da crise social que se alastrou. Ao iniciarem-se os anos 2000, após a crise cambial de 1998-1999, os parâmetros que dão substância ao período já estão desenhados: uma necessidade crescente de exportações que 63 “Muito além de buscar o equilíbrio macroeconômico, as medidas que compõem o receituário neoliberal – a prioridade absoluta à estabilidade da moeda, a crescente liberalização comercial e financeira, a privatização indiscriminada, a desregulamentação radical da economia, a busca a qualquer custo da competitividade internacional, o ajuste fiscal permanente, a flexibilização da relação capital-trabalho e todas as mudanças institucionais preconizadas pelos organismos internacionais – têm a finalidade de adequar as estruturas e os dinamismos das economias periféricas às novas exigências do capital financeiro global, redefinindo o padrão de dependência externa, o papel do Estado na economia e a relação capital-trabalho. É, portanto, todo o funcionamento da economia e da sociedade brasileira que precisa se adaptar às novas determinações do capital internacional. O sentido das mudanças é conhecido. No plano das relações do país com os centros de poder do sistema capitalista mundial, trata-se de criar mecanismos de tutela que garantam o controle quase que absoluto da política econômica dos países periféricos pelo capital internacional e pelos organismos internacionais. No que diz respeito ao padrão de intervenção do Estado na economia, o Estado deve ser “máximo” na sua capacidade de abrir novas frentes de acumulação, assegurar o cumprimento dos contratos, selar pela estabilidade da moeda e subordinar a política fiscal aos interesses rentistas dos detentores da dívida pública e, por essa razão, precisa ser “mínimo” na sua capacidade de fazer políticas públicas. No que se refere à relação capital-trabalho, a palavra de ordem é: “direitos mínimos para o trabalho, obrigações máximas para o trabalho” (SAMPAIO JR., 2012a: pp. 100-101). 48 encontra oportunidades em novo ciclo de demanda por commodities; a petrificação do ajuste fiscal que garante a rolagem da dívida pública, as oscilações cambiais advindas da especulação do capital financeiro internacional, responsável por desvalorizações e valorizações da moeda, e a corrosão dos centros internos de decisão, já desprovidos de base material, instrumentos e lastro social para dirigir qualquer processo de defesa de interesses nacionais. 3. Os anos 2000 e o neodesenvolvimentismo Neste tópico, apresentaremos a uma leitura, identificada com as correntes neodesenvolvimentistas, de que o Brasil nos anos 2000 adquiriu condições de promover crescimento econômico, distribuição de renda e soberania, condição esta que explicaria a origem do ciclo de crescimento que teria inaugurado um momento de qualidade distinta das décadas de crise anteriores. Em resposta a tais visões serão apresentadas leituras críticas que afirmam ser o referido ciclo explicado por fatores externos que, apesar das modificações permitidas por uma melhora marginal na margem de manobra interna, aprofundam um padrão econômico dependente e antissocial. Feita esta qualificação, o neodesenvolvimentismo pode ser entendido como parte da crise da teoria do desenvolvimento e uma expressão da falta de opções do pensamento que não ultrapassa os limites dos parâmetros da ordem capitalista dependente. 3.1. O neodesenvolvimentismo Os anos 2000 são marcados por um surto de crescimento que coincidiu com os dois governos Lula, onde o crescimento do PIB atingiu a média de 4,0% ao ano, contra 2,3% durante o período FHC (GONÇALVES, 2013), chegando a uma média anual de 4,6% no segundo mandato. A retomada do crescimento, junto com um conjunto de melhorias nos indicadores de emprego, salário, desigualdade, investimento, balança comercial, acúmulo de reservas, expansão do crédito, dentre outros, foi intensamente aclamada em parte do mundo político e acadêmico como uma virada na história do Brasil, abrindo um novo período de desenvolvimento. Deste processo surgiram diversas tentativas de interpretação do período que convergiram para o nome de neodesenvolvimentismo, expressão maior da explicação otimista das transformações 49 ocorridas, que se sintetiza na máxima de que o Brasil reuniu as condições para conciliar crescimento com distribuição de renda e uma relativa soberania nacional. Cogitada desde os primeiros anos do governo Lula (BRESSER-PEREIRA, 2004; SICSÚ, PAULA & MICHEL, 2005), a ideia de que estão criadas as condições para um novo período desenvolvimentista ou mesmo que ele está já em curso adquiriram força e conhecimento público no final da década de 2000, com a recuperação do Brasil do momento agudo da crise, no biênio 2009-2010, e com o lançamento de trabalhos de intelectuais ligados ao governo buscando disputar o cenário político das eleições de 2010 e além (SADER & GARCIA, 2010; OLIVA, 2010a, 2010b). A reivindicação de um novo desenvolvimentismo (ou neodesenvolvimentismo) fez parte do discurso de diferentes vertentes de autores que buscaram explicar as mudanças do período, portadoras de um núcleo comum, mas divididas por alguns nuances64. O núcleo comum neodesenvolvimentista afirma que o Brasil do final dos anos 2000 é um Estado com condições de promover crescimento econômico alto e sustentado, conciliando distribuição de renda e redução da vulnerabilidade externa65. Para usarmos a leitura com maior projeção, alinhada a um certo neodesenvolvimentismo “oficial” – expresso nas obras de Oliva (2010b), Sader e Garcia (2010) e, no campo econômico, Barbosa e Souza (2010) –, esta nova fase teria sido resultado principal de decisões políticas dos governos petistas. Aproveitando um cenário externo favorável, o governo foi capaz de estabelecer uma estratégia de ampliação dos mercados externos, atração de investimentos e acúmulo de reservas cujo resultado seria o 64 Segundo Monte-Cardoso (2013), seriam três as correntes neodesenvolvimentistas. A primeira corresponderia à leitura oficial, elaborada de forma menos organizada e defendendo o papel primordial do governo Lula. Suas principais expressões são Oliva (2010a, 2010b) e Barbosa e Souza (2010), com aportes relevantes de Sader e Garcia (2010), Mantega (2007), Coutinho (2011), Pochmann (2012), dentre outros. O novo-desenvolvimentismo, corrente mais organizada do ponto de vista teórico, defende uma estratégia macroeconômica export-led com equilíbrio macroeconômico e fiscal. Suas principais teses podem ser encontradas em Sicsú, Paula e Michel (2007), BresserPereira (2010a, 2010b), Oreiro (2012) e Oreiro e Paula (2011). Por fim, o social desenvolvimentismo, uma outra variante acadêmica que disputa os rumos do governo e ainda não tão organizada, advoga o esgotamento do crescimento baseado no consumo interno e prescreve uma estratégia baseada no investimento autônomo, fundamentalmente em infraestrutura. Os trabalhos mais destacados nessa visão são os de Carneiro (2011, 2012), Costa (2012) e Bastos (2012). 65 Como não há um consenso sobre o fato de o Brasil já ter implementado uma estratégia desenvolvimentista, a posição consensual é a de que já há condições para a mudança de qualidade. Há os que afirmam que ele foi coerente desde o começo, fazendo contudo concessões em prol da governabilidade e do ajuste fiscal necessário (OLIVA, 2012b; MANTEGA, 2007; PINHO, 2011). Para outros, o governo só muda a partir de 2005 e 2006, como em Barbosa e Souza (2010), ou 2007-2008, em Coutinho (2011). Há ainda visões dentro do debate que argumentam ainda estar em disputa a orientação do governo, apesar de progressivamente se alinhar ao desenvolvimentismo (ERBER, 2011; MORAIS & SAAD-FILHO, 2011). Em Bresser-Pereira (2010a, 2010b) se encontra uma visão que considera ainda não iniciada a estratégia desenvolvimentista (por ele proposta). 50 equacionamento do histórico problema das restrições externas. Deslocando o peso do ciclo internacional de negócio para um segundo plano (o de condições que foram aproveitadas), Oliva (2010a, 2010b) mostra que foram decisões internas que permitiram materializar os benefícios do cenário externo em margem de manobra para conciliar política anticíclica, investimentos estatais e políticas sociais ampliadas e melhor coordenadas. Segundo Monte-Cardoso (2013), em todas as visões neodesenvolvimentistas é comum a noção de desenvolvimento entendida como crescimento alto e sustentado, que permite conciliar distribuição de renda e capitalismo. Trata-se de uma forma de diferenciação tanto com o período anterior, taxado de neoliberal e marcado pela estagnação, como com o velho desenvolvimentismo, notoriamente antissocial e desequilibrado. O objetivo último é alcançar os padrões de renda per capita dos países desenvolvidos (catching-up), o que faz com que a estratégia seja pautada por destravar as amarras do crescimento econômico. O desafio, que teria sido parcialmente vencido nos anos 2000, é o de garantir a intervenção do Estado com o papel de correção das “taras” do capital financeiro e promoção do capital empresário. Trata-se de uma leitura de base keynesiana, que compreende o conflito social fundado entre classes rentistas e classes produtivas – empresários e trabalhadores66. Trazendo a questão social para o centro da agenda de unidade das classes produtivas, o neodesenvolvimentismo coloca o peso da resolução de questões sociais relativas ao desemprego e à pobreza a dinamização do mercado de trabalho, possível apenas em condições de alto crescimento no longo prazo, fonte de emprego e margem para políticas sociais. Nesta leitura, as reformas estruturais como a reforma agrária nem se colocam como pilares de uma estratégia de desenvolvimento. Os anos 2000, mais uma vez, teriam mostrado não apenas o sucesso do equacionamento de questões sociais, pela combinação de crescimento do emprego, do consumo e da redução da pobreza, como mostrado o caminho para a resolução dos problemas. Os neodesenvolvimentistas reconhecem do velho desenvolvimentismo alguns legados decisivos – a industrialização relativamente avançada, ainda que com distorções, desequilíbrios e insuficiências, e o Estado com capacidade de fazer a coordenação e o planejamento estratégico do 66 Apesar de alguns aportes que reivindicam uma posição de corte classista, as explicações práticas e o programa de desenvolvimento do neodesenvolvimentismo não considera antagonismos entre classes burguesa e trabalhadora, colocando no centro da agenda a capacidade e a necessidade de conciliar interesses em torno do “capital produtivo”, responsável pelo crescimento. Daí se tratar, fundamentalmente, de uma análise de fundo keynesiano. 51 desenvolvimento. Contudo, também identificam então a não-resolução de problemas que impõem limites e constrangimentos ao desenvolvimento, dentre os quais estão a falta de bases técnicas e financeiras próprias, que mantém uma dependência externa e exigem a presença do Estado. Em suma, o neodesenvolvimentismo é a explicação mais otimista e positiva do período atual, fortemente associada com a defesa dos méritos ou disputa dos rumos dos governos petistas. Se se considera de uma lado a mudança no cenário externo, por outro se joga ênfase decisiva na explicação dos fatos às decisões internas do Estado brasileiro, explicada apenas por uma condição de considerável autonomia do Estado. Desde a perspectiva adotada neste trabalho, tal explicação tende a desconsiderar todos os parâmetros estruturais já apontados e, desta forma, o essencial: o peso mais que proporcional que as variáveis externas possuem devida à própria posição do Brasil na divisão internacional do trabalho e à sua vinculação aos negócios transnacionais. O tópico seguinte busca neste caminho uma explicação para o ciclo dos anos 2000. 3.2. Uma crítica à origem do crescimento nos anos 2000 O “período neodesenvolvimentista” foi fruto de uma margem de manobra aberta por condições exteriores extremamente favoráveis ao alívio das contas externas, permitida por um ciclo econômico favorável às exportações brasileiras, especialmente de commodities, e favorável ao endividamento externo, através de uma nova enxurrada de investimentos externos. Minorando as pressões sofridas pela economia brasileira no balanço de pagamentos e viabilizando um período de relativa solvabilidade externa, o ciclo internacional viabilizou uma flexibilização quantitativa da política econômica, dando alguma margem para o governo federal implementar políticas sociais e investimentos. Longe, contudo, de alterar os padrões de inserção externa e as relações de produção que caracterizam a economia brasileira desde a década de 1990, este período na verdade aprofundou um desenvolvimentismo às avessas. A ascensão de uma nova divisão do trabalho internacional comandada pelas relações entre EUA e China promoveu um período de extraordinária dinamização dos mercados financeiros internacionais e dos mercados de gêneros primários, minerais, agropecuários ou commodities industriais (FILGUEIRAS et alli, 2010). O Brasil, crescentemente integrado ao 52 circuito de valorização internacional e em pleno reposicionamento na divisão internacional do trabalho, foi fortemente influenciado nos anos 2000 por este novo período: viu crescer como nunca o saldo comercial e o afluxo na conta capital e financeira. Por um lado, o Brasil dispõe de ampla oferta de recursos naturais capazes de responder à demanda externa, torna-se rapidamente um exportador de gêneros primários, cujo valor ascende a patamares inéditos mais que proporcional dos preços. Por outro, o país é inundado por investimentos, em sua maioria especulativos, que buscavam os diferenciais de juros permitidos pela dívida pública, a especulação com ações de empresas ligadas aos negócios exportadores e o atendimento a um mercado corporativo carente de financiamentos de longo prazo (FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012). Após décadas, o país passou por um período sem restrições no balanço de pagamentos67, o calcanhar de Aquiles da economia brasileira. Foi este impulso inicial, do ponto de vista macroeconômico, e a condição externa permitida por ele, do ponto de vista do financiamento da economia, que criou as condições para o ciclo de crescimento dos anos 2000. Com margem de manobra, ao governo foi possível executar uma flexibilização quantitativa da política econômica, conciliando a continuidade do tripé macroeconômico com a execução de políticas sociais e investimentos (FILGUEIRAS et alli, 2010). O mercado interno obtém um recuperação relativa fundada no crédito que foi viabilizado, por sua vez, pelo ciclo de liquidez externo (SAMPAIO JR., 2012c). O resultado foi um período marcado pela aceleração do crescimento, menor desemprego e leve melhoria na distribuição de renda funcional e pessoal, redução da pobreza extrema e redução da vulnerabilidade externa conjuntural. A experiência de uma nova margem de manobra permitiu ao governo inclusive fazer importantes alterações na estrutura do capital brasileiro através do BNDES, capitalizando grupos, estimulando a fusão entre eles e sua internacionalização. Este movimento correspondeu a um atendimento das pressões de empresas68 – como JBS, Fibria, Gerdau, Camargo Correa, Vale e Odebrecht –, como contrapartida ao papel por elas executado nas exportações, auxiliando a 67 O Brasil chegou a ter superávit em transações correntes e acumulou centenas de bilhões de dólares em reservas. “(...) as atuações estatais que favoreceram a burguesia interna não são fruto de um planejamento desenvolvimentista, mas sim o atendimento à demanda de internacionalização dos grandes grupos econômicos brasileiros, que precisavam de um ambiente externo favorável à sua expansão” (FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012: p. 7). 68 53 continuidade da folga nas contas externas (FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012: p. 7). A incorporação destes grupos ao núcleo de relações políticas e econômicas do Estado tem, desta forma, origem no próprio reposicionamento do país na divisão internacional do trabalho e a crescente dependência estrutural por commodities. Contudo, neste período de flexibilização não apenas não houve mudança de qualidade no padrão econômico vigente, como não houve o propósito de fazê-la. As possibilidades abertas foram aproveitadas na linha de menor resistência, isto é, tendo como opção a maior integração ao novo padrão de acumulação que tem se afirmado. Isto pode ser identificado através da constatação de que os principais parâmetros que caracterizam o Brasil pós-ajuste neoliberal permaneceram vigentes ou foram aprofundados (FILGUEIRAS & GONÇALVES, 2007; FILGUEIRAS et alli, 2010). Do ponto de vista das relações capital-trabalho, continuam marcadas pela retirada de direitos e pela precarização e pela defensiva das organizações do trabalho, a despeito das melhorias quantitativas; ressalte-se o retrocesso na questão agrária. Do ponto de vista das relações intercapitalistas, o traço de é intensificação dos processos de concentração e centralização do capital com participação decisiva do Estado na viabilização de diversos processos69. Quanto à inserção internacional, prossegue a inserção especializada, agora polarizada pelo “efeito China”. Quanto à estrutura de funcionamento do Estado, reforça-se a tendência de subordinação ao capital financeiro. Por fim, a dinâmica macroeconômica pode passar por um período menos instável do ponto de vista conjuntural, a despeito do agravamento da vulnerabilidade externa estrutural (FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012: pp. 8-12). Um dos pontos mais defendidos como uma mudança de rumos promovida pelo governo, a política externa, é um desdobramento deste mesmo padrão. Pragmaticamente, ela serviu para reforçar a nova posição do Brasil na divisão internacional do trabalho: “Na busca desesperada por novos mercados e por capitais estrangeiros, a Presidência da República foi instrumentalizada para vender o Brasil como se fosse commodities pelo mundo afora” (SAMPAIO JR., 2012c). Tal é o comportamento no aprofundamento de relações com países 69 “O ‘retorno’ do Estado aponta para um objetivo claro, qual seja: o fortalecimento de um segmento do capital financeiro no Brasil, no sentido clássico de junção do capital bancário com o capital produtivo (Hilferding, 1985). O BNDES é o locus privilegiado desta operação. Como corolário de todo o processo em curso, vem-se definindo a participação do capital privado e estatal nacional no bloco de poder dominante. No âmbito político-administrativo, as divergências de interesse, no limite, são arbitradas por Lula” (FILGUEIRAS et alli, 2010: pp. 49-50). 54 latino-americanos ou do grupo dos BRICS70. Mais paradigmática ainda é a posição intransigente de defesa do neoliberalismo em diversos fóruns internacionais, cuja expressão máxima é a recorrente bandeira pró-liberalismo comercial. Essencialmente, a noção de que houve ou estaria em curso uma mudança qualitativa dos rumos da economia brasileira só pode ocorrer se desconsideradas totalmente as estruturas que repõem o subdesenvolvimento e a dependência: O mito de que o Brasil estaria vivendo um surto de desenvolvimento que abriria a possibilidade de superação da pobreza e da dependência externa simplesmente ignora a fragilidade das bases que sustentam o ciclo expansivo dos últimos anos e seu efeito perverso de reforçar a dupla articulação responsável pelo caráter selvagem do capitalismo brasileiro: o controle do capital internacional sobre a economia nacional e a segregação social como base da sociedade brasileira (SAMPAIO JR., 2012c). Um elemento decisivo que conecta o Brasil às estruturas da dependência é a aceleração da especialização e a desindustrialização que lhe é correspondente. Ao vincular-se de forma aberta ao ciclo gerado pelo binômio EUA-China, o país não apenas primarizou sua pauta de exportações como abriu mão do controle de seu comportamento, pois as variáveis decisivas são todas externas (FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012). O reposicionamento não é apenas pontual, mas possui diversos desdobramentos: A revitalização do agronegócio como força motriz do padrão de acumulação reforça o papel estratégico do latifúndio. A importância crescente do extrativismo mineral, potencializada pela descoberta de petróleo na camada do pré-sal, intensifica a exploração predatória das vantagens competitivas naturais do território brasileiro. Por fim, a falta de competitividade dinâmica (baseada em inovações) para enfrentar as economias desenvolvidas assim como a insuficiente competitividade espúria (baseada em salário baixo) para fazer face às economias asiáticas levam a um processo irreversível de desindustrialização (SAMPAIO JR., 2012c). Como o sentido do processo aponta no sentido contrário da constituição de bases objetivas e subjetivas para um desenvolvimento nacional com um mínimo de autonomia, o novo desenvolvimentismo só pode ser às avessas: Portanto, a “inversão de sinais” faz com que se possa atribuir ao Governo Lula a responsabilidade pela implementação do nacional-desenvolvimentismo às avessas. Este resultado tem sérias implicações quanto à trajetória futura do país. Conforme discutido, o ND tem como eixo estruturante a redução da vulnerabilidade externa estrutural. Na 70 “[A presidência da República] Também foi fartamente utilizada, principalmente na América Latina e na África, como representante especial de grandes grupos empresariais, basicamente empreiteiras e bancos, em busca de novos mercados nas franjas periféricas do sistema capitalista mundial. O discreto e vacilante apoio a Hugo Chávez, a maior aproximação com Cuba, os flertes com o mundo árabe e a busca de uma relação econômica mais intensa com a Índia, a Rússia e a China respondem a interesses comerciais bem concretos e não devem gerar qualquer tipo de ilusão em relação à articulação de alternativas que signifiquem um desafio à ordem global” (SAMPAIO JR., 2012c). 55 medida em que o Governo Lula implementa o ND com “sinal trocado”, ele reduz da capacidade estrutural do Brasil de resistir a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos. Isto ocorre em todas as esferas: comercial (desindustrialização, dessubstituição de importações, reprimarização e perda de competitividade internacional); tecnológica (maior dependência); produtiva (desnacionalização e concentração prazo de instabilidade e crise no contexto de crescente globalização econômica) (GONÇALVES, 2012: p. 24). O neodesenvolvimentismo, portanto, “(...) tal como o velho, sintetiza o capitalismo possível de existir na periferia do capitalismo na ‘era imperialista’, cujas características fundamentais são: dependência tecnológico-financeira, concentração de renda, exclusão social e democracia restrita” (FILGUEIRAS et alli, 2010: pp. 38-39). Nestes marcos, o raio de manobra da sociedade é mínimo e como não há sombra de ruptura com o legado histórico de décadas: Numa sociedade sujeita a um processo de reversão neocolonial, a distância entre a esquerda e a direita da ordem é pequena porque o raio de manobra da burguesia é ínfimo. O grau de liberdade se reduz, basicamente, às seguintes opções: maior ou menor crescimento, num padrão de acumulação que não dá margem para a expansão sustentável do mercado interno; maior ou menor concentração de renda, dentro dos limites de uma sociedade marcada pela segregação social; maior ou menor participação do Estado na economia, dentro de um esquema que impede qualquer possibilidade de políticas públicas universais; maior ou menor dependência externa, dentro de um tipo de inserção na economia mundial que coloca o país a reboque do capital internacional; e, como consequência, maior ou menor repressão às lutas sociais, dentro de um regime de “democracia restrita”, sob controle absoluto de uma plutocracia que não tolera a emergência do povo como sujeito histórico - seja pelo recurso ao esmagamento, que caracteriza os governos à direita da ordem; seja pelo recurso à cooptação, como fazem os governos que se posicionam à esquerda da ordem (SAMPAIO JR., 2012c). 3.3. Uma crítica à natureza do pensamento neodesenvolvimentista Desprovido de uma base histórica de desenvolvimento, os neodesenvolvimentismos se enquadram perfeitamente como herdeiras da crise da teoria do desenvolvimento, que, ao desconsiderar os vínculos cruciais da dupla articulação, reduziu a problemática do desenvolvimento ao desenvolvimento capitalista e, como vimos, ao crescimento econômico. Os planos de análise em que se enquadram os neodesenvolvimentistas encaminham suas análises e propostas para se limitar a mera tentativa de terceira via entre neoliberalismo e velho desenvolvimentismo. Desta forma, acaba por tornar-se mais uma proposta de gestão do exíguo espaço de manobra possível a uma sociedade em processo de reversão neocolonial. Como mencionado no capítulo 1, surgiu nos anos 1960 e 1970 uma nova árvore de interpretações sobre os dilemas das sociedades latino-americanas fundadas na ideia-chave de que 56 seria possível combinar dependência e desenvolvimento (SAMPAIO JR., 1999c). A consequência prática desta combinação foi a diluição das contradições entre imperialismo e desenvolvimento nacional e pobreza e desenvolvimento capitalista autodeterminado, o que levou simplesmente à redução do problema do desenvolvimento a uma questão de desenvolvimento capitalista (SAMPAIO JR., 2012b: pp. 676-678). Uma vez clara a correspondência entre crise do desenvolvimento, desde os anos 1980, e a crise do pensamento que a acompanha, o debate fica condicionado ao desempenho macroeconômico e às crises pelas quais passa a economia brasileira no período. Considerando o avanço do neoliberalismo no terreno da política econômica, das reformas estruturais e da ideologia, o pensamento identificado com o avanço por dentro do capitalismo dependente fica desprovido de respostas aos problemas candentes não resolvidos da formação e se conformam a um patamar de debate ainda mais reduzido71. Os neodesenvolvimentistas fazem parte deste processo de crise teórica. Seu surgimento se deve a um fato concreto – o ciclo de crescimento e os resultados obtidos nos anos 2000 criaram a impressão, em um país marcado pela recessão, que havia mudanças reais em curso (SAMPAIO JR., 2012b: p. 679). O problema é que, condicionado pela estreiteza das opções históricas impostas pela ordem e pela longa tradição de abandono da antiga tradição desenvolvimentista – vinculada ao problema da formação –, o neodesenvolvimentismo acabou se tornando um fenômeno isolado ao Brasil e a grupos vinculados ao governo, limitado a um horizonte de análise restrito a uma macroeconomia de curto prazo. No fundo, seus limites se revelam na tarefa a que se propõem: ser uma terceira via entre o velho desenvolvimentismo e o neoliberalismo: O desafio do neodesenvolvimentismo consiste, portanto, em conciliar os aspectos “positivos” do neoliberalismo – compromisso incondicional com a estabilidade da 71 Comentando os dilemas de uma das variantes da crise da teoria do desenvolvimento no Brasil diante das dramáticas transformações em curso nos anos 1990, Sampaio Jr. afirma: “Embora defenda a construção do sistema econômico nacional como objetivo estratégico da sociedade e o controle dos centros internos de decisão como o principal instrumento para alcançá-lo – preservando, assim, objetivos fundamentais da desenvolvimentista latinoamericana – o enfoque do capitalismo tardio não dá conta dos problemas atuais do desenvolvimento capitalista dependente. A ausência de espaço de liberdade para ações capazes de superar as estruturas econômicas, sociais e culturais responsáveis pela perpetuação do subdesenvolvimento fecha as portas para o acontecer histórico. Deste modo, a revisão teórica que surgiu em meados da década de 70 para mostrar os horizontes abertos pela industrialização pesada tornou-se, nos anos 90, uma espécie de teoria da resistência, que denuncia os riscos de desestruturação da industrialização capitalista retardatária, mas não propõe alternativas que permitam superar o impasse claustrofóbico que compromete o futuro da nação. Percebendo a impossibilidade de permanecer tal qual e o suicídio que seria acompanhar os ritmos da modernização impostos de fora para dentro, os teóricos do capitalismo tardio procuram ganhar tempo, à espera de dias melhores” (SAMPAIO JR., 1999b: pp. 201-202). 57 moeda, austeridade fiscal, busca de competitividade internacional, ausência de qualquer tipo de discriminação contra o capital internacional – com os aspectos “positivos” do velho desenvolvimentismo – comprometimento com o crescimento econômico, industrialização, papel regulador do Estado, sensibilidade social (SAMPAIO JR., 2012c: p. 679). Uma das lacunas que se sobressai nas leituras neodesenvolvimentistas é a ausência quase total de menção ao papel cumprido pelas burguesias locais no novo padrão. Ao contrário da antiga tradição desenvolvimentista, que vinculava as transformações em curso e as possibilidades inscritas no processo histórico ao protagonismo de uma burguesia nacional em constituição72, o neodesenvolvimentismo descarrega o peso das decisões e da realização das transformações no Estado, como se fosse um agente histórico autônomo. Ou, na melhor das hipóteses, o Estado seria o responsável por destravar o potencial empreendedor da burguesia brasileira, limitado pela ausência de perspectivas de inversão e pelo alto custo do investimento73. A distância para a velha tradição desenvolvimentista aí se torna gritante, já que esta exige a realização das reformas estruturais, enquanto que os neodesenvolvimentismos se limitam a manejar variáveis possíveis dentro da ordem constituída – daí a diferença entre as duas no que diz respeito à questão do agente do processo histórico: A perspectiva desenvolvimentista supõe a presença de sujeitos políticos dispostos a enfrentar o imperialismo e o latifúndio. Os novos desenvolvimentistas são entusiastas do capital internacional, do agronegócio e dos negócios extrativistas. Defendem a estabilidade da ordem. Não alimentam nenhuma pretensão de que seja possível e mesmo desejável mudanças qualitativas no curso da história. São entusiastas do status quo. Na sua visão de mundo, desenvolvimento e fim da história caminham de mãos dadas (SAMPAIO JR., 2012b: p. 685). Criticando a noção presente em Barbosa e Souza (2010) de que a “virada desenvolvimentista” dentro do governo teria sido um resultado da vitória de uma corrente sobre a outra dentro do governo, Gonçalves é categórico em afirmar o absurdo de uma corrente de 72 “Nessa perspectiva, a superação do capitalismo selvagem não poderia ser concebida como resultado natural e espontâneo do desenvolvimento capitalista. Sem mudanças de grande envergadura, o crescimento e a modernização não resolveriam as mazelas da população. O desenvolvimento nacional supunha a subordinação da acumulação capitalista a uma “vontade” coletiva que integrasse o conjunto da população nos benefícios do progresso técnico. (...) Sem a presença de burguesias nacionais capazes de enfrentar os interesses externos e internos comprometidos com a reprodução da situação de dependência e subdesenvolvimento, a concepção “desenvolvimentista” pereceria, pois não teria como se converter em força real. A sorte do “desenvolvimentismo” confundia-se, assim, com o próprio destino de formação da sociedade nacional” (SAMPAIO JR., 2012b: p. 675). 73 A perspectiva do “novo-desenvolvimentismo” (ver BRESSER-PEREIRA, 2010a, 2010b), ainda que mencione explicitamente o que considera ser o “arranjo” de classes burguesas (em uma perspectiva tipicamente keynesiana), propõe uma junção de interesses em que os exportadores não sejam prejudicados (em moeda corrente) e em que a “burguesia industrial” competitiva possa concretizar plenamente o seu potencial, tudo isso possível simplesmente através de mudanças nas políticas macroeconômicas. 58 pensamento que não tenha correspondência nos conflitos de interesses materiais de classes expressos no Estado, reduzindo a “guinada” desenvolvimentista de finais do primeiro mandato de Lula a uma mera capacidade de convencimento de uma ala contra a outra: Assim, no primeiro mandato, os ‘liberais’ teriam impedido o aproveitamento das oportunidades criadas pela conjuntura externa, enquanto no segundo mandato a reversão da fase ascendente do ciclo internacional e a crise global teriam prejudicado a trajetória ‘desenvolvimentista’. A fragilidade analítica desta interpretação é evidente. Só pra ilustrar, ela parte do pressuposto de que estratégias, políticas e gestão dependem do acesso dos good guys aos ‘ouvidos do rei’. E a nomeação dos good guys depende de seus méritos pessoais, dos canais de acesso ao ‘rei’ e da ‘roda da fortuna’. Ou seja, a economia política dos conflitos de interesses entre grupos e classes sociais é desprezada em favor da ‘fulanização’ e dos méritos e deméritos de indivíduos que ocupam postoschave na administração pública. (GONÇALVES, 2010: pp. 177-178). Portanto, podemos afirmar que não apenas a pretensão de um novo desenvolvimentismo como fenômeno é desprovido de base material – mesmo no curtíssimo período considerado –, como um novo desenvolvimentismo que fizesse jus à tradição desenvolvimentista não expressa uma necessidade histórica. Em realidade, as correntes assim identificadas cumprem o terrível papel de reavivar a teoria do crescimento aplicada à periferia, apontar a modernização e o mito do desenvolvimento como saída para os problemas brasileiros e servir de lança a conflitos internos de grupos que disputam os rumos do governo (SAMPAIO JR., 2012b: pp. 685-686). 4. Reversão neocolonial nos anos 2000 Nos anos 2000, entra em curso um processo de divisão internacional do trabalho comandado pela intensificação do processo de globalização, exacerbando os interesses das grandes corporações e do imperialismo de caráter especulativo, rentista e de controle estratégico do progresso técnico e de mercados. Isso ficou mais nítido ainda com a solução americana para a crise mundial do final da década. Para os países da periferia e em particular para o Brasil, apesar da efêmera recuperação no pós-crise, os efeitos desta nova ordem são a aceleração do processo de reversão neocolonial, reduzindo o horizonte de autonomia e de capacidade de defesa frente à força do capital transnacional. Uma das principais manifestações disso reside na redução drástica do poder de barganha da burguesia brasileira, crescentemente orientada a aproveitar as oportunidades geradas pelo capital internacional em atividades de baixa tecnologia, voltados para 59 o comércio exterior, e intensivas na superexploração do trabalho, dos recursos naturais e do suporte estatal. O resultado do já referido processo de transnacionalização do capital sobre as sociedades da periferia pode ser sintetizado como a constituição de uma nova dependência (SAMPAIO JR., 2007: p. 147), explicada por três dimensões. Primeiro, a aceleração do progresso técnico e o aumento da defasagem tecnológica frente ao centro expõe os países dependentes a um padrão de concorrência que leva a uma desestruturação produtiva que não apenas interrompe – como faz regredir a industrialização. Estas regiões, orientadas a participar de fragmentos do ciclo de acumulação global, atraem investimento direto estrangeiro na forma de “enclaves” desconectados de um sistema econômico nacional. Segundo, ocorre uma tendência ao desequilíbrio estrutural do balanço de pagamentos, sob a forma da incapacidade dos países arcarem com os custos da modernização dos padrões de consumo. Uma vez cristalizada uma forma de conexão com o todo marcada pela alta mobilidade do capital e pela garantia da estabilização monetária, as periferias são pressionadas a especializarem sua pauta de exportações em busca de divisas, ao mesmo tempo em que elas são subtraídas pelas importações e remuneração de serviços. Desta forma, revela-se a tendência ao deslocamento do eixo dinâmico das economias para fora do mercado interno. E terceiro, como a difusão dos padrões de vida do centro se torna mais fácil e por isso é intensificada com o progresso técnico, as periferias se veem enredadas na renovação do mimetismo cultural e na encarnação da ideologia do mercado que combate o Estado nacional, único instrumento com alguma capacidade de resistir às tendências deletérias da integração (SAMPAIO JR., 2007: pp. 147-149). Como resultado, estes países – e isso é particularmente válido para o Brasil – se defronta com os desafios da desestruturação produtiva, da ruptura dos mecanismos de classificação social que estabilizavam e legitimavam a ordem, e fica exposto a toda sorte de tensões regionais e de segregação social. Daí se falar em fortes tendências à reversão neocolonial, nos termos já explicados no item 2 deste capítulo. Um ponto chave para se compreender como as sociedades periféricas – particularmente aqui as latino-americanas e a brasileira – se expõem e ingressam nesta rede complexa de determinações é a análise da força relativa da burguesia local no novo contexto. A questão pode ser resumida da seguinte forma: 60 O problema central é que o novo contexto histórico reduz dramaticamente os graus de liberdade das burguesias das economias periféricas diante do capital internacional. Como as empresas transnacionais passaram a operar com tecnologias concebidas para mercados supranacionais, com renda média muito elevada, a natureza de seus vínculos com as economias dependentes tornou-se muito mais fluida. A situação é bem diferente daquela que ocorrera na fase final de difusão da Segunda Revolução Industrial. No ciclo expansivo do pós-guerra, a estratégia de conquista dos mercados internos, mediante a transferência de unidades produtivas, levava o capital internacional a exigir espaços econômicos nacionais relativamente bem delimitados. Tratava-se de evitar que unidades produtivas deslocadas para a periferia sofressem a concorrência de produtos importados. É este contexto histórico que permitiu que, até o início dos anos oitenta, as economias mais avançadas da região apresentassem uma certa convergência tecnológica com as economias centrais. Na era da mundialização do capital, estamos assistindo a um fenômeno bem diferente. O objetivo das grandes empresas transnacionais é diluir a economia dependente no mercado global para que possam explorar as potencialidades de negócios da periferia sem sacrificar sua mobilidade espacial. Por esse motivo, os gigantes da economia mundial não querem que as fronteiras nacionais continuem rigidamente delimitadas. O interesse no “Terceiro Mundo” se resume basicamente aos seguintes objetivos: ter livre acesso aos mercados, (não importando se eles serão atendidos com produtos importados ou com produção local –a decisão depende de circunstâncias ditadas pela estratégia de concorrência de cada empresa); ter o máximo de flexibilidade para aproveitar as potencialidades da região como plataformas de exportações que requerem mão-de-obra barata; açambarcar das mãos do capital nacional, público ou privado, os segmentos da economia que possam representar bom negócio. A adversidade do contexto histórico enfrentado pelos países latino-americanos foi agravada pelo efeito extremamente negativo do colapso da União Soviética sobre o poder de barganha dos países periféricos no sistema capitalista. Sem medo do fantasma comunista, as nações hegemônicas sentiram-se livres para desrespeitar os princípios mais elementares da autodeterminação dos povos. Sem sustentação externa e sem base material interna para sustentar o seu poder de classe, as burguesias dependentes estão se convertendo em burguesias que vivem de intermediar negócios de compra e venda de mercadorias no mercado internacional, de patrimônio público e privado e de ativos financeiros. Isso explica a desfaçatez com que grandes potências, direta ou indiretamente, pressionam as economias dependentes a se adaptar incondicionalmente às suas exigências; bem como a docilidade com que tais pressões são recebidas pelos mandatários-títeres de plantão (SAMPAIO JR., 2007: pp. 146-147). A reflexão sobre a nova dependência passa, portanto, sobre o caráter assumido pelas burguesias locais. A nova configuração da ordem global coloca pouquíssimo raio de manobra para uma burguesia como a brasileira e a faz mais dependente de negócios gerados pelo capital transnacional: ela se torna crescentemente uma classe que aproveita oportunidades na intermediação de mercadorias (comércio exterior), de ativos financeiros e de patrimônio, próprio ou estatal. Com a desarticulação da industrialização dependente, a burguesia brasileira sai em busca de todo tipo de negócio especulativo – comercial, financeiro ou produtivo – no mercado interno ou externo. A questão colocada nos anos 2000 é justamente a intensificação deste padrão 61 de movimento, que fortaleceu os vínculos da burguesia com o capital internacional, como vimos na seção anterior. A grande crise econômica mundial que eclodiu em 2008 apontou novos condicionantes para o processo de reversão neocolonial. Ao não desvalorizar o estoque de ativos tóxicos, a estratégia americana para a crise não conseguiu abrir um novo horizonte de investimentos e não promoveu medidas para controle e coordenação dos mercados de capitais internacionais, curiosamente criou bases para a recuperação pela qual o Brasil passou em 20092010, bem como apontou o aprofundamento das vulnerabilidades estruturais da economia brasileira (SAMPAIO JR., 2011: pp. 88-93). A combinação entre o estado de incerteza generalizado e a existência de uma gigantesca massa de capital sem aplicações gera uma convulsão na busca por oportunidades circunstanciais74. O encontro deste capital com um país com ampla oferta de negócios ligados à especulação e ao rentismo deu fôlego novo ao investimento direto externo, que aproveitou, como já vimos, para ganhar com a dívida pública, com ações e dívidas de empresas ligadas à exportação, ou tão somente passíveis de especulação, a negócios nos setores primários, importação e exportação etc. Em resumo: “Antes de significar um ‘descolamento’ da crise internacional, a surpreendente recuperação do crescimento reflete, na verdade, a forma específica de articulação da economia brasileira com o movimento de metástase da crise” (IDEM: p. 87). A crise mundial, desta forma, acirra os processos que impulsionam a reversão neocolonial. Sampaio Jr., menciona quatro efeitos relevantes que esta crise coloca para o Brasil: (i) o enorme afluxo de capital e o déficit no balanço de pagamentos reforça o desequilíbrio externo estrutural, deixando claro como a questão externa não está equacionada; (ii) o compromisso e submissão do Estado brasileiro aos interesses do grande capital estrangeiro e interno (manifesta nas ações de auxílio e socorro via subsídios, desonerações, incentivos, crédito, encampação da divida etc.) tem como contrapartida a fragilização financeira do Estado e a redução das margens de manobra; (iii) o financiamento de um ciclo de crescimento e 74 “O estado de incerteza radical gerado pela ausência de uma clara definição sobre as novas frentes de expansão do capitalismo obriga a massa de capital excedente, que foi impedida de se desvalorizar pela providencial intervenção do Estado, a sair como um zumbi pelo mundo afora à cata de negócios circunstanciais, levando ao paroxismo a lógica predatória e ultra-especulativa que preside o movimento do capital em tempos de crise” (SAMPAIO JR., 2011: p. 87). 62 modernização dos padrões de consumo sobre o endividamento das famílias expõe todo o sistema financeiro a uma perigosa crise de inadimplência; (iv) a regressão industrial e a especialização regressiva se aceleram com os incentivos a investimentos baseados no uso indiscriminado e predatório de recursos naturais (SAMPAIO JR., 2011: pp. 94-95). Particularmente este último merece um detalhamento: Por fim, a política de incentivar a entrada de indústrias sujas, que se deslocam dos países desenvolvidos para fugir do rigor da legislação ambiental, e a impotência diante da guerra de desvalorização cambial deflagrada pelos Estados Unidos aceleram e aprofundam o processo de regressão industrial e especialização regressiva que caracterizam a inserção passiva da economia brasileira na globalização dos negócios. A exposição da economia brasileira à fúria da concorrência em tempos de crise simplifica ainda mais seu sistema produtivo, pois, sem competitividade dinâmica para enfrentar as economias centrais e sem competitividade espúria para fazer frente às economias asiáticas, o único caminho que lhe resta é explorar as vantagens competitivas absolutas. Na divisão internacional do trabalho que se desenha, o Brasil tende a ser relegado a uma posição terciária de mero fornecedor de produtos primários e semimanufaturados, de baixo conteúdo tecnológico, alto consumo de energia e elevado impacto negativo sobre o meio ambiente (SAMPAIO JR., 2011: pp. 94-95). Trata-se de um apontamento de extrema importância para a compreensão do que pode ser o padrão de acumulação desta burguesia. Não apenas é vinculado a negócios internacionais, como – e exatamente por causa disso – tem como suporte a exploração de vantagens competitivas absolutas, na medida das possibilidades da superexploração de variáveis internas, como o trabalho e o meio ambiente75. Daí se falar em produtos primários ou semimanufaturados – commodities minerais, agrícolas e industriais –, de baixa tecnologia e alto consumo energético e de recursos naturais abundantes no país. A conclusão não poderia ser mais desafiadora para quem pensa a formação: Em suma, na ordem internacional emergente, o desenvolvimento nacional não está no horizonte de possibilidades dos países periféricos. A comunidade internacional reduziu tudo que estiver fora dos megablocos regionais a cobiçados mercados emergentes ou reles zonas de pobreza. Na nova divisão internacional do trabalho, cabem às economias periféricas fundamentalmente três papéis: franquear seu espaço econômico à penetração das grandes empresas transnacionais; coibir as correntes migratórias que possam causar instabilidade nos países centrais; e aceitar a triste e paradoxal função de pulmão e lixo da civilização ocidental (SAMPAIO JR., 2007: p. 147). 75 Pilar apontado por Florestan Fernandes para dar base material à burguesia dependente, o controle irrestrito e predatório das variáveis econômicas internas, pode não ser o suficiente para enfrentar concorrentes em que as vantagens espúrias pode ser superior à sua. A China é o melhor exemplo. 63 Capítulo 3: Estudo de grupos industriais selecionados da burguesia brasileira 1. Introdução Neste capítulo será apresentada uma síntese da pesquisa sobre os grupos selecionados da burguesia brasileira, bem como uma discussão em que se busca extrair elementos que ajudem a entender o caráter da burguesia brasileira. Este capítulo é dividido em quatro partes além desta introdução. No item 2, será apresentada a base de dados da qual serão identificados os maiores grupos da burguesia – o anuário “Valor Grandes Grupos” – e o critério de seleção dos grupos pesquisados. No item 3, será apresentada a metodologia da pesquisa. No item 4, serão apresentadas as síntese de cada um dos grupos selecionados: Cosan, Vale, Gerdau e JBS. Por fim, no item 5, será feita uma discussão em cima dos resultados. 2. Os maiores grupos econômicos no Brasil 2.1. O conjunto dos maiores grupos econômicos no Brasil Utilizaremos como fonte principal de apresentação dos maiores grupos econômicos do Brasil o anuário “Valor Grandes Grupos”, do jornal “Valor Econômico”, editado desde 2002. Esta publicação mostra um ranking dos 200 maiores grupos econômicos presentes no Brasil, por receita bruta. A diferença para outras publicações do gênero (como “Melhores & Maiores”, da Exame, ou “Valor 1000”, também do jornal Valor Econômico) é que não trata de empresas desagregadas, mas de grupos econômicos, conglomerados de empresas controladas integral ou parcialmente por um comando único. Este anuário mostra uma lista com os dados gerais de desempenho dos grupos, como receitas brutas, patrimônio líquido e lucro líquido, entre outros, e informações importantes para análise, como país de origem e o ramo de atividade dos grupos. Além disso, ele mostra um organograma de cada grupo, revelando quais empresas o grupo controla, o percentual do controle (em alguns casos os sócios mais importantes) e as pessoas, famílias ou empresas que detêm o controle do grupo. 65 A vantagem do estudo do grupo econômico sobre a empresa desagregada é que o grupo permite compreender a estratégia de um grande capital em sua totalidade e não apenas do ponto de vista dos resultados de uma parte. Ao buscar a grande burguesia pelos seus grupos, eliminamos empresas que sejam individualmente grandes, mas que não estejam sob o comando dos capitais conglomerados que possuem efetivamente o poder econômico dentro do espaço nacional. Outro diferencial desta base de dados – de grande importância para este estudo – são os ramos de atividade utilizados para classificação dos grupos. No “Valor Grandes Grupos”, os grupos são enquadrados em quatro ramos: finanças, indústria, comércio e serviços. Desaparecem, portanto, categorias muito específicas que aparecem no estudo das empresas desagregadas; estas subdivisões são apenas mencionadas na exposição dos organogramas individuais, dos quais é possível extrair pelo menos os segmentos mais importantes para cada grupo. Essa classificação é um resultado do próprio estudo dos grupos, já que eles geralmente englobam negócios em diferentes setores e seria impossível classificá-los de forma mais específica. Uma das consequências disso, portanto, é o nível de generalidade que os ramos de atividade carregam. No que interessa a esta dissertação, que é o estudo de grandes grupos da burguesia brasileira na indústria, a decorrência é que dentro da categoria “indústria” estão todos os grupos que participam de alguma forma de atividades produtivas, de bens materiais. Ou seja, trata-se da indústria no seu sentido mais genérico, com implicações importantes sobre quais grupos serão selecionados, como se verá adiante. No entanto, a utilização deste tipo de anuário traz um problema para a análise: a comparação de desiguais, uma vez que são listados grupos de controle brasileiro, cujas empresas atuam principalmente no espaço nacional, mas que também atingem outros países, e, ao mesmo tempo, grupos estrangeiros e suas empresas atuantes no Brasil ou, excepcionalmente, com operação internacional a partir das unidades no Brasil. Portanto, não podemos ignorar que o peso relativo que os grupos de controle brasileiro possuem possa ser superestimado na comparação com o dos grupos estrangeiros. De qualquer forma, para fins dessa pesquisa, a identificação dos maiores grupos brasileiros não é afetada por essa distorção. Para identificar o conjunto dos grupos que nos interessaria, foram excluídos, dentro dos grupos com controle brasileiro, quais eram estatais e quais eram de controle misto, isto é, em 66 que está discriminado na apresentação do anuário o controle por mais de um país. Desta forma, pudemos selecionar apenas os grupos de controle privado nacional e deles destacar os presentes na indústria. Agregando os valores das receitas de cada grupo, podemos ter uma mapa do que é o conjunto do grande capital no Brasil, por setor e por país de origem do controlador. Tabela 1. 200 maiores grupos no Brasil em 2011, por receitas (R$ mi) Por setores e país de origem do controlador Receitas (R$ mi) Priv. Nac. Estatal Misto Estrangeiro Total Finanças 359.337 221.243 9.422 126.537 716.538 Setores Indústria Comércio 519.057 143.684 306.234 0 73.417 52.681 289.309 41.016 1.188.018 237.381 Serviços 84.114 266.420 3.372 211.907 565.813 Total 1.288.498 611.591 138.892 668.769 2.707.750 % sobre o setor Priv. Nac. Estatal Misto Estrangeiro % Setor % Setor/Total Finanças 50% 31% 1% 18% 100% 26% Indústria 44% 26% 6% 24% 100% 44% Serviços 15% 47% 1% 37% 100% 21% Total 48% 23% 5% 25% 100% 100% Comércio 61% 0% 22% 17% 100% 9% Fonte: Valor Grandes Grupos, 2012 (elaboração própria) Podemos também fazer um exercício específico para entender a magnitude dos grupos na indústria, mostrando o tamanho do ramo com todos os grupos, sem a Petrobras e sem a Petrobras e a Vale. À visão geral, adicionamos uma comparação das receitas agregadas com o PIB brasileiro do mesmo ano. 67 Tabela 2. 200 maiores grupos econômicos no Brasil em 2011, por receitas (R$ mi) Receitas (R$ mi) 200 Grupos Indústria Indústria sem Petrobras Ind. sem PB e Vale Priv. Nac. 1.288.498 519.057 519.057 413.537 Estatal 611.591 306.234 0 0 Misto Estrangeiro 138.892 668.769 73.417 289.309 73.417 289.309 73.417 289.309 % por corte Geral Indústria Indústria sem Petrobras Ind. sem PB e Vale Priv. Nac. 47,6% 43,7% 58,9% 53,3% Estatal 22,6% 25,8% 0,0% 0,0% Misto Estrangeiro 5,1% 24,7% 6,2% 24,4% 8,3% 32,8% 9,5% 37,3% Total 2.707.750 1.188.018 881.784 776.264 % Total 100% 44% 33% 29% Total % PIB 2011 65,4% 100,0% 100,0% 28,7% 100,0% 21,3% 100,0% 18,7% Fonte: Valor Grandes Grupos, 2012 (elaboração própria) Trata-se, portanto, de um conjunto muito importante de empresas, cujas receitas agregadas atingem 65% do PIB em 2011. Além disso, seu patrimônio líquido total no mesmo ano – de R$ 1.552,0 milhões – representa 37% do PIB e o resultado líquido total – de R$ 200,9 milhões – corresponde a 5% do PIB. É importante frisar, também, que se trata de um conjunto bastante complexo de grupos, se considerados todos os setores. Com isso, fica claro que não seria possível esgotar um estudo global sobre a burguesia brasileira apenas estudando seus grupos industriais, ou mesmo uma seleção destes – e essa dissertação não tem essa pretensão. 2.2. Os maiores grupos da burguesia brasileira na indústria Feita a introdução ao conjunto dos maiores grupos, passamos ao conjunto que realmente importa para este trabalho: o dos grandes grupos industriais privados brasileiros. Como já foi alertado, dentro os grupos industriais serão encontrados todos aqueles do que seria considerada atividade produtiva de bens extrativos, agropecuários ou industriais. Dentro os 200 maiores grupos, são 46 grupos que atendem a este corte no ano de 2011. Compilados os segmentos de atividade específicos que o Anuário traz para cada grupo, podemos ter a noção do conjunto e, internamento a este, dos mais variados segmentos industriais em que atuam. É desta lista, portanto, que serão selecionados os grupos da pesquisa. 68 Tabela 3 – Maiores grupos industriais de controle brasileiro privado por receitas (2011) 1 2 Posição 200 5 7 Grupo Setores 3 4 9 16 JBS Gerdau 5 17 Votorantim 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 21 22 26 33 38 55 78 79 80 86 92 95 100 107 116 120 128 133 136 141 142 144 146 148 151 152 153 154 156 168 169 170 174 181 184 187 190 195 196 197 BRF Cosan Marfrig CSN Usiminas Embraer WEG Suzano Schincariol Random Paranapanema Klabin Minerva Marcopolo Iochpe-Maxion M. Dias Branco Positivo Tigre Unigel Aché Spaipa Coca-Cola Tupy Grupo Brasil Caramuru EMS Sigma Pharma Coteminas Vonpar Alto Alegre Granol Vulcabrás/Azaleia Zilor Grendene Inepar São Martinho J. Macêdo Tércio Wanderley Vicunha Têxtil Ligna Bombril Eucatex 46 198 Grupo Farias Vale Odebrecht Energia Elétrica, metalurgia, mineração, siderurgia, transportes e logística Construção, Petroquímica (e Energia Elétrica, Defesa, Transportes Infraestrutura, Petróleo e Gás, Açúcar e Álcool, Imobiliário) Alimentos (carnes) Comércio (distribuição de produtos siderúrgicos), energia elétrica, metalurgia e siderurgia Agroindústria, energia elétrica, finanças, materiais de construção, siderurgia e metalurgia, papel e celulose, química e petroquímica e TI. Alimentos e Comércio Açúcar e Álcool, agricultura, comércio, transportes e logística Alimentos (Carnes) Energia Elétrica, metalurgia e siderurgia, e transportes e logística Comércio, mecânica, metalurgia e siderurgia, e transportes e logística. Veículos e peças (indústria aeronáutica) Comércio exterior, eletroeletrônica, mecânica e química Comércio e Papel e Celulose Bebidas, comércio e transporte e logística Veículos e peças Metalurgia, Mineração e Química e Petroquimica Papel e Celulose Alimentos (Carnes) e transportes e logística Comércio de peças, materiais plásticos, e veículos e peças (carrocerias) Metalurgia e Veículos e Peças Alimentos Comunicação, Eidtorial, Educacional, e Tecnologia da Informação Plástico e borracha, química e petroquímica Embalagens, Química e Petroquímica Farmacêutico Bebidas Metalurgia e Siderurgia Autopeças, metalurgia e siderurgia Agronegócio e Alimentos Farmacêutico Têxtil e Vestuário Bebidas Açúcar e Álcool Alimentos e Comércio Calçados Açúcar e álcool Calçados Construção e Engenharia, energia elétrica, mecânica, Petróleo e Gás Açúcar e Álcool Alimentos Açúcar e Álcool Têxtil e Vestuário Comércio, materiais de construção e decoração, metalurgia Higiene e Limpeza Construção e engenharia, materiais de construção e decoração, química e petroquímica Açúcar e Álcool, agricultura e comércio Fonte: Valor 200 Grupos, 2012 (elaboração própria). 69 Um exercício interessante é contabilizar quantas vezes cada segmento de atividade específica foi mencionado na totalidade dos grupos industriais brasileiros privados. Os resultados não implicam que um segmento é mais importante que o outro (a mineração é mencionada duas vezes, mas é uma das mais relevantes nas receitas do grupo); servem somente de termômetro de quais atividades são mais frequentes dentro o grupo. Curiosamente, a atividade de comércio é a mais frequente dentre os grupos industriais. Tabela 4 – Setores mais mencionados nos grupos industriais privados brasileiros (2011) Qtde. 14 11 8 7 7 7 7 5 4 4 3 3 Setor Comércio Metalurgia Alimentos Açúcar e Álcool Química e petroquímica Siderurgia Transportes e logística Energia Elétrica Agroindústria Bebidas Calçados Construção Qtde. 3 3 3 3 2 2 2 2 2 2 1 1 Setor Materiais de construção Mecânica Papel e celulose, Veículos e peças Farmaceutico Mineração Petróleo e Gás Plástico e borracha Tecn. Informação Têxtil e Vestuário Aeronáutica Autopeças Qtde. 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 Setor Comunicação Defesa Editorial Educacional Eletroeletrônica Embalagens Finanças, Higiene e limpeza Imobiliário Infraestrutura Fonte: Valor 200 Grupos, 2012 (elaboração própria). 2.3. Os grupos selecionados para a pesquisa Um primeiro recorte tentado para se chegar aos maiores grupos industriais da burguesia brasileira foi extrair os 10 maiores grupos. 70 Tabela 5 – 10 maiores grupos industriais privados brasileiros (2011) % Receitas Vale Odebrecht JBS Gerdau Votorantim BRF Brasil Foods Cosan Marfrig CSN Usiminas 4 grupos selecionadas 10 maiores priv. nac. ind. Todos priv. nac. indústria 200 Grupos 3,9% 2,6% 2,4% 1,5% 1,4% 1,1% 1,0% 0,9% 0,7% 0,6% 8,7% 16,0% 19,2% Grupos Ind. sem Industriais Petrobras 8,9% 12,0% 6,0% 8,1% 5,4% 7,3% 3,4% 4,5% 3,3% 4,4% 2,5% 3,3% 2,2% 2,9% 1,9% 2,6% 1,7% 2,2% 1,4% 1,8% 19,8% 26,7% 36,5% 49,2% 43,7% 59% Receitas (R$ mi) 105.520 71.009 64.239 39.820 38.929 29.361 25.918 23.030 19.784 16.104 235.497 433.713 519.057 % PIB 2011 2,5% 1,7% 1,6% 1,0% 0,9% 0,7% 0,6% 0,6% 0,5% 0,4% 5,7% 10,5% 12,5% Fonte: Valor 200 Grupos, 2012 (elaboração própria). Contudo, este conjunto, que pode ser visto na tabela a seguir, contém duas peculiaridades: possui dentro dele alguns grupos excessivamente diversificados, Odebrecht e Votorantim, que tornaria muito complexa a pesquisa; e possui grupos em setores coincidentes – Gerdau, Usiminas e CSN na siderurgia e JBS, BRF e Marfrig no segmento de carnes. Portanto, excluídos os dois referidos grupos e selecionados os maiores grupos em cada segmento, foram selecionados os grupos: Vale, JBS, Gerdau e Cosan. O grupo selecionado possui liderança em setores importantes dentro da economia brasileira e nos quais o Brasil possui destaque no mundo. A Vale é um dos maiores grupos do Brasil, maior empresa brasileira no ramo de mineração mundial e uma das três maiores mineradora do mundo; A JBS é a maior brasileira no segmento de carnes, segundo setor em exportações do agronegócio brasileiro, e é recém-chegada à condição de maior empresa do mundo no setor de proteínas; a Gerdau é a maior siderúrgica de controle brasileiro, maior empresa de aços longos do Brasil e das Américas, com grande presença internacional; e a Cosan que controla a maior empresa produtora de açúcar e etanol no mundo, em um ramo em que o Brasil está entre os líderes mundiais. Por isso, consideramos que estudo do grupo selecionado poderá dar contribuições relevantes para o entendimento de uma parcela importante da burguesia brasileira, objeto de investigação dessa dissertação. 71 3. Metodologia de pesquisa A pesquisa foi estruturada de forma a permitir a identificação, para cada uma das quatro empresas pesquisadas, dos parâmetros apresentados no último item do capítulo 1 referentes aos nexos da burguesia com mercados interno e externo, à natureza de sua relação com o capital internacional e com o Estado, a solidez de sua base tecnológica e financeira, e o caráter de sua estratégia de acumulação76. É a identificação destas características e o esforço de elaboração de uma apresentação sintética da organização empresarial de cada grupo que permitirá contribuir para um passo no entendimento das questões levantadas como hipóteses no último item do capítulo 2, e o papel da burguesia brasileira nos anos 2000. A investigação se concentrou no estudo dos seguintes grupos: Cosan, Vale, Gerdau e JBS. Para tanto, buscou investigar dados e informações desde o início da década de 2000 (e, quando necessário, desde o final da década de 1990) até os primeiros anos da década de 2010, entendendo esse período como um conjunto – os “anos 2000”. Os procedimentos de pesquisa realizados foram: (i) Levantamento dos relatórios anuais de cada empresa, obtidos em seus sites na internet ou através dos sistemas de dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), através dos progromas DivExt e EmpresasNet. Foram levantados tanto Relatórios Anuais de ampla divulgação, Relatórios da Administração feitos para atendimento de requisitos de governança corporativa e os Formulários 20-F (F20-F), elaborados para a Bolsa de Valores de Nova Iorque (não se aplica à JBS). (ii) Feito este levantamento, foi feito o resumo da linha geral de evolução das empresas, extraindo dos relatórios dados referentes às vendas, produção física, comércio internacional, investimentos e desinvestimentos, e, por fim, financiamento. Os relatórios permitiram iniciar uma análise qualitativa do desempenho dos mercados. (iii) Foi realizada ampla pesquisa de dados objetivando constituir séries históricas de produção, consumo, exportações e importações dos mercados dos produtos principais de cada grupo, além de destacar os principais impulsionadores da dinâmica de cada 76 Não foram investigadas a fundo as relações das empresas com o trabalho, ainda que em diversos dados e referências consultadas se permita inferir algum padrão destas relações. A sua investigação a fundo abriria uma outra linha de pesquisa que não poderia ser realizada nesta dissertação devido à extensão e complexidade. 72 um deles. Estes dados foram retirados de documentos de órgãos governamentais brasileiros (MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, MME – Ministério de Minas e Energia, DNPM – Departamento Nacional de Produção Mineral, MDIC – Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior) e dos Estados Unidos (USDA – United States Department of Agriculture, USGS – United States Geological Survey), associações de produtores nacionais e internacionais (Unica – União das Indústrias de Cana-de-açúcar, Instituto Aço Brasil, World Steel Association), organismos internacionais (OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, FAO – Food and Agriculture Organization, das Nações Unidas, UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Development, Banco Mundial, FMI – Fundo Monetário Internacional) e, eventualmente, nos relatórios das empresas e em outros tipos de trabalhos e relatórios, acadêmicos ou jornalísticos. (iv) Foi realizada também uma pesquisa por trabalhos acadêmicos – teses, dissertações, artigos, relatórios de pesquisa etc. – e por notícias em veículos de comunicação especializados em economia e negócios – jornais, revistas e sites – buscando trazer informações relevantes para o esclarecimento da dinâmica dos setores e dos grupos, em especial fatos decisivos para sua estratégia. (v) O conjunto de informações foi organizado em quatro Anexos, um para cada grupo econômico: Anexo A, referente à Cosan, Anexo B, referente à Vale, Anexo C, referente à Gerdau, e Anexo D, referente à JBS. Os quatro foram estruturados da mesma forma, de modo a uniformizar a apresentação e o entendimento do caminho e dos resultados da pesquisa77. (vi) Com base nos relatórios foi redigida a apresentação dos resultados, no item a seguir. 77 A estrutura de apresentação dos anexos é a seguinte: introdução, histórico do grupo, mercados principais e a dinâmica deles, estratégia e trajetória de crescimento e transformação, sua base produtiva e financeira e uma síntese do grupo. 73 4. Síntese dos grupos selecionados 4.1. Cosan O grupo Cosan se caracteriza por uma trajetória de aquisições e especulação no setor sucroalcooleiro, que se concluiu com a constituição de uma associação com o capital internacional em que este último controla a possibilidade de compra ou de venda do negócio de acordo com suas conveniências. Com origem no mercado de açúcar e álcool, o grupo orquestrou a fuga do negócio estruturalmente instável em busca de melhores condições em outras ramos especulativos, como a especulação imobiliária ou os serviços logísticos de exportação de commodities, intermediação no mercado interno de combustíveis, lubrificantes e gás natural, sempre associado e financiado pelo capital internacional. Trata-se de um grande capital oportunista, que modifica suas bases de acumulação de acordo com as conveniências, mesmo quando é a maior empresa do ramo. Tabela 6. Posição da Cosan no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas) 200 grupos 25 indústria priv. nacional Receitas (R$ milhões) 2001 138º 1004 2002 109º 1569 2003 ND* ND* 2004 111º 22º 2048 2005 100º 20º 2702 2006 82º 17º 3903 2007 107º 22º 2979 2008 53º 12º 7952 *ND: Dado não encontrado 2009 33º 6º 1868 6 2010 27º 7º 1978 3 2011 22º 7º 2591 8 Fonte: Valor Grandes Grupos, diversos anos (elaboração própria) O grupo Cosan tem como origem o setor sucroalcooleiro, produtor de açúcar e etanol a partir da cana-de-açúcar. No Brasil, trata-se de um setor de alta produtividade, mas bastante instável e no qual a produção é pressionada pelos outros agentes da cadeia, obtendo pequena margem. As usinas são pressionadas, por um lado pelo oligopólio nos fabricantes de bens de capital, e, por outro, pelo oligopólio dos clientes, as tradings do açúcar e as distribuidoras de combustíveis. Devido às características técnicas do ramo, as unidades produtivas são pulverizadas, o que deu origem à pulverização do capital o que, associado aos vínculos com os outros elos, as flutuações naturais e à volatilidade de preços, torna baixas as margens de lucro no 74 setor. Em consequência, o setor possui uma base financeira muito frágil. Basicamente, os diferenciais do setor e em especial da posição dos usineiros é a capacidade de coordenar ou comandar a produção e as terras, em condições naturais muito favoráveis, e o trabalho barato. Dentro deste quadro geral, o setor sucroalcooleiro passou por uma intensa expansão nos anos 2000, mobilizada principalmente: (i) no ramo do açúcar, pelo aumento da demanda externa e dos preços a ela associados78; (ii) no ramo do etanol, pela difusão do motor flex fuel em automóveis de passeio, que tornou o combustível substituto direto da gasolina; (iii) ainda no ramo do etanol, pelo aumento dos preços do petróleo na década, que permitiram que o etanol se tornasse competitivo durante alguns anos; (iv) pela projeção mundial e os investimentos advindos com isso, da decisão de vários países, em especial os EUA, de incentivar a produção de biocombustíveis79; (v) pelo desenvolvimento da cogeração de energia elétrica nas usinas, que deu um rendimento adicional aos usineiros80. São em especial dois fatores exógenos à economia brasileira – (i) e (iii) – que dinamizaram o setor, que esteve deprimido pela desestruturação do Proálcool desde o início dos anos 199081. Gráfico 1. Brasil – exportações de açúcar – físicas (mi ton.) e valor médio (US$/ton) Fonte: UNICADATA (elaboração própria) 78 Cf. OCDE-FAO (2011: cap. 6). Cf. IEA (2012: cap. 7). Em 2003, os EUA passaram o Brasil e se tornaram o país líder na produção de etanol. em 2003; a partir de 2009, produziu 75% a mais que o Brasil. 80 Cf. Brasil (2010), Conab (2010). 81 Cf. Gonçalves (2009). 79 75 É neste contexto que o grupo Cosan cresceu. Originário de um negócio familiar antigo que se consolidou nos final dos anos 1990, o grupo teve como principal estratégia o crescimento por aquisições82 fortemente associado e financiado pelo capital internacional. Em uma década, ampliou consideravelmente sua capacidade produtiva à base de aquisições: em 2009, 66,4% da sua capacidade produtiva vinha de usinas adquiridas ao longo da década, 9,4% de duas novas usinas e o restante das usinas originais83. Maior produtor de açúcar e etanol do mundo pelo menos desde 2002, a Cosan explorou a fragilidade operacional, financeira e a pulverização do controle existente no setor para comprar e explorar os poucos ganhos de escala possíveis, de origem administrativa84. O outro pilar da estratégia da Cosan é sua associação e recurso ao financiamento do grande capital internacional. Apesar de não haver dados organizados pré-abertura de capital (2006), reportagens sobre a companhia demonstram operações de sociedade com grandes empresas do ramo de açúcar desde os anos 1990 em usinas e operações portuárias, além do recurso a empréstimos e controle acionário minoritário85. A partir de 2006, com dados públicos, é possível ver que a empresa cresceu com capital próprio, em grande parte possibilitado pela abertura de capital, e com o endividamento, majoritariamente em moeda estrangeira (entre 60% a 80% nos últimos sete anos); os maiores aportes em moeda doméstica surgem entre 2010 e 2012 vindos principalmente do BNDES. A posição de fragilidade financeira do capital local é tamanha que, após a abertura de capital da Cosan S.A. na Bovespa em 2005, a empresa ficou sujeita a tomada de controle por outro grupo na medida em que o controlador, Rubens Ometto, foi reduzindo sua participação para capitalizar a empresa. Essa foi a sua justificativa para a criação de uma nova empresa controladora do grupo, a Cosan Ltd., sediada nas Bermudas, onde a 82 Ao longo da década de 2000, a Cosan adquiriu as Usinas Rafard, Gasa, Univalem, Dois Córregos, da Barra e Junqueira (2000-2004), Mundial e Destivale (2005), Bom Retiro, Tamoio e Bonfim (2006), Santa Luiza (2007) e Benálcool (2008). Em 2009, adquiriu o grupo NovAmérica S.A. Agroenergia em 2009 com 3 usinas, 1 projeto greenfield em Caarapó (MS), duas refinarias e quatro empacotadoras de açúcar e as marcas União, Dolce, Neve e Duçula. Por fim, inaugurou uma nova usina em Jataí (GO) em 2009. 83 Calculado com dados de Cosan (2009). 84 Arnt (2002), Blecher (2005). 85 Sobre associações e captação de recursos internacionais, ver Arnt (2002) e Blecher (2005). Em Cosan (2007; 2008) há histórico referente a associações em ramos operacionais e participações minoritárias. 76 legislação permitia ações especiais com maior direito de voto, o que permitiu prosseguir a capitalização e o endividamento nos Estados Unidos, onde a Cosan Ltd. abriu capital em 200786. Tabela 7. Cosan – endividamento por tipo (%) Senior Notes 2009 Senior Notes 2017 Senior Notes 2014 Bônus Perpétuos Resolução 2471 (Pesa) Finame Capital de Giro IFC Debêntures Adiantamento de clientes Notas Promissórias Empresas ligadas Pré-pagamento de exportações Adiantamente do contratos de câmbio BNDES Outros Endividamento Bruto (R$ milhões) Disponibilidades R$ (milhões) Dívida Líquida (R$ milhões) 2004-05 44,7% 0,0% 0,0% 0,0% 20,2% 3,5% 2,9% 0,0% 0,0% 23,0% 5,4% 0,2% 0,0% 0,2% 0,0% 0,0% 1170,1 180,7 989,4 2005-06 18,5% 0,0% 0,0% 40,7% 20,3% 0,7% 1,7% 5,9% 2,4% 7,0% 2,9% 0,1% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 2363,1 1124,2 1238,8 2006-07 13,8% 27,5% 0,0% 31,0% 16,7% 0,3% 1,1% 4,6% 1,8% 3,3% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 3015,3 1606,9 1408,3 2008-09 2,3% 24,9% 0,0% 28,1% 0,0% 1,2% 0,7% 3,0% 0,0% 0,0% 30,9% 0,0% 0,0% 3,8% 6,1% -1,1% 3755,0 719,4 3035,6 2009-10 0,0% 13,5% 11,8% 15,2% 0,0% 3,7% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 18,4% 5,6% 19,8% 12,0% 5333,8 1078,4 4255,4 2010-11 0,0% 10,1% 8,9% 19,0% 0,0% 10,8% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 11,3% 3,5% 24,4% 12,1% 6516,8 1254,1 5262,7 Fonte: Cosan, Relatório Anual e Relatório da Administração, diversos anos (elaboração própria) No setor sucroalcooleiro, para os dados disponíveis entre 2006 e 2012, a Cosan tem cerca de 60% das receitas vindas do açúcar (69% do lucro bruto), 35% do etanol (24% do lucro bruto) e o restante em outros negócios ligados ao ramo, como a cogeração. Na composição entre mercado externo e interno, sua estrutura é semelhante à do setor no Brasil como um todo: a maior parte das vendas de açúcar são externas (média de 77% em sete anos), enquanto que a maioria das de etanol são internas (mesmo valor de 77% no mesmo período); no global do setor, em média 53% do seu mercado é externo. 86 Cf. Salomão (2007). 77 Tabela 8. Cosan - Receita Operacional Líquida do setor Açúcar e Álcool (%) 2006 2007 2008 2009 2010(*) 2011(*) 2012(*) Total Açúcar 100% 60,1% 100% 61,4% 100% 52,2% 100% 56,7% 100% 62,8% 100% 60,3% 100% 54,0% .Mercado Interno .Mercado Externo 11,8% 48,3% 9,4% 51,9% 9,0% 43,2% 7,3% 49,4% 19,7% 43,0% 21,7% 38,6% 16,8% 37,2% Etanol 34,6% 32,9% 40,9% 36,9% 32,5% 34,5% 39,6% .Mercado Interno .Mercado Externo 28,6% 6,0% 24,6% 8,2% 29,6% 11,3% 24,3% 12,6% 24,6% 7,8% 30,7% 3,8% 31,0% 8,6% Cogeração Outros Produtos e Serviços AA Mercado Interno Mercado Externo 0,0% 5,3% 45,7% 54,3% 0,0% 5,7% 39,8% 60,2% 0,0% 6,9% 45,5% 54,5% 0,0% 6,4% 38,0% 62,0% 1,7% 3,0% 49,1% 50,9% 2,9% 2,3% 57,6% 42,4% 3,2% 3,1% 54,2% 45,8% Observações: (*) Dados da Raízen Fonte: Cosan, Relatórios Anuais e de Administração, diversos anos (elaboração própria) Um dos problemas mais importantes no setor, a posição desfavorável do produtor frente aos compradores, é também a realidade do grupo Cosan. Pouco mais de metade das vendas de açúcar é feita para cinco empresas, enquanto que cerca de três quartos do etanol é vendido para oito empresas. Trata-se de uma condição estrutural do setor no Brasil, que torna até mesmo a empresa líder mundial na produção sujeita a baixas margens. Tabela 9. Cosan – Principais compradores de Açúcar (%) Açúcar 2006 2007 2008 2010-2011 33,7% 33,3% 23,6% 33,4% Externo Sucres et Denrées (Sucden) Coimex Trading Ltd 11,3% 11,5% 6,9% 12,6% S.A. Fluxo 0,8% 9,5% 11,2% Tate & Lyle International 10,0% 5,3% 9,2% 5,3% Cane International Corporation 12,8% 2,2% 7,2% Cargill International S.A. 4,8% Total Externo 68,6% 61,8% 58,1% 56,1% Fonte: Relatórios Anuais e de Administração da Cosan (elaboração própria). 78 Tabela 10. Cosan – Principais compradores de Etanol (%) Etanol Externo 2006 2007 2008 2010-2011 Vertical UK LPP 9,3% 11,6% 13,6% 8,0% Kolmar Petrochemicals 0,3% 6,2% Vitol Inc. 3,5% Morgan Stanley Capital Group 2,9% Alcotra S.A. 5,8% Mitsubishi Corporation 2,0% Total Externo 15,4% 17,8% 20,0% 10,0% 27,8% 14,8% 20,1% 15,0% Interno Shell Brasil Ltda. Petrobrás Distribuidora S.A. 12,0% 9,2% 8,0% 17,0% Manancial Distribuidora de Petróleo Ltda. 2,3% 8,2% Euro Petróleo do Brasil Ltda. 14,3% 7,0% Cia Brasileira de Petróleo Ipiranga 6,1% 15,0% Tux Distribuidora de Combustíveis Ltda 5,7% Cosan Combustíveis e Lubrificantes S.A. 5,0% Braskem S.A. 4,0% Total Interno 42,1% 32,2% 54,2% 63,0% TOTAL 57,5% 50,0% 74,2% 73,0% Fonte: Relatórios Anuais e de Administração da Cosan (elaboração própria). No final dos anos 2000, a despeito de toda a euforia do mercado, em particular desde 87 2007 , o setor sucroalcooleiro entrou em profunda crise manifesta em margens deprimidas, prejuízos, redução de investimentos e até falências. A crise foi motivada, dentre outros fatores, por: redução na produtividade física por más safras, inadequação das variedades de plantas às regiões e pela transição para a mecanização da colheita; posição de mercado estruturalmente desfavorável do produtor frente ao comprador; custos financeiros crescente após a crise mundial; sobre-endividamento e expansão excessiva de capacidade; redução e mesmo fim da competitividade do etanol frente à gasolina88. Os investimentos previstos pelo BNDES para o quadriênio 2013-2016 caíram 90% frente aos realizados quadriênio 2008-201189. A conjunção de fatores revela quão instável é o setor nos seus elos débeis e os sucessivos pleitos da burguesia do 87 Em 2007, o então presidente dos EUA, George W. Bush, visitou o Brasil, tendo como pauta principal a integração do mercado de biocombustíveis, particularmente o etanol. 88 Cf. Conab (2010); Brandão (2012); Barba (2013). 89 Cf. BNDES (2013). 79 setor por suporte do Estado – parcialmente atendidos90 – revelam quão dependente é o ramo, particularmente na produção de etanol91. O passo decisivo que demonstra o padrão especulativo e oportunista da Cosan ocorre entre o final de 2008 e 2010. Em dezembro de 2008, a Cosan adquire os ativos da Esso (ExxonMobil) no Brasil: distribuição de combustíveis (atacado) e produção e distribuição de lubrificantes (com licença da marca Mobil). Com esta aquisição, o grupo Cosan resolvia parcialmente um problema de margens, compensadas pela entrada em um ramo que absorvia parcialmente estas margens no etanol. O novo negócio passou a ser o mais importante do grupo em vendas e a empresa se tornava uma gigante integrada, da produção à distribuição. Em 2010, a Cosan constituiu com a Shell a joint-venture Raízen, fruto da união dos ativos no setor sucroalcooleiro (usinas) da primeira e de distribuição de combustíveis de ambas, com controle dividido igualmente entre elas92. O nó da questão são os termos de constituição da empresa: o Acordo Vinculante para criação da Joint-Venture, de 25/08/2010, garante à Shell a possibilidade de compra da participação da Cosan em 2020, embora o contrário possa ocorrer em 2025 (caso a Shell não compre integralmente a participação da Cosan)93. Em reportagem da Revista Exame em 16/05/2012 sobre o grupo Cosan, é citado o analista Salim Morsy, da Bloomberg New Energy Finance, que resume o caráter da associação: “[o] acordo parece mais uma operação de aquisição do que uma joint-venture”94. Em um plano geral, é como se a Cosan tivesse adquirido um conjunto de ativos ao longo da década, aguardado sua valorização e, ao sinal de uma grande turbulência, vendido os ativos antes de maior desvalorização. O grande executivo e proprietário da empresa, Rubens 90 Cf. Batista (2014). No início da década de 2010, o controle dos reajustes dos preços da gasolina ofertada pela Petrobras frente aos preços internacionais virou a maior demanda da burguesia sucroalcooleira. Independente do que seria correto a se fazer e de quem ganha com isso, o aumento dos preços da gasolina significa uma transferência de renda para os usineiros. 92 Segundo o Acordo Vinculante de criação da joint-venture, a Cosan controla 51% da Raízen Energia (sucroalcooleira) e da Shell, 51% da Raízen Combustíveis (distribuição). Foram excluídos da união os ativos da Cosan na logística, lubrificantes e terras. 93 “A Cosan e a Shell concederão uma a outras opções de compra recíprocas. No 10º aniversário do Fechamento, a Shell terá uma opção para compra de metade ou da totalidade da participação da Cosan na Joint Venture proposta. Caso a Shell opte por exercer tal opção, a Cosan terá o direito de decidir se irá vender metade ou a totalidade de sua participação na JV proposta. No 15º aniversário do Fechamento, uma parte terá o direito de comprar a totalidade ou uma parcela da participação da outra companhia na Joint Venture proposta” (Fato Relevante da Cosan de 25/08/2010). 94 Cf. Onaga (2012). 91 80 Ometto, chegou a afirmar, ao explicar a associação com a Shell e a diversificação do grupo para outros setores: “O mercado de açúcar e álcool é uma montanha-russa. (...) estou investindo em setores mais estáveis”95. Mesmo em um país com o setor mais competitivo do mundo, o negócio seria demais para um burguês local, mesmo o maior deles. Por outro lado, para uma gigante como a Shell, tratar-se-ia apenas de mais um investimento menor em energias alternativas, do qual ela poderá se desfazer se for conveniente, ou adquirir, se for rentável. O fato é que o setor passou por um grande processo de internacionalização – inclusive tido como positivo pelo governo - e que apesar de estagnado, mostra o desequilíbrio entre o grande capital internacional e o local 96. A associação, feita pela Cosan há anos, foi a linha de menor resistência. Exacerbando o aproveitamento de oportunidades para fazer negócios certos ou associados ao grande capital internacional a Cosan, em 2012, vendeu a Cosan Alimentos – buscando especializar na produção de açúcar para atacado e exportação – e adquiriu o controle da Comgás, concessionária de distribuição de gás natural no estado de São Paulo, onde também é associada à Shell (minoritária). Outra fonte de expansão é sua controlada Rumo Logística, por meio da qual presta serviços de distribuição de commodities via transporte ferroviário e dutoviário, além da operação portuária. Foi por meio da Rumo, que a Cosan vislumbrou um novo negócio, ainda inconcluso, de aquisição do controle da concessionária de ferrovias ALL (América Latina Logística)97. No ápice da especulação está a controlada Radar, que compra, arrenda e vende terras destinadas à grande produção de commodities agrícolas, ou seja, a especulação imobiliária. Por fim, a Cosan Lubrificantes e Especialidades tem como base a associação com a ExxonMobil no uso da marca e na distribuição de lubrificantes importados, além da fabricação de lubrificantes no Brasil em fábrica própria. 95 Cf. Onaga (2012). Sobre a internacionalização no setor, ver Benetti (2009) e Siqueira e Castro Júnior (2010). Sobre a análise do governo, ver Brasil (2010). 97 Após tentativas de entrada no grupo controlador e litígio com a ALL devido a contrato com a Rumo, a Cosan despontou como saída governo para destravar os investimentos em ferrovias e capitalizar a ALL, cuja malha atende especialmente o sudeste e o sul, trecho final dos corredores de exportação de commodities (). 96 81 Tabela 11. Cosan - Receita Operacional Líquida (ROL) por segmento (%)98 Obs.: a) Não inclui ativos de Combust./Lubrif.; (b) Inclui 100% da ROL Raízen; (c) Inclui 50% da ROL Raízen. 2006 2007 2008(a) 2009 2010 2011 2012(b) Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% Açúcar 60,1% 61,4% 52,2% 28,8% 22,0% 21,3% 8,5% Etanol 34,6% 32,9% 40,9% 18,8% 11,4% 12,2% 6,3% Cogeração 0,0% 0,0% 0,0% 0,2% 0,6% 1,1% 0,5% Outros AA 0,0% 0,0% 6,9% 2,1% 1,0% 0,8% 0,5% Venda de Combustível 0,0% 0,0% 0,0% 46,2% 61,5% 60,4% 76,4% Venda de Lubrificantes 0,0% 0,0% 0,0% 3,0% 0,4% 4,6% 2,2% Outros CL 0,0% 0,0% 0,0% 0,4% 0,5% 0,4% 2,2% Logística 0,0% 0,0% 0,0% 0,9% 1,0% 2,5% 1,2% Alimentos 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 4,9% 2,0% Outros 5,3% 5,7% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,1% Elimin. de consolidação 0,0% 0,0% 0,0% -0,3% -2,3% -3,2% 0,0% Fonte: Relatórios Anuais e de Administração da Cosan (elaboração própria). 2012(c) 100% 7,9% 5,8% 0,5% 0,5% 70,8% 4,1% 4,1% 2,3% 3,8% 0,2% 0,0% Originário de um setor agrícola, de base técnica livre, dependente do controle de terras e acesso a força de trabalho barata, fortemente vinculado a mercados externos, o de açúcar, e a um setor estruturalmente dependente do Estado, o de etanol, instável e de uma posição subordinada dos produtores, o grupo Cosan teve seu crescimento baseado em uma longa lista de aquisições, financiadas em grande medida pelo capital internacional. Ciente da posição financeiramente inferior e das debilidades estruturais de sua posição na produção, o grupo Cosan realizou um grande processo especulativo no setor sucroalcooleiro, passando pela aquisição dos ativos de distribuição de combustível e que teve seu ápice na constituição da joint-venture Raízen com a Shell, onde a estrangeira comanda as opções de compra ou venda do controle do negócio. O grupo aproveita formas diferentes de oportunidades de negócios, ora mais especulativas – como a especulação imobiliária ou a distribuição de commodities –, ora de maior segurança, como a distribuição de combustíveis, de lubrificantes e de gás natural. A estratégia do grupo Cosan, expressão maior da burguesia sucroalcooleira brasileira, revela um comportamento típico de uma burguesia de negócios, vinculada ao mercado externo na produção, mera intermediária no mercado interno, especuladora, associada ao capital internacional e detentora de vínculos com o Estado em concessões ou no financiamento do BNDES. 98 Note-se que ainda não foram incluídos aí as receitas da Comgás. Se adicionássemos a Comgás e retirássemos a Cosan Alimentos do total, a ROL da Comgás significaria 19% em 2011 e 18% em 2012 da ROL total, próximo do negócio da Raízen Energia (Açúcar e Etanol). 82 4.2. Vale A Vale pode ser resumida pela maneira como ela mesma define o ramo de mineração: “especulativo por natureza”. A Vale é um fornecedor de minérios que despontou nos anos 2000 pelo incremento da demanda internacional por minérios, em especial os de ferro, e pelo incremento mais do que proporcional dos preços, que veio junto. O motor principal é o crescimento da produção siderúrgica chinesa para seus principais produtos (minério de ferro e pelotas, níquel e carvão). Ao ingressar no mercado de fertilizantes no final do período estudado, a Vale também se conectou com o agronegócio, inclusive o brasileiro, da qual a companhia é grande fornecedora. No fundo, se trata de um grande negócio montado em cima de riquezas nacionais privatizadas nos anos 1990, quando deixou de ser estatal, e cujo aproveitamento do excedente gigantesco obtido se dá de forma privada e internacionalizada. Tabela 12. Posição da Vale no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas) 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 200 grupos 15º 12º ND* 5º 5º 5º 3º 5º 6º 4º 5º 25 ind. priv. nacional 3º 1º 1º 1º 1º 1º 1º 1º 2º 1º 1º Receitas (R$ milhões) 11.015 15.267 ND* 29.020 35.350 46.746 66.384 72.766 49.812 85.345 105.520 *ND: Dado não encontrado Fonte: Valor Grandes Grupos, diversos anos (elaboração própria) O primeiro fato importante sobre a Vale é a sua origem estatal, o que fez a empresa privada já nascer grande, uma das maiores do Brasil em receitas. Em 1995, a antiga Companhia Vale do Rio Doce (CVRD, nome modificado em 2007), foi incluída dentro do Programa Nacional de Desestatização e vendida em 1997 de forma subsidiada – com preço muito inferior ao que valia e com financiamento estatal99. Com a privatização, as ações ordinárias passaram ao controle de entes privados (CSN, de Benjamin Steinbruch, Eletron S.A., do grupo Opportunity, Sweet River Invest. Ltd., fundo internacional) e estatais (Litel, controlada pelos fundos de pensão 99 Cf. Biondi (1999). 83 Previ, Petros, Funcef e Funcesp, BNDESPar e uma parcela da União), em uma complexa composição entre acionistas diretos minoritários e acionistas do controlador Valepar. As ações preferenciais continuaram controladas majoritariamente pelo setor privado. Esta estrutura de comando, que se modificou pouco desde então, tem como principal resultado a pulverização, a privatização e a transferência ao exterior do excedente econômico obtido por um negócio de poucos vínculos com a estrutura econômica nacional e vinculado principalmente a mercados externos. Uma vez privatizada, a Vale prosseguiu como uma empresa produtora majoritariamente de minério de ferro para exportação, inclusive passando de uma das maiores para a maior do mundo no mercado transoceânico deste produto. As transformações dos mercados internacionais e a estratégia da empresa levaram, no entanto, a algumas mudanças importantes. Primeiro, a Vale teve um crescimento espetacular devido ao aumento das exportações e dos preços de seu principal produto, o minério de ferro e as pelotas, devido principalmente ao “efeito-China” no mercado de commodities e particularmente na mineração, devido ao aumento da sua produção siderúrgica. Para uma noção da magnitude deste efeito, 86% da ampliação da produção física de minério de ferro se destinou à Ásia, 69% só para a China, enquanto que antigos mercados importantes tiveram a participação relativa (Europa) ou absoluta (Brasil) nas vendas da Vale reduzidas entre 2001 e 2011. Tabela 13. Vale – exportações de minério de ferro, por região (milhões de ton.) Ásia China Restante da Ásia Europa Brasil EUA Oriente Médio Resto do Mundo Total 2001 42,5 14,9 27,6 34,4 39,9 2,9 10,2 129,9 2006 127,0 77,9 49,1 71,3 46,6 4,5 23,3 272,7 2007 145,3 96,2 49,1 74,6 45,8 4,0 21,8 291,5 2008 152,6 93,2 59,4 74,2 45,4 2,6 20,4 295,1 2009 184,9 144,0 40,9 34,6 22,2 0,2 11,6 253,5 2010 187,7 133,3 54,4 59,0 32,1 0,5 11,8 297,3 2011 191,5 134,0 57,5 58,6 33,8 0,6 6,9 12,3 303,7 ∆01-11 149,0 119,1 29,9 24,2 - 6,1 - 2,3 6,9 2,1 173,8 %∆ 86% 69% 17% 14% -3% -1% 4% 1% 100% Fonte: Vale, Relatório 20-F, diversos anos (elaboração própria) Além do efeito quantidade, que impulsionou a produção da Vale a mais do que dobrar no período; o efeito preço foi ainda mais importante para explicar a magnitude do crescimento da 84 Vale no período. Como se observa no gráfico abaixo, utilizando os preços de vendas de minério de ferro e pelotas do Brasil, a Vale esteve sujeita a uma possibilidade de multiplicar por dez ou mais o valor das vendas do seu principal negócio. Este dado é altamente correlacionado à multiplicação das vendas em Reais do grupo, como mostrado na primeira tabela deste item. Tabela 14. Vale - Minério de Ferro e Pelotas – índice de quantidades e preços (2001=100) (Índice de preços ao exportador brasileiro; Índice de quantidade produzida pela Vale) Minério Físico Preço Valor 2001 100 100 100 2002 108 98 105 2003 113 107 121 2004 158 123 195 2005 177 160 283 2006 198 187 369 2007 208 207 431 2008 210 305 641 2009 188 287 539 2010 205 527 1.079 2011 208 741 1.541 Pelotas Físico Preço Valor 2001 100 100 100 2002 63 97 61 2003 80 106 84 2004 149 119 178 2005 148 198 294 2006 129 229 297 2007 155 225 350 2008 158 359 568 2009 101 288 291 2010 191 475 908 2011 201 582 1.168 Fonte: Vale, Relatório 20-F, diversos anos; DNPM (elaboração própria) Em segundo lugar, foi também a China que polarizou não somente as vendas do produto principal, como alguns mercados dentro dos quais a Vale passou a atuar. Dentre eles, destacamos o Carvão e o Níquel, setores vinculados à produção siderúrgica como fonte de energia e insumo para a produção de aço inoxidável, respectivamente. Considerando que a Ásia é o principal destino das vendas da Vale nos dois segmentos, reforça-se a tese do vínculo estrutural com o crescimento chinês e todos os efeitos daí derivados. A mudança do perfil de origem das receitas da Vale é significativo: no início do período (2001-2002), Brasil (30% aprox.) e Europa (46% aprox.) são os principais destinos; no final (2011-2012), os mais importantes são da Ásia (53% aprox.), com a China – que corresponde a 33% (aproximadamente.), Japão com 11% (país que manteve sua fatia desde o início do período) e Coreia do Sul com 4%, ao passo que Brasil caiu para 20% (aproximadamente.) e Europa para 18% (aproximadamente.). Ou seja, uma nova dependência do desempenho de um único mercado, tanto para vendas físicas, como os preços e, desta forma, para o momento de alta especulação no ramo em geral. 85 Gráfico 2. Vale – Receita bruta por país ou região (em US$ mi correntes) Fonte: Relatórios Anuais Vale – elaboração própria. Em terceiro lugar, e como consequência do peso dos mercados que polarizam a empresa, tanto no que diz respeito a produtos, como no que diz respeito aos países, houve uma importante modificação nos ativos produtivos. Caiu a importância relativa dos serviços logísticos e de metais preciosos, acabaram as operações com Caulim, mas, o que é mais importante, foram vendidas as operações de Alumínio e Bauxita para a norueguesa Hydro Norsk, desnacionalizando uma parte expressiva deste segmento estratégico para diversos usos industriais. Por outro lado, além da vinculação ao ramo siderúrgico (Minério de Ferro e Pelotas, Carvão e Níquel), cresceram com destaque nos últimos anos os Fertilizantes, vinculados diretamente ao crescimento do agronegócio em escala mundial 86 Gráfico 3. Vale – Receita bruta por produto (em US$ mi correntes) Fonte: Relatórios Anuais Vale – elaboração própria. Do lado operacional, as transformações ocorreram por duas vias: no produto principal, foi intensificada a produção em minas já existentes (Carajás) e consolidadas operações adquiridas de concorrentes; os novos ramos foram iniciados a partir da compra de empresas estrangeiras e investimentos em novas unidades fora do país. As principais aquisições foram a canadense Inco (2006, por US$ 18,2 bi), ativos em empresas de fertilizantes (em 2010 totalizaram US$ 5,8 bi, além de US$ 1,2 bi na Vale Fertilizantes em 2011), a Caemi, no Brasil (US$ 3,2 bi entre 2003 e 2006) e a participação de 9% na Norte Energia S.A., consórcio construtor da UHE Belo Monte100 (US$ 1,4 bi em 2011). O ramo de níquel responde por 51,7% das aquisições (atualizados em preços de 2012) e o de fertilizantes, por 18%. A maioria dos 100 A Vale entrou no consórcio posteriormente à sua constituição, adquirindo a participação da Gaia, do frigorífico Bertin. 87 gastos foi realizada fora do país, implicando em um crescimento forte da internacionalização da companhia no período101. Tabela 13. Vale – valor das aquisições por ramo (em US$ de 2012) Ramo Minério de Ferro e Pelotas Manganês e Ferro-ligas Carvão Cobre Níquel Fertilizantes Energia Logística Alumínio Aço Total US$ (2012) 9.740 26 1.432 220 24.624 8.587 1.639 1.191 102 87 47.646 % Total 20,4% 0,1% 3,0% 0,5% 51,7% 18,0% 3,4% 2,5% 0,2% 0,2% 100,0% Fonte: www.vale.com (elaboração própria) No lado financeiro, assistiu-se a uma intensificação da aplicação dos recursos próprios para capitalização, que passaram de 41,3% do passivo total em 2002 para 53,4% em 2010, bem como o endividamento externo (majoritário) e interno (crescente). Contudo, o endividamento externo acompanhou quase que na mesma proporção a ampliação do passivo e foi particularmente importante nos momentos de grandes aquisições, como foi o caso da Inco em 2006, quando o Exigível a Longo Prazo correspondeu a 66,8% do aumento do passivo entre 2005 e 2006. Dentro do componente endividamento, se destaca o acesso – e a dependência – dos mercados de capitais internacionais, principalmente em dólares, mas também em euros. O aumento relativo do endividamento em moeda doméstica (15% do total no começo da série, chegando a 30% no final), associado à trajetória geral de valorização do Real na década, permite tomar vantagem de um financiamento com custo decrescente (medido em dólares, moeda principal das receitas) para aquisições feitas principalmente em moeda estrangeira, uma espécie de especulação contra o Real. Contaram para este último recurso, empréstimos do BNDES nos últimos anos (em relação ao total do endividamento, os saques de linhas de crédito junto ao banco totalizaram 5% em 2010, 8% em 2011 e 7% em 2012). 101 O índice de internacionalização (I.I.) da Vale, calculado como média dos índices de receitas, ativos e empregos (percentual fora do país em cada indicador) aumentou de 28,7% em 2006 para 41,2% em 2010, segundo o anuário Valor Multinacionais Brasileiras. 88 Tabela 14. Vale – Endividamento Geral e algumas categorias (US$ mi) Em USD mi Total Longo Prazo Curto Prazo % Curto Prazo Prazo Médio (anos) 2002 3.331 2.366 965 29% ND 2003 4.028 2.771 1.257 31% ND 2004 4.088 3.232 856 21% ND 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 5.010 22.581 19.030 18.245 22.880 24.553 23.055 30.267 3.715 21.122 17.608 18.168 22.831 24.414 23.033 30.267 1.295 1.459 1.422 0 49 139 22 0 26% 6% 7% 0% 0% 1% 0% 0% ND 8,36 10,70 9,28 9,17 9,92 9,81 10,14 Categorias principais % Total Empréstimos e Financ. em USD Títulos de Renda Fixa em USD Empr. garant. recebíveis exp.. (USD) Títulos de Renda Fixa em EUR Debêntures não-conversíveis em BRL Títulos perpétuos Outras dívidas/dívidas moeda local 3.024 91% 1.465 800 300 0 0 63 396 3.662 91% 1.621 900 525 0 0 65 551 3.834 94% 1.555 913 480 0 0 65 821 4.816 21.644 18.540 18.069 22.544 24.071 22.700 29.842 96% 96% 97% 99% 99% 98% 98% 99% 2.442 10.814 6.139 6.115 5.875 4.914 3.189 3.981 1.213 6.897 6.680 6.510 8.481 10.242 10.483 13.581 427 345 550 204 150 0 0 0 0 0 0 0 0 1.003 970 1.979 0 2.774 3.340 2.774 3.453 2.767 2.505 2.336 75 86 87 83 78 78 0 0 659 728 1.744 2.383 4.507 5.067 5.553 7.965 Fonte: VALE, Relatórios 20-F, diversos anos (elaboração própria) As vantagens competitivas da mineração estão mais ligadas às vantagens comparativas que dizem respeito à qualidade dos minerais e à distância geográfica (relativamente ao custo do transporte) com relação aos compradores. A Vale (e a Vale no Brasil) se posiciona principalmente no primeiro polo, devido à qualidade de alguns produtos, como o minério de ferro brasileiro, que o torna competitivo frente a outros produtores mais próximos da Ásia, como a Austrália. Também é preciso considerar as fontes de energia elétrica baratas existentes no Brasil, inclusive com subsídios, e uma parte da infraestrutura já montada e amortizada, como as ferrovias (apesar dos investimentos de melhoria ou ampliação em curso). Obviamente há alguma base técnica da produção e da distribuição (importância da logística, tanto em termos de custos, como em termos de tempo para atendimento dos clientes), já que o negócio possui preços comandados por bolsas de mercadorias e não pelos custos e as margens podem ser afetadas. Mas o setor, como ofertante de insumos em mercados aquecidos, é uma das pontas que mais ganha pelos preços, além das quantidades. A Vale sai dos anos 2000 mais vinculada a mercados externos ao Brasil do que entrou, e com uma base produtiva mais internacionalizada também. Portanto, o sucesso da empresa não significa necessariamente uma oportunidade para o Brasil, já que está desvinculada da demanda brasileira, com a estagnação relativa da siderurgia brasileira e mesmo com as estratégias de integração vertical das siderúrgicas operando no país. Ela é, por natureza da 89 atividade, um ramo com baixos encadeamentos para trás e, se não estiver vinculada a uma demanda industrial, acaba por operar em um padrão de enclave. E o que é pior, trata-se de um enclave cujos rendimentos foram, como já foi dito, pulverizados, privatizados e internacionalizados, restando somente os impostos. Em síntese, ao ser privatizada, a Vale representa um gigantesco processo de transferência de riqueza para negócios privados (mesmo quando estão sob controle de entes públicos, como no caso dos Fundos de Pensão), processo esse que adquiriu uma dimensão gigantesca com o ciclo das commodities movido pela China especialmente nos anos 2000. Os principais beneficiários da Vale são, além dos fundos de pensão e do BNDESPar, a parte da burguesia brasileira que a controla, mas em especial a parte para o grande capital internacional que participa do controle (recebendo os dividendos) e que a financia. Apesar de ser um capital brasileiro com atuação em vários países, seu principal ponto de operação é o Brasil, de onde extrai as riquezas minerais, vantagens tributárias e insumos baratos (energéticos). A questão é que a Vale deixa uma parcela pequena do excedente no país e que está progressivamente se desvinculando do sistema econômico nacional (dada a desindustrialização e a diminuição da importância do Brasil nas suas vendas), a despeito dos vínculos com fornecedores internos. Seu ciclo de acumulação se inicia e finaliza fora do país, sendo financiado pelo capital internacional e tendo como cliente final a siderurgia (e a manufatura) asiática. É um negócio no fundo que objetiva suprir mercados externos e fornecer rendimentos ao grande capital internacional, utilizando-se de riquezas nacionais privatizadas. 4.3. Gerdau A Gerdau é uma empresa brasileira do ramo siderúrgico bastante internacionalizada, mesmo antes dos anos 2000. Seu produto principal, os aços longos, sua base produtiva, as minimills, e o controle de mercados domésticos são seus principais diferenciais para sobreviver em um ramo crescentemente competitivo, com margens baixas, capacidade ociosa e custos crescentes – processo polarizado pela produção chinesa. Sua estratégia histórica de crescimento são as aquisições de concorrentes com problemas financeiros e operacionais, sendo que nos anos 2000 este processo foi fortemente financiado pelo capital internacional. Sem base financeira 90 própria nem diferencial de inovação, a Gerdau acumula através do posicionamento estratégico em mercados nacionais. Diante de um quadro de alta competitividade, em que passa a concorrer crescentemente com aços importados, a Gerdau se apoia nos negócios de construção – infraestrutura e mercado imobiliário – gerados pelo Estado brasileiro, com quem possui boa relação, para garantir seu crescimento, a despeito da desestruturação da indústria manufatureira brasileira. Tabela 15. Posição da Gerdau no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas). (*ND: Dado não encontrado) 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 200 grupos 30º 21º ND* 10º 10º 11º 10º 8º 19º 16º 16º 25 ind. priv. nacional 5º 5º ND* 2º 2º 3º 3º 2º 4º 4º 4º Receitas (R$ milhões) 7.084 11.144 ND* 23.408 25.486 27.511 34.184 41.908 26.540 35.666 39.820 Fonte: Valor Grandes Grupos, diversos anos (elaboração própria). Para compreender a Gerdau, é preciso entender o fundamental do ramo: a siderurgia é um setor puxado pela demanda, tanto no que diz respeito à quantidade quanto aos tipos de produtos. No setor, não são frequentes inovações radicais e a fronteira tecnológica se desloca lentamente, apesar do largo espaço existente para melhorias na tecnologia de processo (inovações incrementais)102. A produção do aço, que é uma liga de ferro e carbono, ocorre basicamente pelo chamado processo integrado, usando minério de ferro e carvão (“redução” nos “alto-fornos”) para produzir ferro-gusa e depois a transformação em aço (“refino”, nos fornos a oxigênio ou elétricos); obtido o aço em solidificação, ele é moldado (“laminação”) de acordo com o produto desejado. No século XX, houve apenas duas inovações radicais no setor, a aciaria básica a oxigênio (conversor LD) a ferro-gusa, dos anos 1950, e o lingotamento contínuo (processo de solidificação), havendo desde então apenas algumas melhorias que compactaram os processos 103. Nos anos 1950, destacou-se ainda o surgimento da aciaria elétrica (forno elétrico)104, que 102 Cf. De Paula (2012). Nas últimas décadas, têm destaque duas tecnologias de compactação de processos que servem às usinas tradicionais integradas a coque (método tradicional): thin-slab-casting e processos alternativos de produção de ferro primário (DE PAULA, 2012: p. 46-49). 104 Cf. De Paula (2012). 103 91 dispensa a redução, usando sucata de aço ou ferro gusa como matéria-prima, processo chamado “semi-integrado”; devido às escalas menores, as usinas que usam este processo foram chamadas de mini-mills105, responsáveis por reduzir as barreiras à entrada e a mobilidade do capital internacional no setor106 e principal base produtiva da Gerdau. Em 2011, cerca de 70% da produção global de aço ocorria em processo integrado; no Brasil, o valor era de 75%. No lado da inovação de produto, ao contrário do processo, há maior apropriabilidade das inovações (capacidade de uma empresa reter os benefícios de uma inovação), especialmente existentes no desenvolvimento de aços especiais e no relacionamento com clientes, para produção de materiais e soluções sob demanda. Para se compreender o padrão de negócio siderúrgico da Gerdau, é preciso caracterizar três aspectos: seus principais produtos, sua base produtiva e seus mercados consumidores. No que diz respeito aos produtos, a Gerdau é especializada na produção de aços longos, comuns (vergalhões, barras e perfis) – destinados à construção civil e manufatura – e trefilados (arames, arame galvanizado, cercas, telas para reforço de concreto, pregos e grampos) – destinados à manufatura, construção civil e setor agrícola. Ela ainda possui operações de aços longos e aços especiais, estes mais elaborados, de maior valor agregado e com principal consumidor a produção de veículos automotores. Quanto à base produtiva, a Gerdau é uma empresa concentrada no processo produtivo semi-integrado. As mini-mills, que respondem por 89% da capacidade produtiva da empresa, possuem menor escala e, por dependerem da sucata de aço para produzir o aço, estão próximas de centros urbanos com grande consumo de bens a base de aço ou com indústria manufatureira, produtora de restos de aço aproveitáveis. Este perfil também teve influência das origens da expansão da empresa pelo Brasil, já que as longas distâncias desencorajam a mobilidade tanto de matérias-primas como de produtos finais107. Por fim e como decorrência do ponto anterior, a Gerdau se desenvolveu inicialmente como uma empresa que tinha como principal consumidor o mercado interno. Este perfil se modificou não apenas para a Gerdau, mas para a siderurgia brasileira em geral nas duas últimas 105 Para uma análise que enxerga as mini-mills como caso de inovação disruptiva, ver Christensen e Raynor (2003). Cf. Andrade, Cunha e Gandra (2000). 107 Cf. Gerdau (2012a: pp. 17-18) 106 92 décadas, quando se consolidou uma grande diferença entre a produção e o consumo aparente108. A partir do Brasil, a Gerdau exporta em média 28% (2008-2012) da produção física, oscilando de acordo com o desempenho do mercado interno. Esta média cai significativamente para 14% ( no mesmo período) para a empresa em geral (operações em todos os países), já que nos demais países as vendas são fortemente vinculadas aos mercados domésticos. No Brasil, um dos seus diferenciais é o controle de um grande canal de comercialização de aço, inclusive de outros produtores, além dos serviços de corte e dobra de vergalhões para construção, através da empresa controlada Comercial Gerdau. Para entender o perfil da companhia na entrada dos anos 2000 e a sua estratégia de crescimento, é preciso voltar décadas atrás. Quando deixou de ser uma empresa limitada à região sul e se tornou uma empresa nacional a partir dos anos 1960, a Gerdau cresceu principalmente adquirindo usinas nas outras regiões que estivessem com problemas econômicos e que pudessem ser saneadas. Este foi seu padrão de crescimento durante duas décadas, com exceção da construção, em parceria com a alemã Thyssen, da Cosigua, no Rio de Janeiro, até hoje é a maior mini-mill da América Latina109. A partir dos anos 1980, seu crescimento caminhou por duas vias: a primeira, no plano interno, a Gerdau passou vinte anos sem construir novas usinas e se concentrou em aquisições, em especial do parque siderúrgico estatal que foi privatizado (três usinas comuns, uma de aços longos – a Aço Minas – e uma de aços especiais – a Aços Finos Piratini)110; com a abertura dos anos 1990, se concentrou na unificação das unidades em torno da Gerdau S.A. e a abertura de capital em Nova Iorque em 1999. No plano externo, a Gerdau iniciou seu processo de internacionalização com a aquisição de usina no Uruguai, no Canadá, no Chile, na Argentina e por fim a compra da Ameristeel em 1999-2000, que a fez quase dobrar suas vendas em dois anos e mudar de 26% de produção física no exterior em 1999 (era 9% em 1994) para 42% em 2000111. A internacionalização foi amplamente motivada pela crise pela qual ingressou o país nos anos 1980 e o aproveitamento de oportunidades de adquirir empresas deficitárias, além dos novos 108 Cf. Gerdau (2012a: pp.23-24). Em 2012, a exportação representava 32% das vendas brasileiras. As exportações corresponderam, na média dos últimos cinco anos (2008-2012), a 26% da produção física. 109 Cf. Gerdau (2012a). No final dos anos 1970, a Gerdau adquiriu a parte da Thyssen na Cosigua. 110 Cf. Athia e Dalla Costa (2009). 111 Cf. Goulart e Paula (2010). Para os dados, ver Gerdau (2001) 93 determinantes de competitividade internacional do setor112. Assim, a aquisição de unidades em outros mercados internacionais ou dentro do Brasil quando um bom negócio (caso das privatizações) foi uma alternativa mais cômoda para utilizar da capacidade de acumulação e continuar a ganhar espaço. No Brasil, ao final da consolidação dos anos 1990, permitida pelas privatizações e pela entrada das transnacionais no país113, a Gerdau era a líder de um duopólio com a empresa Belgo Mineira no setor de aços longos e a maior siderúrgica do país em produção de aço bruto114. Os anos 2000 são marcados, no setor siderúrgico mundial, pela ascensão da China ao patamar de maior produtor siderúrgico mundial – com crescente indústria manufatureira. Gráfico 4. Produção Mundial de Aço Bruto (inclui todos os tipos), em mil ton. Fonte: World Steel Association – Steel Statistical Yearbook (elaboração própria) O crescimento chinês repercutiu de duas formas: em um primeiro momento, estimulou o aumento dos preços e as exportações de outros países, enquanto o país asiático ainda 112 Athia e Dalla Costa (2009: pp. 136-137) destacam não apenas a instabiidade monetária, mas os desdobramentos na indústria e no comércio exterior da crise econômica brasileira. Goulart e Paula (2010: pp. 88-89) apontam uma pressão do governo nos anos 1980 para que a Gerdau não ampliasse sua fatia do mercado, por um lado, e a busca de oportunidades em mercados com produtores pouco competitivos, como o Uruguai (por onde iniciou a internacionalização) ou, de empresas deficitárias, como no Canadá (segundo país de destino). 113 Cf. BNDES (2001) 114 Cf. Anuário Estatístico do Setor Metalúrgico (MME, 2004). 94 era importador líquido; no segundo momento, a partir de 2006, quando se tornou exportador líquido e particularmente após a crise eclodir em 2008, a China concorre para haver uma gigantesca capacidade ociosa e um encarecimento mundial dos insumos (minério de ferro, carvão, sucata de aço etc.), fatos que pressionaram para baixo as margens da siderurgia em plano mundial115. Gráfico 5. Distribuição do valor dentro da cadeia – integrada (Hot-Rolled Cold Steel) Legenda: Iron Ore: Minério de Ferro; Coking Coal: Carvão; Steel making: Fabricação do aço Fonte: Aço Brasil (2013) Os problemas são que a capacidade produtiva está muito além da demanda, não recuperada da crise, há uma resistência enorme dos países em permitir que sua siderurgia simplesmente feche frente a um cenário adverso, há custos muito altos de saída do ramo, e a siderurgia chinesa possui uma série de incentivos para prosseguir116. 115 116 Cf. OCDE (2012a) e McKinsey (2013). Cf. Euler Hermes (2013). 95 Gráfico 6. Capacidade produtiva (efetiva) e demanda mundiais por aço Fonte: OCDE (2012b) Tudo indica que a condição estrutural do setor será de ampla competitividade nos próximos anos. Sem perspectivas de grandes inovações, a disputa se dará em torno de custos (insumos metálicos e energéticos, força de trabalho) e do controle de mercados consumidores. A redução dos custos de frete transoceânicos aponta para a criação de um mercado mundial de aço, acirrando a competição entre os países. Os países ou empresas capazes de ter acesso a fontes de vantagens competitivas espúrias (baixo custo energético, baixas exigências ambientais, força de trabalho barata), canais políticos que garantam mercados e base financeira que permita atravessar os ciclos terão condições de liderança. Neste contexto, a tendência é que o setor siderúrgico brasileiro tenha poucas chances de disputar mercados externos (a despeito da importante fatia exportada), se restringindo ao interno, conforme aponta um especialista no setor117. O problema é que a siderurgia brasileira é pressionada pelos custos dos insumos118, o que reduz o peso dos salários119, custo da energia elétrica que impacta as usinas a forno elétrico, redução dos custos do frete, que reduzem o peso relativo da proximidade a fontes de minério de ferro. Um outro problema se refere às importações 117 Cf. Ribeiro (2012). A despeito da disponibilidade da oferta e qualidade do minério de ferro brasileiro, o seu preço internacional é o que conta na contabilidade. Isso fez várias siderúrgicas incorporarem ou aprofundarem operações de mineração, inclusive exportando minério de ferro, como faz a Gerdau. Além disso, o carvão é todo importado, além de outros insumos necessários. 119 Com tal indicação, podemos inferir da análise do professor Germano de Paula (RIBEIRO, 2012) que os custos salariais são ou foram um diferencial competitivo para o Brasil no setor. 118 96 indiretas de aço através da importação de manufaturas a base de aço, que atinge o patamar de dois milhões de toneladas (quase um terço das exportações líquidas de aço do Brasil em 2012), especialmente no setor de automóveis120. Ao longo dos anos 2000, o mercado siderúrgico brasileiro passou por algumas modificações. Em primeiro lugar, sua produção física aumentou abaixo da média mundial, diminuindo a fatia do país no total. Em segundo lugar, prosseguiu um processo de consolidação e internacionalização do setor, com a criação de algumas poucas novas companhias121. Em terceiro lugar, com relação ao uso final (interno) do aço brasileiro, houve o crescimento do setor de construção civil, autopeças e automóveis, ambos setores que tiveram fortes incentivos governamentais no período (o primeiro em especial com os programas de infraestrutura e construção residencial, além dos “megaeventos”). Gráfico 7. Aço – Vendas internas por setor - maiores setores, exceto distribuidores (%) Fonte: Ministério de Minas e Energia - Anuário Estatístico do Setor Metalúrgico (elaboração própria) A Gerdau prosseguiu nos anos 2000 com sua estratégia de crescimento, inclusive com sua internacionalização, através, prioritariamente, 120 de aquisições122, conduzida pelo Cf. Guaraná, Molajoni e Szewczyk (2013). Partiram: em 2010, a CSA (RJ), da ThyssenKrupp em parceria com a Vale, voltada para exportações, e 2009 a Sinobras (PA), do Grupo Aço Cearense, voltada para material de construção. 122 Cf. Athia e Dalla Costa (2009 ). 121 97 endividamento principalmente em dólares no mercado internacional. No mercado interno, prosseguiu as aquisições e voltou a construir usinas novas, além de dar grande importância para a Gerdau Açominas, sua grande usina de aços planos, uma das mais competitivas para exportações e com operações integradas de mineração – inclusive exportação de minério de ferro. Em um plano geral, buscou o segmento de aços especiais com operações no Brasil, EUA, Espanha e Índia (no Brasil seu maior mercado é o automobilístico). Embora difícil de precisar devido à falta ou descontinuidade de dados da empresa, os mercados que aparecem mais recorrentemente como os principais da Gerdau em seus relatórios foram a construção em primeiro lugar e depois a indústria, em particular máquinas e equipamentos agrícolas e bens de capital e veículos; também constam as vendas diretas para a agropecuária. Nos últimos dois anos, o mercado brasileiro da Gerdau tem ênfase nas obras de infraestrutura, programas residenciais e os “megaeventos”123. Do ponto de vista do financiamento, a Gerdau é dependente do financiamento do capital internacional para viabilização de sua principal estratégia de crescimento: as aquisições de outras usinas124. Como a empresa compra se endividando e os credores exigem o controle do endividamento, a Gerdau possui uma capacidade limitada de expansão125. Para melhorar as condições de alavancagem, a empresa busca tomar empréstimos nas moedas com que paga as aquisições, utiliza forma escriturais de aquisição, como a troca das ações da empresa adquirida por ações da própria Gerdau, e busca financiamento com menores juros – Bolsa de Nova Iorque no estrangeiro e BNDES no Brasil. O BNDES além de acionista126, é fonte de uma parcela razoável de empréstimos à empresa127. De uma maneira geral, a Gerdau usa também o mercado 123 “A Gerdau continuará fornecendo aço para a construção de estádios de futebol e também de obras de infraestrutura, como Bus Rapid Transit(bRTs), ferrovias, usinas eólicas, portos e estradas. Em 2012, o setor da construção civil deverá ser impulsionado pela aceleração das obras para a Copa do Mundo de 2014 e pela continuidade do programa governamental Minha Casa, Minha Vida”. (GERDAU, 2011b: p. 22). “As obras para a Copa do Mundo em 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016 estão em pleno andamento e deverão seguir um ritmo mais acelerado durante 2013. Nesse sentido, a Gerdau seguirá fornecendo aço para a construção e a renovação de estádios de futebol, assim como para obras de mobilidade urbana e de infraestrutura, como aeroportos, ferrovias, portos e estradas, as quais serão executadas em ritmo mais lento que a expectativa. Dentro desse cenário de expansão da demanda por aço, a Gerdau está preparada para atender plenamente o mercado”. (GERDAU, 2012b: p. 14). 124 Mais de 90% do endividamento da Gerdau é em moeda estrangeira (GERDAU, 2012a). 125 Cf. Vieira (2007). 126 O BNDESPar é detentor de 7% das ações ordinárias e 2% das preferenciais da Gerdau S.A. pelo menos desde 2001. 127 Do BNDES foram R$ 1,75 bi entre 1999 e 2006 (SOARES, 2006), R$ 345,4 milhões em 2007 (BNDES, 2006), até R$ 1,5 bi em crédito em 2009 (BNDES, 2009) e enfim até R$ 776,6 milhões em 2012-13 (LISBOA, 2012), equivalente a cerca de R$ 4,4 bi no período. 98 acionário para se capitalizar, sendo que o controlador (Metalúrgica Gerdau, de propriedade da família) possui três quartos das ações ordinárias, mas menos de 30% das preferenciais. Gráfico 8. Gerdau – Endividamento bruto e endividamento líquido (US$ mi) Fonte: Gerdau, F-20-F, diversos anos (elaboração própria). Frente a algumas outras siderúrgicas brasileiras (CSN e Usiminas), ela possui algumas vantagens que tornam sua posição menos frágil: a produção em mini-mills imobiliza menos capital e dá mais flexibilidade em períodos de crise; possui margens um pouco melhores atribuídas a capacidades de gestão128; os canais comerciais e os serviços para construção (diferencial frente à concorrência129); possui posição oligopsonista no mercado de sucata de aço, ainda relativamente desorganizado no Brasil130; ativos de alta rentabilidade, como a usina de Ouro Branco (ex-Açominas), inclusive com a capacidade de exportação de minério de ferro; uma dependência menor de clientes da indústria manufatureira e uma possibilidade maior de usufruir da demanda construída pelo Estado (construção), potencializada pelas boas relações políticas dos dirigentes do grupo com os governos petistas131 – ou seja, há espaço para criação de negócios, 128 Cf. Macadar (2009) e Vieira (2007). A Comercial Gerdau comercializa aços planos, que está começando a fabricar, de outras siderúrgicas. 130 Cf. GO Associados (2013). 131 Os dirigentes da Gerdau possuem relações estreitas com o ex-presidente Lula e a presidente Dilma, sendo o presidente do Conselho de Administração, Jorge Gerdau, conselheiro do governo para questões de gestão. 129 99 independente da sua vinculação orgânica com o mercado interno ou com uma economia nacional mais integrada. Ainda assim, o período pós-crise (últimos cinco anos), os resultados da Gerdau foram condizentes com o panorama descrito para o setor mundialmente: crescimento menor, redução das margens e ampliação do endividamento. A empresa sofre as consequências, ainda que em menor escala, do processo de desindustrialização, já que uma parcela menor da produção ainda é destinada à indústria de transformação; possui uma forte dependência de financiamentos externos, em moeda estrangeira; e o setor siderúrgico mundial, estimulado pela capacidade ociosa e custos de frete em redução, está criando um espaço para concorrência com aços longos comuns importados no Brasil132. Gráfico 9. Gerdau – Indicadores de margem (%) Fonte: Gerdau, Formulário 20-F, diversos anos (elaboração própria) A empresa depende de mercado gerado pelo Estado, vinculado a setores sob pressão de grandes negócios internacionais – como negócios de comércio internacional demandantes de infraestrutura para escoamento, ou o mercado imobiliário, crescentemente dominado por uma lógica financeira133. Os mercados nacionais em que atua não são os mais dinâmicos do mundo, o 132 “A Companhia vem sofrendo a concorrência das importações de aços longos comuns,principalmente oriundos da Turquia, com mais intensidade a partir de 2010. A Companhia acredita que a diversificação de seus produtos, o desenvolvimento de soluções por meio de suas unidades de corte e dobra e a descentralização de seus negócios proporcionam uma vantagem competitiva sobre seus principais concorrentes” (GERDAU, 2012a: p. 34). 133 Cf. Fix (2011). 100 que nos leva a crer que sua expansão tem mais a ver com conquista de market-share e aproveitamento de oportunidades de acumulação pelo controle de mercados cativos do que com uma lógica mais agressiva de disputa com concorrentes. Além disso, como a tecnologia é dada, a capacidade de a Gerdau ou outra empresa adquirir lucros extraordinários a partir de inovações radicais é baixa; aliás, a própria Gerdau se contenta com baixo P&D e com a aquisição da tecnologia necessária no mercado134. Por fim, apesar da conduta prudente com operações financeiras, a Gerdau não possui uma base própria de acumulação que permita financiar sua expansão e por isso é dependente de financiamento estatal no Brasil e especialmente do financiamento no mercado internacional de capitais, que a expõe a um risco macroeconômico. Sua proporção de dívida em moeda estrangeira é superior à proporção de receitas em moedas estrangeiras e seus indicadores de endividamento – que são condicionantes para contratar empréstimos e lançar títulos de dívida – estão deteriorados em 2012 e as condições do setor não apresentam cenário de melhora extraordinária. Por tudo isso, a Gerdau é uma empresa grande, mas uma “campeã” que não controla os elos estratégicos da indústria siderúrgica. Em suma, a Gerdau possui uma posição relativamente melhor dentro de uma siderurgia em um país subdesenvolvido. Seu mercado está mais vinculado a decisões políticas (onde tem boas relações) e grandes negócios do mercado de construção, voltadas para a provisão de insumos energéticos, corredores de exportação ou especulação (mercado imobiliário), do que à indústria de transformação que está sendo desestruturada. Isto significa que a Gerdau possui espaço para crescimento no Brasil. Mas, apesar de algumas vantagens do ponto de vista do vínculo com os mercados consumidores, acesso a Energia e insumos baratos, ela está crescentemente suscetível à sua fonte de financiamento originada no capital financeiro internacional – o que expõe a crises de estrangulamento cambial –, e suscetível também à concorrência internacional, que está se iniciando em alguns de seus produtos. Desprovida de base financeira própria e de inovação, fará parte de um setor de concorrência agressiva, em que serão decisivos a escala de acumulação de capital e de poder político (envolvido no planejamento e garantia de mercado para a produção) muito acima das possibilidades do Brasil – ou da Gerdau. 134 Na companhia, os gastos com Pesquisa e Desenvolvimento são baixos e a empresa considera que a tecnologia de que precisa pode ser adquirida no mercado (CHEVARRIA & VIEIRA, 2007). 101 4.4. JBS A JBS é um grupo que atua dentro do segmento de agronegócio e que cresceu especialmente através de aquisições, fortemente financiado pelo Estado brasileiro. É a partir do processo de internacionalização, iniciado em 2005 e acelerado em 2007, que se torna a empresa com projeção internacional. Sua estratégia consiste em adquirir e sanear empresas concorrentes com dificuldades financeiras e operacionais. No entanto, tanto a posição da empresa na cadeia produtiva quanto o custo do endividamento necessário para as aquisições implicam baixas margens e um pequeno raio de manobra da empresa. O decisivo é que, além de não ter a base financeira necessária para executar sua estratégia, a JBS atua em um segmento da cadeia de carnes que é comandado por outros segmentos. Sua tecnologia é básica, suas margens são pequenas, a eficiência exige escalas muito altas e ela não controla os canais mais importantes da cadeia, no varejo ou na incorporação de progresso técnico na criação dos animais. Desta forma, apesar de atuar como uma empresa transnacional, sua condição não a torna uma líder real do setor. O fortalecimento da JBS fortalece o agronegócio no Brasil, a dependência tecnológica e de mercados externo, o padrão de uso da terra baseado no latifúndio e o financiamento do Estado para gerar grandes negócios privados. Tabela 16. JBS – Posição no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (por receita) 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 200 grupos - - ND* - - 69º 31º 17º 5º 5º 9º 25 ind. priv. nacional - - ND* - - 14º 6º 5º 1º 2º 3º Receitas (R$ milhões) - - - - - 4.749 14.727 31.106 55.224 57.107 64.239 *ND: Dado não encontrado Fonte: Elaboração própria com dados do anuário Valor Grandes Grupos. O segmento de atuação da JBS é o setor de carnes e derivados. Trata-se de um setor dirigido pela demanda – que, por sua vez, é movida pela renda135 – e dividido em quatro grandes 135 Cf. OCDE/FAO (2009: p. 168). 102 grupos por origem animal: suíno, aves ou frango (poultry136), bovino e ovino, sendo o segmento bovino a origem e especialidade do grupo JBS. De uma maneira geral, o segmento tem como fonte de crescimento a ampliação do consumo em países “emergentes”, que transitam das fontes vegetais de proteínas para as animais na medida em que há um aumento de renda correspondente a processos de crescimento econômico e urbanização137. Os países desenvolvidos já têm um consumo per capita de proteína animal mais alto e a modificação dos padrões de consumo diz respeito a busca por alimentação mais prática e saudável. Um fator que motiva ambos os mercados são os preços mais baixos e a praticidade de preparo das carnes de frango 138, o que fez a produção desta carne ser a que mais cresce no mundo. A carne de porco ainda é a mais consumida no mundo e a carne bovina é a terceira, especialmente por causa dos preços muito acima das outras duas. Gráfico 10. Oferta mundial de carne por tipo (bilhões de toneladas) Fonte: FAOSTAT (Elaboração própria) Uma característica importante do mercado de carnes, particularmente aplicável à carne bovina, é que seus preços oscilam menos e, durante o processo de alta dos preços das 136 A denominação poultry ou aves corresponde a um segmento um pouco mais amplo que o de frangos (incluindo, por exemplo, o peru). Contudo, devido à predominância absoluta de frangos na oferta de carne de aves, o setor de aves também é tratado simplesmente como setor de frangos. 137 Cf. OCDE/FAO (2009: p. 168). 138 Cf. OCDE/FAO (2008: p. 125). 103 commodities, eles aumentaram em proporção menor do que de outros produtos139. Isso se explica pela conjunção de alguns fatores: as carnes são parte menor da alimentação básica, o que as tornam menos suscetíveis à ampliação da demanda por alimentos em geral; devido à sua perecibilidade, é um produto menos estocável e por isso menos influenciado por especulação com estoques; ainda há fatores técnicos, mas aplicáveis à carne bovina, que diz respeito ao tempo que os produtores têm para reagir a mudanças nos preços dos insumos alimentícios, já que o ciclo de criação ao abate dura meses até anos140. Gráfico 11. Preços mundiais de carnes (termos reais) – em US$/ton. Fonte: OCDE/FAO (2012) Uma questão importante diz respeito à dinâmica do comércio internacional de carnes. Apesar de uma parte pequena, ainda que crescente, da produção mundial ser destinada às 139 Segundo dados da OCDE/FAO (2013), considerando índices de preços (nominais) com base em 2002 (2002=100), a carne bovina chegou a 183 em 2012, a de porco atinge 175 em 2012 (pico de 189 no ano anterior), a ovina atinge 263 e a carne de frango, exceção, atinge 318 em 2012 (pico de 347 no ano anterior). A efeito de comparação, no mesmo período e com mesmo índice, o etanol atingiu 303, o açúcar chegou a 271, o arroz a 231 e as oleaginosas a 264. 140 “Unlike cereals, oilseeds and dairy markets, meat prices did not show a spectacular development in 2008. This is partially explained by the relatively limited role meat plays as a staple and the limited storage capacities, that make panic-buying unlikely. High cereals prices translate into high feed costs in production systems where cereals play an important role as feed. However, producers have only limited ability to respond to suddenly increasing feed costs as production decisions are taken in the beginning of the production cycle and cannot respond quickly to price signals. These two factors are probably the most relevant in explaining why meat prices remained rather stable during the recent turbulent period” (OCDE/FAO, 2009: p. 168). 104 exportações141, a dinâmica comercial tem grandes efeitos sobre os países exportadores142. Primeiro, no comércio internacional ficam explícitos os requisitos que dão ao demandante poder sobre o ofertante, pois os requisitos de qualidade, de saúde animal, rastreamento da produção etc., requisitos religiosos143 e a política comercial (com a imposição de cotas e tarifas) são grandes determinantes da quantidade, dos preços e das regiões que conseguem exportar em determinado momento144. Isso é particularmente importante para grandes exportadores (o caso da JBS), dado que uma proibição ou limitação à importação de suas carnes leva à execução de uma parte da produção no mercado interno, derrubando os preços. Tabela 17. Principais Exportadores e Importadores de carne bovina Exportadores Brasil Índia Austrália EUA Nova Zelândia Ururguai Canadá Paraguai União Europeia Argentina México Subtotal 2000 8,3% 6,2% 22,6% 18,9% 8,5% 4,0% 8,8% 0,0% 10,9% 6,0% 0,0% 94,3% 2006 29,3% 9,6% 20,1% 7,3% 7,5% 6,5% 6,7% 0,0% 3,0% 7,8% 0,5% 98,3% 2012 18,7% 17,3% 17,3% 13,7% 6,3% 4,4% 4,1% 3,1% 3,6% 2,0% 2,5% 92,0% Importadores Rússia EUA Japão Hong Kong China Coreia do Sul União europeia Canadá México Egito Venezuela Subtotal 2000 9,3% 26,8% 20,7% 0,0% 0,0% 6,3% 8,8% 5,1% 8,2% 4,6% 0,0% 89,9% 2006 17,6% 26,2% 12,7% 1,8% 0,0% 5,6% 13,4% 3,4% 7,2% 5,5% 0,0% 93,4% 2012 15,4% 15,2% 11,1% 3,6% 1,5% 5,6% 5,3% 4,5% 3,2% 3,8% 3,3% 72,6% Fonte: USDA (elaboração própria) Segundo, há uma grande divisão entre dois tipos de mercados: os fidelizados por requisitos de saúde animal, que importam de países com histórico livre de doenças, em particular a febre aftosa, e os que compram de produtores onde há recorrência desta doença145. Essa segmentação surge por barreiras impostas pelos compradores, geralmente países desenvolvidos 141 Segundo dados compilados do USDA, a parcela exportada (exportações/produção total) de carnes é pequena, mas crescente: sai de 7,5% em 2000 para 16,4% em 2012 para carnes bovinas; de 4,2% em 2000 para 6,9% em 2012 para carnes de porco; e de 9,7% em 2000 para 12,1% em 2012 para carnes de aves. 142 Como o comércio de carnes ainda é muito local ou regional e pouco internacional, em geral apenas grandes produtores possuem excedentes exportáveis. 143 Por exemplo: a exportação para país predominantemente muçulmanos exige uma preparação especial em várias fases do processo – o abate Halal. Somente com o certificado Halal é possível vender para estes mercados (onde o Brasil tem crescido nos últimos anos). 144 OCDE/FAO (2011: pp. 137-141). 145 Cf. OCDE/FAO (2009: p. 168). 105 com critérios mais rigorosos para alimentação (Europa, Japão, Coreia do Sul). Disto decorre uma dificuldade de alguns produtores, dentre eles o Brasil, de conseguir atingir o mercado brasileiro. O Brasil tem como principais destinos a Rússia, o grupo de países chamado de “MENA” (“Middle East, North Africa”, isto é, Oriente Médio e Norte da África), alguns países da Europa e América do Sul146. Como veremos, as aquisições da JBS nos EUA e na Austrália abrem as portas da companhia para os mercados mais valorizados. Figura 1. Bovinos - Fluxos de Comércio, inclusive vivos (2011-2012) Fonte: GIRA Consultancy and Research (2012) É neste ambiente de mercado que despontou o grupo JBS em 2007. Originário de uma empresa familiar no ramo de abate e carne industrializada147 que tinha como antigo nome “Friboi” (que hoje ainda é uma marca da empresa), a JBS é um frigorífico especializado em carne bovina in natura, com operações com outros tipos de carne. Embora fosse já uma grande empresa brasileira nos anos 2000, a JBS só adquiriu este nome e ganhou destaque no Brasil e no Mundo 146 147 Cf. ABIEC (2013). Para mais detalhes do Histórico, ver: Lethbridge e Juliboni (2009) e Gruley e Kassaj (2013). 106 em 2007, após iniciar um conjunto de aquisições de empresas estrangeiras do mesmo ramo, tornando-se em alguns anos a maior empresa de proteína animal do mundo. Gráfico 12. JBS - Receitas líquidas, Resultados e Lucro/Prejuízo (em R$ bilhões) (Eixo da direita para Receita Líquida) Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) Na realidade, a estratégia de aquisições e internacionalização da JBS se iniciou pouco antes, ainda nos anos 1990. Nesta década, a então Friboi cresceu adquirindo plantas de abate de empresas em dificuldades e mesmo de frigoríficos estrangeiros que saíam do país devido à sonegação fiscal dos concorrentes nacionais148. Também foi aí que a empresa iniciou o processo de exportações, em um cenário de dificuldades para o mercado de carnes, sob competição da carne de frango e problemas operacionais do setor149. Mas o decisivo foi o conjunto de aquisições iniciado ainda com um pequeno passo, a Swift Armour da Argentina, em 2005, por US$ 210 mi. Na sequência, vieram, para citar as mais importantes: a Swift Foods Co. dos EUA, por US$ 1,5 bilhões, em 2007; aquisição de 50% da italiana Inalca, por US$ 331 milhões, do Tasman Group da Austrália, por US$ 150 milhões e do Smithfield Beef dos EUA por US$ 565 milhões em 2008; e a aquisição da Pilgrim’s Pride dos EUA por US$ 800 milhões em 2009150. Também ocorreu a fusão com o grupo brasileiro concorrente, Bertin, aquisição feita em troca de 148 Cf. Salomão, Ribeiro e Todeschini (2009). Cf. Zucchi e Caixeta-Filho (2010). 150 Cf. Macedo e Lima (2012). 149 107 controle acionário da JBS. O conjunto de aquisições não apenas levou a JBS a outros países como a outros tipos de carnes, passando a produzir suínos, ovinos e aves. Tabela 18. JBS – Capacidade de abate diário por segmento e região (%) Bovinos Total Brasil ou JBS Mercosul Argentina Paraguai Uruguai EUA ou JBS EUA Austrália Canadá Outros 2007 51.400 2008 65.700 18.900 6.700 28.600 8.500 3.000 2009 90.290 ND ND ND ND ND ND ND ND 2010 86.000 ND ND ND ND ND ND ND ND 2011 87.100 53.000 ND ND ND 34.100 ND ND ND 2012 83.991 42.550 1.730 521 900 26.025 7.765 4.500 - Aves 2007 Total 0 Brasil JBS USA (EUA, Mex. Porto Rico) 2008 0 - 2009 7.600.000 7.600.000 2010 7.600.000 ND 2011 7.200.000 7.200.000 2012 8.950.000 1.450.000 7.500.000 2007 47.900 47.900 2008 47.900 47.900 2009 48.500 48.500 2010 48.500 ND 2011 50.100 50.100 2012 51.300 51.300 Ovinos Total EUA Austrália 2007 0 2008 20.500 4.000 16.500 2009 27.500 ND ND 2010 27.500 ND ND 2011 28.300 ND ND 2012 24.900 2.800 22.100 Couros (peças) Total Brasil China 2007 ND 2008 ND 2009 55.600 55.600 - 2010 ND 2011 ND - - 2012 73.800 71.600 2200 Suínos Total JBS USA (EUA) Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) Embora o grupo JBS e boa parte da cobertura jornalística e dos estudos acadêmicos enfatizem bastante o que seria um diferencial gerencial151 da JBS que permitiu adquirir e 151 A JBS carrega consigo uma curiosa característica de um grupo de gestão ainda familiar: a simplificação dos processos e o conhecimento operacional do negócio. Como se trata de um mercado de grande competitividade e baixas margens, onde o processo de criação e alimentação dos animais e os processos de embalagem e distribuição não possuem grande diferenciação, o processo de abate e corte é um dos diferenciais (FAO, 2009; SCHNEPF, 2013; LEAHY, 2013). A presença quase folclórica dos filhos do fundador no comando direto da companhia – e seu “modelo” de gestão “Frog”, ou “From Goiás” – é o que, aparentemente, viabilizou sucesso na empreitada de internacionalização e recuperação de gigantes adquiridas, como a Swift e a Pilgrim’s Pride nos EUA, como foi coberto pela imprensa e academia internacional: estudo da Harvard Business School/HBS (BELL & ROSS, 2008) e 108 recuperar várias unidades deficitárias, este não foi o decisivo no crescimento da JBS. O fato básico que permitiu tamanho salto foi um significativo financiamento estatal através do BNDES. Não apenas por empréstimos, mas principalmente através da participação acionária. Desde 2007, quando a Friboi se tornou JBS S.A. e abriu o capital na Bovespa, o BNDESPar é o maior acionista minoritário declarado nos relatórios. Neste período, o BNDES fez aportes significativos em paralelo a todas as aquisições significativas mencionadas, como a capitalização de R$ 1.115 milhões em 2007 e a capitalização dos créditos das debêntures da JBS no valor de R$ 3.477 milhões. Tabela 19. JBS - Composição do Controle Acionário Acionistas J&F Participações S.A. FB Participações S.A. Banco Original (J&F) Administradores ZMF Fundo de Invests. Parts. Ações em Tesouraria Ações em circulação (total) BNDES Participações S/A FRDT-FP/PROT-FIP Caixa Econômica Federal Minoritários TOTAL DE AÇÕES (mi) Capital Social (R$ mi) Parcela BNDESPar* (R$ mi) 2007 55,4% 0,0% 0,0% 0,0% 8,2% 0,0% 36,4% 12,9% 0,0% 0,0% 23,5% 1.077 1.945,6 251,9 2008 44,0% 0,0% 0,0% 0,0% 6,1% 2,4% 47,5% 13,0% 14,3% 0,0% 20,2% 1.438 4.495,6 584,2 2009 0,0% 59,1% 0,0% 0,0% 0,0% 1,9% 39,0% 18,5% 8,7% 0,0% 11,9% 2.367 16.483,5 3.043,3 2010 0,0% 54,5% 0,0% 0,0% 0,0% 2,9% 42,6% 17,0% 8,0% 0,0% 17,5% 2.567 18.083,5 3.078,7 2011 0,0% 43,2% 2,5% 0,0% 0,0% 3,2% 51,1% 30,4% 6,7% 0,0% 14,0% 3.061 21.561,1 6.557,3 2012 0,0% 44,0% 3,3% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 19,9% 0,0% 10,1% 22,8% 2.944 21.506,2 4.269,8 (*) Avaliada em cima do percentual sobre o capital social e não sobre o valor de mercado Fonte: JBS – Relatórios de Administração, diversos anos (elaboração própria). No fundo, a construção do que ficou conhecido como “campeãs nacionais”, grandes empresas brasileiras com atuação multinacionais, foi parte de um plano maior de fortalecimento de setores onde o Brasil tem grande atuação. Esta política pode ser vista no diagnóstico dos setores líderes152 da política industrial do segundo governo Lula, a Política de Desenvolvimento reportagens da Businessweek (GRULEY & KASSAJ, 2013) e do Financial Times (LEAHY, 2013), além do The Washington Post (FORERO, 2011); na mesma linha, a reportagem da EXAME (LETHBRIDGE & JULIBONI, 2009) e da Época Negócios (Salomão et alli, 2009). 152 Os setores são: complexo aeronáutico, petróleo, gás e petroquímica, bioetanol, carnes, celulose e papel, siderurgia e mineração. Não à toa, em quase todos os casos há uma correlação com setores muito oligopolizados ou uma atenção especial para os grupos maiores. Para mencionar os de controle brasileiro, que compões a lista dos maiores, 109 Produtivo (PDP). Segundo o relatório final da PDP, havia o objetivo de tornar o Brasil o maior exportador mundial de carnes e de torná-las o segmento mais exportado do agronegócio brasileiro (mas não superior à mineração), ou seja, está vinculado ao fortalecimento da balança comercial. Uma dos resultados conquistados segundo o relatório foi a constituição de “players internacionais” (JBS, Marfrig e BRFoods) e que as metas futuras buscavam enfrentar questões sanitárias e de rastreamento – fundamentalmente fortalecer a posição de exportador153. O tamanho e os recordes da empresa não revelam, contudo, uma questão decisiva: a posição do frigorífico na cadeia produtiva das carnes, em especial a bovina. A JBS atua particularmente na Indústria de 1ª transformação (abate e corte em peças) e menos no segmento de 2ª transformação (industrialização propriamente dita). Secundariamente opera ainda nos segmentos de atacado e exportação154. Este segmento é conhecido pela tecnologia tradicional, de uso generalizado e relativamente livre, isto é, não há muita diferenciação entre produtores nacionais e estrangeiros. A questão reside no fato de que o frigorífico não atua nem no setor que incorpora progresso técnico, a produção da matéria-prima (animais), nem no setor que comanda a cadeia, o varejo e o “food-service”. No segmento de criação de animais, além da disponibilidade de terras ou ração animal básica, há uma série de tecnologia que incorporam boa parte do valor, mas que estão sob controle do capital internacional, como os aditivos alimentares, a farmacêutica veterinária e o setor de melhoramento genético155. Na outra ponta, estão os grandes varejistas (como redes de supermercados) ou varejistas em alianças com frigoríficos, que são capazes de comandar a cadeia, ou liderar a “governança” da cadeia, dirigindo a demanda (tipos e quantidades) e se apropriando de uma parcela maior do valor final156. Como resultado, os frigoríficos acabam se apropriando de parcelas menores do valor agregado ao longo da cadeia 157, resultado que se expressa no cenário internacional e no brasileiro158. temos: Embraer, Petrobras, usinas como a Cosan, os frigoríficos JBS, Marfrig, Minerva, Bertin, Fibria, Suzano, siderúrgicas como Gerdau, Usiminas e CSN, além da Vale. 153 Cf. Brasil (2010). 154 Para o esquema completo da cadeia, consultar MAPA (2007). 155 Para o cenário geral, ver Martinelli et alli (2011). Para o segmento de aditivos alimentares, ver MDIC (2012). Para a farmacêutica, ver Capanema et alli (2007) e sobre vacinas, ver Fernandes et alli (2013). Sobre o melhoramento genético, ver Espíndola (2005). 156 Ver Gereffi e Lee (2009) e Lundstrom (2007). Para tendências do segmento, ver MAPA (2007: pp. 55-56). 157 Para dados de 2000 no Brasil, o estudo de Perez et alli (2002) estimou dados para duas empresas da participação no preço final da carne bovina (cortes tradicionais) em 22,4% e 26,1%, sendo que em ambos os casos a maior parte da agregação (52,6% e 64,1%) ficavam com o pecuarista. No estudo do IPARDES e GEPAI (2002: p. 168) para o 110 Gráfico 13. JBS – Margens Operacional, EBITDA e Líquida (%) Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) Do ponto de vista estrito da empresa, a situação não é simples. Ainda que ela tenha contornado o problema do acesso aos mercados consumidores dinâmicos, com a aquisição de operações nos EUA e Austrália, e ainda que esteja posicionada em um país com consumo crescente de carnes (e carnes bovinas), sua posição na cadeia é desfavorável. Além disso, a JBS passa por dificuldades de conciliar o crescimento rápido, a aquisição de unidades deficitárias, as margens reduzidas e o custos financeiros da sua dívida, a tal ponto de passar dois anos sem distribuir dividendos aos acionistas (dentre eles o BNDES)159. Seu endividamento é considerado alto pelos próprios critérios expressos nos relatórios anuais, fortemente vinculados ao processo de aquisição. setor de carnes no Paraná, foram apurados os seguintes valores para o valor adicionado pela indústria: em 1995, no setor de carne suína era de 8,01%, no de bovina 7,24% e no de aves, 28,81%; em 2000, no de suína era de 14,43%, no de bovina, 6,45%, e no de aves, 48,65%. Já o estudo de Viana e Silveira (2007: p. 1126) chega ao resultado de 7,61% da participação da indústria no setor de carnes do Rio Grande do Sul com venda em Santa Maria em 2005. Os dados o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA/Economic Research Service) mostram valores compatíveis, em torno de 8.0%. 158 Cf. Sehnem et alli (2012) 159 O pagamento de dividendos como percentual do lucro líquido foi 18,5% em 2004, 37,7% em 2005, 7,1% em 2006, -10,1% em 2007 (com prejuízo líquido), 54,6% em 2008, 27,9% em 2009, 0,0% em 2010e 2011 e 22,4% em 2012. Além de não recuperar o patamar, a margem líquida também diminui, minorando os efeitos das altas receitas. 111 Gráfico 14. JBS – Dívida Bruta (R$ mi) e razão Dívidas Bruta e Líquida/EBITDA (%) Fonte: JBS, Relatórios Anuais, diversos anos (elaboração própria) Desta forma, a transnacionalização da JBS, que reduz seus vínculos com o mercado interno, ainda que ele continue a ser importante mercado consumidor, reforça características regressivas do agronegócio: o uso intensivo de recursos naturais e da terra; o custo do suporte estatal ao setor; a busca por atender a mercados externos – e a correspondente vulnerabilidade aos choques de demanda típicos do setor primário; a busca pelo diferencial em atividades de gestão e não na incorporação de progresso técnico ou criação de novas mercados; a constituição da empresa em mais uma peça das estratégias globais do capital que podem desestruturar economias nacionais com mudanças de planos produtivos e financeiros, exacerbando as tendências à reversão neocolonial. 5. Discussão O estudo dos quatro grupos controlados por brasileiros realizado nessa pesquisa pretende contribuir para o entendimento da natureza da burguesia brasileira, fornecendo elementos empíricos para elucidar as estratégias de acumulação e o caráter dos nexos destas frações de capital com o espaço econômico nacional, a economia internacional, o grande capital internacional e o Estado brasileiro – elementos essenciais para a compreensão do padrão de exploração do trabalho que fundamenta em última instância o processo de valorização do capital desses grupos. O trabalho é, evidentemente, apenas o início de uma investigação e certamente não autoriza conclusões definitivas. No entanto, pela posição de liderança desses grupos em seus 112 respectivos setores e pela relevância dos setores na economia brasileira, acreditamos que o conhecimento da sua forma de atuação constitui informação importante para a identificação de padrões e tendências de comportamento que são fundamentais para uma melhor caracterização sobre as potencialidades e debilidades da burguesia brasileira. Nesta conclusão, arriscaremos uma síntese mais geral sobre os resultados da investigação, ressaltando as características comuns e as particularidades dos quatro grupos. Do ponto de vista tecnológico, a base produtiva dos grupos estudados é muito simples e com uso de tecnologias acessíveis no mercado. Mesmo quando exigem certa imobilização de capital (siderúrgicas), são segmentos de atividade em que conta muito pouco a inovação disruptiva e mais as inovações incrementais, quando possíveis. São setores muito intensivos em recursos naturais, energia elétrica e força de trabalho barata. De uma maneira geral, os grupos revelaram baixa capacidade de incorporação de progresso técnico e, em consequência, alta dependência tecnológica e financeira em relação ao grande capital internacional. O resultado, como veremos, é o condicionamento destes grupos a se apoiarem em outros fatores para competir que não a elevação da produtividade pela técnica. De maneira geral, os segmentos de atividade, e as empresas estudadas dentro deles, têm sua dinâmica ditada pelo crescimento da demanda final (alimentos e combustível ou gás natural para consumidor final, minérios para siderurgia, aço para construção ou indústria), de tal forma que o ritmo de expansão e os preços são em geral pouco influenciados pelas empresas produtoras. Do ponto de vista da força relativa destes grupos dentro das cadeias produtivas, podese enxergar uma posição em geral subordinada e que corresponde a parcelas menores sobre o valor agregado. Este padrão é mais acentuado nos ramos do agronegócio, em que pesam os insumos e, principalmente, as empresas que controlam a intermediação - tradings, distribuidoras de combustíveis, redes de supermercados etc. É relevante também a dependência de critérios de compras de países importadores no setor de carnes ou as pressões de custos à medida em que se intensifica o progresso técnico na criação animal. No caso da Vale, a posição é um pouco diferente por estar no início da cadeia com os produtos minerais valorizados. Na siderurgia, a Gerdau possui controle de canais comerciais estratégicos: a compra de sucata de aço e a distribuição de aço, apesar de não controlar o patamar dos preços. 113 Os mercados internos e externos são importantes para todas as quatro empresas, mas é possível notar um claro viés para o aproveitamento de oportunidades de exportação. Os mercados externos têm maior peso relativo para a Vale, em que o dinamismo do produto – quantidades e preços – é todo explicado pela demanda asiática, enquanto que as vendas físicas no mercado brasileiro estagnaram e participação relativa do país nestas vendas caíram. Dinâmica semelhante se estabelece para a Cosan no mercado de açúcar ou nas operações de transporte para exportações (Rumo Logística), bem como para a JBS, que tem cerca de metade das receitas em exportações nas operações do Brasil e que também atinge mercados externos a partir de operações estrangeiras. Os mercados regionais das Américas são relevantes para a Gerdau, em particular a partir das operações brasileiras, estruturalmente dependente das vendas externas dado a diferença entre a produção e a absorção interna. O mercado interno é relevante para estes grupos sob duas formas. A primeira é a existência de um mercado cativo em que os grupos tenham algum controle. A Gerdau participa de um duopólio nos aços longos, possui vantagens comerciais (compra do insumo e venda do produto) e influência política para conquistar a dinamização da demanda (construção e automóveis). A JBS detém fatia importante em um mercado de alto consumo de carnes, ainda que o crescimento dependa da continuidade do crescimento econômico e da renda. A Cosan produz etanol que possui uma demanda atrelada ao aumento da frota de veículos, mesmo quando o combustível não é competitivo (vai misturado à gasolina). A segunda forma é a intermediação comercial. No caso da Cosan, é um negócio muito importante, que ocorre tanto na distribuição de combustíveis como nos serviços de distribuição de gás natural e na revenda de lubrificantes. Por fim, vale mencionar as operações no mercado imobiliário da Cosan, onde o especulativismo aparece na sua forma pura. A estratégia de expansão dos quatro grupos possui um denominador comum: as aquisições de operações já existentes. É o que explica, inclusive, a possibilidade do crescimento de empresas como a JBS, a Gerdau ou a Cosan. Este padrão se concretiza em experiências que vão desde a Gerdau e JBS que usam a expansão para conquista de market-share – nas aquisições nos EUA, América Latina e outros –, passam pelo aproveitamento do momento bom de um ciclo de alta de preços, como ocorreu com a Vale – aquisição de operações de níquel, mas também de fertilizantes e carvão – e mesmo com a Cosan, mas que chega ao máximo da operação de 114 especulação na criação da joint-venture Raízen da Cosan com a Shell, onde ao capital transnacional é oferecida toda sorte de benefícios para concretizar a venda – o que é na prática. Em um polo, compra-se para “reformar” (para usar as palavras do proprietário da JBS), em outro, compra-se para vender. O financiamento das empresas, condição fundamental para a execução do intenso e acelerado processo de aquisições das empresas, teve como base duas fontes: o capital internacional e o Estado. O capital internacional, até onde a pesquisa conseguiu chegar, é a principal fonte de financiamento dos grupos estudados. Não à toa, os capitais estrangeiros buscaram antes e mesmo depois da crise ativos com diferenciais de retorno, o que foi enxergado nas ações e títulos de dívidas de empresas ligadas aos setores de commodities agropecuárias, minerais e industriais. Apesar de tais empresas terem receitas em dólar, o desequilíbrio patrimonial revelado no momento mais agudo da crise demonstra quão vulneráveis estão estas empresas ao estrangulamento cambial promovido com a fuga de capitais. Isto é, as empresas brasileiras são ao mesmo tempo beneficiadas pelo movimento de entrada no ciclo especulativo como ficam fragilizadas no movimento de saída, da mesma forma que a economia brasileira em conjunto. O outro pilar de financiamento, o Estado, teve participação em todos os grupos com importâncias distintas, seja como acionista (BNDESPar na Vale, Gerdau e JBS), seja como banco para todos os grupos em distintos momentos, chegando ao limite de representar o fator decisivo responsável pela constituição da JBS. A expansão destes grupos ainda tem como pressuposto e resultado o controle e aprofundamento do uso de fatores que dão vantagens absolutas: a exploração do trabalho barato e de recursos naturais (solo, subsolo, energia). Seus negócios supõem, portanto, a presença de uma ampla abundância de força de trabalho barata e a depredação do meio ambiente. O Estado, diga-se de passagem, é mobilizado não apenas, como já vimos, no financiamento, mas também através da criação de uma série de condições que viabilizam os negócios. A política de setores líderes e “campeãs nacionais” surge do vínculo estratégico dos setores, e das empresas dentro dos setores, para o Estado, expresso como a possibilidade e a necessidade de expansão de exportações e consolidação do grande capital no país. Para tanto, são mobilizadas infraestrutura, a diplomacia para abrir oportunidades de exportações e investimentos, subsídios e incentivos diversos para o aprofundamento de tais negócios. Cabe lembrar ainda a 115 contribuição dada no momento anterior ao período aqui estudado, quando as privatizações foram responsáveis pela liquidação do patrimônio público em favorecimento destes negócios de grandes capitalistas brasileiros e estrangeiros, processo que aparece nesta pesquisa desde algumas unidades produtivas, no caso da Gerdau, até a empresa inteira e tudo o que ela carregou junto, no caso da Vale. O caráter tributário e associado destes ramos de atividade, ainda que diferenciado entre eles, aparece no surgimento e no aproveitamento das oportunidades de negócios abertas por condições externas ao país – mudanças na divisão internacional do trabalho, especulação comercial e financeira do capital financeiro internacional. Os negócios são fonte ao mesmo tempo de oportunidades de ganho na alta do ciclo, como de vulnerabilidade e derrocada na baixa do ciclo. Elas surgem nas associações diretas da Cosan com a Shell e a ExxonMobil, na dependência do comportamento de mercados externos para a Vale, no crescimento da siderurgia chinesa e de outros países para a Gerdau ou na importância crescente de mercados consumidores com poder de barganha para a JBS. Nos quatro casos assistimos a momentos de ascensão e queda dentro mesmo dos anos 2000, revelando a atualidade do alerta de Caio Prado Jr. sobre a importância – hoje crescente – do ciclo de acumulação internacional para a criação de negócios de empresas brasileiras, bem como sua vulnerabilidade às crises de reversão exatamente pela natureza do processo cíclico de acumulação e pela posição periférica do Brasil perante a ele. Os grupos pesquisados nesta dissertação permitem materializar de que forma uma parte da burguesia brasileira se insere no processo da globalização, uma vez decidida pela integração acelerada em um contexto de nova lógica transnacional e mudança na divisão internacional do trabalho. A esta burguesia cabe o comando de setores especializados em atividades primárias ou de baixa intensidade tecnológica, considerada a defasagem gritante entra sua base técnica e a das grandes corporações e dos países imperialistas. Desta forma, o uso crescente das condições socioeconômicas internas, que são as variáveis que dão alguma competitividade à burguesia e que podem ser manejados com relativa ampla liberdade, passa a ser o pilar da viabilidade econômica de muitos dos negócios aqui analisados. Dentre estas condições não estão somente aquelas que dizem respeito às vantagens competitivas estáticas, certamente muito relevantes, mas também a disponibilidade de mercados cativos, um diferencial importante e ainda não de todo corroído pela competição internacional, pelo menos não para 116 todos os setores ou empresas da burguesia brasileira. Por outro lado, o que interessa é que tais setores e grupos empresariais são crescentemente polarizados por condições externas ao Estado e à economia brasileira e estão mais vinculados com as estratégias globais de grandes empresas ou países na disputa pelo controle tecnológico, de mercados e de recursos estratégicos, além da disputa pela capacidade de extrair os melhores e maiores ganhos na especulação e no rentismo mundial. É precisamente dentro deste contexto geral que operam, no fundo e muitas vezes na mais explícita realidade dos fatos, os grandes capitais aqui estudados: no aproveitamento de oportunidades possíveis abertas pelo grande capital estrangeiro no comércio internacional, na especulação com ativos financeiros e com o patrimônio estatal e dos próprios grupos, no caso extremo. É este padrão de participação na totalidade do sistema que permite enquadrar a burguesia estudada nesta pesquisa como aquilo que foi chamado anteriormente de “burguesia de negócios”. Ou seja, é este o caráter da burguesia dependente brasileira correspondente ao período histórico de processo de reversão neocolonial. 117 Considerações finais Este trabalho surgiu da preocupação com o entendimento do movimento concreto de transformação da burguesia brasileira neste novo século e a sua relação com a economia brasileira. Diante da imensa quantidade de leituras que postulavam um suposto neodesenvolvimentismo no Brasil, surgidas no final da década de 2000, uma grande inquietação surgiu: se há um novo desenvolvimentismo, onde está a burguesia que o protagoniza? Para além da muita propaganda e apologia que se fez e se faz na mídia, no Estado e na academia acerca das “campeãs nacionais” ou das “multinacionais brasileiras”, muito pouco foi exposto além da superfície dos dados sobre elas. Ao mesmo tempo, como seria possível pensar em desenvolvimento se o Brasil era rapidamente reposicionado na divisão internacional do trabalho, processo explícito através da mudança na composição da balança comercial e da desestruturação das cadeias produtivas que anunciavam o aprofundamento da desindustrialização? Como pensar que uma nova fase da História brasileira se abria se os problemas históricos da desigualdade, da exploração, da autocracia e da submissão aos desígnios do grande capital internacional prosseguiam firmes a despeito da algumas mudanças quantitativas? Seguindo os ensinamentos do maior economista brasileiro, Celso Furtado, compreendia não ser possível pensar em desenvolvimento sem industrialização, integração nacional e um sistema econômico voltado para o mercado interno. Diante dessa contradição e da motivação de explicá-la, surgiu o projeto de estudo dos grandes grupos econômicos como uma forma de iniciar um longo caminho de pesquisa para dar contribuições ao debate, sem a pretensão de esgotá-lo. Tratava-se de entrar no campo dos atores do desenvolvimento, de compreender seus limites e potencialidades e o sentido da sua ação histórica. Nenhuma classe em estudo poderia condensar tantas relações e ajudar a explicar tanto sobre o sentido da História brasileira quanto a nossa burguesia. A conclusão a que chegamos, a partir de uma pequena, porém representativa, seleção de grupos econômicos, joga luz e novas hipóteses para trabalhos futuros. Se é verdade que temos uma “burguesia dos negócios” no Brasil e que é possível definir desta maneira a fração do capital estudada nesta pesquisa, ainda existe um grande caminho a ser trilhado, tanto no aprofundamento desta caracterização como na expansão dos grupos e setores a serem compreendidos. 119 Duas indicações de estudos futuros saem desta pesquisa. A primeira é a busca por mais setores representativos de grandes negócios, sejam eles claramente identificados com o padrão encontrado nessas empresas, como outros setores do agronegócio ou de commodities industriais e indústria básica, ou mesmo, por outro caminho, as empreiteiras, sejam eles considerados a ponta de lança da tecnologia brasileira, como os grupos do setor aeronáutico. A segunda indicação é dos caminhos a se percorrer na investigação dos grupos brasileiros. Fica claro que a simples comparação de um grupo brasileiro com seus congêneres de outros países não é capaz de revelar a natureza de seus nexos com a economia brasileira e a mundial, sua estratégia de acumulação, sua maneira de se relacionar com o trabalho e a natureza. Uma das pistas encontradas – e trilhada de forma apenas incipiente – nesta dissertação foi a busca pela posição relativa das empresas brasileiras nas cadeias de valor de seus setores. É esta força relativa que é capaz de explicar como grandes empresas podem ser apenas a reposição de uma burguesia dependente em outros níveis. O senhor de engenho brasileiro do século XVI ou XVII participava de uma das cadeias produtivas mais dinâmicas, vendia para os mais importantes mercados consumidores, era financiado pelas maiores casas financeiras e comerciais europeias, operava uma das tecnologias mais modernas de sua época e estava no centro das rotas comerciais mais promissoras. Mesmo assim, sua margem de manobra e sua participação no excedente econômico eram mínimas e tudo o que controlava estava da porteira para dentro: suas terras, que soube utilizar até a exaustão, e seus escravos, que soube explorar até a morte. Não seria um retrato de nossa moderna burguesia dos negócios? Este trabalho buscou dar sua pequena contribuição – e provocação – para uma pesquisa e um debate mais amplos, que ajudem a responder se um futuro diferente para o nosso país pode estar nas mãos da burguesia brasileira ou se será preciso colocá-lo em outras mãos. 120 Referências Bibliográficas ABIEC (2013). Exportações Brasileiras de Carne Bovina - 2012. Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne, 2013. Disponível em: <http://www.abiec.com.br/download/relatorioexportacao2012_jan_dez.pdf>. Acesso em: 10/02/2014. ANDRADE, M.L.A.; CUNHA, L.M.S.; GANDRA, G.T. (2000). A ascensão das mini-mills no cenário siderúrgico mundial. 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Introdução O grupo Cosan é um grupo econômico de controle brasileiro originário do setor sucroalcooleiro, onde cresceu rapidamente ao longos dos anos 2000 através de aquisições, alavancado pelo capital internacional. Frente à crise aparentemente estrutural pela qual passa o setor, em particular o segmento de etanol, a Cosan fez movimentos abruptos de saída do ramo para entrada em negócios mais estáveis e de rendimento garantido: entrou no ramo de distribuição de combustíveis; negociou metade de suas operações sucroalcooleiras e de combustíveis com a Shell, na constituição da joint-venture Raízen, onde a empresa estrangeira possui opção de compra da parte da brasileira; vendeu as operações em alimentos; partiu para fortalecer sua posição como intermediário e especulador no ramo de transporte (logística em especial para exportação) de commodities, especulação imobiliária e concessões em distribuição de gás natural. Para compreendê-lo, é preciso analisar o funcionamento do setor de origem, o sucroalcooleiro, e como sua estratégia de aquisições dentro do setor se tornou uma estratégia de saída do setor, sempre amparado no financiamento ou associação com o capital internacional e com alguma ajuda do Estado no período recente, mais agudo de crise sucroalcooleira. 2. Histórico A Cosan tem como origem os negócios de uma tradicional família do setor sucroalcooleiro do interior de São Paulo, os Ometto. Apoiado em uma única usina em Piracicaba (fundada em 1936) durante 50 anos, passou a se expandir adquirindo a partir de 1986 outras usinas: Santa Helena, São Francisco e Ipaussu. Em 1996, a empresa iniciou suas operações de carregamento portuário no Porto de Santos, associado a uma empresa britânica tradicional do ramo de açúcar, Tate & Lyle. Já em 2000, se constituiu como Cosan S.A. e fez outra associação, desta vez com as empresas estrangeiras Tereos e Sucden na aquisição de novas usinas através da companhia FrancoBrasileira Açúcar e Álcool S.A. (FBA). Em 2002 adquiriu a maior usina de açúcar e etanol do mundo, a Usina da Barra. 178 Em 2005, o grupo formalizou uma aliança com o grupo asiático Kuok, especializado em commodities, que se tornou acionista da Cosan. Em seguida, ele formou ainda a empresa Terminal de Exportação de Álcool de Santos, TEAS, em parceria com outras grandes empresas como Cargill, Crystalserv, Nova América. Neste mesmo ano, ele conseguiu financiamento no IFC, braço de negócios empresariais do Banco Mundial, abriu capital na Bovespa e adquiriu o controle da FBA. No ranking dos maiores 200 grupos econômicos brasileiros, o grupo aparece desde 2001, em 138º lugar com receita de R$1,0 bi. Desponta entre os 25 maiores grupos brasileiros privados da indústria em 2004 (111º no geral, com receita de R$2,0 bi) e entra lista dos 10 maiores brasileiros da indústria em 2009 (na 33ª posição geral com R$16,7 bi em receitas). Em 2010 era o 27º dentre os 200 grupos e em 2011, o 22º, com receitas de R$25,9 bi. Assim como a JBS e a Marfrig, a Cosan é um grupo que cresceu muito rapidamente nos anos 2000, principalmente através de operações de aquisição e impulsionado por um setor exportador em forte crescimento – no caso, o do açúcar. Tabela A.1. Posição da Cosan no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas) 200 grupos 25 maiores indústria Brasil 2001 138º - 2002 109º - 2003 ND* - 2004 111º 22º 2005 100º 20º 2006 82º 17º 2007 107º 22º 2008 53º 12º 2009 33º 6º 2010 27º 7º 2011 22º 7º *ND: Dado não encontrado Fonte: Elaboração própria com dados do anuário Valor Grandes Grupos. Baseada em uma estratégia de aquisições alavancadas pelo capital internacional, a Cosan chegou à segunda metade dos anos 2000 como a maior empresa brasileira no setor, aproveitando oportunidades de aquisição e o bom momento dos dois principais produtos da empresa, açúcar e etanol. Este cenário mudaria desde o final da década e exporia a Cosan às instabilidades e problemas que a levaram a se afastar do ramo de origem e buscar negócios mais rentáveis e seguros. 179 3. Mercados principais Apresentamos nesta sessão o panorama dos principais setores de atuação da Cosan (e da Raízen): o sucroalcooleiro e a distribuição de combustíveis. São os setores que representaram a maior parte dos negócios da Cosan até período recente e sua análise ajudará a entender as estratégias da empresa. Os demais setores serão tratados nos tópicos seguintes, como parte da carteira de negócios da empresa, isto é, oportunidades de negócios que foram sendo agregadas, sejam em áreas correlatas – como é o caso da logística e do setor imobiliário rural –, ou simplesmente diversificações radicais – como é o caso da produção e comercialização de lubrificantes ou o segmento de distribuição de gás natural. 3.1. Açúcar e Etanol Açúcar e etanol são os dois principais produtos do chamado setor sucroalcooleiro, cujo grande insumo é a cana-de-açúcar. Como são produtos que podem ser obtidos da mesma matéria-prima em proporções variáveis de acordo com a conveniência de mercado, devem ser estudados conjuntamente, ainda que tenham dinâmicas distintas. A plantação da cana para produção – e em especial a exportação – do açúcar é historicamente um grande negócio brasileiro e continua atrelado, principalmente, ao mercado externo. Já o etanol só se tornou economicamente viável com o suporte estatal durante o período do Proálcool (iniciado em 1975 e finalizado no início dos 1990s) e quando se tornou substituto da gasolina com alto preço do petróleo repassado ao seu derivado. Diferentemente do açúcar, o etanol ainda tem como destino principal o mercado interno. Veremos como se comportou a posição do Brasil nesses mercados e algumas questões-chave para se entender a nossa posição dentro deles e a crise que tomou conta do setor sucroalcooleiro no final da década de 2000. Cana-de-açúcar Sob o dinamismo que tomou a demanda e os preços do açúcar e etanol nos anos 2000, a produção de cana-de-açúcar cresceu no Brasil muito acima do ritmo mundial. 180 Tabela A.2. Cana-de-Açúcar – Produção Mundial, em milhões de toneladas Brasil Índia China Tailândia México Paquistão Demais Mundo 2000 254,9 299,3 69,3 54,1 44,1 46,3 489,5 1257,5 2001 293 296 78 49,6 47,3 43,6 459,3 1266,8 2002 321,7 297,2 92,2 60 45,6 48 470 1334,7 2003 349,6 287,4 92 74,3 47,5 52,1 475,7 1378,6 2004 374,7 233,9 91 65 48,7 53,8 473,9 1341 2005 382,3 237,1 87,6 49,6 51,6 47,2 466,1 1321,5 2006 428,3 281,2 93,3 47,7 50,7 44,7 476,2 1422,1 2007 495,5 355,5 113,7 64,4 52,1 54,7 484,7 1620,6 2008 552,8 348,2 124,9 73,5 51,1 63,9 519,7 1734,1 2009 622,6 285 116,3 66,8 49,5 50 477,8 1668 2010 627,3 277,8 111,5 68,8 50,4 49,4 500,2 1685,4 Fonte: FAO (elaboração própria) O resultado do ritmo de produção acima da média é que a fatia brasileira no total mundial passou de 20% em 2000 para 37% em 2010. Gráfico A.1. Cana-de-Açúcar – Produção Mundial – Países selecionados (%) Fonte: FAO e Ministério da Agicultura (MAPA), elaboração própria. A produção de cana-de-açúcar no Brasil ficou ainda mais concentrada no Centro-Sul do país. Na safra 2000/2001, o Norte-Nordeste possuía ainda 20% da produção; entre as safras 2009/2010 e 2011/2012, sua parcela oscilou entre 10% e 12%. No Centro-Sul, o estado de São Paulo continuou com o maior produtor (pequena redução ao longo da década). O destaque, contudo, foi o aumento relevante da participação dos estados próximos, como Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná. Essa relevância das regiões em torno do estado de São Paulo é importante, pois esta é a área de origem (SP) e de expansão prioritária (GO, MS) da Cosan. 181 Gráfico A.2. Cana-de-Açúcar – Produção brasileira – estados selecionados (%) Fonte: elaboração própria com dados da Unicadata. Açúcar Um dos principais estímulos à produção de cana foi sem dúvida o dinamismo da demanda e dos preços internacionais do açúcar. Enquanto o etanol não é ainda um produto da cana tão importante como é no Brasil, o principal uso que se faz da planta é o açúcar. Os seus preços em termos reais tiveram uma grande recuperação entre meados da década de 2000 e o início da de 2010. Os preços, segundo a estimativa da OCDE com a FAO, devem declinar, mas permanecer acima dos patamares do início dos 2000. 182 Gráfico A.3. Açúcar – preços reais (1992-2012) e projeções (2013-2022), em US$/ton. Fonte: OCDE-FAO Agricultural Outlook 2011-2020. Os preços do açúcar são bastante voláteis, influenciados tanto por fatores de oferta (safras, problemas climáticos, custos de produção, alternativas de uso da cana, como o etanol etc.) como fatores de demanda e diferenças entre produção e consumo e a disponibilidade de estoques (MCCONNELL, DOHLMAN & HALEY, 2010; RUMÁNKOVÁ & SMUTKA, 2013). O comércio mundial do açúcar tem se caracterizado pela concentração da exportação em poucos países – em geral os maiores produtores, como o Brasil e a Índia. Mas além disso, o mercado é controlado por poucas empresas compradoras e comerciantes. Segundo um estudo de 2013 da FAIRTRADE FOUNDATION (2013: pp. 8-9), dois terços do mercado mundial são controlados por 6 grandes companhias (traders): Czarnikow, sediada na Inglaterra, que controla cerca de 18% do comércio mundial e 30% do açúcar e etanol brasileiros; Sucden, sediada na França, que controla cerca de 10% do mercado mundial; Louis Dreyfus, sediada na França, que também é uma das maiores traders de commodities; Cargill, estadunidense; ED&F Man, sediada na Inglaterra; e Bunge, dos EUA, que adquiriu em 2009 o área de negócios de açúcar da inglesa Tate & Lyle’s. 183 Gráfico A.4. Açúcar – Produção e exportações mundiais por país (%) – 2010 Fonte: USDA – U.S. Department of Agriculture (elaboração própria) O Brasil não é apenas o maior produtor, como é também o maior exportador. Enquanto que entre as safras de 1999-2000 e a de 2012/2013 a produção cresceu 28%, o consumo cresceu 29% e as exportações cresceram 41%. Isso revela o dinamismo do comércio internacional, que cresceu acima da produção e do consumo. O Brasil entrou nesse movimento e ampliou sua participação na produção e nas exportações totais, crescendo, respectivamente, de 15% e 27% na safra de 1999-2000 para 21% e 43% na safra 2011-2012, sendo que chegou a 47% das exportações mundiais em 2009-2010. 184 Gráfico A.5. Açúcar – Brasil na produção, consumo e exportações mundiais (%) Fonte: Elaboração própria com dados do USDA (U.S. Department of Agriculture) Para ter uma dimensão do negócio, o valor médio das exportações por tonelada no Brasil partiu de um patamar inferior a US$200/ton. e chegou a mais de US$500/ton em 20112012. Embora tenha crescido menos que as exportações, a variação de valor médio ao exportador chega a 2,5. Tabela A.3. Açúcar – Exportações Brasileiras (Índice: 2000=100) 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Quant. (mil ton.) 6.502 11.173 13.354 12.914 15.764 18.147 18.870 19.359 19.472 24.294 28.000 25.357 24.342 US$(FOB) 1.199 2.279 2.094 2.140 2.640 3.919 6.167 5.100 5.483 8.378 12.762 14.940 12.845 US$/ton 184 204 157 166 167 216 327 263 282 345 456 589 528 Quantidade 100 172 205 199 242 279 290 298 299 374 431 390 374 Exportações 100 190 175 178 220 327 514 425 457 699 1064 1246 1071 US$/ton 111 85 90 91 117 177 143 153 187 247 319 286 100 Fonte: Unicadata (elaboração própria) Etanol Em contraposição, no setor de etanol, o Brasil perdeu participação no total. Embora seu crescimento na produção física do setor tenha sido persistente ao longo da década, o Brasil 185 perdeu sua posição de maior produtor mundial para os EUA, caindo de 36% da produção mundial em 2013 para 49% em 2012. Ao longo da década, diversos países implementaram e apontam a continuidade da implementação de políticas de incentivo à produção ou ao consumo de fontes de energia renovável, dentre elas os biocombustíveis como o etanol160. O caso dos EUA é paradigmático, pois implementaram uma série de incentivos na segunda metade da década de 2000 para estimular o setor, o que explica seu crescimento. O Brasil, herdando o legado do Proálcool (base técnica e produtiva preexistente) despontou em 2006-2007 como grande produtor, mas o setor recaiu em uma nova crise, como veremos adiante. Gráfico A.6. Etanol – Produção mundial (milhões de litros) Fonte: OCDE-FAO Agricultural Outlook 2011-2020 (elaboração própria) A produção de etanol foi crescente, tendo uma queda no final da década por problemas climáticos, alta dos preços do açúcar, preços baixos do etanol e as baixas margens ao produtor. A queda na demanda pelo etanol como combustível (etanol hidratado) pode ser vista pela queda na sua produção, permanecendo estável a produção do etanol misturado à gasolina (etanol anidro) – ver gráfico abaixo. O gráfico seguinte mostra as vendas de etanol (incluindo etanol hidratado mais o anidro adicionado à gasolina C) e as de gasolina automotiva, revelando a reversão, entre 2009 e 2010, da tendência de maior consumo do etanol como combustível. 160 Ver o World Energy Outlook de 2012, capítulo 7, “Renewable energy outlook” (IEA, 2012). 186 Gráfico A.7. Etanol – Produção brasileira, 2002-2011 (milhões de m³) Fonte: Anuário Estatístico ANP, 2012. Gráfico A.8. Vendas de etanol1 e gasolina automotiva2 no Brasil (mil m³) (1): Inclui o etanol anidro adicionado à gasolina C; (2) Exclui o etanol anidro adicionado à gasolina C; Fonte: Anuário Estatístico ANP, 2012. 187 A queda na produção levou a um resultado espantoso no final da década. O país, que sempre foi um dos maiores exportadores do mundo, passou a importar etanol em 2011. O saldo, que chegou a mais de 5 milhões de m³ em 2008, chegou a menos de 1 milhão em 2011. Gráfico A.9. Etanol – Balança Comercial Brasileira (em milhões de m³) Fonte: Elaboração própria com dados da ANP. A crise no setor Desde 2009 está em debate entre os produtores e os analistas do setor a avaliação de uma crise persistente no setor sucroalcooleiro, em particular no ramo do etanol. Dentre as diversas leituras, citamos: o estudo da CONAB (2010), que aponta a existência de custos crescentes do capital de giro para formação de estoques, uma muito baixa taxa de remuneração nas safras 2007-2008 e 2008-2009 e uma posição passiva dos produtores frente aos distribuidores, que impõe pequena participação na margem obtida no preço ao consumidor final. Vários fatores concorrem para o problema, como a crise mundial, que reduziu a liquidez e ampliou os juros, o sobre-endividamento de várias empresas, a queda de preços originada pela liquidação desordenada da produção e estoque por algumas empresas e os erros de previsão que levaram em conta um otimismo quanto ao futuro do setor. Duas reportagens – na Revista Exame (BRANDÃO, 2012) e na BBC Brasil (BARBA, 2013) – apontaram outros fatores causadores da crise: a) falta de planejamento a longo 188 prazo do setor, que o torna vítima das flutuações de curto prazo (como a mudança da prioridade do governo do etanol para o petróleo, após a descoberta do Pré-Sal); b) a contenção do preço da gasolina pelo governo, como forma de limitar a inflação (mesmo a despeito das necessidades de financiamento da Petrobrás para arcar com a gigantesca carteira de investimentos); desde 2009 o etanol possui preço maior que 70% do preço da gasolina (proporção em que os combustíveis teriam rendimentos equivalentes); c) queda de produtividade devido à crise de crédito, à transição para a colheita mecanizada, às pressões de custos, inadequação de variedades de plantas às diferentes regiões. Os dados indicam queda de produtividade física de 90 ton./hectare em 2009 para 69 ton./hectare em 2011, ou ainda 86,6 ton./hectare em 2006 para 74,7 em 2012 (Exame e BBC, respectivamente); d) questões climáticas; e) ampliação da produção de etanol anidro, misturado à gasolina, impondo a redução da produção de etanol hidratado (cf. BRANDÃO, 2012; BARBA, 2013). Para o setor de etanol ter se revitalizado, o decisivo parece ser quando o combustível se torna competitivo frente à gasolina. Durante a vigência do Proálcool, havia incentivos governamentais tanto na oferta (plantação e usineiros) como na demanda (automóveis movidos à etanol). O importante, nesse caso, foi a existência de uma segmentação entre veículos movidos a etanol e os movidos a gasolina. Desde os anos 1990, a demanda por etanol caiu junto com a produção e o combustível só passou a der novamente demandado nos anos 2000, quando a novidade tecnológica que representou o motor flex fuel deu novo impulso. Contudo, em sendo substituto da gasolina, o etanol necessita para ser competitivo que os preços do petróleo e seus derivados estejam relativamente altos. Na ausência desse diferencial – que existiu nos anos 2000 com uma alta extraordinária do preço do petróleo –, o etanol tem dificuldades para ser competitivo. Isso pode ocorrer quando os preços dos derivados não sofrem variação correspondente ao preço internacional de demanda do petróleo, por objetivos de política econômica (como ocorre no Brasil). O controle de preços inviabiliza ou dificulta o setor etanol, enquanto que o aumento dos preços dos derivados significa um subsídio indireto ao setor161. 161 No últimos anos, existe um forte lobby para que o preço dos derivados tenha o repasse dos preços internacionais do petróleo. O problema é que, pelo menos no Brasil, os custos de produção dos derivados não são unicamente, nem talvez majoritariamente, vinculados ao dólar, tampouco ao preço internacional do petróleo. O repasse de preços faz sentido quando custos externos precisam ser repassados ou do ponto de vista do resultado econômico da empresa produtora (no caso brasileiro, a Petrobras produz petróleo e o refina) e dos seus acionistas. Com este comentário não 189 Gráfico A.10. Razão entre preços do etanol e da gasolina por regiões (2006-2013) Fonte: ANP (Elaboração própria) Em suma, o setor está atado a uma série de fatores que apontam para um cenário de alta incerteza. No início de 2013, o governo federal anunciou um pacote de apoio ao setor, incluindo o aumento da parte de etanol anidro adicionado à gasolina (de 20% para 25%), criação de créditos no PIS e na Cofins e redução das taxas de juros de linhas do BNDES. Como era de se esperar, a burguesia sucroalcooleira elogiou o suporte, mas demandou uma saída mais duradoura162. Enquanto não há mudança de cenário, o setor usufrui das linhas criadas pelo BNDES – cujos desembolsos ao setor atingiram R$ 6,9 bi em 2013 (estimado), contra R$ 4,2 em 2012 (BATISTA, 2014). A persistência da crise indica que a competitividade do etanol a longo prazo exige um compromisso do governo com o setor, o que significa a manutenção permanente de apoios diretos ou indiretos – o que certa forma o próprio setor admite (SILVA, 2013). Sem o suporte estatal, o setor entra em crise, o que poder visto nas projeções do próprio BNDES para os investimentos no setor, que despencaram, como se vê no gráfico abaixo. se objetiva entrar a fundo em uma questão conjuntural, nem avaliar se há acerto ou erro do governo, mas unicamente de mostrar que a viabilidade do etanol é ligada a decisões políticas. 162 Anúncio do pacote: http://www2.planalto.gov.br/imprensa/noticias-de-governo/governo-anuncia-medidas-deincentivo-para-setor-sucroalcooleiro-e-industria-quimica. Para a posição da UNICA: http://www.unica.com.br/noticia/38837884920338370133/unica-ve-pontos-positivos-em-decisoes-anunciadas-pelogoverno-por-cento2C-e-ressalta-importancia-de-busca-permanente-por-medidas-de-longo-prazo/ 190 Tabela A.4. Projeção de investimentos em diversos setores para o período 2013-2016 Fonte: BNDES (2013) 3.2. Distribuição de Combustíveis A apresentação deste setor focará apenas os dados principais que podem mostrar a importância e a dinâmica que o setor de distribuição de combustíveis terá para o grupo Cosan. O fato mais importante do setor é que ele movimentou um volume crescente em ritmo muito acelerado, acompanhando o consumo de veículos automotores. Entre 2002 e 2011, o consumo de derivados de petróleo cresceu ao ano em média 2,8%, sendo que a gasolina C cresceu mais, cerca de 4,6% ao ano em média. Tabela A.5. Vendas Nacionais pelas distribuidoras - principais derivados de petróleo Fonte: ANP (2012). 191 Já o segmento de etanol se divide em dois. O Etanol anidro, misturado à gasolina, tem aumento de vendas proporcional ao da Gasolina C (4,6%). Já o Etanol Hidratado, vendido como Etanol Combustível (Álcool), cresceu 11,1% ao ano em média, sendo que houve uma queda muito grande entre 2009 e 2011 – a taxa de 2001 até 2009 teria sido 20,2% ao ano. Tabela A.6. Vendas Nacionais pelas distribuidoras – etanol hidratado Fonte: ANP (2012). Trata-se de um negócio relativamente seguro, uma posição de intermediário. O que mede a capacidade de uma empresa obter mais ganhos no negócio é o seu tamanho e eficiência operacional, já que as margens não são altas. Ainda assim, o setor se comporta como oligopsonista frente ao mercado de etanol (no mercado de derivados do petróleo, só há um vendedor, a Petrobras). Na tabela abaixo, vemos como o mercado é concentrado e como ocorreram aquisições e fusões (destaque para a compra dos ativos da Esso pela Cosan e a união da Shell e Cosan no ano seguinte, que originou a Raízen). Tabela A.7. Mercado de distribuição de combustíveis no Brasil – principais empresas (*) Na rubrica “Outros” no item “Postos revendedores” estão incluídos postos “bandeira branca” Óleo Diesel 2009 2010 Gasolina C 2011 2009 2010 Etanol Hidratado 2011 2009 2010 2011 Postos Revendedores 2009 2010 2011 BR 34,9% 40,6% 40,2% 26,0% 29,7% 29,8% 19,3% 21,2% 21,3% 17,0% 19,9% 19,9% Ipiranga 18,0% 22,3% 23,0% 13,2% 19,6% 20,0% 11,5% 16,5% 16,4% 10,7% 13,4% 13,8% Raízen 0,0% 0,0% 14,7% Shell 9,6% 9,7% 0,0% Cosan 0,0% 5,8% 0,0% 0,0% 6,7% 0,0% 0,0% Esso 4,5% 0,0% 0,0% 6,9% 0,0% 0,0% 4,9% Chevron 8,2% 0,0% 0,0% 8,9% 0,0% 0,0% Alesat 3,0% 3,0% 2,9% 5,9% 5,7% 5,3% Outras(*) 21,8% 18,6% 19,2% 0,0% 0,0% 17,5% 11,2% 11,2% 0,0% 27,9% 27,1% 27,4% 0,0% 0,0% 18,0% 0,0% 0,0% 9,5% 0,0% 5,5% 5,8% 0,0% 5,1% 0,0% 0,0% 4,0% 0,0% 0,0% 0,0% 4,0% 0,0% 0,0% 6,8% 0,0% 0,0% 5,5% 0,0% 0,0% ND 2,2% 2,2% 2,9% 3,6% 3,6% 12,4% 13,2% 45,1% 41,8% 42,1% Fonte: ANP, diversos anos (elaboração própria) 192 54,4% 53,3% 53,2% 4. Crescimento e transformações A trajetória do grupo Cosan nos anos 2000 pode ser descrita em duas fases: o período de crescimento dentro do setor sucroalcooleiro e atividades correlatas, através da aquisição – alavancada – de usinas concorrentes; e o período de diversificação para outros setores muito distintos até a formação da joint-venture Raízen com a Shell, representando a incapacidade mesmo do líder do ramo de açúcar e etanol se manter no negócio sem outros suportes, que são o grande capital internacional e o Estado. O paradoxo é como uma empresa que foi a maior do mundo no ramo e se tornou a primeira integrada com distribuição de etanol (e demais combustíveis) fez uma operação de associação que representa uma potencial venda futura do negócio, sua saída do mesmo ramo, considerado uma “montanha-russa” nas palavras do controlador da Cosan163. O resultado é uma fuga para setores mais estáveis. As características técnicas do setor sucroalcooleiro (ver mais detalhes no item “Base produtiva”) implicam uma dificuldade de aumentar a escala produtiva das usinas, o que exige que, para se crescer no setor, sejam construídas novas usinas ou adquiridas usinas existentes. A segunda opção foi o caminho estratégico da Cosan para se tornar a maior no ramo, aproveitando a possibilidade de tirar proveito de ganhos de escala gerenciais e logísticos. Ao longo da década de 2000, só para mencionar os exemplos mais relevantes, a Cosan adquiriu as Usinas Rafard, Gasa, Univalem, Dois Córregos, da Barra e Junqueira (20002004), Mundial e Destivale (2005), Bom Retiro, Tamoio e Bonfim (2006), Santa Luiza (2007) e Benálcool (2008). Em 2009, adquiriu o grupo NovAmérica S.A. Agroenergia em 2009 com 3 usinas, 1 projeto greenfield em Caarapó (MS), duas refinarias de açúcar, quatro empacotadoras de açúcar e as marcas União, Dolce, Neve e Duçula. Além disso, inaugurou 1 nova usina em Jataí (GO) em 2009 como uma das mais modernas do mundo). Para se ter uma noção da importância que as aquisições têm para o resultado final da Cosan no setor, analisemos sua capacidade física. Tomemos como indicador de produção física a capacidade diária de moagem de cana que, em 2009, era de 310,9 mil toneladas/dia 164. Desta capacidade total: (i) apenas 75,4 mil ton./dia (24,3%) correspondem à capacidade (em 2009) de 163 164 Cf. Onaga (2013) Cálculo realizado com base nos dados do Relatório Anual da Cosan de 2009. 193 usinas que a Cosan possuía antes dos anos 2000; o restante corresponde à capacidade de usinas adquiridas ou novas; e (ii) somente 9,4% correspondem à capacidade das usinas (duas) novas construídas pela empresa (greenfield) na década de 2000. Portanto, 66,4% da capacidade diária de moagem da companhia em 2009 correspondia à capacidade de usinas adquiridas ao longo dos anos 2000. Os dados para análise da Cosan são baseados em Relatórios que começaram a ser publicados em 2007, quando a companhia abriu capital. Portanto, os dados iniciais, referentes a 2006, já representam uma boa parte das aquisições feitas na primeira metade da década. No final da década, a Cosan já colecionada títulos de liderança no setor165. Gráfico A.11. Cosan – Receita Operacional Líquida (ROL) por atividade no segmento Açúcar e Etanol (R$ milhões) Fonte: Elaboração própria com dados dos Relatórios Anuais e de Administração da Cosan. 165 A Cosan já era em 2009 a maior exportadora mundial de açúcar, maior produtora de etanol a partir da cana-deaçúcar e maior geradora de energia a partir do bagaço da cana-de-açúcar. Em 2011/12, já era a maior empresa do setor de energia renovável, uma das maiores distribuidoras de combustíveis do Brasil; maior produtora de cana-deaçúcar, etanol e cogeração de energia do Brasil, uma das maiores do mundo; maior transportadora e operadora portuária de açúcar no mundo; e foi líder de mercado varejista de açúcar no Brasil (30% de market-share), negócio vendido em 2012. 194 Como foi explicado no item anterior “Mercados”, o padrão de vendas dos mercados é marcado pela proeminência dos mercados externos para o açúcar e dos internos para o etanol. Como se vê na tabela abaixo, é exatamente este o padrão de vendas da Cosan no setor sucroalcooleiro. Além dos dois principais produtos, as usinas passaram a apostar pesado na produção de energia elétrica a partir de termoelétricas movidas pela queima do bagaço da canade-açúcar, obtendo rendimentos adicionais expressivos economizando gastos com, energia e chegando a vender seu excedente (a atividade chegou a 3,2% da Receita operacional líquida no ramo em 2012). Do ponto de vista das subdivisões do ROL, a há forte estabilidade na proporção entre açúcar e etanol e entre mercado interno e externo. Tabela A.8. Cosan - Receita Operacional Líquida do setor Açúcar e Álcool (%) 2006 2007 2008 2009 2010(*) 2011(*) 2012(*) Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% Açúcar 60,1% 61,4% 52,2% 56,7% 62,8% 60,3% 54,0% .Mercado Interno 11,8% 9,4% 9,0% 7,3% 19,7% 21,7% 16,8% .Mercado Externo 48,3% 51,9% 43,2% 49,4% 43,0% 38,6% 37,2% Etanol 34,6% 32,9% 40,9% 36,9% 32,5% 34,5% 39,6% .Mercado Interno 28,6% 24,6% 29,6% 24,3% 24,6% 30,7% 31,0% .Mercado Externo 6,0% 8,2% 11,3% 12,6% 7,8% 3,8% 8,6% Cogeração 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 1,7% 2,9% 3,2% Outros Produtos e Serviços AA 5,3% 5,7% 6,9% 6,4% 3,0% 2,3% 3,1% Mercado Interno 45,7% 39,8% 45,5% 38,0% 49,1% 57,6% 54,2% Mercado Externo 54,3% 60,2% 54,5% 62,0% 50,9% 42,4% 45,8% Observações: (*) Dados da Raízen Fonte: Elaboração própria com dados dos Relatórios Anuais e de Administração da Cosan. Apesar da posição de liderança em números absolutos166, a Cosan opera em um segmento (produção) que se mostra um elo frágil da cadeia. Em ambos os produtos, o usineiro 166 No setor açúcar, a Cosan está assim localizada: no plano internacional, ela saiu de 2,9% das exportações (2002/2003) para chegar a 5,6% (2008/2009/2010) e depois 4,9% (2012/2013); chegou a 2,6% da produção mundial em 2010/2011; e no plano nacional, chega a produzir perto de 11% de toda a produção em 2010/2011. Já no setor etanol, a Cosan também é relevante no mercado brasileiro, produzindo entre 8% e 10% do etanol entre 2010 e 2011; sua produção equivale a mais de 2,0% de todo o etanol produzido no mundo no mesmo período. 195 depende da demanda e basicamente mobiliza apenas seus custos de produção (terras, salários, capital fixo, energia e cana-de-açúcar) e se depara com as condições desfavoráveis de barganha na venda. Como visto no item “Mercados”, os fatores de oferta do setor são corresponsáveis pela crise atual, em especial safras ruins, mudança para a mecanização da colheita (ainda menos produtiva que a manual) etc., além dos custos financeiros. E também foi visto que ambos os mercados são concentrados nas mãos de poucas empresas – e com a Cosan não é diferente, conforme dados da própria empresa: Tabela A.9. Cosan – Principais compradores de Açúcar (%) Açúcar 2006 2007 2008 2010-2011 Externo Sucres et Denrées (Sucden) 33,7% 33,3% 23,6% 33,4% Coimex Trading Ltd 11,3% 11,5% 6,9% S.A. Fluxo 0,8% Tate & Lyle International 10,0% 5,3% 9,2% 5,3% Cane International Corporation 12,8% 2,2% 7,2% - Cargill International S.A. - - 4,8% Total Externo 68,6% 61,8% 58,1% 56,1% 9,5% - 12,6% 11,2% - Fonte: Elaboração própria com dados dos Relatórios Anuais e de Administração da Cosan. 196 Tabela A.10. Cosan – Principais compradores de Etanol (%) Etanol Externo Interno 2006 2007 2008 2010-2011 Vertical UK LPP 9,3% 11,6% 13,6% 8,0% Kolmar Petrochemicals 0,3% 6,2% - - Vitol Inc. - - 3,5% - Morgan Stanley Capital Group - - 2,9% - Alcotra S.A. 5,8% - - - Mitsubishi Corporation - - - 2,0% Total Externo 15,4% 17,8% 20,0% 10,0% Shell Brasil Ltda. 27,8% 14,8% 20,1% 15,0% Petrobrás Distribuidora S.A. 12,0% 9,2% 8,0% 17,0% Manancial Distribuidora de Petróleo Ltda. 2,3% 8,2% - - Euro Petróleo do Brasil Ltda. - - 14,3% 7,0% Cia Brasileira de Petróleo Ipiranga - - 6,1% 15,0% Tux Distribuidora de Combustíveis Ltda - - 5,7% - Cosan Combustíveis e Lubrificantes S.A. - - - 5,0% Braskem S.A. - - - 4,0% Total Interno 42,1% 32,2% 54,2% 63,0% TOTAL 57,5% 50,0% 74,2% 73,0% Fonte: Elaboração própria com dados dos Relatórios Anuais e de Administração da Cosan. A organização da empresa no ano de 2007 mostra bem o que era a Cosan ainda baseada no setor sucroalcooleiro, o primeiro período de análise. Além do setor base, a empresa já possuía atividades logísticas (terminais portuários) que dariam origem à controlada Rumo Logística (ver adiante em “Base produtiva”). 197 Figura A.1. Organograma das atividades da Cosan em 2007 Fonte: Cosan, Relatório Anual de Desempenho, 2007. A mudança de perfil da Cosan se iniciou em dezembro de 2008, quando adquiriu os ativos da Esso no Brasil, que incluíam a distribuição de combustíveis e a produção e distribuição de lubrificantes. Em 2009, primeiro ano em que os dados relativos à distribuição de combustíveis entraram nos balanços, a Cosan passou a ter metade das receitas líquidas neste novo segmento, fatia que só cresceu adiante, após a constituição da Raízen. 198 Tabela A.11. Cosan - Receita Operacional Líquida (ROL) por segmento (%)167 Obs.: a) Não inclui ativos de Combust./Lubrif.; (b) Inclui 100% da ROL Raízen; (c) Inclui 50% da ROL Raízen. 2006 2007 2008(a) 2009 2010 2011 2012(b) 2012(c) Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% Açúcar 60,1% 61,4% 52,2% 28,8% 22,0% 21,3% 8,5% 7,9% Etanol 34,6% 32,9% 40,9% 18,8% 11,4% 12,2% 6,3% 5,8% Cogeração 0,0% 0,0% 0,0% 0,2% 0,6% 1,1% 0,5% 0,5% Outros AA 0,0% 0,0% 6,9% 2,1% 1,0% 0,8% 0,5% 0,5% Venda de Combustível 0,0% 0,0% 0,0% 46,2% 61,5% 60,4% 76,4% 70,8% Venda de Lubrificantes 0,0% 0,0% 0,0% 3,0% 0,4% 4,6% 2,2% 4,1% Outros CL 0,0% 0,0% 0,0% 0,4% 0,5% 0,4% 2,2% 4,1% Logística 0,0% 0,0% 0,0% 0,9% 1,0% 2,5% 1,2% 2,3% Alimentos 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 4,9% 2,0% 3,8% Outros 5,3% 5,7% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,1% 0,2% Elimin. de consolidação 0,0% 0,0% 0,0% -0,3% -2,3% -3,2% 0,0% 0,0% Fonte: Relatórios Anuais e de Administração da Cosan (Elaboração própria). Em tese, um dos problemas típicos do usineiro, a posição desfavorável no setor mais problemático, o de etanol, estaria parcialmente resolvida na Cosan, uma vez que a integração com a distribuição compensaria os baixos preços obtidos juntos aos distribuidores em geral. Quando o salto para uma possível gigante do setor despontava como possiblidade, ocorreu a formação da Raízen. Em 2010, a Cosan e a Shell constituíram uma joint-venture chamada Raízen, unindo os seus ativos no setor sucroalcooleiro (somente Cosan) e no setor de distribuição de combustíveis, com percentuais do capital (50%) iguais para os dois lados. Foram criadas duas subdivisões, a Raízen Energia (sucroalcooleira), com 51% do capital da Cosan, e a Raízen Combustíveis, com 51% do capital para a Shell. O mais importante, contudo, são os termos da constituição da empresa: o Acordo Vinculante para criação da Joint-Venture, de 25/08/2010, garante à Shell a possibilidade de compra da participação da Cosan em 2020, embora o contrário 167 Note-se que ainda não foram incluídos aí as receitas da Comgás. Se adicionássemos a Comgás e retirássemos a Cosan Alimentos do total, a ROL da Comgás significaria 19% em 2011 e 18% em 2012 da ROL total, próximo do negócio da Raízen Energia (Açúcar e Etanol). 199 possa ocorrer em 2025 (caso a Shell não compre integralmente a participação da Cosan) 168. Em reportagem da Revista Exame em 16/05/2012 sobre o grupo Cosan, é citado o analista Salim Morsy, da Bloomberg New Energy Finance, que afirma que “[o] acordo parece mais uma operação de aquisição do que uma joint-venture” (ONAGA, 2012). Trata-se de um marco divisor da estratégia do grupo que nos anos seguintes só faz progredir: a busca por estabilidade e segurança. Após um período de crescimento em cima da especulação no setor sucroalcooleiro, apoiado em crescentes empréstimos no mercado internacional (ver “Base financeira” adiante), a Cosan não sobrevive à crise instaurada no setor e se apoia no grande capital internacional. Aparentemente, o setor sucroalcooleiro, ou pelo menos o segmento do etanol, não possui uma capacidade de existência própria sem um largo suporte do Estado, como ocorreu no período do Proálcool. O peso das oscilações do negócio seria demais para um capital brasileiro, mas não para um grupo do porte da Shell – que tem poder financeiro para suportar uma série de pequenos negócios (para seu tamanho) de energia alternativa, dos quais possa se livrar no futuro, se assim achar melhor. Para a Cosan, o ramo de açúcar e álcool é uma “montanha-russa” (ONAGA, 2012). Em consonância com a estratégia de segurança, a Cosan: Retirou-se do setor de alimentos. Nele, ela possuía cerca de 40% do mercado de varejo de açúcar em 2011 e grandes marcas (União e Da Barra). Em outubro de 2012, ela sai do negócio, inicialmente (maio/2012) por uma troca do controle da Cosan Alimentos por dinheiro mais uma participação minoritária na Camil, e em seguida (outubro), a Cosan decidiu alienar completamente suas atividades no varejo de alimentos por R$ 463,8 mi para focar em energia e infraestrutura. Entra no ramo de distribuição de gás: em novembro de 2012, com a aprovação da compra de 60,1% da participação da British Gas (BG) na Comgás pelo valor de R$ 3,4 bi. A empresa é o maior distribuidor do país, atendendo a 1 milhão de consumidores no estado de São Paulo. O outro grande controlador é a Shell. 168 “A Cosan e a Shell concederão uma a outras opções de compra recíprocas. No 10º aniversário do Fechamento, a Shell terá uma opção para compra de metade ou da totalidade da participação da Cosan na Joint Venture proposta. Caso a Shell opte por exercer tal opção, a Cosan terá o direito de decidir se irá vender metade ou a totalidade de sua participação na JV proposta. No 15º aniversário do Fechamento, uma parte terá o direito de comprar a totalidade ou uma parcela da participação da outra companhia na Joint Venture proposta.” (Fato Relevante da Cosan de 25/08/2010). 200 Busca reforçar sua posição na área de logística ligada à distribuição e exportação de commodities: através da Rumo Logística, controlada criada em 2008 para reunir atividades de transporte ferroviário, dutoviário hidroviário e portuário de açúcar, álcool e outros produtos. Em 2013 tentou adquirir controle da América Latina Logística – ALL, importante concessionária de ferrovias no Brasil, inicialmente sem sucesso, mas com um horizonte positivo para breve após a intervenção do governo na questão169. Observando as margens brutas de cada um dos segmentos em que passou a atuar, é possível entender as razões da diversificação radical da Cosan: Tabela A.12. Cosan – Margem Bruta por segmento Total do Grupo Açúcar Etanol Combustíveis e Lubrificantes Venda de Combustível Venda de Lubrificantes Logística Alimentos Distribuição de Gás Natural 2006 30,5% ND ND ND ND ND ND ND ND 2007 31,2% ND ND ND ND ND ND ND ND 2008 12,8% 12,7% 10,9% ND 5,0% 39,1% ND ND ND 2009 12,7% 27,3% 7,4% 6,1% 3,9% 27,5% 25,6% ND ND 2010 13,9% 37,4% 0,1% 7,6% ND ND 27,0% ND ND 2011 10,9% 32,3% 8,5% ND 4,3% ND 29,4% 23,6% 27,0% 2012 10,7% 28,4% 14,5% ND 5,6% ND 31,1% 20,1% 26,5% Fonte: Relatórios Anuais e de Administração da Cosan (Elaboração própria). Em suma, os movimentos da segunda fase da Cosan mostram uma opção estratégica pelo agronegócio mais simples ou “bruto” – a produção e comercialização de açúcar sem passar por processamento de alimentos; associação ao capital internacional no setor sucroalcooleiro, “alugando” suas operações e projetando sua venda futura; exploração de transporte de commodities para exportação (especialmente, ainda que não só). Além disso, a Cosan busca 169 Uma disputa pelo controle da ALL e uma briga judicial por causa de contratos da ALL com a Rumo Logística poderá chegar ao fim através da intervenção do governo Dilma. No início de 2014, o governo, em busca de intensificar os investimentos em concessões e ferrovias, passou a operar a entrada da Cosan no bloco controlador da ALL e mesmo a sua tomada do controle da empresa (BITENCOURT & RITTNER, 2014). 201 aproveitar oportunidades de ativos com alta rentabilidade e absoluta segurança, como é o caso da intermediação (distribuição) de combustíveis e de gás (Comgás). No fim, a estrutura de controle da Cosan ficou como a figura abaixo, retirando-se o setor de alimentação e adicionando-se o de gás natural: Figura A.2. Organograma das atividades da Cosan em 2011(*) Fonte: Cosan, Relatório Anual de Desempenho, 2011. 5. Base Produtiva Além do setor sucroalcooleiro e da distribuição de combustíveis, a Cosan opera também em outros quatro setores diferentes: lubrificantes, imobiliário rural, logística para açúcar, etanol e outras commodities e distribuição de gás natural, que serão mais detalhados neste item. Adiante, estão os organogramas da Cosan, representando os ramos de atividade em que atua, que serão melhor explicados nos itens a seguir. 202 Figura A.3. Organograma de atividades do grupo Cosan em 2008 Fonte: Cosan, Relatório Anual de Desempenho 2008. 203 Figura A.4. Organograma de atividades do grupo Cosan em 2011 Fonte: Cosan, Relatório Anual de Desempenho 2011. 5.1. Setor sucroalcooleiro Do ponto de vista técnico, o setor sucroalcooleiro é relativamente simples. Depende, fundamentalmente, da localização das unidades produtivas, o que deve incluir tanto o acesso à infraestrutura de escoamento (rodovias, ferrovias ou dutovias), bem como – e especialmente – o acesso à cana-de-açúcar produzida em terras próprias ou de terceiros. Como o acesso à produção de terceiros é disputada entre usinas concorrentes, é fundamental que o acesso à produção, e 204 portanto à terra, seja coordenado ou comandado pela usina. Portanto, o acesso à terra é o ativo mais importante no negócio, o que não é trivial no Brasil. Junto com a terra, é decisivo o acesso à força de trabalho barata para o trabalho de colheita (embora haja diminuição com a progressiva mecanização) e operária (sendo parte com alguma qualificação) nas usinas. A tecnologia para plantio e colheita e para construção e operação das usinas é relativamente livre, passível de aquisição no mercado de empresas de engenharia, fornecedores de máquinas e equipamentos e sistemas. Do ponto de vista dos recursos aplicados, um termômetro é o custo de nova unidade: uma nova usina moderna (alto nível de mecanização) custa por volta de US$ 300 milhões (Usina Jataí em Goiás, da Cosan170). Por fim, certamente há ganhos de escala na atividade administrativa e de suporte aos negócios, do ponto de vista técnico, comercial e financeiro – algo que o grupo Cosan conseguiu explorar bem. O negócio central da Cosan até 2009 é, devido à base agrícola e sazonal da produção da matéria-prima, estruturalmente instável171. As característica técnicas do setor sucroalcooleiro impõem uma dispersão das unidades produtivas – e consequentemente da estrutura de propriedade das unidades (em 2010/2011, a Cosan atingiu somente 11% da produção brasileira e foi a maior empresa do setor). Isso impede os ganhos de escala e a concentração do capital. Tais características também implicam dificuldades logísticas (espaço e ao longo do tempo) e financeiras para o abastecimento de matérias-primas e para a estocagem dos produtos. As únicas novidades surgidas no setor foram a consolidação das vendas líquidas de energia elétrica obtidas via cogeração (usinas termelétricas movidas com a queima do bagaço da cana) e, ainda iniciando em escala comercial, o etanol de 2ª geração (aumento da produtividade do processo produtivo com o uso do bagaço na produção de mais produto). Em 2009, a Cosan possuía 21 usinas produtoras no estado de São Paulo (principal produtor nacional de cana-de-açúcar), uma usina em Goiás e uma no Mato Grosso do Sul, totalizando 23 unidades. Como mostrado em tabela anterior, a Cosan vende mais açúcar para o mercado externo e mais etanol no mercado interno. Esta divisão é mais acentuada quando se tratam de vendas físicas: 170 171 Vide formulário 20-F da Cosan de 2009. Vide CONAB (2010). 205 Tabela A.13. Cosan – Vendas físicas por mercado (%) Açúcar 2002 2003 Doméstico 3,0% 17,0% 15,0% 15,0% 17,0% 13,5% 15,4% 11,7% 25,5% 28,9% 28,3% Exportações 97,0% 83,0% 85,0% 85,0% 83,0% 86,5% 84,6% 88,3% 74,5% 71,1% 71,7% 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2010/11 2011/12 Etanol 2002 Doméstico 80,0% 83,0% 83,0% 64,0% 77,0% 79,2% 73,5% 69,5% 72,6% 88,5% 79,9% Exportações 20,0% 17,0% 17,0% 36,0% 23,0% 20,8% 26,5% 30,5% 27,4% 11,5% 20,1% 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2010/11 2011/12 Fonte: Elaboração própria com dados dos Relatórios Anuais e de Administração da Cosan. 5.2. Distribuição de combustíveis No setor de distribuição de combustíveis, a Cosan, antes mera produtora de etanol submetida ao pequeno grupo de distribuidores que comandam as compras no mercado, passou a participar do setor. Primeiro com a constituição da Cosan Combustíveis e Lubrificantes com a compra dos ativos da Esso, depois com a constituição da Raízen, com a Shell. A receita operacional líquida de 2009 do grupo Cosan (com a consolidação de apenas 4 meses do negócio) praticamente dobrou, com o setor de combustível e lubrificantes representando metade disso. A ROL foi de R$ 2,9 bi em 2009 a R$ 10,9 bi em 2010. Com o ingresso dos ativos da Shell, o ROL total da Raízen foi de R$ 35,1 bi. Trata-se de um negócio bastante estável e, mesmo com a margem bruta reduzida, é fonte de uma massa de lucros considerável em se tratando dos grandes distribuidores. E as tendências para o futuro são de continuidade de expansão da frota brasileira: projeções da CNI e da Anfavea (CNI, 2012) apontam que o número de veículos produzidos saltará de 3,8 milhões em 2012 para 6,3 milhões em 2020. A Cosan participou de um processo de centralização dos ativos do setor de distribuição de combustíveis no Brasil. Em 2008, além da venda dos ativos da Esso para a Cosan, a Chevron (Texaco) vendeu seus ativos para o grupo Ultra (controlador do distribuidor Ipiranga). Em 2011, foi a vez da Shell juntar os ativos com os da Cosan na constituição da Raízen. Atualmente, há três grandes distribuidores no brasil, na ordem: BR Distribuidora, Ipiranga e Raízen. Em seguida não há nenhum grupo sozinho que sequer chegue perto de 10% do mercado. 206 Tabela A.14. Distribuição de combustíveis – parcela do grupo Cosan e posição no mercado 2008: Esso 2010: Cosan 2011: Raízen Óleo Diesel 4,5% (5º) 5,8% (4º) 14,7% (3º) Gasolina C 6,9% (5º) 6,7% (4º) 17,5% (3º) Óleo Combustível 0,9% (5º) 0,8% (4º) 10,9%*(2º) QAV 10,8% (3º) 0,0%** (-) 35,4%* (2º) Etanol Hidratado 4,9% (5º) 5,1% (4º) 18,0% (2º) (*) Refere-se à participação da Shell; (**) Vendeu para a Shell. Fonte: Anuário Estatístico ANP, 2012. Como no ramo de açúcar e etanol, no de distribuição de combustíveis a proeminência da Cosan tem limites, quando a Shell puder fazer uso da opção de compra das ações da empresa em 2020. Ainda assim, o grupo pode permanecer um acionista minoritário da Shell e receber dividendos do negócio. 5.3. Lubrificantes No setor de lubrificantes, a Cosan opera através da sua empresa Cosan Lubrificantes e Especialidades, ou somente COSAN LE. Atuação iniciada no final de 2008 com a aquisição dos ativos da Esso (ExxonMobil), inicialmente estava abrigada sob a Cosan Combustíveis e Lubrificantes, tendo sido desmembrada posteriormente devido à união dos ativos de distribuição de combustíveis da Cosan com os da Shell para a formação da Raízen. Hoje, a Cosan LE se destaca no grupo Cosan como o primeiro ramo que logrou êxito na internacionalização produtiva e representa 2,2% a 4,1% da receita operacional líquida com margens brutas altas (pelos menos nos dados iniciais, 2009-2010, são relativamente bastante altas frente ao outros negócios). A Cosan importa e distribui óleos básicos da Mobil, possui uma fábrica de lubrificantes e graxas localizada no Rio de Janeiro e a licença para uso da marca Mobil e de suas formulações por 10 anos, renováveis por mais 10. A marca Mobil detinha cerca de 14,1% do mercado de lubrificantes no Brasil em 2011-2012, a segunda maior. Também fabrica, além da Mobil, lubrificantes de parceiros, como Toyota, John Deere, Caterpillar, Honda e SKF, de 207 aplicações industriais. Em 2011, a Cosan assumiu a distribuição de óleos básicos da ExxonMobil no Brasil. A internacionalização se deu por duas vias. Na primeira, a Cosan assumiu a distribuição exclusiva de lubrificantes da ExxonMobil na Bolívia, Paraguai e Uruguai, representando um aumento de 5% no volume de vendas da empresa. Na segunda, a Cosan LE adquiriu a Comma Oil & Chemicals, produtora e distribuidora de óleos lubrificantes localizada na Inglaterra. 5.4. Logística para açúcar, etanol e outras commodities No setor de logística para açúcar e etanol, A Cosan opera um negócio muito lucrativo (ver margens de lucro) com transporte, armazenagem e embarque portuário através da empresa Rumo Logística (fundada em 2008 através da fusão da Cosan Portuária e da Teaçu Armazéns Gerais). Este negócio é totalmente relacionado ao desempenho geral dos produtos exportados, que também inclui outras commodities agrícolas. No ramo de transporte e armazenagem, 60% do volume transportado é proveniente da Raízen Energia; o restante é de outras empresas, inclusive de outros produtos agrícolas como soja, farelo e grãos. Possui locomotivas e vagões próprios e acordo com a América Latina Logística (ALL) para uso das suas ferrovias. Investe atualmente também na construção de um alcoolduto com outras companhias produtoras de etanol para ampliar a competitividade do produto no mercado interno e externo. 208 Figura A.5. Mapa das principais operações da Rumo Logísitca em São Paulo Fonte: Relatórios Anuais da Cosan. Na área portuária, possui os antigos terminais da Cosan e da NovAmérica. Em 2009, adquiriu o controle do TEAS (Terminal Exportador de Álcool de Santos S.A.) comprando a parte da Rezende Barbosa (que ganhou 11% de participação na Cosan em troca); estima-se que a Rumo movimentou 46% do açúcar exportado por Santos e 31% da produção total brasileira da safra 2011-2012. Trata-se de um negócio profundamente vinculado à exportação de commodities. Tabela A.15. Rumo Logística – Receita Operacional Líquida (R$ MM) Elevação Transporte Outros Total 2010 140,1 16,1 156,3 2011 118,1 305,9 24,1 448,1 2012 141,0 413,4 17,6 572,0 Fonte: elaboração própria com dados dos Relatórios Anuais da Cosan 5.5. Imobiliário Rural A atuação organizada do grupo no setor imobiliário rural iniciou em 2008, com a criação da empresa Radar. Seu objetivo é prospectar terras com alto potencial de exploração agrícola, principalmente para a produção de cana-de-açúcar, soja, milho, algodão e eucalipto – no 209 fundo, especulação imobiliária. Para isso, utiliza conhecimento adquirido pelo grupo no setor agrícola, em especial o sistema de monitoramento via satélite, para identificar as áreas e associálas a cada cultivo. Identificadas a oportunidades, a empresa adquire as terras e as arrenda para grandes operadores ou as vende com grande valorização. Segundo os dados do Relatório Anual de 2011, a empresa já investiu US$ 400 milhões e administrava, naquele ano, 70 mil hectares de terras. O Relatório de Administração de 2013 informa que a empresa já administrava um portfólio de R$ 2,5 bilhões e área total de 107,5 mil hectares em seis estados. Em 2012-2013, teve receita operacional líquida de R$ 86,9 milhões, sendo R$ 22,1 milhões em vendas e R$ 64,9 milhões com arrendamento, obtendo uma margem bruta de 76,9%. 5.6. Distribuição de gás natural A atuação da Cosan no setor de distribuição de gás é muito recente: em novembro de 2012 o grupo adquiriu 60,1% da Comgás (pertencente ao grupo BG) e com isso o controle da companhia, que também tem como acionista a Shell, por meio da Shell Brazil Holding (6,3%) e da controlada Integral Investments BV (11,9%), além de 21,8% pulverizados no mercado. A Comgás tem origem mais remota nos serviços de iluminação pública de São Paulo, ainda no século XIX, como uma empresa inglesa chamada São Paulo Gas Company. Em 1912, ela foi adquirida pela canadense Light e em 1959 foi estatizada e chamada de Companhia Paulista de Serviços de Gás. Em 1968, seu controle foi repassado para o município de São Paulo (tornando-se Companhia Municipal de Gás, Comgás) e em 1984 seu controle foi assumido pela CESP, estatal do estado de São Paulo. A Comgás foi privatizada em 1999, adquirida pelos grupos Shell e BG (British Gas). Hoje, ela é a concessionária do serviço de distribuição de gás natural no estado de São Paulo, com contrato desde 1999 até 2029, com possibilidade de renovação por mais 20 anos. Tem uma carteira de 1,2 milhão de clientes e distribuiu 5,2 bilhões de metros cúbicos de gás natural em 2012. Para avaliar a dimensão do negócio, tomemos como base os dados da Cosan mostrados a seguir. A receita líquida da Cosan foi de R$ 23,4 bi e R$ 30,0 bi em 2012 e 2013, respectivamente; a da Comgás foi de R$ 4,1 bi e R$ 5,3 bi, respectivamente. O lucro líquido 210 ajustado (excluindo-se os efeitos da formação da Raízen) da Cosan foi de R$ 421,9 mi e R$ 638,2 mi em 2012 e 2013, enquanto que o da Comgás foi de R$ 236 mi e R$ 367 mi. Desta forma, os resultados da Comgás, que serão absorvidos parcialmente pela Cosan na proporção do seu controle, serão ainda assim significativos para o crescimento do grupo e, principalmente, de forma estável. Gráfico A.12. Resultados da Comgás (2009-2012) Fonte: Relatório anual Comgás, 2012. 6. Base Financeira Formalmente, existem 2 empresas Cosan: a primeira é a Cosan S.A. uma empresa brasileira de capital aberto desde 2005, quando fez seu IPO na Bovespa. Essa é a empresa que detêm diretamente as participações na Raízen, Rumo, Radar, Comgás e Cosan Lubrificantes e Especialidades. O controlador majoritário da Cosan S.A. é a companhia Cosan Ltd., sediada nas Bermudas, que abriu capital na NYSE/EUA em 2007. Seu principal acionista é um conjunto de companhias que, agrupadas, é chamado de “grupo controlador”, de propriedade de Rubens Ometto. A criação da Cosan Ltd. Foi uma maneira de o grupo controlador manter o controle com um capital menor aplicado à empresa (SALOMÃO, 2007). 211 Tabela A.16. Cosan – acionistas da Cosan S.A. Acionista 2006 2007 2008 2009 2012 Cosan Limited - - 62,8% 68,9% 62,3% Grupo de Controle 58,4% 51,0% - - 0,0% Grupo Kuok - 6,0% - 1,7% - Sucden - 2,3% - 1,1% - Rezende Barbosa - - - - 10,9% Administradores Ações em Tesouraria - - - - 0,1% - - - - 0,7% - - 28,3% - Outros Free Float 41,6% 40,7% 37,2% - 25,9% Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% Fonte: elaboração própria com dados de Relatórios Anuais e da Administração da Cosan. Tabela A.17. Cosan – acionistas da Cosan Ltd. Acionista 2008 Total Votante 2009 Total Votante 2011 Total Votante 2012 Total Votante Grupo de Controle 48,7% 90,1% 41,5% 41,3% 86,0% 39,3% 85,6% Gávea Investimentos - - 14,6% 14,6% - 14,6% 3,5% Capital World Investments - - 3,6% - Janus Capital Management - - 6,3% 6,3% - - - FMR LLC - - 6,1% - Skagen Funds - - - 3,1% - - - Ações em Tesouraria - - - - - 2,0% 0,5% 51,3% 9,9% 29,0% 34,7% 14,0% 44,2% 10,5% Free Float Total 86,1% 13,9% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% Fonte: elaboração própria com dados de Relatórios Anuais e da Administração da Cosan. O perfil de endividamento é uma marca da estratégia de crescimento relativamente vertiginoso da Cosan. O Passivo aumentou quase três vezes de 2007 a 2011, em sua maioria por contribuição do Patrimônio Líquido e depois do Passivo Não-Circulante. 212 Gráfico A.13. Cosan S.A. – Passivo em R$ milhões Fonte: Relatórios Anuais e da Administração da Cosan (elaboração própria) Nos primeiros anos analisados no gráfico, em especial em em 2008-09, há uma variação muito grande do passivo circulante, ou seja, a dívida de curto prazo. Nos anos seguintes, o perfil de endividamento se alonga, com uma troca das dívidas por dívidas de prazo maior, em especial os títulos e bônus emitidos pela empresa. Gráfico A.14. Cosan S.A. - Contribuição de cada item do passivo (%) Fonte: Relatórios Anuais e da Administração da Cosan (elaboração própria) 213 A Cosan tem como estratégia um forte acesso ao mercado internacional de capitais, através da emissão de bônus de prazos variados. Um percentual que girou ao longo da década entre 60% a 80% da sua dívida é denominada em moeda estrangeira, especialmente através das suas Senior Notes e do Bônus Perpétuos. No final do período, o crédito oficial via BNDES e linha Finame do BNDES passa a constar fortemente no balanço, com cerca de 30% a 40% do endividamento da companhia em 2009-10 e 2010-11, respectivamente. Gráfico A.15. Dívida da Cosan por moeda Fonte: elaboração própria com dados de Relatórios Anuais e da Administração da Cosan. 214 Tabela A.18. Cosan – endividamento por tipo (%) 2004-05 2005-06 2006-07 2008-09 2009-10 2010-11 Senior Notes 2009 44,7% 18,5% 13,8% 2,3% 0,0% 0,0% Senior Notes 2017 0,0% 0,0% 27,5% 24,9% 13,5% 10,1% Senior Notes 2014 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 11,8% 8,9% Bônus Perpétuos 0,0% 40,7% 31,0% 28,1% 15,2% 19,0% 20,2% 20,3% 16,7% 0,0% 0,0% 0,0% Finame 3,5% 0,7% 0,3% 1,2% 3,7% 10,8% Capital de Giro 2,9% 1,7% 1,1% 0,7% 0,0% 0,0% IFC 0,0% 5,9% 4,6% 3,0% 0,0% 0,0% Debêntures 0,0% 2,4% 1,8% 0,0% 0,0% 0,0% 23,0% 7,0% 3,3% 0,0% 0,0% 0,0% Notas Promissórias 5,4% 2,9% 0,0% 30,9% 0,0% 0,0% Empresas ligadas 0,2% 0,1% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% Pré-pagamento de exportações 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 18,4% 11,3% Adiantamente do contratos de câmbio 0,2% 0,0% 0,0% 3,8% 5,6% 3,5% BNDES 0,0% 0,0% 0,0% 6,1% 19,8% 24,4% Resolução 2471 (Pesa) Adiantamento de clientes Outros 0,0% 0,0% 0,0% -1,1% 12,0% 12,1% 1170,1 2363,1 3015,3 3755,0 5333,8 6516,8 Disponibilidades R$ (milhões) 180,7 1124,2 1606,9 719,4 1078,4 1254,1 Dívida Líquida (R$ milhões) 989,4 1238,8 1408,3 3035,6 4255,4 5262,7 Endividamento Bruto (R$ milhões) Fonte: elaboração própria com dados de Relatórios Anuais e da Administração da Cosan. 7. Síntese O grupo Cosan teve como origem e base de seu crescimento espetacular ao longo dos anos 2000 o setor sucroalcooleiro. A lógica de acumulação combinou, por um lado, a aquisição de ativos produtivos no setor (usinas concorrentes) com a valorização dos produtos determinada por fatores exógenos ao setor; por outro lado, foi financiada pela inversão dos lucros dos proprietários, endividamento no setor privado, especialmente externo, através de ações e bônus, e no setor público, via BNDES, no período mais recente. No que diz respeito à base produtiva no setor de origem, o sucroalcooleiro, a Cosan está em um segmento da indústria relativamente simples, de tecnologia livre e acessível. O sucesso no negócio depende em especial do acesso a terras e a mão-de-obra, em especial nos períodos de colheita (processo em transição para a mecanização), além de infraestrutura para 215 escoamento. O fato de ser um setor de base agrícola expõe a empresa às instabilidades inerentes da dependência de matéria-prima agrícola, com a agravante da queda de produtividade da cana à medida que ela foi cortada, o que torna a relação com os fornecedores ainda mais crucial – e complexa. A Cosan detém especificamente alguma capacidade gerencial, herdada do histórico no setor e da escala de negócios maior que qualquer concorrente. A Cosan, no seu segmento de origem, depende basicamente da demanda e ela não controla os mercados e os preços dos produtos que fabrica. Suas margens são dadas pela sua capacidade de enfrentar os custos (na ausência de aumentos de produtividade, os salários) e a barganha frente aos compradores, que são poucos e controlam parte expressiva dos mercados relevantes (internacional do açúcar e nacional do etanol). Particularmente o mercado do etanol depende de uma conjunção de preços do petróleo (devem ser altos) e do repasse desses preços ao mercado interno de derivados. A empresa possui baixas margens neste segmento produtivo, em especial no etanol. A condição de pequena margem de manobra, estrutural para o produtor, mesmo que seja dos maiores, é fonte permanente de instabilidade. Isso piorou com o fim do Proálcool no início dos 1990s e até hoje não está resolvida. A crise mundial que eclodiu em 2008 agravou a situação do setor, com encarecimento do crédito e redução dos preços do petróleo e do dinamismo de seus mercados. Assim, a burguesia sucroalcooleira depende da regulação ou de incentivos externos (estatais) para garantir uma estabilidade e rentabilidade mínima que o proteja dos impactos desestabilizantes dos ciclos econômicos. Decorrência da natureza e do ciclo de negócios do setor entre as décadas de 2000 e 2010, a lógica de acumulação da Cosan teve como base, até 2009, a aquisição de usinas concorrentes, sendo fonte de dois terços da sua capacidade produtiva no final da década. Embora não consigamos mensurar o impacto – e o rendimento – dos ganhos com o acúmulo de know-how do negócio172 e com o compartilhamento de logística (escoamento e exportação) devem dar algumas vantagens à Cosan frente aos demais (menores) concorrentes no negócio. Isso, contudo, não diminui as debilidades da empresa dentro da cadeia do 172 Como, por exemplo, prospecção de terras, planejamento da produção e da colheita, infraestrutura de transporte, tecnologia de processo, estocagem, comercialização, financiamento etc. 216 negócio, apenas amplia sua vantagem relativa frente às demais companhias, o que as coloca como potenciais alvos de aquisições. Como o setor sucroalcooleiro é instável, com dificuldade de haver ganhos de escala e de produtividade e é muito dependente de determinantes externos, a estratégia de crescimento rápido da Cosan foi a compra de outras usinas no Brasil, em especial no estado de São Paulo e construção nas novas fronteiras da cana-de-açúcar (Goiás e Mato Grosso do Sul). Foi isso que a permitiu ganhar uma parcela maior do excedente gerado no ramo; a outra maneira foi entrar em atividades correlatas: logística de exportação e especulação de terras para agronegócio. O padrão de financiamento da companhia foi fundamentalmente a reinversão de recursos próprios dos acionistas via ampliação do patrimônio líquido e o endividamento com o setor privados, tanto pela abertura do capital pela emissão de títulos próprios de dívida. A maior parcela do endividamento corresponde a financiamento externo, em dólar. Recentemente o setor recebeu aportes de linhas específicas do BNDES destinadas ao setor, que atingiu o intervalo de 30% a 40% do endividamento total da empresa. A virada decisiva da lógica de acumulação da Cosan corresponde ao seu processo de diversificação e, em especial, ao acordo de venda futura dos ativos no setor sucroalcooleiro com a constituição da joint-venture Raízen com a Shell. O primeiro passo foi a aquisição dos ativos da Esso de distribuição de combustíveis e produção e distribuição de lubrificantes, no final de 2008. Essa aquisição modificou radicalmente a composição dos negócios do grupo. Ao mesmo tempo em que elevou o status da empresa para primeira e maior empresa integrada de energia de base renovável e permitiu compensar uma das debilidades estruturais – margem dos atacadistas de combustível –, foi o passo decisivo para a aquisição dos ativos da Esso. Entra em novo tipo de negócio (intermediação). Potencialmente reduz a exposição da companhia no negócio sucroalcooleiro. Em verdade, prepara a venda futura dos ativos no setor sucroalcooleiro e de combustíveis para o capital internacional. A transição para outros ramos continua com a venda da Cosan Alimentos e a aquisição do controle da Comgás. O movimento se expressa na tentativa de entrada no bloco de controle da ALL – América Latina Logística, em negociação com suporte estatal a partir de 2014. 217 O grupo se torna crescentemente um capital voltado para setores intermediários – logística para agronegócio, distribuição de combustíveis e gás -, para setores especuladores – terras para agronegócio – e apoiado em concessões estatais – distribuição de gás, ferrovias. Em síntese, o grupo Cosan tem como base o agronegócio, produção ou serviços para exportação, e a intermediação comercial de diferentes ramos no mercado interno, como combustíveis e gás natural. Sua estratégia de crescimento é baseada em aquisições, financiada e associada ao capital internacional, em um padrão especulativo. A constituição da joint-venture Raízen com a Shell teve este significado: um longo processo de especulação com ativos no setor sucroalcooleiro e na distribuição de combustíveis que foi posto à venda futura para uma grande transnacional, que detém a opção de comprar ou vender a empresa de acordo com sua conveniência. Esse mesmo padrão se revela na operação em setores vinculados a negócios internacionais, como a especulação de terras e os serviços logísticos de exportação de commodities, ou mesmo na produção e distribuição de lubrificantes da ExxonMobil. É um grupo oportunista que busca ganhos em quaisquer negócios, contribuindo para o aprofundamento dos laços da economia brasileira com o capital internacional e com os mercados externos. 8. Referências Bibliográficas BATISTA, Fabiana (2014). BNDES eleva a R$ 6,9 bi desembolso a usinas. 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Posição da Vale no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas) 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 200 grupos 15º 12º ND* 5º 5º 5º 3º 5º 6º 4º 5º Maiores indústria 3º 1º 1º 1º 1º 1º 1º 1º 2º 1º 1º privados do Brasil *ND: Dado não encontrado Fonte: Anuário Valor Grandes Grupos (elaboração própria). A empresa nos anos 2000 deixou de ser apenas uma grande mineradora – em 1998-1999 já era a maior exportadora transoceânica de minério de ferro – para ser uma das maiores mundo – já em 2006 era a segunda mineradora em valor de mercado. Seu dinamismo se deu fundamentalmente pela expansão do mercado asiático para o seu maior produto – o minério de ferro –, tanto no que diz respeito à quantidade, quanto nos preços. Seus compradores principais deixaram de ser o Brasil e a Europa (em 2001-2002, 31,5% e 30,7% das receitas em média, respectivamente) para se tornarem os países da Ásia (em 2011, 52,8% das receitas). A estratégia da Vale no período pode ser descrita como um combinado de: a) progressiva especialização nos produtos principais (minério de ferro, pelotas) e outros produtos que tivessem sinergias com as operações existentes ou relacionadas ao seu núcleo de atividades; b) busca por oportunidades de aquisição de ativos vinculados ao negócio principal ou com alto potencial de rentabilidade dentro do ramo de mineração; c) internacionalização crescente dos mercados consumidores e salto de internacionalização das operações – onde o salto aconteceu com a aquisição da canadense Inco em 2006; d) ampliação da capacidade de endividamento correspondente às necessidades de expansão da empresa, em especial e também a partir de 2006, baseada principalmente no capital internacional. 222 2. Histórico A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi durante a maior parte de sua história uma empresa estatal. Herdeira das reservas da antiga Itabira Iron Ore Company de Percival Farquhar e da Estrada de Ferro Vitória-Minas, a CVRD foi fundada por Getúlio Vargas em 1942 como parte dos esforços de adesão do Brasil aos Aliados na II Guerra Mundial (OSAWA, 2011). A companhia iniciou cedo sua internacionalização, sempre exportando uma parcela majoritária da sua produção: em média 67%, segundo Mello e Paula (2000). Nos anos 1950, iniciou os embarques para o Japão e em 1954 passou a contatar diretamente os clientes siderúrgicos sem intermediação de traders. Nos anos 1960, a CVRD deu passos decisivos para se tornar a gigante de hoje: iniciou contratos de longo prazo de fornecimento ao Japão e à Europa e criou sua própria empresa de transporte, a Docenave. A partir dos anos 1970, iniciou sua participação no que viria a ser o Projeto Ferro Carajás, que partiu em 1985 com a inauguração da Estrada de Ferro Carajás. Em 1974 já respondia por 16% do mercado transoceânico de minério de ferro (OSAWA, 2011) e em 1999 já era a líder, com 20% de um mercado em que dezesseis firmas controlavam 80% (MELLO & PAULA, 2000). Em 1995, a CVRD foi incluída no Programa Nacional de Desestatização, iniciado no governo Collor. Em 1997, foi a leilão e privatizada por US$3,3 bilhões (por 41,7% das ações ordinárias). Segundo Biondi (1999), sua venda ao setor privado foi uma capitalização subsidiada aos grupos que a adquiriram, devido à forma de avaliação do preço da companhia, que desprezava o valor das reservas minerais à disposição da companhia e ao crédito do BNDES utilizado para financiar os consórcios que disputavam o leilão. A tabela a seguir mostra a composição do capital controlador antes e depois das privatizações. 223 Tabela B.2. Controladores da Vale – antes e depois da privatização (1997) Acionistas do Capital Ordinário Anterior Posterior Composição do Valepar % Tesouro Nacional 51,2% 15,9% CSN 25,0% BNDES 24,8% 15,9% Litel Participações S.A. 39,0% Fundos de Pensão 15,0% 5,0% Eletron S.A. 17,0% BNDESPAR/FPS 5,0% 5,0% Sweet River Invests. Ltd. 9,0% Investvale 0,0% 4,0% BNDESPAR 9,0% -- 52,2% Investvale 1,0% SPE (Valepar) Fonte: BIONDI (1999). Como, após a privatização, a companhia iniciou um processo muito forte de crescimento, com aquisições e valorização dos preços dos produtos minerais, a comparação entre a Vale estatal e a mesma empresa após a privatização é um processo complexo. Apesar de muito que se fala sobre o papel da privatização da empresa sobre o resultado posterior, no que diz respeito a ganhos de eficiência etc.173, este trabalho aponta para outros fatores. O fato é que, pelo menos do ponto de vista dos resultados decompostos na demanda física por minérios e nos preços, o desempenho que levou a empresa a ser uma das maiores do mundo teve como principal motor o ciclo movido pela economia chinesa nos anos 2000, como se mostrado adiante. 3. Mercados Os principais ramos de atividade da Vale (base 2012) são a mineração de: (a) minério de ferro e pelotas (principal, responsável por dois terços da receita operacional bruta - ROB); (b) níquel (8,9% da ROB); (c) fertilizantes (8,1% da ROB)174.(d) carvão (metalúrgico e térmico). Desta forma, serão abordados brevemente os diferentes tipos de minerais, seus usos, seus mercado e preços, para se ter uma noção de a quais tipos de negócios está vinculada a Vale. 173 É muito provável, como mostram alguns estudos, que a empresa tenha obtido ganhos de eficiência após a privatização. A questão é que isso ocorreu dentro de um grande processo que atingiu grandes empresas, mesmo as não privatizadas, como foi o caso da Petrobras. Há uma dificuldade objetiva de avaliar o quanto a privatização contribuiu para o resultado da companhia e muito do que existe é uma tentativa de justificar ex post o sucesso das privatizações. Um exemplo é o estudo de Carrasco e Mello (2011), que tentam avaliar o ganho através do retorno das ações, supondo que o mercado de capitais seja eficiente para avaliar os ganhos de eficiência da empresa. 174 Ainda são muito importantes mas não serão tratados aqui: Cobre, com 4,7% da ROB de 2012, Carvão (metalúrgico e térmico), com 2,4%, e os Serviços Logísticos, que responderam por 3,5% da ROB em 2012. Até 2010 224 3.1. Minério de Ferro e Pelotas O minério de ferro (junto com as pelotas de ferro) é o principal negócio da Vale e tem como destino básico a siderurgia, servindo de matéria-prima para a produção de aço. O minério de ferro corresponde a vários tipos de rocha a partir das quais pode ser obtido o ferro metálico. Já as pelotas são materiais derivados do minério de ferro, concentrados duros de minério em formato esférico já preparados para consumo em unidades siderúrgicas de redução (alto-fornos). O mercado de minério de ferro é caracterizado pela alta concentração das reservas e da produção em alguns países: Tabela B.3. Minério de Ferro – Reservas, por país (% do total) Países Brasil China Austrália Índia Rússia Ucrânia Outros países 2000 6% 17% 13% 2% 15% 17% 30% 2001 7% 16% 13% 2% 18% 16% 28% 2002 6% 14% 12% 3% 17% 21% 27% 2003 7% 14% 12% 3% 17% 21% 27% 2004 7% 12% 11% 3% 15% 18% 33% 2005 7% 12% 11% 3% 15% 18% 33% 2006 7% 12% 11% 3% 15% 18% 34% 2007 10% 14% 13% 3% 16% 20% 24% 2008 11% 13% 13% 3% 16% 19% 24% 2009 13% 14% 13% 4% 16% 19% 23% 2010 11% 13% 13% 4% 14% 17% 28% Fonte: USGS (elaboração própria) Devido ao fato de os minérios de ferro existentes na natureza diferirem em composição química e concentração de ferro, há minérios de melhor qualidade que outros. Essa diferença justifica preços diferenciados de acordo com a origem do minério. O Brasil, por exemplo, é conhecido por ter minas de minério de ferro de ótima qualidade, e dentre elas a de Carajás, que seria a melhor do mundo. O mercado mundial é atualmente (dados de 2011) dominado pela produção de minério de ferro da China (42%), Austrália (17%), Brasil (14%), Índia (9%), Rússia (4%) e Ucrânia (3%). O destaque é a China, cuja produção disparou em meados dos anos 2000 em resposta ao crescimento da sua produção siderúrgica. A produção de minério de ferro mundial saiu de 1,03 bilhões de toneladas em 2000 para 2,8 bilhões de toneladas em 2011. o alumínio fazia parte da carteira da Vale, chegando a 8,6% da receita operacional bruta em 2009, mas suas operações foram vendidas, não contando mais para o negócio. 225 Gráfico B.1. Minério de Ferro – produção mundial, países selecionados (milhões ton.) Fonte: USGS (elaboração própria) Gráfico B.2. Minério de Ferro – produção mundial, países selecionados (% do total) Fonte: USGS (elaboração própria) Segundo o U.S. Geological Survey Minerals Yearbook de 2011, os maiores exportadores de minério de ferro em 2011 eram: Austrália (38%), Brasil (30%), Índia (6,8%), África do Sul (4,5%) e Ucrânia (3,0%). Ainda segundo o USGS, os maiores importadores de minério de ferro do mundo são grandes países de produção siderúrgica: China, Alemanha, Japão 226 e Coreia do Sul. Juntos totalizaram 62% das importações mundiais em 2002, chegando a 82% em 2011. Os percentuais de 2002 e 2011 para os países são: China, 21% para 61%; Alemanha, 8,4% para 3,7%; Japão, 24% para 11%; e Coreia do Sul, 8% para 6%. A China, apesar de maior produtor, não dispõe de minério em quantidade e qualidade suficiente, sendo dependente de importações, que se constituem como o principal fator de dinamismo no mercado internacional. Os principais fornecedores para a China são: Austrália (45%), Brasil (21%), Índia (11%), África do Sul (6%) e Irã (2%) (mineral não aglomerado); e Brasil (25%), Canadá (17%), Rússia (13%) e Ucrânia (11%) (pelotas). Segundo Warel (2013), até recentemente, no final dos anos 2000, os preços de minério de ferro eram estabelecidos em negociação entre grandes produtores e grandes demandantes em contratos de um ano (“preços do produtor”). A partir de 2009 os preços começaram a ser negociados em mercados spot, particularmente os grandes volume vendidos para a Ásia, passando a ser desde 2010 o único sistema adotado pelos maiores produtores (Vale, Rio Tinto e BHP Billiton). Segundo a autora, após esta mudança, os preços ficaram mais voláteis e mesmo o patamar dos preços foi afetado, por um lado, pela própria instituição do novo sistema e, por outro, – e em especial, segundo ela – devido à sensibilidade às grandes variações de preço nos fretes (que aumentaram após a instituição do novo sistema). A variável de longo prazo que influencia no preço é o PIB da China. No gráfico abaixo estão algumas séries de preços relevantes para este estudo, demonstrando as mudanças no sistema de precificação e o patamar de variação dos preços, que saem de cerca de US$ 25/ton. para oscilar entre US$ 100 e US$ 150/ton. nos últimos anos. 227 Gráfico B.3. Minério de Ferro – Preços, diversos indicadores (US$/ton) Fonte: UNCTADSTAT O Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) disponibiliza os preços dos produtos de minério de ferro no Brasil, para o mercado nacional e para exportação, que são interessantes para se entender o impacto das variações de preço ao produtor interno: Tabela B.4. Minério de Ferro – preços ao produtor brasileiro – vários itens Preços 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Unidades Minérios (3) 18,3 20,0 20,0 37,4 55,1 61,1 69,3 62,7 90,9 89,0 150,6 299,8 (R$/t) Minérios (4) 15,9 15,6 15,3 16,7 19,3 25,06 29,2 32,4 47,7 44,9 82,5 115,9 (US$-FOB/t) Pelotas (4) 29,7 30,6 29,6 32,3 36,3 60,6 70,1 68,8 109,7 88,1 145,0 177,9 (US$-FOB/t) Lump (4) 18,5 19,3 19,7 21,7 24,6 49,8 59,0 52,5 46,3 56,0 81,6 106,3 (US$-FOB/t) Sinter-Feed (4) 16,2 16,8 17,2 17,6 18,9 38,4 41,9 42,2 46,1 59,2 88,3 113,6 (US$-FOB/t) Pellet-Feed (4) 12,94 14,0 14,3 15,4 17,6 35,7 39,1 46,3 49,7 57,7 115,4 164,5 (US$-FOB/t) Obs: (3) preço médio FOB-mina, minério beneficiado; (4) preço médio FOB - exportação; Fonte: DNPM 228 3.2. Níquel O níquel é um metal duro e maleável, especialmente útil pela resistência à corrosão. Segundo o USGS, 65% do níquel do mundo é utilizado para fabricação de aço inox, 12% para fabricação de superligas de níquel (cujo maior demandante é a indústria aeroespacial para lâminas de turbinas e partes de motores) e o restante com diversas aplicações (dentre elas, ligas de aço, baterias recarregáveis, catalisadores e produtos químicos). O níquel é extraído de dois tipos de minerais, os lateríticos (70% das reservas mundiais, 40% da produção de níquel é daí extraída) e os sulfetados (30% das reservas, produzindo 60% do níquel). O metal é comercializado principalmente na forma de metal refinado (pó, catodo, briquete) ou na forma de ferroníquel. Ao contrário do minério de ferro, cuja produção mais do que dobrou nos anos 2000, a produção de níquel aumento cerca de 50% no mesmo período, de 1,25 bilhões de toneladas em 2000 para 1,80 bilhões de toneladas em 2011. Sua produção também é menos concentrada, apesar dos seis maiores produtores permaneceram com cerca de 70% da oferta mundial: Rússia, Indonésia, Filipinas, Canadá, Austrália e Nova Caledônia (um território francês especial, a leste da Austrália), com destaque para o aumento de Indonésia e Filipinas no período. 229 Gráfico B.5. Níquel – maiores produtoes (% total) Países Rússia Indonésia Filipinas Canadá Austrália Nova Caledônia Brasil China Cuba Colômbia África do Sul Botswana Madagascar Rep. Dominicana Outros 2000 21,6% 7,9% 1,9% 15,3% 13,5% 10,2% 3,6% 4,1% 5,5% 4,7% 2,9% 2,8% 0,0% 3,2% 3,0% 2001 24,4% 7,7% 2,1% 14,5% 14,8% 8,8% 3,4% 3,9% 5,3% 4,0% 2,7% 2,0% 0,0% 2,3% 4,0% 2002 23,1% 9,1% 2,0% 13,3% 15,7% 7,4% 3,4% 4,1% 5,4% 4,3% 2,9% 1,5% 0,0% 2,9% 4,8% 2003 22,5% 10,2% 1,5% 11,6% 15,0% 8,0% 3,2% 4,3% 5,3% 5,1% 2,9% 2,3% 0,0% 3,2% 4,8% 2004 22,5% 9,5% 1,2% 13,4% 12,7% 8,4% 3,2% 4,6% 5,2% 5,4% 2,9% 2,4% 0,0% 3,4% 5,4% 2005 21,1% 10,7% 1,8% 13,3% 12,7% 7,5% 3,5% 5,2% 4,8% 6,0% 2,9% 1,9% 0,0% 3,1% 5,6% 2006 20,3% 8,9% 3,7% 14,7% 11,7% 6,5% 5,2% 5,2% 4,7% 6,0% 2,6% 2,4% 0,0% 2,9% 5,1% 2007 16,9% 13,8% 4,8% 15,4% 9,7% 7,5% 4,5% 5,1% 4,5% 6,1% 2,3% 2,3% 0,0% 2,8% 4,3% 2008 17,6% 12,3% 5,3% 16,6% 12,7% 6,6% 3,7% 4,4% 4,3% 4,9% 2,0% 2,4% 0,0% 2,0% 5,2% 2009 18,7% 14,5% 9,8% 9,8% 11,8% 6,6% 3,9% 5,7% 4,8% 5,1% 2,5% 2,0% 0,0% 0,0% 4,8% 2010 16,9% 14,6% 10,9% 9,9% 10,7% 8,2% 3,7% 5,0% 4,4% 4,5% 2,5% 1,8% 0,9% 0,0% 6,0% 2011 15,6% 12,8% 12,8% 11,1% 10,0% 7,8% 4,6% 4,4% 4,1% 4,0% 2,3% 1,8% 1,4% 0,8% 6,6% Fonte: USGS (elaboração própria) As maiores reservas pertencem aos países produtores, mas não na mesma ordem: em 2011, a Austrália detinha 30% das reservas estimadas, enquanto a Nova Caledônia tinha 15%, o Brasil, 10,9%, a Rússia, 7,5%, Cuba, 6,9%, Indonésia, 4,9%, África do Sul, 4,6%, Canadá, 4,1%, China, 3,8%, e Madasgacar, 2,0%, totalizando 90% das reservas mundiais. A demanda global tem sido puxada principalmente pelo consumo chinês para sua indústria siderúrgica – a China foi o maior consumidor de níquel primário, 521 mil toneladas em 2011 contra 211 mil toneladas da União Europeia. Em valor, os principais importadores são China, Finlândia, Canadá, Japão, Macedônia, Coreia do Sul e Ucrânia; em quantidade, China, Japão, Macedônia e Coreia do Sul. A China foi de importadora de 1% do total para 76% do total em uma década. 230 Tabela A.6. Níquel – maiores importadores – por valor importado (%) Importadores Total (US$ mi) China Finlândia Canadá Japão Macedônia Coreia do Sul Ucrânia Outros 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 4.343 6.304 11.181 12.795 17.362 49.646 39.540 19.487 36.091 69.718 68.666 1% 1% 3% 14% 25% 49% 52% 54% 54% 70% 76% 29% 24% 26% 13% 28% 23% 24% 11% 10% 8% 6% 19% 22% 25% 20% 8% 5% 1% 10% 11% 6% 5% 33% 27% 26% 27% 20% 13% 12% 12% 10% 5% 5% 0% 0% 0% 1% 2% 3% 0% 0% 3% 2% 2% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 1% 5% 5% 2% 2% 0% 0% 2% 2% 3% 1% 2% 3% 2% 1% 1% 18% 26% 17% 22% 14% 6% 9% 5% 5% 6% 1% Fonte: International Trade Centre Os maiores exportadores por valor são, em 2012: Indonésia (34%), Austrália (30%), Filipinas (15%), Zimbábue (8%), Nova Caledônia (6%), Brasil (3%), Finlândia (2%), Espanha (1%). Em quantidades: Indonésia, Filipinas, Nova Caledônica, Austrália Turquia, Guatemala e Zimbábue. As empresas que mais produziram foram: Norislk (Rússia), Vale (Brasil e Canadá), BHP Billiton (Austrália e Reino Unido), e PT Aneka Tambang Tbk. (Indonésia). Os preços do Níquel são cotados em bolsa de valores – principal é a London Metals Exchange (LME). Os preços tiveram um pico em 2007 e depois recuaram para um patamar inferior (ainda assim superior ao do início dos anos 2000). Foi durante este período (novembro de 2006) que a Vale comprou a Inco, segunda maior mineradora de Níquel do mundo. 231 Gráfico B.4. Níquel – preços do metal e do catodo (US$/ton.) Fonte: UNCTADSTAT 3.3. Fertilizantes Os fertilizantes que interessam a este estudo – produtos da Vale – são as três fontes básicas: nitrogênio, potássio e fosfatos, sendo que os fosfatados são a maior fonte de renda da Vale neste setor. Estes produtos estão vinculados às atividades agrícolas e são fortemente demandados pelos principais países do agronegócio, dentre eles o Brasil. Seu consumo tem subido de forma persistente e em proporções semelhantes, já que seu uso combinado é uma condição da fertilização. 232 Gráfico B.5. Uso mundial de fertilizantes (milhões de toneladas de nutrientes) Fonte: Fertecon, IFA, PotashCorp. Rocha Fosfática. Os fertilizantes fosfatados são provenientes de rocha fosfática. Segundo o USGS Mineral Commodity Summary de 2011, os maiores produtores em 2010 eram China, EUA, Marrocos e Rússia. Tabela A.7. Rocha Fosfática – principais produtores (mi ton.) China EUA Marrocos Rússia Jordânia Brasil Tunísia Egito Israel Síria Outros Total 2007 2008 2009 2010 2011e 45.400 50.700 60.200 68.000 81.000 29.700 30.200 26.400 25.800 28.100 27.800 24.500 18.400 26.600 28.000 11.400 10.400 9.500 11.000 11.200 5.552 6.265 5.281 6.529 6.500 6.185 6.727 6.084 6.192 6.200 8.005 7.623 7.398 7.281 5.000 3.890 5.523 6.627 3.435 3.500 3.069 3.088 2.697 3.135 3.105 3.678 3.221 2.466 3.765 3.100 15.321 17.753 16.947 19.263 22.295 160.000 166.000 162.000 181.000 198.000 % 2012 41% 14% 14% 6% 3% 3% 3% 2% 2% 2% 11% 100% Fonte: USGS Os maiores exportadores são os países do norte da África (Marrocos, Egito, Jordânia) e Peru, com uma base agrícola menor (China, EUA e Rússia consomem sua produção), sendo que o mercado transoceânico corresponde a apenas 17% do total (um mercado de base regional). 233 Pode-se ver que as importações são bem distribuídas em regiões do globo de que possuem forte produção agrícola, sendo que as regiões sem produção própria são obrigadas a importar. Gráfico B.6. Rocha Fosfática – Exportação e Importação, 2011 (milhões de toneladas) Fonte: Fertecon Potássio. O potássio é encontrado na forma de sal presente em vários tipos de rocha. Cerca de 90% do consumo do potássio no mundo se refere a produtos fertilizantes e por isso seu consumo e as importações estão altamente associados a países com grande produção agrícola. China, Estados Unidos, Índia e Brasil correspondem a 59% do consumo mundial e só o Brasil responde por 16% - o país importa 93% do potássio consumido. Segundo o Relatório Anual da Vale, é um mercado muito restrito, onde poucos países controlam as reservas mundiais e o seu comércio. 234 Tabela B.8. Potássio – países produtores (%) e produção total (mil ton.) 2007 2008 2009 2010 2011 Canadá 32% 31% 21% 29% 30% Rússia 18% 18% 18% 18% 18% Bielorrúsia 14% 15% 12% 15% 15% 7% 8% 15% 10% 10% 10% 10% 9% 9% 8% Israel 6% 6% 9% 6% 5% Jordânia EUA 3% 4% 3% 3% 4% 3% 3% 3% 3% 3% Chile 1% 2% 3% 3% 3% Brasil 1% 1% 2% 1% 1% Reino Unido 1% 1% 2% 1% 1% Espanha 1% 1% 2% 1% 1% Total 34.900 33.700 20.800 34.100 36.400 China Alemanha Fonte: USGS É um recurso bastante escasso e a produção não teve muita variação nos anos 2000, partindo de 2,9 milhões de toneladas para 3,6 milhões de toneladas (crescimento de 21% no período), com um ano de crise aguda no setor em 2009, no imediato pós-crise, quando os produtores agrícolas cortaram as compras aguardando queda de preços. Os importadores de Potássio são países ou regiões semelhantes à de rocha fosfática. Contudo, está aí inclusa a China, que, ao contrário da rocha fosfática, não possui reservas de potássio. 235 Gráfico B.7. Potássio – embarques mundiais (milhões de ton. KCl) Fonte: Fertecon Abaixo estão os preços de dois dos três principais fertilizantes. Os dois produtos não tiveram trajetória de alta antes do pico entre 2008 e 2009. Após uma queda brusca, se recuperam em patamares superiores ao pré-2008, mas tiveram declínio no final do período devido às incertezas na recuperação mundial. Gráfico B.8. Potássio (esq.) e Rocha fosfática (dir.) – preços (US$/ton) 236 Fonte: infomine.com Nitrogenados. Já os fertilizantes a base de nitrogênio costumam ser obtidos da amônia, que é produzida a partir do nitrogênio no ar ou no gás natural, por processos químicos; devido ao seu alto custo de transporte, o mercado é muito regionalizado e apenas 12% da amônia é comercializada internacionalmente. Gráfico B.9. Produção e exportação de amônia – mi ton. – 2011 Fonte: Fertecon 4. Crescimento e transformações Em 2000, a Vale, então Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), privatizada três anos antes, já era uma mineradora relevante, líder na exportação transoceânica de minério de ferro (MELLO & PAULA, 2000). Entre o início e o final da década, o salto da companhia em termos de tamanho e internacionalização é muito grande. Para usar os destaques da própria companhia segundo seu relatório anual, a companhia em 2012 detinha as seguintes marcas: Maior produtor mundial de minério de ferro e pelotas; Segundo maior produtor mundial de níquel; 237 Produtor de minério de manganês, ferroligas, carvão, cobre, metais do grupo da platina (“PGMs”), ouro, prata, cobalto, potássio, fosfatados e outros fertilizantes; até 2010 estava no ramo de bauxita e alumínio; Operação de mineração em 15 países do mundo; Operação logística ferroviária, portuária e em terminais marítimos em todo o mundo. Também possui um portfólio de ativos de frete marítimo para minério de ferro. Possui investimentos em energia e aço, diretamente ou através de afiliadas ou jointventures (VALE, 2012). A análise do crescimento da receita bruta a companhia em dólares mostra o tamanho deste salto: Gráfico B.10. Vale – Receita bruta por produto (em US$ mi correntes) Fonte: Relatórios Anuais Vale – elaboração própria. 238 Duas informações se destacam do gráfico: 1) a tendência crescente da receita bruta em dólares, interrompida bruscamente em 2008 e em 2012; 2) o “mix” de produtos em que a companhia tem especialidade: minerais ferrosos (em especial minério de ferro e pelotas), níquel (a partir de 2006), carvão (a partir de 2007), cobre, alumínio (setor que a empresa deixou em 2011) e fertilizantes (a partir de 2010, especialmente), além de uma fatia sempre razoável de serviços logísticos. Vamos explicar esses dois aspectos separadamente. O primeiro aspecto diz respeito à profunda vinculação dos resultados da companhia ao ciclo de negócios internacional, particularmente as efeitos da demanda asiática, em especial chinesa, sobre a quantidade demandada e sobre os preços. O crescimento da receita bruta é facilmente explicável por esse motivo: cerca de 58% do aumento da receita bruta em US$ entre 2001 e 2012 foi devido a vendas para a Ásia (esse percentual é de 59% entre 2003 e 2012, sendo que 39% são devido à China). No mesmo período, o Brasil respondeu por 18% do aumento da receita bruta175 e a Europa, por 16%. Resultado: a Ásia passa a responder por 53% das vendas em 2012 (em vez de 22% em 2001), enquanto que o Brasil cai de 32% para 20% e a Europa de 27% para 18%; somente a China responde por 34% (quase Brasil e Europa juntos). Do principal produto da Vale – o minério de ferro e as pelotas (68% da receita bruta em 2012) –, a Ásia respondeu por 92,7% do aumento das vendas físicas entre 2001 e 2011, sendo só a China responsável por 74% do total do aumento. 175 Como houve valorização do real frente ao dólar, é de se esperar que as vendas ao Brasil tenham caído mais do que o que se apresenta. 239 Gráfico B.11. Vale – Receita bruta por país ou região (em US$ mi correntes) Fonte: Relatórios Anuais Vale – elaboração própria. Tabela B.9. Vale – exportações de minério de ferro, por região (milhões de ton.) Ásia China Restante da Ásia Europa Brasil EUA Oriente Médio Resto do Mundo Total 2001 42,5 14,9 27,6 34,4 39,9 2,9 10,2 129,9 2006 127,0 77,9 49,1 71,3 46,6 4,5 23,3 272,7 2007 145,3 96,2 49,1 74,6 45,8 4,0 21,8 291,5 2008 152,6 93,2 59,4 74,2 45,4 2,6 20,4 295,1 2009 184,9 144,0 40,9 34,6 22,2 0,2 11,6 253,5 2010 187,7 133,3 54,4 59,0 32,1 0,5 11,8 297,3 2011 191,5 134,0 57,5 58,6 33,8 0,6 6,9 12,3 303,7 ∆01-11 149,0 119,1 29,9 24,2 - 6,1 - 2,3 6,9 2,1 173,8 %∆ 86% 69% 17% 14% -3% -1% 4% 1% 100% Fonte: Vale, Relatório 20-F, diversos anos (elaboração própria) É importante notar que as receitas baseadas em reais – vendas ao mercado brasileiro – caem aproximadamente 10 pontos percentuais (de 30% para 20%) no período, apesar da importância das operações brasileiras (minério de ferro). O aumento da demanda, especialmente pela dinamização dos mercados asiáticos emergentes e em particular da China, levou também a um efeito sobre os preços. Esse efeito foi também fundamental para explicar a magnitude do aumento das receitas brutas no período, como se pode ver no gráfico abaixo. 240 Gráfico B.12. Evolução dos preços de produtos básicos – 2000-2012 (2000=100) Fonte: CEPAL (2012) De fato, conforme explicado pelo estudo da CEPAL (2012), a China foi o principal motor do processo de alta da demanda e dos preços de produtos básicos desde 2000. Esta influência é clara para dois dos principais produtos da Vale, o minério de ferro e o cobre. A China é a maior produtora mundial de minério de ferro (55,3% em 2010) e também o maior importador (65,3% em 2010); e a China consumia em 2010 38,8% do cobre mundial e era responsável por 37,6% da importação total. A própria Vale reconhece em seu Relatório Anual 2012 que o seu ramo de atividade tem como principal fator de risco a ciclicidade da atividade econômica, em particular a chinesa, dado que o país responde por dois terços da demanda global transoceânica por minério de ferro. Depende, portanto, do desempenho dos produtores de aço e aço inox ou de commodities agrícolas que usem fertilizantes; que, por sua vez, dependem do desempenho de seus clientes. Observando o comportamento de quantidades e preços – e do valor deles derivado – de minério de ferro e pelotas para a Vale, observamos uma proeminência dos preços. Tomando 2001 como base, as quantidades de minério de ferro e pelotas vendidas em 2011 duplicam, mas 241 os preços se multiplicam por 7,4 para o minério de ferro e por 5,8 para as pelotas. Ou seja, o fator fundamental, apesar do extraordinário aumento da produção física, é o preço. Tabela B.10. Minério de Ferro e Pelotas – índice de quantidades e preços para a Vale (2001=100) Minério Físico Preço Valor 2001 100 100 100 2002 108 98 105 2003 113 107 121 2004 158 123 195 2005 177 160 283 2006 198 187 369 2007 208 207 431 2008 210 305 641 2009 188 287 539 2010 205 527 1.079 2011 208 741 1.541 Pelotas Físico Preço Valor 2001 100 100 100 2002 63 97 61 2003 80 106 84 2004 149 119 178 2005 148 198 294 2006 129 229 297 2007 155 225 350 2008 158 359 568 2009 101 288 291 2010 191 475 908 2011 201 582 1.168 Fonte: Vale, Relatório 20-F, diversos anos (elaboração própria) O segundo aspecto é explicado pela estratégia da Vale, que se baseou em uma longa depuração da sua carteira de ativos, com o aprofundamento da liderança no seu principal negócio – o minério de ferro e pelotas – com o aproveitamento de oportunidades de aquisição em ramos atraentes, com preços e demanda promissores – como o caso do níquel, através da aquisiação da canadense Inco em 2006, e dos fertilizantes, com a ampliação da presença via duas aquisições em 2010 (Fosfértil e ativos da Bunge) – e com a venda de ativos de menor centralidade, como foi o caso dos ativos de alumínio, caulim e as participações acionárias em siderúgicas e metalúrgicas. A tabela a seguir mostra o processo de especialização da companhia: 242 Tabela B.11. Vale – Participação de cada produto na receita bruta (%) 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Minerais Ferrosos 70,1% 72,5% 69,4% 68,9% 75,0% 48,9% 46,9% 61,5% 61,6% 72,5% 72,7% 69,5% Minério de Ferro 49,1% 50,1% 48,0% 47,1% 55,2% 39,0% 36,0% 46,2% 53,6% 56,8% 58,0% 53,8% Serviço de oper. usinas 0,0% 0,8% 0,8% 0,6% 0,5% 0,3% 0,3% 0,1% 0,1% 0,1% 0,1% 0,0% Pelotas 14,6% 14,9% 14,3% 12,9% 15,0% 7,4% 8,0% 11,0% 5,6% 13,7% 13,4% 14,4% Manganês e Ferro-ligas 6,4% 6,6% 19,8% 7,8% 3,9% 2,0% 2,2% 3,5% 2,1% 1,9% 1,2% 1,3% Outros 0,0% 0,0% 0,5% 0,4% 0,3% 0,2% 0,5% 0,7% 0,3% 0,1% 0,0% 0,0% Carvão 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,5% 1,5% 2,1% 1,7% 1,8% 2,4% Níquel 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 25,6% 30,3% 15,5% 13,6% 8,3% 9,5% 8,9% Cobre 0,0% 0,0% 0,0% 2,4% 2,9% 7,1% 6,0% 5,3% 4,7% 3,5% 4,2% 4,7% Caulim 1,0% 1,1% 1,7% 1,9% 1,3% 0,8% 0,7% 0,5% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% PGMs 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 1,1% 1,0% 1,0% 0,6% 0,2% 0,8% 0,8% Metais Preciosos 3,4% 2,4% 0,0% 0,0% 0,0% 0,3% 0,3% 0,3% 0,3% 0,2% 0,6% 0,8% Cobalto 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,2% 0,4% 0,5% 0,2% 0,1% 0,2% 0,1% Alumínio 27,4% 10,8% 15,4% 14,7% 10,5% 9,3% 8,2% 7,9% 8,6% 5,5% 0,0% 0,0% Outros 0,0% 0,0% 0,4% 0,1% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,6% 0,1% Fertilizantes 1,7% 2,1% 1,7% 1,5% 1,1% 0,6% 0,5% 0,8% 1,7% 4,0% 5,9% 8,1% Serviços de logística 3,5% 10,7% 10,9% 10,3% 9,1% 5,4% 4,6% 4,2% 4,6% 3,1% 2,9% 3,5% Outros 1,8% 0,5% 0,9% 0,2% 0,1% 0,9% 0,6% 0,9% 2,1% 1,1% 0,9% 1,2% Fonte: Relatórios Anuais Vale – elaboração própria. Qualquer análise da estratégia da Vale ao longo de sua história e nos anos 2000 exige considerar o seu processo intensificado de internacionalização e integração de suas atividades (DALLA COSTA, 2009). Como se verá adiante (item “Base produtiva”), a operação de quase todos os principais produtos da companhia ocorre também – e às vezes exclusivamente – fora do Brasil. A companhia não só adquiriu empresas ou concessões, como tem desenvolvido projetos de investimento em outros países, como as operações de carvão na Austrália e Moçambique, de Níquel no Canadá e Potássio na Argentina e no Peru (VALE, 2013). Quanto às aquisições, se destacam as de companhias de minério de ferro no Brasil no início dos anos 2000; a compra da canadense Inco em 2006 (maior compra da Vale, ela deu acesso ao ramo de níquel); e a de ativos de fertilizantes em 2010 (que colocou o negócio com grande importância nos últimos anos). Os destaques das vendas são: as participações em empresas do ramo siderúrgico (CST, CSN, Usiminas, Gerdau, Siderar), boa parte participações 243 acionárias cruzadas herdadas do período de privatização; os ativos de papel e celulose em 2001, os de caulim em 2010-2012 e os de alumínio em 2011, dentro da estratégia de especialização em alguns produtos. Tabela B.12. Vale – Aquisições da companhia nos anos 2000 EMPRESA Socoimex Samitri / Samarco GIIC Ferteco Sossego Caemi Caemi ² Salobo Alunorte MVC Rana CST FCA Canico Valesul Rio Verde Inco AMCI HA EBM / MBR Belvedere Apolo Teal Rio Colorado/Regina Argos Corumbá Fertilizantes assets4 Belvedere5 Simandou3 SDNC Ferrovia Norte Sul Biopalma Norte Energia S.A.6 Terminal Ultrafertil - TUF7 Vale Fertilizantes8 Carborough Downs EBM9 Total NEGÓCIO DATA Minério de ferro mai/00 Minério de ferro & Pelotas mai/00 Pelotas out/00 Minério de ferro & Pelotas abr/01 Cobre out/01 Minério de ferro & Caulim Dez-01/Mar-03 Minério de ferro & Caulim mai/06 Cobre mai/02 Alumina jun/02 Bauxita jul/02 Ferro-ligas fev/03 Aço mar/03 Ferrovia set/03 Níquel dez/05 Alumínio jul/06 Minério de ferro jan/06 Níquel nov/06 Carvão abr/07 Minério de ferro mai/07 Carvão jul/07 Minério de ferro mai/08 Cobre mar/09 Potássio Jan-2009 Carvão abr/09 Minério de ferro set/09 Fertilizantes Jan-10/Dez-2010 Carvão jul/10 Minério de ferro Set-2010 Logística set/10 Logística dez/10 Energia Feb-2011 Energia Abr-2011 Logística Jun-2011 Fertilizantes Dez-2011 Carvão Fev-2012 Minério de ferro Jun-2012 244 Preço (US$ mi) 48 710 91 566 43 705 2.552 51 42 2 18 60 67 800 28 47 18.243 656 231 90 128 65 857 306 814 5.829 92 500 21 893 174 1.400 95 1.217 69 437 US$ 37,9 bilhões Notas: (1) não inclui valor da dívida líquida do ativo adquirido; (2) troca de ações; (3) primeira de do total de US$ 2,5 bilhões; (4) inclui aquisições de 78,92% da Fosfertil; (5) aquisição da participação de 24,5%; (6) aquisição da participação de 9%; (7) aquisição da participação de 51% na joint venture; (8) participação das ações em circulação; (9) aquisição da participação adicional de 10,5%. Fonte: www.vale.com. Tabela B.13. Vale – Desinvestimentos da companhia nos anos 2000 EMPRESA Açominas CSN Bahia Sul Cenibra Rio Doce Pasha Docenave Ships Florestas Rio Doce Fazenda Brasileiro Sepetiba Tecon /CFN Fosfértil CST NES Foz do Chapecó GIIC Usiminas Gerdau Siderar Log-In Logística Jubilee Usiminas PTI Valesul PPSA Bayovar's minority holdings Oman's minority holding Alunorte, Albras, CAP e Paragominas CADAM Ativos de carvão térmico na Colômbia Total NEGÓCIO Aço Aço Papel & Celulose Celulose Logística Navegação Florestas Ouro Porto/Ferrovia Fertilizante Aço Ferro-ligas Energia Pelotas Aço Aço Aço Logística Niquel Aço Níquel Alumínio Caulim Fertilizantes Pelotas Alumínio Caulim Carvão térmico DATA dez/00 dez/00 fev/01 jul/01 ago/01 set/01 mai/02 ago/03 set/03 out/03 Jun-2004 Fev-2006 fev/06 mai/06 Nov-2006/Mai2007 out/06 dez/06 jun/07 Fev-2008 Abr-2009 Ago-2009 Jan-2010 jun/10 jun/10 jun/10 Fev-2011 Mai-2012 Mai-2012 Valor (US$ mi) 10 249 318 671 10 60,5 59 21 7,4 84 580 14 4 418 904 67 108 203,5 130 273 88 31,2 74 660 125 503 30 407 US$ 6,1 bilhões Fonte: www.vale.com. Dentre as empresas de maior internacionalização do Brasil176, somente três aparecem na listagem de maiores empresas transnacionais de países emergentes da UNCTAD (2007), 176 A internacionalização tem sido medida na maioria dos estudos recentes pelo Índice de Internacionalização (I.I.), média dos índices de internacionalização de ativos, receitas e empregos da companhia. Cada índice corresponde ao 245 medidos por ativos: Petrobras, Vale e Gerdau (a JBS entrará no grupo mais recentemente). As demais empresas, apesar de terem altos índices de internacionalização, não possuem a envergadura para serem consideradas grandes transnacionais (ver pesquisas da Fundação Dom Cabral e da Valor/SOBEET publicadas desde meados dos anos 2000). Para se ter uma noção do tamanho da internacionalização da Vale, a tabela abaixo mostra a evolução da posição da empresa no ranking de empresas mais internacionalizadas e o seu respectivo Índice de Internacionalização (I.I.). Notar que o índice representa atividades fora do país e não inclui as exportações feitas do Brasil. Tabela B.14. VALE – Evolução da Internacionalização – 2006-2010 Posição no Ranking Índice de Internacionalização 2010 2009 2008 2007 2006 8º 8º 11º 6º 6º 2010 2009 2008 2007 2006 41,2% 31,5% 29,0% 36,2% 28,7% Fonte: Valor Multinacionais Brasileiras – Pesquisa SOBEET/Valor. 5. Base produtiva Para apresentar a base produtiva da Vale de forma bastante sintética, foi montada uma tabela mostrando a posição da Vale em 2012 para seus principais produtos: onde está operando, quais são os mercados e quais os fatores que influenciam a dinâmica do mercado (concorrentes, qualidade de produto etc.). Esta tabela também mostra quais empresas são controladas ou coligadas com a Vale. Em consonância com os dados já mostrados para as receitas, as vendas físicas da Vale são destinadas em sua maioria para mercados externos. Revela que a estratégia do grupo não é o vínculo da produção com uma demanda local, mas com a demanda internacional que estiver polarizando o mercado no momento. Controlar estoques e produções passa a ser o decisivo para ter maior posição de barganha. percentual do indicador (ativos, receitas ou empregos) que a empresa possui fora do país de origem sobre o total. O I.I. corresponde, portanto, a um percentual. 246 Tabela B.15. Vale – Perfil da Produção por produto (Minério de Ferro, Pelotas e Carvão Metalúrgico e Térmico), por país e por empresa e do Mercado, por região e concorrentes (2012) – (continua) Produção Física Produto Minério de Ferro (53,8% da Receita Bruta em 2012) Pelotas (14,4% da Receita Bruta em 2012) Carvão (2,4% da R.B. em 2012) Carvão Metalúrgico (CM) e Carvão Térmico (CT) Empresa % Total Mercados e Concorrência Local Mercado % Total Vale 96,3% Brasil (PA, MG, MS) Ásia (China: 49%) 66,2%a Samarco 3,4% Brasil (MG) Europa 17,1% a Brasil 11,7% a Vale 72,3% Hispanobras Samarco Zhuhua YPM Anyang Vale Aus (CM) Vale Moç (CM) Vale Aus (CT) Vale Moç (CT) Longyu (CM e CT) Yankuang (Coque metalúrgico) 7,7% 19,2% 0,2% 0,2% 50,8% CM 49,2% CM 36,6% CT 63,4% CT Particip. Minoritária Particip. Minoritária Brasil (ES, MG, MA), Omã Brasil (ES) Brasil (ES) China China Austrália Moçambique Austrália Moçambique China Ver Minério de Ferro, acima Ásia Oriental Américas Europa Índia Principal Concorrentes BHP Biliton, Rio Tinto e Fortescue Metals Group (FMG) Kumba Iron Ore, LKAB, SNIM, IOC (Rio Tinto). Pequenos: Anglo Ferrous Brazil, MMX, Ferrous Resources, Bahia Mineração. Siderúrgicas: Gerdau, CSN, V&M, Usiminas, Arcelormittal LKAB, Cliff Natural Resources, Arcelor Mittal Mines Canada, IOC, Gulf Industrial Revestments BHP Biliton, Mitshbishi Alliance (BMA), Xstrata, Anglo Coal, rio Tinto, Teck Cominco, Peabody, Shenhua Group. China Fonte: Relatório Anual Vale (2012) – elaboração própria. (a) Representa o percentual frente às vendas totais de minério de ferro e pelotas, Vantagens MF de melhor qualidade e distinto do australiano (misturas). Iguais às da Ásia mais a proximidade. Sistema de transporte integrado, qualidade e confiabilidade. Ver Minério de Ferro, acima Localização estratégica e custos de produção. Mercado altamente competitivo. Desvantagens Distância (custo de frete). Preço nem sempre é inferior ao das outras produtoras. 247 248 Tabela B.15. Vale – Perfil da Produção por produto (Minério de Manganês e Ferroligas, Níquel), por país e por empresa e do Mercado, por região e concorrentes (2012) – (continuação) Produção Física Produto Minério de Manganês e Ferroligas (1,3% da Receita Bruta em 2012) Níquel (8,9% da RB em 2012) Mercados e Concorrência Empresa % Total Vale Mina do Azul 79,2% (Mn) 8,3% (Mn) Brasil (PA) MCR 12,5% (Mn) Brasil (MS) Vale Manganês 100% (FL) Vale Canadá/ Sudbury Vale Canadá/ Thompson Vale Newfoundland & Labrador Vale Indonésia/ Sorowako Vale Calédonie 27,6% Brasil (MG e BA) Canadá 10,2% Canadá 26,1% Vale (Onça Puma) Externo (outros produtores) 1,9% 2,5% Vale Manganês Local % Total Mercado Concorrentes Mn alto teor: Transoceânico Mn baixo teor: Regional - África do Sul, Gabão, Austrália. - Ucrânia, China, Gana, Cazaquistão, Índia, México. Produtores independentes ou integrados, em países produtores de minério de manganês ou de aço. Ásia 51,0% 28,0% Canadá América do Norte Europa Norilsk, Jinchuan, BHP Biliton, Xstrata. Vale representa 14% do consumo mundial e Vale com estas empresas, representa 49% da produção mundial de níquel primário refinado. 29,1% Indonésia Outros 2,0% 2,5% Nova Caledônia Brasil Diversos Brasil (MG) 19,0% Fonte: Relatório Anual Vale (2012) – elaboração própria. Vantagens Desvantagens Mercado altamente competitivo. Mercado altamente competitivo. Mercado altamente competitivo. Minas de Longa vida, baixos custos de produção, tecnologia de exploração e processamento, portfólio de produtos diversificados Qualidade, confiabilidade e preço. Por exclusão: a confiabilidade. Tabela B.15. Vale – Perfil da Produção por produto (Cobre, Fertilizantes), por país e por empresa e do Mercado, por região e concorrentes (2012) – (continuação). Produção Física Produto Cobre (4,7% da Receita Bruta em 2012) Fertilizantes Fosfatados, Nitrogenados e Potássicos (7,3% da RB em 2012) Empresa % Total Mercados e Concorrência Local Mercado % Total Vale 42,3% Brasil (PA) América do Sul ND Vale Canadá 52,6% Canadá (Sudbury e Voisey) Europa ND Subsidiária 4,8% Chile Ásia ND Subsidiária Vale Fertilizantes 0,3% 59,8% (P) Brasil (34,% do mercado) ND MVM (Peru) Vale Fertilizantes 40,2% (P) 100% (N) Zâmbia Brasil (GO, MG, SP, PR) Peru Brasil Outros ND Vale Fertilizantes 100% (K) Brasil (SE) Brasil (6,9% do mercado) ND Concorrentes Catodo de Cobre: Codelco, Aurubis AG, Freeport McMoRan, Jiangxi Copper Corporation Ltd. e Xstrata. Participação da Vale é marginal no Mercado de cobre. Cobre em concentrado: BHP Biliton, Freeport McMoRan, Antofagasta plc., Anglo American, Rio Tinto, Xstrata. A fatia da Vale equivaleu a 4% do total em 2012. Anodo/blíster de Cobre: Codelco, Anglo American, Xstrata. Fosfatados: China, Marrocos, EUA, Argélia e Tunísia com 76% da produção mundial. Nitrogenados: América Centra, Rússia, Europa Oriental e Oriente Médio. Mas o perfil é regional. Potássio: Canadá, Rússia, Belarus, todos com poucos produtores. 10 produtores possuem 94% da capacidade mundial. Fonte: Relatório Anual Vale (2012) – elaboração própria. Vantagens Desvantagens 249 Integração – logística e energia. Para a implementação da estratégia de crescimento global, a companhia depende do sucesso das operações logísticas e energéticas que garantam algum nível de competitividade e minimizem a exposição a imprevistos. As operações logísticas sob controle da Vale são: Estradas de ferro: Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM), Estrada de Ferro Carajás (EFC), Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), Ferrovia Norte-Sul (FNS) e participação na empresa MRS (controle dividido com Usiminas, CSN e Gerdau). Na Argentina, está em fase de obtenção de cessão parcial de ferrovia para apoio ao projeto Colorado (fertilizantes); em Moçambique e Malaui está investindo na reabilitação de ferrovia para apoio às operações de carvão; Portos e Terminais Marítimos: no Brasil está no Porto de Tubarão (ES), Terminal Marítimo Ponta da Madeira (MA), Terminal Marítimo de Itaguaí (RJ), Terminal Marítimo de Ilha Guaíba (RJ), Terminal Marítimo Inácio Barbosa (SE) e Terminal Marítimo de Santos (SP); na Argentina, no porto de San Nicolas (província de Buenos Aires); na Indonésia, opera dois portos; e na Nova Caledônia, um porto. Navegação: a Vale possuía, no final de 2012, 25 navios em funcionamento e mais 10 afretados; além disso, possuíam também uma estação de transferência flutuante nas Filipinas, crucial para desembarcar os navios de grande porte e distribuir produto na Ásia em navios menores, garantindo a competição pelos mercados da região. Para garantia de algum nível de autonomia energética, a empresa tem investido em plantas hidrelétricas no Brasil, Canadá e Indonésia. No Brasil, a Vale detém 9% do capital social da Norte Energia S.A., empresa que está implementando e operará a Usina de Belo Monte. 6. Base financeira A base financeira da Vale é constituída pelo fluxo de caixa operacional e os empréstimos. Os resultados quase sempre crescentes ao longo da década de 2000 mostram como a companhia conseguiu financiar as operações e principalmente os investimentos com base no caixa. O endividamento foi a segunda perna, sempre viabilizada pelo lançamento de títulos de dívida diversos no mercado internacional. Um fator de risco é que a capacidade de financiamento está 250 fortemente atrelada aos preços internacionais, podendo variar em números absolutos de forma extrema, como aconteceu nos anos de 2009 e 2012. Um fator compensador é que a Vale possui receitas majoritariamente em dólares, de modo a minimizar os efeitos de oscilações cambiais. Particularmente, no Brasil, alguns custos são vinculados ao Real, de modo que quando ocorre desvalorização do Real, a Vale se beneficia – muito embora a tendência à apreciação do Real tenha sido prevalecente ao longo dos anos 2000. O endividamento foi mais importante durante períodos de fortes aquisições, como foi o caso de 2006, quando da compra da Inco. De 2005 para 2006, o passivo aumentou 130%, sendo que o Exigível a Longo Prazo foi responsável por 66,8% do aumento (53,2% foram empréstimos e Financiamento) e o Patrimônio Líquido, por 21,7% (destes, só 7,9% do capital social realizado e as Reservas de Lucro responderam por 13,8% do total). Após esse ano, contudo, a tendência foi de ampliação da participação do Patrimônio Líquido no passivo. Tabela B.16 – Vale – Estrutura do Passivo 2002 2003 2004 2005 2006 2007 19,0% 19,7% 15,6% 14,7% 12,0% 13,1% 9,0% 9,0% 13,9% 9,7% 10,5% 11,9% 10,6% 16,5% 17,2% 12,7% 12,4% 13,3% Dívida de Longo Prazo (Passivo) 29,7% 24,2% 20,5% 16,4% 34,7% 23,0% 21,9% 19,5% 16,7% PASSIVOS TOTAIS 58,3% 54,4% 48,0% 41,7% 63,1% 53,3% 43,7% 40,9% 43,9% 0,3% 2,9% 5,0% 5,4% 4,6% 3,3% 3,1% 3,5% 2,7% 30,7% 25,1% 20,4% 25,9% 13,3% 16,0% 29,8% 23,3% 18,4% 6,3% 4,4% 3,2% 2,2% 0,8% Passivo Circulante Passivo de Longo Prazo PARTICIPAÇÕES MINORITÁRIAS PLE - Capital por Ações PLE - Capital Adicional Pago 2008 2009 2010 0,6% 0,5% 0,4% 1,7% PLE - Títulos conversíveis obrig. - ADSs ord. - - - - - 1,7% 1,6% 1,5% 0,2% PLE - Títulos conversíveis obrig. - ADSs pref. - - - - - 0,8% 0,7% 1,2% 0,5% 4,3% 13,3% 23,4% 24,8% 18,1% 24,2% 20,6% 29,2% 32,6% 41,3% 42,7% 47,0% 52,9% 32,3% 43,4% 53,2% 55,7% 53,4% PLE - Reservas e Lucros Retidos PATRIMÔNIO LÍQUIDO DA EMPRESA Fonte: Relatórios Anuais da Vale (diversos anos) Seguindo a linha de raciocínio acima, o endividamento cresceu rapidamente em 2006, para financiar a sua maior operação de aquisição, e chega a 37% do passivo. Nos anos seguinte, apesar do aumento absoluto do endividamento, o prazo aumenta e ele diminui como proporção do passivo para o patamar de 20%. 251 Um fato importante é o aumento da capacidade de captação de dívidas em moeda nacional. O percentual da dívida denominada em reais saiu de 14%-15% em 2002-2003, saltou para 27% em 2007 e prosseguiu aumentando até a casa dos 35%-24% em 2011-2012. Do ponto de vista de uma empresa transnacionalizada, o aumento do endividamento em reais enquanto o real esteve valorizando (sentido geral da década) significa a capacidade de captar um ativo que esteve valorizando frente ao dólar, ou seja, uma especulação bem-sucedida. Tabela B.17. Vale – Endividamento Geral e algumas categorias (US$ mi) Em USD mi Total Longo Prazo Curto Prazo % Curto Prazo Prazo Médio (anos) 2002 3.331 2.366 965 29% ND 2003 4.028 2.771 1.257 31% ND 2004 4.088 3.232 856 21% ND 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 5.010 22.581 19.030 18.245 22.880 24.553 23.055 30.267 3.715 21.122 17.608 18.168 22.831 24.414 23.033 30.267 1.295 1.459 1.422 0 49 139 22 0 26% 6% 7% 0% 0% 1% 0% 0% ND 8,36 10,70 9,28 9,17 9,92 9,81 10,14 Categorias principais % Total Empréstimos e Financiamentos em USD Títulos de Renda Fixa em USD Emprést.garant. recebíveis de export. (USD) Títulos de Renda Fixa em EUR Debêntures não-conversíveis em BRL Títulos perpétuos Outras dívidas/dívidas em moeda local 3.024 91% 1.465 800 300 0 0 63 396 3.662 91% 1.621 900 525 0 0 65 551 3.834 94% 1.555 913 480 0 0 65 821 4.816 21.644 18.540 18.069 22.544 24.071 22.700 29.842 96% 96% 97% 99% 99% 98% 98% 99% 2.442 10.814 6.139 6.115 5.875 4.914 3.189 3.981 1.213 6.897 6.680 6.510 8.481 10.242 10.483 13.581 427 345 550 204 150 0 0 0 0 0 0 0 0 1.003 970 1.979 0 2.774 3.340 2.774 3.453 2.767 2.505 2.336 75 86 87 83 78 78 0 0 659 728 1.744 2.383 4.507 5.067 5.553 7.965 Fonte: VALE, Relatórios 20-F, diversos anos (elaboração própria) Além dos dados expostos, a Vale declara entre 2010 e 2012 o valor de algumas linha de crédito e o valor sacado. Destes, o BNDES respondeu por linhas de crédito e empréstimos no valor de US$ 4,3 bi em 2010, US$ 4,5 bi em 2011 e US$ 4,0 bi em 2012. Destes, foram sacados em US$ 11,2 bi em 2010, US$ 1,8 bi e US$ 2,2 bi. Para uma dimensão, os sacados equivalem aos seguintes percentuais da dívida total: 5% em 2010, 8% em 2011 e 7% em 2012. Grupo controlador. Apesar da privatização, a Vale ainda é formalmente influenciada pelo Estado, ainda que indiretamente. A propriedade da maioria das ações ordinárias está com o Valepar (o controlador), com 52,7%; o BNDESPar possui 6,3%. Mas os entes estatais ou sob comando estatal possuem maioria do Valepar: o fundo Litel Participações (49,0%), controlado pela Previ (fundo de pensão dos trabalhadores do Banco do Brasil, mas com dirigentes indicados pelo banco), e o BNDESPar (11,5%). Apesar da maioria formal, no entanto, as decisões ainda 252 passam por um acordo entre os acionistas, em especial os que compõem o Valepar. Além disso, o Valepar possui apenas 1,0% das ações preferenciais, enquanto que o BNDESPar só possui 3,2%. Em sua maioria, são ações pulverizadas na bolsa de valores de São Paulo e de Nova Iorque. Portanto, um dos principais benefícios do controle que é a participação nos dividendos de uma companhia que desfruta de um excedente econômico extraordinário devido ao ciclo foram privatizados e em boa parte para o grande capital financeiro internacional. Tabela B.18 – Vale – Controladores diretos e composição do Valepar - 2012 Fonte: Vale, Relatório 20F, 2012. 7. Síntese A Vale pode ser resumida pela maneira como ela mesma define o ramo de mineração: “especulativo por natureza”. A Vale é um fornecedor de minérios que despontou nos anos 2000 pelo incremento da demanda internacional por minérios, em especial os de ferro, e pelo incremento mais do que proporcional dos preços, que veio junto. O motor principal é o crescimento da produção manufatureira chinesa, particularmente a Siderúrgica, para seus principais produtos (minério de ferro e pelotas, níquel e carvão). Ao ingressar no mercado de Fertilizantes no final do período estudado, a Vale também se conectou com o agronegócio, inclusive o brasileiro, da qual a companhia é grande fornecedor. As vantagens competitivas da mineração estão mais ligadas às vantagens comparativas que dizem respeito à qualidade dos minerais e ao posicionamento geográfico 253 (relativamente ao custo do transporte) com relação aos compradores. A Vale (e a Vale no Brasil) se posiciona principalmente no primeiro polo, devido à qualidade de alguns produtos, como o minério de ferro brasileiro, que o torna competitivo frente a outros produtores mais próximos da Ásia, como a Austrália. Obviamente há alguma base técnica da produção e da distribuição (importância da logística, tanto em termos de custos, como em termos de tempo para atendimento dos clientes), já que o negócio possui preços comandados por bolsas de mercadorias e não pelos custos e as margens podem ser afetadas. Mas o setor, como ofertante de insumos em mercados aquecidos, é uma das pontas que mais ganha pelos preços, além das quantidades. A Vale sai dos anos 2000 mais vinculada a mercados externos ao Brasil do que entrou, e com uma base produtiva mais internacionalizada também. Portanto, o sucesso da empresa não significa necessariamente uma oportunidade para o Brasil, já que está desvinculada da demanda brasileira, com a estagnação relativa da siderurgia brasileira e mesmo com as estratégias de integração vertical das siderúrgicas operando no país. Ela é, por natureza da atividade, um ramo com baixos encadeamentos para trás e, se não estiver vinculada a uma demanda industrial, acaba por operar em um padrão de enclave. A outra maneira de se apropriar dos ganhos da Vale seria através da redistribuição direta da renda em prol de objetivos nacionais. No entanto, após a privatização, os benefícios dos dividendos e do pagamento de juros são privados e em boa medida estrangeiros, que recebem uma boa fatia dos rendimentos do negócio pela propriedade de ações preferenciais ou pelo fornecimento de empréstimos (que funcionam como uma aplicação para o grande capital). A única fatia que ficaria seria a dos diferentes tipos de impostos aplicados, sendo mais bem aplicados na parte dos negócios da empresa presentes no país. A estratégia de se intensificar na produção de seu principal ramo, o minério de ferro, é uma opção estratégica pela dependência da companhia e do Brasil na demanda da China e no ciclo econômico internacional. Ativos que teriam alguma importância estratégica para o país, como a produção de alumínio, foram vendidos sem grandes consequências, coerentemente com uma estratégia corporativa descolada das necessidades do país. A potência econômica que significa estar na produção mineral onde está a Vale hoje dá à empresa algumas vantagens não comuns para empresas brasileiras. Uma delas é, apesar da importância que há do financiamento estrangeiro e mesmo nacional (e do BNDES), a maior parte 254 da ampliação do passivo da empresa foi pelo crescimento do patrimônio líquido, em grande medida pela reinversão dos lucros obtidos nos anos anteriores. Significa que o excedente econômico está destinado ao crescimento da empresa, o aprofundamento de suas operações e à estratégia de crescimento via aquisições. Em resumo, a Vale como companhia privada representa uma gigantesca transferência de riqueza, em parte para a burguesia brasileira que a controla, e em parte para o grande capital internacional que participa do controle e a financia. É uma transnacional de base brasileira, cujo principal negócio se inicia no Brasil a partir de vantagens comparativas inegáveis, mas cujo ciclo termina na siderurgia e na manufatura asiática e europeia. 8. Referências Bibliográficas BIONDI, Aloysio (1999). O Brasil Privatizado – um balanço do desmonte do Estado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999. CARRASCO, Vinicius; MELLO, João Manoel Pinho de (2011). Valeu a pena privatizar a Vale? Disponível em: <http://www.brasil-economia-governo.org.br/2011/04/06/valeu-a-pena- privatizar-a-vale>. Acesso em: <10/08/2013>. DALLA COSTA, Armando ( 2009). A Vale no novo contexto de internacionalização de empresas brasileiras. Disponível em: <www.empresas.ufpr.br/vale.pdf>. Acesso em: 12/02/2012. MELLO, Ediméia Maria Ribeiro de; PAULA, Germano Mendes de (2000). Mineração de Ferro e Enclave – Estudo de Caso da Companhia Vale do Rio Doce. In: Anais do IX seminário de Economia Mineira, 2000. Vol. 1, PP. 613-636. 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Introdução A Gerdau é uma siderúrgica de controle brasileiro mas de operação transnacional, herdeira de um negócio familiar controlado pela família Gerdau Johannpeter desde 1901. Seu negócio principal é a produção de aços longos a partir de usinas semi-integradas, conhecidas por mini-mills a partir e principalmente para os mercados domésticos do Brasil, América do Norte e América Latina. É uma empresa que atua num setor sem grandes inovações tecnológicas, com tecnologia relativamente livre, com escalas médias a grandes e longo período de amortização dos investimentos. A grande questão do ramo siderúrgico hoje é a presença de grande capacidade produtiva ociosa, de um grande produtor mundial de aço e de manufaturas de aço – a China -, margens estreitas para os produtores e uma demanda que se recupera muito lentamente no póscrise de 2008. O setor está marcado por alta competitividade e comércio internacional crescente, o que será um desafio para todos os grandes produtores e mercados, incluindo o da Gerdau e o do Brasil. A Gerdau, nesse sentido, está estruturalmente condicionada à criação de mercado para seus produtos principais, os aços longos – a construção –, e em menor medida ao processo de desindustrialização que compromete parte dos seus mercados, além de se apoiar no acesso financiamento dos mercados de capital internacional e nacional (em menor medida) e do BNDES para prosseguir sua expansão, cujo ritmo foi duramente desacelerado nos últimos anos. Neste Anexo C, serão apresentados o Histórico breve da empresa, o cenário do mercado siderúrgico, quais foram as principais transformações da empresa ao longo do período estudado, caracterizaremos a sua base produtiva e financeira e, por fim, será feita uma síntese e uma discussão acerca dos resultados dessa pesquisa. 2. Histórico A história177 da Gerdau se resume em um conjunto de aquisições de empresas siderúrgicas que foram sendo reunidas sob o controle da família Gerdau Johannpeter: “A 177 Seção elaborada a partir dos dados disponibilizados pela Gerdau (Relatório Anual 2012, Formulários 20-F de 2001 e 2012) e no artigo de Athia e Dalla Costa (2009). 258 Companhia atual é o resultado de uma série de aquisições corporativas, fusões e outras transações realizadas a partir de 1901” (GERDAU, F20F, 2012: p.17). O grupo Gerdau tem como origem os negócios do imigrante alemão Johann Gerdau, conhecido como João Gerdau, que adquiriu em 1901 a Fábrica de Pregos Pontas de Paris em Porto Alegre. A empresa passou a ser conduzida pelo seu filho, Hugo Gerdau, desde 1903 até 1946. Neste período, a companhia produzia com matéria-prima importada e tinha como mercado principal a região sul, apesar de vender também para outras regiões. Ainda sob o comando de Hugo, a empresa construiu nova unidade em Passo Fundo (RS) em 1933. A partir de 1946 assume o comando da empresa o genro de Hugo, Curt Johannpeter. É nesta fase que a Gerdau se torna uma empresa de aço, ao adquirir em 1948 a Usina Siderúrgica Riograndense devido a uma necessidade de garantir insumos e permitir a expansão do negócio e passou a operá-la sob a base produtiva do que se chamaria depois de mini-mills (pequenas usinas baseadas a forno de arco elétrico usando sucata de aço como insumo). Em 1957, a Gerdau construiu uma nova siderúrgica em Sapucaia do Sul (RS) e em 1962, construiu uma nova fábrica de pregos em Passo Fundo. Foram nas décadas de 1960 e 1970 que a Gerdau se tornou uma empresa de atuação nacional, já sob o comando dos filhos de Curt: Germano, Claus, Jorge e Frederico desde 1964. Primeiro, adquiriu a Fábrica de Arames São Judas Tadeu (pregos e arames), em São Paulo, em 1967. Embora a fábrica tenha fechado, ela deu base para montar a Comercial Gerdau (1971), braço importante do grupo até hoje. Em 1969, adquiriu a Siderúrgica Açonorte, em Pernambuco, e em 1971, a Siderúrgica Guaíra, no Paraná, ambas produtoras de aços longos e o começo da especialização da companhia nesse tipo de produto. Ainda em 1971, iniciou a construção da Companhia Siderúrgica da Guanabara (Cosigua) em parceria com o grupo alemão Thyssen e assumiu seu controle completo em 1979. Esta usina é até 2012 a maior usina semi-integrada (mini-mill) da América Latina e deu base para a constituição da Gerdau S.A. Em 1981, parte a Companhia Siderúrgica do Alagoas e, em 1982, a Usina Cearense em Maracanaú (CE). No final dos anos 1980, a Gerdau participa do processo de aquisição das empresas privatizadas178: usina Barão de Cocais (MG) em 1988, Usiba (BA) em 1989, Cosinor 178 A privatização foi a base da formação de grandes grupos privados siderúrgicos brasileiros, como a Usiminas e a CSN. A siderurgia era majoritariamente estatal (em aços planos havia monopólio) até o início das privatizações em 259 (1991), Aços Finos Piratini (1992), uma fabricante de aços especiais, e a Açominas, usina integrada em Minas Gerais, da qual se torna acionista em 1997 e controladora em 2001. Também adquiriu a Siderúrgica Pains (MG) em 1994. Por fim, na segunda metade dos anos 1990, a empresa iniciou um processo de integração para tornar a companhia mais atraente no mercado de capitais179. Assim, o conjunto de empresas sob controle do grupo foi reunido sob a Gerdau S.A. e em 1999 a empresa, que já tinha capital aberto desde os anos 1980 no Brasil, lança suas ações na Bolsa de Valores de Nova Iorque (NYSE). Nos anos 1980, a Gerdau iniciou seu processo de internacionalização, durante o período agudo da crise econômica brasileira. Em 1981, foi adquirida a Siderúrgica Laisa S.A., única produtora de aços longos no Uruguai. Em 1989 foi a vez da Courtice Steel Inc., no Canadá; em 1992 comprou a Siderúrgica Aza S.A. no Chile e, em 1995, a Manitoba Rolling Mills, no Canadá. Na Argentina, adquiriu a SIPSA em 1997 e a SIPAR em 1998. Por fim, a Gerdau fez sua aquisição mais importante em 1999: comprou 88% da Ameristeel (os 12% restantes vieram no ano seguinte), com quatro usinas na Costa Leste dos Estados Unidos. Na virada dos anos 2000, a Gerdau já era a maior produtora de aços longos das Américas. Possuía em 2001 28% da sua capacidade produtiva na América do Norte e 15% na América Latina, sendo o restante no Brasil. No mesmo ano, era a maior produtora de aços longos do Brasil, a maior comerciante de aço, além de quarta maior em produção de aço bruto. Mais da metade da produção se destinava à construção civil, de onde vinha a maior parte do seu lucro. No ramo do comércio, um de seus diferenciais frente a outros produtores, detinha 70 filiais da Comercial Gerdau e chegando a 200 pontos com comerciantes credenciados. 1988, quando se iniciou a privatização do sistema Siderbrás por usinas menores, e em especial com o Programa Nacional de Desestatização no início dos anos 1990. A privatização também foi acompanhada por um processo de desnacionalização da propriedade (BNDES, 2001). 179 “No início de 1995, foi iniciado um programa de reestruturação para simplificar a complexa estrutura organizacional, resultado do processo de expansão e desenvolvimento através da aquisição e fundação de companhias. Os principais objetivos deste projeto eram: melhorar a transparência das operações; alcançar maior aceitação nos modernos mercados de capitais brasileiros; e melhorar as condições de acesso a os mercados de capitais internacionais” (GERDAU, Formulário 20-F, 2001: p.11). 260 3. Mercado A Gerdau é uma empresa siderúrgica que atua principalmente no segmento de aços planos, operando através de usinas semi-integradas, conhecidas por mini-mills, unidades menores e operando mais próximas às regiões industriais e consumidoras de aço. Sua área de atuação é, especialmente, o continente americano, em especial Brasil, EUA e Canadá (América do Norte), também presente na Espanha e na Índia. Devido à base técnica e aos mercados em que atua, fornece principalmente para mercados domésticos, tendo pequena participação em negócios de exportação. Para compreender como funcionam os mercados em que a Gerdau atua, em especial o brasileiro, será preciso apresentar no primeiro item um panorama do mercado siderúrgico mundial, polarizado pela ascensão da China como maior demandante e ofertante. No item seguinte, serão apresentados sumariamente os processos produtivos e produtos principais do aço. Na sequência, serão apresentados o comportamento dos preços e dos custos do aço no período dos anos 2000 e, no tópico seguinte, como a capacidade ociosa gerada tem impacto as empresas em todo o mundo. Por fim, será apresentado em linhas gerais o mercado brasileiro. 3.1. Panorama da produção e consumo mundiais Desde 1997, a produção anual global de aço saltou de 777 milhões de toneladas para 1.548 milhões de toneladas em 2012, um aumento anual médio de 4,7% (GERDAU F20-F, 2012). O elemento dinâmico do setor siderúrgico tem sido desde 1993 pelo aumento do consumo e da produção da China (GERDAU F20F, 2001). Como se pode ver na figura abaixo, a produção da China sozinha apresenta uma espetacular ampliação nos anos 2000: 261 Gráfico C.1. Produção Mundial de Aço Bruto (inclui todos os tipos), em mil ton. Fonte: World Steel Association – Steel Statistical Yearbook (elaboração própria) Para se ter uma dimensão, em 1999, a China já produzia mais do que os Estados Unidos e passou a produção da União Europeia (EU-27) em 2003 e, em 2012, a China correspondia a 46,4% de toda a produção mundial. Se considerarmos o aumento de produção física entre 2000 (848 milhões de toneladas) e 2012 (1.545 milhões, com dados da World Steel Association), 97,5% corresponde à Ásia e 84,5% corresponde somente à China. Neste período, somente a produção de países como a Índia e regiões como o Oriente Médio e o grupo “Outros Europa” (marcadamente a Turquia) ultrapassaram a média mundial, permitindo aumentar a fatia no total. Demais produtores tradicionais viram sua fatia do mercado mundial se reduzir no período. 262 Tabela C.1. Produção mundial de aço por região e países (selecionados), variação da produção e taxas de crescimento (2000-2012) % da Produção Mundial 2000 União Europeia (27) .Alemanha Europa - outros CES .Rússia .Ucrânia 2006 2012 Produção Física (mil ton) 2000 22,8% 16,6% 10,9% 193.387 5,5% 3,8% 2,8% 46.376 2012 ∆ 2000-12 % da Var. ∆ 00-12 Crescim. 00-12 (%) Tx cresc. média (a.a) 168.592 42.661 -24.795 -3.715 -3,6% -0,5% -12,8% -8,0% -1,1% -0,7% 2,0% 2,3% 2,6% 17.014 39.923 22.909 3,3% 134,6% 7,4% 11,6% 7,0% 9,6% 5,7% 7,2% 4,6% 98.489 59.136 110.956 70.426 12.467 11.290 1,8% 1,6% 12,7% 19,1% 1,0% 1,5% 3,7% 3,3% 2,1% 31.767 32.975 1.208 0,2% 3,8% 0,3% América do Norte 15,9% 10,5% 7,9% 135.353 121.608 -13.745 -2,0% -10,2% -0,9% .Estados Unidos 12,0% 7,9% 5,7% 101.803 88.695 -13.108 -1,9% -12,9% -1,1% América do Sul 4,6% 3,6% 3,0% 39.110 46.379 7.269 1,0% 18,6% 1,4% .Brasil .América do Sul Outros 3,3% 1,3% 2,5% 1,1% 2,2% 0,8% 27.865 11.245 34.524 11.855 6.659 610 1,0% 0,1% África 1,6% 1,5% 1,0% 13.827 15.337 1.510 Oriente Médio 1,3% 1,2% 1,6% 10.780 24.679 13.899 39,2% 54,0% 65,5% 333.144 1.011.732 15,1% 33,7% 46,4% 128.500 716.542 3,2% 4,0% 5,0% 26.924 77.561 12,5% 9,3% 6,9% 106.444 107.232 5,1% 3,9% 4,5% 43.107 69.073 3,3% 3,2% 2,7% 28.169 41.324 Ásia .China .Índia .Japão .Coreia do Sul .Ásia - Outros Oceania 0,9% 0,7% Mundo 100% 100% 23,9% 5,4% 1,8% 0,4% 0,2% 10,9% 0,9% 2,0% 128,9% 7,1% 678.588 588.042 50.637 788 25.966 13.155 97,5% 84,5% 7,3% 0,1% 3,7% 1,9% 203,7% 457,6% 188,1% 0,7% 60,2% 46,7% 9,7% 15,4% 9,2% 0,1% 4,0% 3,2% 5.805 -2.027 -0,3% -25,9% -2,5% 100% 848.934 1.545.011 696.077 100,0% 82,0% 5,1% 0,4% 7.832 Fonte: World Steel Association – Steel Statistical Yearbook (elaboração própria) O crescimento Chinês, tanto da demanda como da oferta, decorre do processo acelerado de industrialização e implementação de projetos de infraestrutura. Nos primeiros anos, a China ofereceu um grande dinamismo para o mercado mundial de aço, dado que era um gigantesco importador líquido. Em 1999, o país já tinha maior consumo aparente que os EUA e em 2002 passou a União Europeia, exercendo uma pressão violenta na oferta e nos preços, tanto dos bens finais como das matérias-primas (minério de ferro e sucata de aço). Este cenário mudou à medida que ela conseguiu consolidar a posição de maior produtor até o ponto em que, a partir de 2006, torna-se exportador líquido. 263 Gráfico C.2. Saldo comercial de aço bruto (produção – consumo aparente), em mil ton Fonte: World Steel Association – Steel Statistical Yearbook (elaboração própria) Desde a eclosão da crise mundial em 2008, o setor vem se caracterizando por um excesso de capacidade produtiva e baixas margens financeiras, pressionadas por altos custos de insumos e baixo preço. A incapacidade de resolução rápida do problema, que passaria por uma consolidação do setor, envolvendo o fechamento e/ou aquisição de empresas e plantas menos eficientes, tem sido retardada por políticas nacionais de defesa de setores estratégicos e de empregos. As previsões mais otimistas mostram uma solução para a crise de capacidade ociosa em cinco anos (OCDE, 2012b). Até lá, o cenário é de dificuldades no setor, com cenários diferenciados entre os tradicionais (EUA, União Europeia e Japão) e os novos gigantes do setor (China e Índia). Na China, o governo manteve projetos de infraestrutura para segurar o setor e, apesar de estimular a consolidação, aposta na ampliação da exportação de manufaturados, o que é a segunda face da concorrência no mercado de aço, por via indireta (RIBEIRO, 2012). 3.2. Processos e produtos do aço A siderurgia é um setor puxado pela demanda, tanto no que diz respeito à quantidade quanto aos tipos de produtos. De Paula (2012) explica que não são frequentes inovações radicais no setor, a fronteira tecnológica se desloca lentamente, apesar do largo espaço melhorias na tecnologia de processo (inovações incrementais). No último século, houve apenas duas inovações radicais no setor: (a) a aciaria básica a oxigênio (conversor LD) a ferro-gusa, dos anos 1950; e (b) O lingotamento contínuo (processo de solidificação). Na parte da aciaria, o autor cita ainda como 264 destaque a aciaria elétrica, base das mini-mills180, alimentadas com sucata de aço. Recentemente, tem se destacado duas tecnologias de compactação de processos que servem às usinas tradicionais integradas a coque (método tradicional): thin-slab-casting e processos alternativos de produção de ferro primário (DE PAULA, 2012: p. 46-49). No lado da inovação de produto, ao contrário do processo, há maior apropriabilidade das inovações (capacidade de uma empresa reter os benefícios de uma inovação), especialmente existentes no desenvolvimento de aços especiais e no relacionamento com clientes, para produção de materiais e soluções sob demanda. BOM Atualmente, o mercado é dividido em dois processos produtivos, basicamente: Usinas Siderúrgicas Integradas, a partir de óxido de ferro, que é obtido pela fundição do minério de ferro em alto-fornos, refinando o ferro em aço por fornos básicos a oxigênio ou, menos frequentemente, por fornos elétricos a arco. Os alto-fornos são conhecido em inglês pela sigla BF (Blast Furnace) e os fornos básicos a oxigênio, pela sigla BOF (Basic Oxygen Furnaces), sendo o processo conhecido por BF/BOF. É um processo menos dependente de energia elétrica que o das mini-mills (ver abaixo). Usinas Siderúrgicas Não-integradas, conhecidas por “mini-mills”, a partir de sucata de aço, que é fundida em fornos elétricos a arco, ocasionalmente completadas com outros metais. Os fornos elétricos a arco são conhecidos em inglês pela sigla EAF (Electric Arc Furnace). Neste processo também pode ser usado o ferro-gusa como matéria-prima, caso das usinas da Gerdau no Brasil. 180 Para uma análise que enxerga as mini-mills como caso de inovação disruptiva, ver CHRISTENSEN e RAYNOR (2003). 265 Tabela C.2. Produção global e divisão entre processos produtivos (2011) Produção de aços brutos (em mi ton) País Produção, por processo (%) Mini-Mills Integradas Global 1.514 29,3% 70,7% China 684 10,4% 89,6% Japão 108 23,1% 76,9% EUA 86 60,3% 39,7% Índia 71 61,9% 38,1% Rússia 69 26,9% 73,1% Coréia do Sul 69 38,6% 61,4% Alemanha 44 32,1% 67,9% Ucrânia 35 4,5% 95,5% Brasil 35 25,0% 75,0% Fonte: Gerdau, F20-F 2012 A produção semi-integrada, foco da Gerdau, tem como diferencial a necessidade de uma oferta de sucatas de aço em quantidade e em regularidade suficiente para suprir as usinas. Essa oferta é uma característica de países em que o uso difundido do aço já é consolidado a tempo suficiente para haver a obsolescência permanente de uma quantidade relevante de bens de aço (como automóveis, latas, linha branca etc.) ou um fluxo permanente restos provenientes da indústria. Na tabela acima, fica claro que o processo via mini-mills é muito importante nos EUA, importante local de expansão da Gerdau; no Brasil, não é desprezível (25% do total), sendo a maior parte ligada à Gerdau. Além disso, as mini-mills têm escala produtiva eficiente mínima muito menor, o que possibilita um menor capital investido e mais flexibilidade às necessidades e flutuações de mercado181. Uma pequena revolução no processo produtivo consolidada somente nos anos 1960 nos EUA, a produção semi-integrada modificou o paradigma da indústria, associada a altos 181 “As mini- mills são unidades menores que oferece mvárias vantagens sobre as grandes produtoras integradas de aço, incluindo: (i) custos de capital mais baixos; (ii) menores riscos operacionais, uma vez que se evita uma concentração de capital e da capacidade de produção em uma única unidade de produção; (iii) proximidade das unidades de produção com as fontes de matéria -prima; (iv) proximidade dos mercados locais e facilidade para ajustes nos níveis de produção; (v) custos de matéria-prima mais baixos, principalmente devi do ao uso de sucata em vez de minério de ferro e coque, que são empregados pelas usinas integradas; e (vi) estrutura administrativa mais eficiente devido à relativa simplicidade do processo de produção e menor necessidade de mão-de-obra” (GERDAU, F-20F, 2001: p.18). 266 custos de capital, reduziu drasticamente as barreiras à entrada e viabilizou a internacionalização de grupos siderúrgicos ao reduzir o valor necessário do investimento em plantas novas ou na aquisição de existentes. (ANDRADE, CUNHA & GANDRA, 2000). O mercado é dividido em alguns produtos: Aços longos, cujos usos principais são: construção civil (vergalhões, barras, pregos e telas), manufatura (produtos para maquinários e equipamentos agrícolas, ferramentas e outros), entre outros; 3.3. Aços planos, como placas, chapas, blocos, tarugos e bobinas. Aços especiais, desenvolvidos sob demanda para usos industriais. Custos e Preços na Siderurgia Os preços do aço, bem como de outras commodities que tiveram os mercados rápida e intensamente aquecidos, subiram substancialmente. O preço do aço (em seus diversos mercados e tipos) tem um comportamento típico desde o início dos anos 2000: se amplia firmemente e tem um pico extremo em 2008, cai abaixo do patamar dos anos 2006-2007 e volta a subir. Selecionamos para exemplificar um preço de tarugos exportador para o leste europeu, usado pela Gerdau como referência de preços (não os praticados no Brasil ou nos EUA, mas como preço do produto de exportação em mercados mais dinâmicos). 267 Gráfico C.3. Preço médio dos tarugos exportados para os países do leste europeu (CIS) no Mar Negro/Mar Báltico (US$/ton) (Preço tomado como referência para a Gerdau) Fonte: GERDAU, F20-F, 2012. Patamar de US$ 150/tonelada em 2001 para um patamar de 300 em meados da década (dobro), atingindo um patamar de mais de 400 em 2007 e um pico pré-crise de 1200. Voltou a menos de 400 após a eclosão, atingindo um patamar de 600 em 2011-2012 e voltando a cerca de 500. Ou seja, mesmo após a atual queda, os preços ainda estão em um patamar que em termos reais deve se aproximar de três vezes maior que o do começo da década. Este aumento seria um tremendo impulso à rentabilidade e à ampliação do setor se não fosse o concomitante aumento dos preços das principais matérias-primas: minério de ferro, carvão, sucata de aço. A tendência nos últimos anos tem sido não apenas de ampliação dos preços dos insumos em linha com os do aço, mas especialmente a ampliação destes preços acima dos preços do produto final. O resultado é um aumento da participação dos custos com insumos no preço final do aço. 268 Gráfico C.4.Custo do minério de ferro e do carvão de coque como percentual do preço do aço HRC (Hot-Rolling Cold) Fonte: OCDE (2012) A oscilação dos preços da sucata de aço também seguiu as tendências das matérias-primas fundamentais das usinas integradas, pressionando também as usinas baseadas nos fornos de arco elétrico. A sucata de aço em seus vários tipos já virou uma commodity e possui um mercado mundial polarizado pelas exportações dos EUA – a Gerdau neste país possui somente usinas mini-mills a sucata. Gráfico C.5. Preços da Sucata de Aço (AMM #1 HMS Composite) nos EUA (US$/mi ton) Fonte: concreteconstruction.net 269 O gráfico a seguir pode ser usado como uma aproximação para se entender o que ocorre com a distribuição do valor dentro da cadeia de produção do aço. A intensa demanda, acompanhada de uma capacidade produtiva de aço que cresceu em ritmo superior, faz com que os insumos tenham um papel crescente no valor distribuído. As projeções são de continuidade do patamar atingido em 2011 para os anos seguintes. Gráfico C.6. Distribuição do valor dentro da cadeia – planos (Hot-Rolled Cold Steel) Legenda: Iron Ore: Minério de Ferro; Coking Coal: Carvão; Steel making :Fabricação do aço Fonte: Aço Brasil (2013) 3.4. A capacidade ociosa e a queda na rentabilidade A consultoria Euler Hermes elaborou uma síntese para o problema do setor siderúrgico que ajuda a entender as tendências futuras. Na ausência de maiores freios, a capacidade produtiva chinesa, mesmo em unidades menos eficientes e com enorme capacidade ociosa, deve prosseguir crescendo: “The massive scale of production in China, which consumes 60% of seaborne iron ore, means that the country essentially dictates the pricing for steel raw material inputs. While the recent slowdown in China is alleviating raw materials costs, prices remain well above historical norms. It is estimated that roughly 50% of China’s steel production is unprofitable at current prices. Despite this there has been no slowdown in production as the steel industry is a major source of employment in the country and is heavily subsidized by the government” (EULER HERMES, 2013) 270 Portanto, o problema mais visível do setor hoje é a capacidade ociosa. O principal motor de aumento da demanda, a China, desacelerou bastante após a eclosão da crise em 2008 e, com ela, a economia mundial e os principais setores compradores da siderurgia: indústria manufatureira e construção. Isso é enxergado primeiro pela enorme capacidade ociosa 182 em âmbito mundial, que gira em torno de 25% (75% de capacidade produtiva em uso): Gráfico C.7. Grau de utilização da capacidade produtiva global (%) Fonte: OCDE (2012b) A seguir, o gráfico mostra uma estimativa da capacidade ociosa absoluta, que gira em torno de 300 a 350 milhões de toneladas entre 2011 e 2012 (estimado). Para se ter uma ideia, esse número equivale a dez vezes a produção total brasileira em 2012. 182 No estudo da OCDE (2012b), é indicado que a capacidade produtiva máxima é na verdade de 90% a 95% da capacidade nominal das usinas. Este valor inferior seria o limite dentro do qual as usinas siderúrgicas conseguiriam operam sem ter fortes deseconomias de escala, ou seja, seria uma capacidade máxima do ponto de vista técnico e econômico. 271 Gráfico C.8. Capacidade produtiva (efetiva) e demanda mundiais por aço Fonte: OCDE (2012b) Nos Estados Unidos, um dos mercados prioritários da Gerdau, o patamar de utilização da capacidade gira em torno da mesma magnitude – em torno de 75%. Note-se que a lucratividade após impostos não excede os 10% desde 2008. Gráfico C.9. Utilização da capacidade e impacto na lucratividade - EUA Fonte: Euler Hermes (2013) A situação da capacidade ociosa no Brasil é ainda mais grave. Segundo os dados da Aço Brasil, as médias de utilização da capacidade no país têm sido sistematicamente inferiores às 272 mundiais desde 2005 (com exceção de 2008, quando andou em linha). Os dados de 2013 apresentavam, até o primeiro semestre, capacidade utilizada de 69,# contra 77,0% no mundo. Gráfico C. 10. Nível de utilização da capacidade instalada no Brasil e no Mundo Fonte: Aço Brasil (2013) A persistência da capacidade ociosa implica uma redução da rentabilidade do setor siderúrgico. De um modo geral, a pressão dos custos, por um lado, e a enorme competitividade na siderurgia, por outro, levam o setor a um impasse. O setor é marcado por enormes barreiras à saída, suscetibilidade a políticas comerciais e ao interesse estratégico dos países, entre outros fatores que impedem uma saída “pura” de mercado. Logo, são pequenas as perspectivas de saída no curto prazo (OCDE, 2012b), com um horizonte médio de 5 anos para retorno do dinamismo. Até lá, pode-se esperar a continuidade dos resultados medíocres no setor. 273 Gráfico C.11. Fluxo consolidado de caixa livre após juros - empresas de aço (US$ bi) Percentual das empresas com fluxo de caixa negativo; Taxa (média) Dívida líquida/EBITDA Fonte: McKinsey (2013) O gráfico anterior mostra como se deterioram o fluxo de caixa e os indicadores de endividamento. O gráfico a seguir mostra como a margem EBITDA está comprometida e as empresas estão abaixo da margem de 16%, considerada pela consultoria McKinsey o mínimo para garantia de sustentabilidade a longo prazo na siderurgia. O gráfico destaca o fato de que a indústria só ultrapassou esse valor na média durante um período marcado pela bolha de crédito na economia mundial. 274 Gráfico C.12. Margem EBITDA para grandes empresas de aço (% das vendas) Amostra com 42 companhias. Margem de 16% considerada sustentável para o setor a longo prazo Fonte: McKinsey (2013) Abaixo, a série das margens EBITDA de Usiminas e Gerdau. Note-se que as empresas apresentam resultados médios acima do mundial, mas acompanham a tendência até o final. A Gerdau nos últimos anos mantém uma margem na média, ultrapassando-a no final do período. Gráfico C.13. Margem EBITDA da Usiminas e da Gerdau (%) e câmbio real efetivo (dez.2003=100) Fonte: Aço Brasil (2013) 275 Este cenário exigirá um longo processo de digestão da capacidade ociosa, que pode redundar em nova rodada de concentração do capital (intensificação) e centralização (da propriedade em empresas e da produção em países). Será preciso verificar se a China continuará com capacidade produtiva superior à demanda e se o seu aço será um desafio aos mercados nacionais, dentre os quais o dos EUA e do Brasil. 3.5. O mercado brasileiro Historicamente, o mercado brasileiro de aço é um subproduto do processo de substituição de importações e, como tal, esteve sempre vinculado às necessidades do mercado interno. Portanto, a produção esteve muito vinculada ao esforço estatal na produção de insumos industriais e aos diferentes ciclos da economia, em particular sua crise desde o final dos anos 1970. Os anos 1990 foram uma importante transição, em que ocorreu um processo total de privatização do setor, desnacionalização de parte dele e grande centralização da propriedade, além de uma modernização estimulada pela concorrência e a moeda doméstica apreciada. Como desde então o país passou por uma intensa rodada de desindustrialização nos anos 1990 e passa por outra desde o final dos anos 2000, o setor siderúrgico tem como principal característica a dificuldade de garantir o mercado interno. Este é um problema estrutural desde os anos 1980 (ver gráfico abaixo) e, como resultado, o setor de aço tem como desafio exportar seu excedente. Nos últimos cinco anos, as exportações estão comprometidas pela alta competitividade e o baixo crescimento, há imensa capacidade ociosa e o setor manufatureiro não responde, restando algum mercado apenas nos mercados puxados pelas obras de infraestrutura e construção residencial em ciclo organizado pelo Estado. Como já foi visto, o Brasil também perdeu participação na produção mundial, de 3,3% em 2000 para 2,2% do total em 2012, ainda que sua produção física tenha aumentado (o que não foi o caso de todos os países ou regiões). 276 Gráfico C.14. Produção de aço bruto e consumo aparente de laminados (Mt) Fonte: Aço Brasil, 2013. Nos últimos anos, como se pode ver no gráfico abaixo, tirando o setor de comerciantes (Distribuidores), as vendas diretas do setor foram dinamizadas especialmente para a construção e, dentro da indústria, para autopeças e automobilística. Os setores mostrados correspondem a 51,4% das vendas físicas e os Distribuidores correspondiam a 34,9% (sem conseguirmos saber para quais setores eles venderam). Gráfico C.15. Distribuição setorial das vendas internas - maiores setores, exceto Distribuidores (%) Fonte: Ministério de Minas e Energia - Anuário Estatístico do Setor Metalúrgico – vários anos (elaboração própria) 277 Durante os anos 2000, o perfil de produção de aços permaneceu quase o mesmo, pendendo levemente (3 pontos percentuais) para os aços longos. Os aços especiais permaneceram 5% do total. Isto ajuda a explicar, como veremos, a liderança da Gerdau como mais siderúrgica dentre as brasileiras. Tabela C.3. Produção brasileira de aço por tipos (%) EMPRESAS 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 1. Produtos Planos 60% 62% 59% 60% 63% 62% 63% 61% 61% 58% 59% 60% 57% 1.1. Aço carbono 58% 59% 59% 60% 60% 59% 60% 59% 58% 56% 56% 57% 54% 2% 2% 3% 3% 3% 3% 3% 3% 2% 2% 2% 2% 2% 2. Produtos Longos 40% 38% 41% 40% 37% 38% 37% 39% 39% 42% 41% 40% 43% 2.1. Aço carbono 37% 35% 38% 37% 34% 34% 34% 36% 35% 38% 39% 37% 40% 3% 3% 3% 3% 4% 4% 3% 3% 4% 4% 3% 3% 3% 1.2. Aços especiais ligados 2.2. Aços especiais ligados Fonte: Ministério de Minas e Energia - Anuário Estatístico do Setor Metalúrgico – vários anos (elaboração própria) Resultado direto do processo de longa crise no setor e de privatização, o setor se consolidou fortemente desde os anos 1980 e o processo prosseguiu nos 2000. A Gerdau foi de 22,5% do total em 1999 para 24,9% em 2011; no setor de Aços Longos, ela atingiu 52,2% em 2012, sendo 50,8% nos Longos de aço carbono e 68,2% nos Longos especiais. Seus concorrentes diretos são a ArcelorMittal Aços Longos (adquiriu a Belgo Mineira), Votorantim Siderurgia, Sinobras, V&M do Brasil e Villares Metals (os dois últimos particularmente no ramo de aços longos especiais). 278 Tabela C.4. Produção brasileira de aço bruto – por empresa (mil ton) EMPRESAS 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Aperam 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 771 739 ArcelorMittal Inox 0 0 0 0 0 0 0 0 797 770 607 0 0 786 856 786 709 749 0 0 0 0 BelgoMineira 2.300 2.571 2.668 2.827 ArcelorMittal Tubarão 4.414 4.752 4.784 4.904 Acesita ArcelorMittal Aços Longos 835 753 810 0 0 0 0 0 3.250 3.272 3.569 3.739 3.502 3.171 3.394 3.538 2.889 0 0 0 0 0 0 0 0 4.812 4.958 4.850 5.136 5.692 6.177 5.334 5.956 5.405 CSA 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 478 3.147 CSN 4.851 4.782 4.048 5.107 5.318 5.518 5.201 3.499 5.323 4.985 4.375 4.902 4.874 Gerdau 5.614 6.116 5.826 5.999 6.976 7.284 6.889 6.994 8.111 8.711 6.105 8.177 8.777 632 660 508 595 661 816 680 704 0 0 0 0 0 Villares Metals 0 0 94 105 113 122 133 122 135 140 92 119 137 Sinobras 0 0 0 0 0 0 0 0 0 42 181 239 243 Usiminas 2.980 4.438 4.620 4.574 4.524 8.951 8.661 8.770 8.675 8.022 5.637 7.298 6.698 Cosipa 2.593 2.746 2.460 3.873 4.097 0 0 0 0 0 0 0 0 Aços Villares V&M do Brasil 365 519 500 500 551 611 592 659 686 655 387 573 573 VSB 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 3 Votorantim Siderurgia 0 0 0 0 0 0 0 0 0 712 617 1.041 1.086 390 393 392 387 421 564 579 638 624 0 0 0 0 Barra Mansa CBAço 40 8 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 MWL Brasil 31 24 31 24 36 0 0 0 0 0 0 0 0 24.966 27.865 26.717 29.604 31.147 32.909 31.610 30.901 33.782 33.716 26.506 32.948 35.220 TOTAL Fonte: Min. de Minas e Energia - Anuário Estat. Setor Metalúrgico (elaboração própria) Segundo entrevista com um especialista no setor, o prof. Germano de Paula, da UFU, o setor siderúrgico brasileiro tem, no cenário internacional, pouca chance de disputar mercados externos e tende a se restringir ao mercado interno (RIBEIRO, 2012). O que dificulta o processo é que a concorrência está acirrada e vários fatores tem contribuído para dificultar a já comprometida posição brasileira no processo industrial: a valorização do real, o aumento do peso dos insumos (que diminui o peso relativo dos salários183), a redução do custo do frete que barateia o minério de ferro para outros produtores (reduz a vantagem da proximidade do Brasil com fontes de qualidade) e barateia a vinda de aço para o Brasil; o alto custo da energia elétrica impacta as usinas baseadas em fornos de arco elétrico; e o aumento do custo dos investimentos. Para uma 183 Com tal indicação, podemos inferir da análise do professor Germano de Paula que os custos salariais são ou foram um diferencial positivo para o Brasil no setor. 279 agenda completa da burguesia do setor para políticas de defesa de seus interesses, ver Aço Brasil (2013), focada na questão dos tributos, câmbio, salários, energia e infraestrutura (o “custo Brasil”). Além da competição no setor de aço, estritamente, há um outro processo mais profundo dentro do qual o setor está inserido, que são as importações indiretas de aço, embutidas em produtos diversos feitos com o material. Esta tendência representa uma ameaça à produção siderúrgica em geral. Para a Gerdau, como veremos, devido ao seu perfil de produto, não há uma ameaça mais imediata, mas significa um impacto em parte dos seus demandantes. O gráfico abaixo mostra o desempenho acelerado, nos últimos anos de déficit no comércio indireto de aço (quase metade das importações se referem à Ásia e 23% à Europa, com 14% para NAFTA e 14% para a América do Sul). Nas estimativas do Instituto Aço Brasil, as importações indiretas poderiam chegar a até 6 milhões de toneladas de aço, o equivalente à capacidade produtiva da CSN (RIBEIRO, 2013). Gráfico C.16. Comércio indireto de aço - Brasil Fonte: GUARANÁ, MOLAJONI e SZEWCZYK (2013) 4. Crescimento/Transformações 280 A estratégia da companhia pode ser sintetizada pelo seguinte trecho do relatório/formulário 20-F de 2012: “A estratégia de operação da Companhia baseia-se na aquisição ou construção de usinas siderúrgicas localizadas nas proximidades de seus clientes e das fontes de matériasprimas necessárias para a produção de aço, como sucata metálica, ferro-gusa e minério de ferro. Por essa razão, historicamente, a maior parte da produção tem sido direcionada para abastecer os mercados locais onde possui operações. No entanto, a Companhia também exporta uma parcela de sua produção para outros países” (GERDAU, F20-F, 2012: p. 27). Originalmente, enquanto foi uma empresa fundamentalmente brasileira, sua estratégia decorreu de características próprias do mercado nacional: grandes dimensões territoriais, dispersão e infraestrutura de transportes – um fator de custo relevante no setor – muito precária184. Daí a concentração em usinas semi-integradas do tipo mini-mills (ver tópico seguinte), mais adequadas para este tipo de estratégia e necessidade. A partir dos anos 1970 e particularmente a partir do processo de internacionalização, iniciado nos anos 1980, voltou-se para a aquisição de usinas tipo mini-mills com dificuldades operacionais ou financeiras, uma oportunidade de recuperar ativos com o know-how gerencial e pouco investimento em capital185. A partir dos anos 1990, o processo de consolidação do setor se tornou o padrão de crescimento das companhias, dado que se manteve uma grande capacidade ociosa e o principal mercado de expansão da produção, a China, tem o setor controlado pelo Estado. Condizente com esta estratégia, a principal fonte de mudança/crescimento da Gerdau ao longo dos anos 2000 foram as aquisições de usinas e investimentos em aumento de eficiência. Ao longo de sua história foram dezenas de aquisições no Brasil e no exterior: 184 “O principal foco dos negócios da Gerdau é a produção descentralizada de aços longos utilizando fornos elétricos a arco (EAF), mini-mills e tecnologia de lingotamento contínuo. As fábricas são localizadas e dimensionadas para que se adaptem à economia local e tenham acesso eficiente aos mercados. Essa estratégia foi uma resposta às dimensões geográficas do Brasil, sua infra-estrutura limitada e elevados custos de frete, que motivaram o crescimento de um negócio focado na venda de produtos onde as matérias-primas pudessem ser facilmente obtidas” (GERDAU, F20-F 2001: p. 12). 185 “A partir da metade da década de 1970, até o começo dos anos 1990, a Gerdau concentrou-se em aumentar sua participação demercado no Brasil medianteuma combinação de aumento da capacidade de produção das instalações existentes e de aquisições estratégicas, tipicamente de mini-mills que estivessem enfrentando problemas, n as quais a contribuição principal da empresa estaria relacionada a técnicas gerenciais , ao invés de capital” (GERDAU, F20-F 2001: p. 12). 281 Tabela C.4. Ano de fundação e/ou aquisição e localização das empresas do grupo Gerdau no Brasil – 1901-2006 Fonte: ATHIA & DALLA COSTA (2009, p. 135). 282 Tabela C.5. Ano de aquisição e/ou formação de Joint-Venture e localização das empresas do Grupo Gerdau no mercado internacional – 1980-2008 Fonte: ATHIA & DALLA COSTA (2009, p. 139). Adicionalmente às aquisições listadas, somam-se: 2009: Maco Metalúrgica (Brasil); 2010: Finaliza aquisição das ações ordinárias da Gerdau Ameristeel; aquisição da Tamco (EUA); 2011 e 2012: nenhuma aquisição; O conjunto das aquisições e investimentos incrementais na fábricas próprias, antigas e recém-adquiridas, levou a um aumento considerável na capacidade produtiva da Gerdau, especialmente até 2007. Atingiu a marca de líder na produção de aços longos nas Américas e no Brasil, segunda nos Estados Unidos. 283 Tabela C.6. Gerdau - capacidade produtiva das unidades da empresa (mil ton./ano) 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Ferro-gusa e ferro-esponja 1.356 1.356 4.380 4.390 4.643 4.010 5.860 5.850 5.890 5.890 5.890 5.890 Aço bruto 7.304 13.691 13.973 15.692 17.202 18.645 24.805 25.500 25.600 25.310 25.310 25.725 Produtos laminados 6.979 10.829 10.683 12.191 13.547 16.440 20.980 22.440 22.360 21.260 21.260 21.195 Produtos trefilados Fonte: 20F anos 897 897 830 535 2001 2002 2003 2004 ND ND ND ND ND 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Fonte: Gerdau, Relatórios 20-F, diversos anos (elaboração própria) O resultado da empresa expressa esse crescimento baseado especialmente em aquisições. Quando, após a eclosão da crise, a empresa reviu seu ritmo de compras e o mercado se contraiu, as vendas pararam de crescer no mesmo ritmo (e mesmo decrescem depois da recuperação de 2010), enquanto custos aumentam mais que proporcionalmente e lucros se reduzem. Gráfico C.17. Gerdau – Resultados (em US$ milhões) (Os dados se diferencial entre US GAAP e UFRS devido à mudança no padrão contábil) Fonte: Gerdau, Formulário 20-F, diversos anos (elaboração própria) Embora tenha tido um crescimento da ordem de dez vezes nas receitas entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2010, a Gerdau, como o padrão do setor siderúrgico, viu suas margens reduzidas ao longo do período. 284 Gráfico C.18. Gerdau – Indicadores de margem (%) Fonte: Gerdau, Formulário 20-F, diversos anos (elaboração própria) Dentre as empresas brasileiras, a Gerdau foi a que mais se destacou individualmente. Dentro do ranking da World Steel Association, ela conseguiu ampliar a participação na produção total e subir posições entre 2000 e 2012. Enquanto isso, as outras duas grandes, CSN e Usiminas, foram perdendo posições, reflexo da situação do mercado de aços planos no Brasil e das suas exportações (CST e Cosipa foram adquiridas por outras empresas). Tabela C.4. Participação de empresas brasileiras no ranking de maiores do mundo – posição e participação na produção total (%) 2000 2006 2012 Posição % Total Posição % Total Posição % Total Gerdau 25 1,2% 14 1,8% 14 2,1% Usiminas 44 0,8% 32 1,0% 50 0,8% CSN 41 0,8% 75 0,4% - - CST 42 0,8% - - - - Cosipa 74 0,5% - - - - 4,1% Total Nº de empresas 3,2% 80 80 2,9% 50 Fonte: World Steel Association (elaboração própria) Quanto á sua posição no ranking dos 200 maiores grupos do Brasil, a posição é de presença entre os grandes (Vale, JBS, Odebrecht, Votorantim) desde o início da série. Sua 285 posição relativa na lista dos maiores grupos em geral é que oscila muito após a crise, reverberando em uma queda brusca em 2009, não plenamente recuperada nos anos seguintes. Tabela C.5. Posição da Gerdau no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas). (*ND: Dado não encontrado) 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 200 grupos 30º 21º ND* 10º 10º 11º 10º 8º 19º 16º 16º 25 maiores indústria 5º 5º ND* 2º 2º 3º 3º 2º 4º 4º 4º Brasil Fonte: Elaboração própria com dados do anuário Valor Grandes Grupos. Para fazer uma análise da estratégia da empresa Gerdau, recorremos à síntese de Fabio Vieira, que estudou o padrão de gestão da empresa em longo período: “Apesar do constante investimento em atualização tecnológica, muitos deles de forma pioneira no Brasil, não se pode dizer que a Gerdau seja uma empresa de tecnologia. A Gerdau tem conquistado destaque e bom desempenho pela sua competência gerencial” (VIEIRA, 2007: p. 238). Ao longo da história, a empresa, cujo comando permanece fortemente vinculado aos Gerdau Johannpeter, a empresa desenvolveu um padrão estratégico voltado para o que a área de administração chama de “polo de autoperpetuação”, isto é, com projetos de ampliação com muito conservadorismo e cautela em cada salto – como foi o caso da internacionalização e na estratégia de endividamento (VIEIRA, 2007: p. 240). De um lado, representa uma parte das visões que colocam peso nas competências gerenciais da Gerdau – que são excessivamente valorizadas frentes aos condicionantes estruturais. Por outro, pode ser entendido como uma estratégia que só comporta pequenos saltos feitos à base de aquisições para garantir controle de market-share, sem qualquer diferencial realmente competitivo. Para o objetivo desta pesquisa, trata-se de enfatizar que a empresa vive em um setor ultracompetitivo e não dispõe de diferenciais inovativos que a permitam deslocar concorrentes. Pelo contrário, os gastos com Pesquisa e Desenvolvimento são baixos e a empresa considera que a tecnologia de que precisa pode ser adquirida no mercado (CHEVARRIA & VIEIRA, 2007). O diferencial da Gerdau seriam outros: 286 1) A base produtiva fundada em mini-mills, de escala menor e mais flexível frente às variações de demanda, em especial no momento de baixa como o atual (que não é um atributo exclusivo da companhia, mas é uma vantagem na siderurgia em geral); 2) A capacidade de gestão (MACADAR, 2009) que lhe conferiu a capacidade de aumentar a eficiência das unidades próprias e adquiridas (o que lhe tem conferido a capacidade de resistir melhor às adversidades); 3) O controle de um poderoso canal comercial estabelecido no Brasil, através da controlada Comercial Gerdau, o que aumenta sua participação na cadeia e diminui (não se pode dizer se compensará no longo prazo) sua desvantagem frente às importações de aços longos (mais baratos); 4) O know-how do mercado de aquisição de sucata de aço (onde a Gerdau participa como oligopsonista), fundamental para prover as mini-mills; 5) A propriedade de alguns ativos com rentabilidade superior à sua média, como é o caso da usina de Ouro Branco, adquirida da antiga Açominas, de alta produtividade e a partir da qual a Gerdau entrará no mercado de Aços Planos em 2013, minas de minério de ferro que proveem sua usinas integradas no Brasil e a partir do qual a Gerdau passa a exportar excedentes (negócio mais rentável que o aço) e as unidades de aços especiais que permitem maior valor agregado. Apesar dos diferenciais, que ajudam a explicar a situação menos desconfortável da Gerdau com relação às outras empresas brasileiras (CSN e Usiminas), a empresa está absolutamente inserida na crise do setor siderúrgico mundial e brasileiro em específico: como mostram os resultados, a Gerdau está com os indicadores de resultado, margens e endividamento (ver tópico sobre base financeira) comprometidos; a concorrência com produtos importados poderá ser contida, minorada ou atrasada com o uso das relações com os clientes obtidas pela ampla rede comercial e de serviços que a empresa possui no Brasil e EUA, principais mercados, mas é incapaz de tirar os diferenciais de preço; seu principal mercado, aços longos, depende da dinamização das obras de infraestrutura e construção, que dependem por sua vez de investimentos públicos e privatizações via concessões em curso (potencialmente um mercado promissor, mas ainda cheio de incertezas); ela dá uma cartada no Brasil para entrar no segmento de aços planos, disputando com outras grandes (Usiminas, CSN, ArcelorMittal) no mesmo 287 mercado; e inicia um processo de exportação de minério de ferro direto, como forma de aproveitar a oportunidade de vender um ativo valorizado que não pode ser explorado pela transformação dada a situação da indústria. Um exemplo mostra bem os limites dados à atuação da empresa pelos mercados que a cercam: o caso da produção de trilhos para ferrovias no Brasil. Perguntado se a Gerdau estaria disponível para montar uma fábrica de trilhos para ferrovias no país, após o anúncio das concessões de dez mil quilômetros de novas ferrovias, sem contar os vinte mil já existentes, Jorge Gerdau respondeu que a escala mínima para um laminador moderno e competitivo seria três vez maior que a demanda futura no país (BORGES, 2013). Havendo capacidade ociosa em outras fábricas do mundo, a tendência seria de continuar as importações; as medidas que obrigariam as concessionárias a adquirir trilhos no mercado nacional seriam de nenhuma utilidade, dada a inexistência de oferta interna. Ou seja, os problemas do setor passam muito além da capacidade de financiamento, do domínio técnico ou de gestão, mas por uma escala de acumulação de capital e de poder político (envolvido no planejamento e garantia de mercado para a produção) muito acima das possibilidades do Brasil – ou da Gerdau. 5. Base produtiva As características mais importantes da base produtiva da Gerdau são: primeira, sua predominância no ramo de mini-mills (74% da capacidade produtiva), o que faz com tenha unidades menores e mais próximas das fontes de matérias-primas e dos consumidores; segunda, sua distribuição geográfica é baseada nas Américas (95% da capacidade produtiva); e terceira, decorrente das duas primeiras, é que ela tem uma produção muito voltada para os mercados domésticos em que atua, exportando pequenas parcelas de sua produção (em torno de 17% em 2010 e 13% em 2012); quarta: sua produção é concentrada em aços longos, na qual é líder nas Américas e no Brasil, produto voltado especialmente para a construção. Quanto à primeira característica, a tabela abaixo pode mostra como a empresa é concentrada no ramo de mini-mills, uma opção estratégica da companhia, como já discutido. 288 Tabela C.6. Gerdau – capacidade produtiva por tipo de usina (mil ton./ano) 2001 2012 OPERAÇÃO BRASIL 3.864 100% Mini-mill com Forno elétrico a arco 3.034 79% 3.200 35% 830 21% 5.900 65% 0 0% Usina Integrada Misto 9.100 100% 0 0% OPERAÇÃO AMÉRICA DO NORTE 2.040 100% 9.870 100% Mini-mill com Forno elétrico a arco 2.040 100% 9.870 100% Usina Integrada 0 0% 0 0% Misto 0 0% 0 0% OPERAÇÃO AMÉRICA LATINA 1.090 100% 2.750 100% Mini-mill com Forno elétrico a arco 1.090 100% 2.100 76% Usina Integrada 0 0% 0 0% Misto 0 0% 650 24% OPERAÇÃO AÇOS ESPECIAIS 310 100% 4.005 100% Mini-mill com Forno elétrico a arco 310 100% 3.755 94% Usina Integrada 0 0% 250 6% Misto 0 0% 0 0% GERDAU TOTAL 7.304 Mini-mill com Forno elétrico a arco 6.474 Usina Integrada Misto 100% 25.725 100% 89% 18.925 74% 830 11% 6.150 24% 0 0% 650 3% Fonte: Gerdau, Relatórios 20-F, diversos anos (elaboração própria) O crescimento do percentual da capacidade produtiva relativo a Usinas Integradas (são 4 que a Gerdau possui) cabe basicamente à consolidação, em 2002, da Açominas, da qual a Gerdau era sócia desde 1997, além da aquisição de outra usina no Peru (2006). A Gerdau Açominas ou Usina de Ouro Branco é a grande usina integrada da Gerdau, uma das mais eficientes do mundo186 e exporta cerca de 70% da sua produção. Sem a Ouro Branco, 70% da produção no Brasil seria feita em mini-mills, e esse percentual se elevaria para 89% no total da companhia. Em suma, é uma companhia baseada em mini-mills com algumas exceções. Sua base produtiva implica os seguintes insumos principais: (a) sucata de aço (equivalente a 19% do custo das mercadorias vendidas pela Gerdau S.A. em 2001), cujos preços são determinados pelo mercado americano, mas há uma variação regional no Brasil; (b) Ferro-gusa, 186 “A usina de Ouro Branco é a maior unidade integrada que a Companhia opera. Apesar de produzir aço em alto-forno, essa usina tem algumas das vantagens de uma mini-mill, pois está muito próxima a seus fornecedores principais e aos portos a partir dos quais a Companhia exporta a maior parte de sua produção” (GERDAU, F20-F, 2012: p. 32). 289 usado como substituto da sucata, sendo que a Gerdau produz ferro-gusa e o Brasil é um exportador; (c) Carvão mineral, imprescindível e do qual o Brasil é um importador (todo o carvão é importado, exceto quando é usado, marginalmente, o carvão vegetal em alguns processos); (d) Energia elétrica, fundamental para as mini-mills; (e) Minério de Ferro, para as usinas integradas como a Ouro Branco, sendo que a Gerdau se tornou no último anos exportadora de minério de minas próprias, partindo para adquirir rendimentos em um setor mais rentável que o aço. Gráfico C.19. Gerdau - Composição dos custos de produção (2012) Fonte: GERDAU, F20F, 2012 A segunda característica mencionada diz respeito à distribuição territorial da Gerdau, concentrada nas Américas. Como se vê na Tabela abaixo, que mostra os dados referentes à capacidade produtiva (e não à produção corrente), a Gerdau já possui a maior parte da sua capacidade produtiva fora do Brasil. Em 2001, primeiro ano mostrado, ela já havia feito a aquisição da Ameristeel e a América do Norte representava 28%. Na sequência das aquisições e investimentos, ela não mudou excessivamente seu perfil, dado que apenas apresenta 5% da capacidade fora das Américas, na Espanha e na Índia (aços especiais). 290 Tabela C.7. Gerdau – Distribuição territorial da capacidade produtiva (%) Inclui unidades de aços especiais 2001 2006 2012 Total 7.304 100% 18.645 100% 25.725 100% Brasil 4.174 57% 8.870 48% 10.525 41% Am. do Norte 2.040 28% 7.160 38% 11.225 44% Am. Latina (sem Brasil) 1.090 15% 1.640 9% 2.750 11% Espanha 0 0% 975 5% 975 4% Índia 0 0% 0 0% 250 1% Fonte: Gerdau F20-F – vários anos (elaboração própria) Uma terceira característica que decorre das duas primeiras, diz respeito à vinculação da companhia com os mercados domésticos de onde opera. Como é baseada em mini-mills, a Gerdau busca atingir a demanda local com matérias-primas que são refugos da atividade industrial passada ou presente. Por isso, depende dos mercados brasileiro, estadunidense ou latinoamericano, o que, como se viu anteriormente, é um problema, já que a indústria manufatureira e o crescimento estão comprometidos no médio prazo nesses países, restando os setores construção e infraestrutura. A atuação em mercado de aços especiais, que saltaram de 4% para 16% da capacidade total, revela a busca por alguma diferenciação de produto. Tabela C.8. Gerdau – exportações (mil ton e % produção total) e destinos (%) 2008 2009 2010 2011 2012 Exportações (mil ton) 2.315 1.858 2.907 3.071 2.413 Export./Total(%) 12% 13% 17% 16% 13% África 5% 19% 3% 7% 1% Am. Central 4% 2% 9% 12% 12% Am. Norte 7% 7% 19% 19% 28% Am. Sul 23% 19% 26% 23% 29% Ásia 54% 40% 34% 31% 21% Europa 6% 13% 5% 7% 5% Oriente Médio 0% 0% 4% 1% 4% Oceania 1% 0% 0% 0% 0% Fonte: Gerdau, F20-F, diversos anos (elaboração própria) 291 A última característica da base produtiva é a concentração da Gerdau no segmento de aços longos. Os produtos da Gerdau são assim divididos: (a) aço bruto (tarugos, blocos e placas), de baixo valor agregado, principal produto da Usina de Ouro Branco; (b) aços longos comuns (vergalhões, barras e perfis), usados em especial na construção a na indústria manufatureira; (c) trefilados (arame liso, farpado e galvanizado, cercas, tela de reforço para concreto, pregos e grampos) com destino à manufatura, construção e indústria agrícola; (d) aços especiais e inoxidáveis com certo grau de customização e maior valor agregado; (e) produtos planos (placas que podem ser transformadas em produtos planos) produzidos por Ouro Branco, distribuídos pela Comercial Gerdau e também Gallatin (EUA), empresa de controle compartilhado com ArcelorMittal. Na tabela abaixo, pode ser vista a participação da Gerdau no mercado brasileiro de aços longos: Tabela C.9. Gerdau – Participação nas vendas internas de laminados, por tipo (%) GERDAU 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Total Brasil 19,1% 18,3% 19,8% 19,3% 18,5% 18,6% 19,5% 19,6% 21,1% 23,2% 21,0% 20,5% 22,7% Longos 48,2% 47,7% 48,2% 48,2% 49,4% 48,6% 52,3% 50,8% 53,8% 55,3% 50,8% 51,0% 52,2% .Aço Carbono 49,6% 48,8% 49,1% 49,1% 50,6% 49,5% 51,2% 50,2% 52,0% 53,9% 49,5% 49,5% 50,8% .Aços Especiais Ligados 30,5% 35,6% 38,4% 37,9% 37,2% 40,7% 64,7% 58,8% 70,0% 69,5% 69,3% 68,2% 68,2% Fonte: Min. de Minas e Energia - Anuário Est. Setor Metalúrgico (elaboração própria) 6. Base Financeira A Gerdau é uma empresa de capital aberto, mas de controle estrito da família Gerdau. Seu controlador principal é a Metalúrgica Gerdau, que por sua vez é controlada pelos irmão Gerdau Johannpeter. Destaca-se nesta lista de controladores o BNDESPar, com 7% do controle e 2% das ações preferenciais, uma participação presente pelo menos desde o começo da década, mas inferior à importância obtida pelo banco em outras empresas (como no caso JBS). 292 Tabela C.10. Gerdau – Proprietários das ações ordinárias e preferenciais Ações Ordinárias 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Metalúrgica Gerdau 83% 83% 83% 76% 76% 76% 75% 76% 76% 77% 77% 77% BNDESPar 7% 7% 7% 0% 7% 7% 7% 7% 7% 7% 7% 7% Outros 10% 9% 9% 24% 17% 17% 18% 16% 16% 17% 17% 17% Ações Preferenciais 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Metalúrgica Gerdau 28% 24% 23% 26% 25% 25% 25% 29% 29% 22% 22% 22% BNDESPar 0% 0% 2% 0% 1% 1% 1% 2% 2% 2% 2% 2% 72% 76% 75% 74% 73% 73% 73% 69% 69% 75% 76% 76% Outros Fonte: Gerdau, F-20-F, diversos anos (elaboração própria). A partir da Gerdau S.A., o grupo controla as operações na América Latina, América do Norte, Europa (Espanha) e Ásia (Índia). Destaque para os três segmentos de atuação no Brasil: Gerdau Açominas, Gerdau Aços Longos e Gerdau Aços Especiais, além do Gerdau Comercial de Aços. 293 Figura C.1. Gerdau – Estrutura Organizacional e controle de subsidiárias (2012) Fonte: Gerdau, Formulário 20-F, 2012. Para sustentar o processo longo de aquisições e de investimentos incrementais, a Gerdau possui uma estratégia de endividamento: (i) manutenção de patamares baixos de endividamento, correspondentes somente às necessidades de investimento – o que limita a capacidade de realizar grandes aquisições (VIEIRA, 2007) –; (ii) tomada de empréstimos nos mercados onde serão feitos os investimentos, de modo a garantir uma proteção cambial em cima das próprias vendas (CHEVARRIA & VIEIRA, 2007); (iii) utilização de formas escriturais de aquisição, como a aquisição em troca de uma parcela do controle da empresa controladora (holding) (IDEM, 2007); (iv) acesso aos melhores mercados de capital estrangeiros a partir das suas operações externas – a Gerdau possui ações na Bolsa de Valores de Nova Iorque – e em moeda doméstica, o BNDES. Quanto ao BNDES, é importante lembrar que, sendo acionista da companhia, o Banco está 294 vinculado às atividades da empresa187, o que facilita a tomada de empréstimos e financiamentos – foram R$ 1,75 bi entre 1999 e 2006 (SOARES, 2006), R$ 345,4 milhões em 2007 (BNDES, 2006), até R$ 1,5 bi em crédito em 2009 (BNDES, 2009) e enfim até R$ 776,6 milhões em 201213 (LISBOA, 2012), equivalente a cerca de R$ 4,4 bi no período. Olhando diretamente os resultados, observa-se primeiramente um aumento extraordinário do endividamento bruto e líquido, que acompanhou o crescimento da empresa, a aquisição de empresas com dívidas e o choque de liquidez e custo do crédito pós-2008. A favor da Gerdau o alongamento dos prazos – a dívida de curto prazo correspondia a 45% do total em 2001 e passou para 18% em 2012. Pesa contra a Gerdau a parcela da dívida excessivamente concentrada em moedas estrangeiras, em proporção superior às receitas na mesma moeda (cerca de 95% entre 2011 e 2012). Para efeitos de tomada de crédito junto a credores internacionais e mesmo junto ao BNDES, a Gerdau toma alguns limites para certos indicadores de crédito, mostrados na tabela abaixo. Nota-se que, apesar da Gerdau estar dentro das referências adequadas, os indicadores vem piorando nos últimos anos. Resultado do cenários geral do setor siderúrgico ao qual a empresa não passou imune. Tabela C.11. Gerdau - Indicadores de endividamento e níveis de referência para crédito Nível de cobertura da desp. financeira Nível de cobertura da dívida Índice de liquidez corrente 2008 2009 2010 2011 2012 Referência EBITDA/Desp. Financeira 9,0 2,7 4,6 4,3 3,9 Maior que 3,0 EBITDA/Desp. Fin. Líquidas ND 5,8 ND 7,4 5,6 Maior que 3,0 Dívida Bruta/EBITDA 2,3 3,2 2,8 2,9 3,5 Até 4,0 Dívida Líquida/EBITDA ND 2,5 2,4 2,0 2,9 Até 4,0 Liquidez Corrente (AC/PC) 5,0 3,0 2,6 2,6 1,8 Maior que 0,8 Fonte: Gerdau, F-20-F, diversos anos (elaboração própria). 7. Síntese 187 Não apenas como acionista, mas os Gerdau possuem ótima relação com ex-presidente Lula e a presidente Dilma, sendo que o presidente do conselho de administração, Jorge Gerdau, é conselheiro do governo para assuntos de gestão. 295 O estudo da Gerdau apresenta dois planos de análise: o dos potencias e limites da empresa, como representante do capital de controle brasileiro no setor siderúrgico, e as relações do setor siderúrgico nas transformações em curso no Brasil atual. Do ponto de vista da empresa, o que aparece na superfície dos fatos e o que é enfatizado pela maioria da cobertura da imprensa de negócios e dos estudos acadêmicos é a Gerdau como uma grande empresa internacionalizada com forte gestão e capacidade de crescimento e perpetuação. É uma empresa líder em um segmento – aços planos – no continente americano, fornecendo para mercados grandes de construção e indústria e possui nas mini-mills uma base eficiente, de menor escala e por isso mesmo mais flexível. São todos fatos inegáveis, mostrados pelos fatos apresentados aqui. Contudo, o que é importante buscar são os condicionantes mais gerais de operação e em que medida a empresa é capaz de gerar e controlar a tecnologia, a demanda e os preços deste mercado e em que medida ela possui base financeira própria ou acesso seguro a uma base financeira capaz de financiar sua expansão. Como foi visto, o mercado siderúrgico é movido pelo ritmo de expansão e diferenciação da indústria manufatureira e da indústria de construção. Está em consolidação um mercado mundial devido à queda do custos dos fretes e o barateamento de algumas linhas de aço. Este mercado hoje é pautado, em primeiro lugar, pela retração causada pela crise econômica de 2008, da qual o mundo ainda não se recuperou e que impôs uma queda da demanda e uma baixo crescimento. Em segundo lugar, do ponto de visto da produção, a China polariza tanto o mercado produtor de aço (da qual é líder) quanto o mercado manufatureiro de produtos de aço (onde é uma das lideres e maiores exportadoras)188. O crescimento chinês impôs ao mesmo tempo insumos encarecidos e preços baixos pelo excesso de capacidade existente. Por ter condições de produção subsidiadas e baseadas em força de trabalho barata, a China cria um ambiente de alta competição mundial, ainda que os mercados tenham especificidades locais e ainda sejam em parte compartimentados. Como há poucos avanços tecnológicos no setor, que vive há cerca de 50 anos com inovações incrementais, o setor deverá ser pautado especialmente pela conquista e manutenção de mercados, pela capacidade de melhorar marginalmente a 188 Não se trata aqui de entrar na questão de quem ou quais processos comandam a industrialização na China e o papel desempenhado pelo capital chinês e pelas transnacionais no país, mas de enfatizar que o país polariza o segmento siderúrgico pela produção que crescentemente comanda. 296 eficiência operacional e econômica e pela disponibilidade de financiamento para suportar os ciclos e garantir aquisições em uma nova rodada de consolidação. Neste contexto, a Gerdau está relativamente bem posicionada no curto prazo e a longo prazo não tem a sua existência comprometida: tem diferenciais de base produtiva, gestão operacional e financeira. Mas seus mercados principais enfrentam problemas estruturais relacionadas com a crise de processo de industrialização. No Brasil, como pode-se ver no balanço comercial indireto de aço, o peso da desindustrialização põe em risco também o setor siderúrgico; a concorrência direta com importados já é uma realidade nos anos 2010; e existe uma dependência estrutural do Estado para criar negócios no setor de construção, em particular no de infraestrutura. Nos EUA, apesar da potência econômica, a transferência do parque produtivo para fora do território implica problemas a longo prazo para o setor siderúrgico. Os mercados consumidores de aço da Gerdau não são os mais dinâmicos – e talvez nem os mais estratégicos – do mundo (pelo menos para aços comuns) e não há expectativa que o venham a ser, ainda que sejam grandes e passíveis de dinamização cíclica. Além disso, como a tecnologia é dada, a capacidade de a Gerdau ou outra empresa adquirir lucros extraordinários a partir de inovações radicais é baixa; aliás, a própria Gerdau se contenta com baixo P&D e com a aquisição da tecnologia necessária no mercado. Por fim, apesar da conduta prudente com operações financeiras, a Gerdau não possui uma base própria de acumulação que permita financiar sua expansão e por isso é dependente de financiamento estatal no Brasil e especialmente financiamento no mercado internacional de capitais. Sua proporção de dívida em moeda estrangeira é superior à proporção de receitas em moedas estrangeiras e seus indicadores de endividamento – que são condicionantes para contratar empréstimos e lançar títulos de dívida – estão deteriorados em 2012 e as condições do setor não apresentam cenário de melhora extraordinária. Por tudo isso, a Gerdau é uma empresa grande, mas uma “campeã” que não controla os elos estratégicos da indústria siderúrgica. Depende fundamentalmente do Estado para dinamizar os negócios de construção civil, como em infraestrutura e construção residencial, para prosseguir crescendo. Em suma, a Gerdau possui uma posição relativamente melhor dentro de uma siderurgia em um país subdesenvolvido. Seu mercado está mais vinculado a decisões políticas (onde tem boas relações) e grandes negócios do mercado de construção, voltadas para a provisão 297 de insumos energéticos, corredores de exportação ou especulação (mercado imobiliário), do que à indústria de transformação que está sendo desestruturada. Isto significa que a Gerdau possui espaço para crescimento no Brasil. Mas, apesar de algumas vantagens do ponto de vista do vínculo com os mercados consumidores, acesso a Energia e insumos baratos, ela está crescentemente suscetível à sua fonte de financiamento originada no capital financeiro internacional – o que expõe a crises de estrangulamento cambial –, e suscetível também à concorrência internacional, que está se iniciando em alguns de seus produtos. Desprovida de base financeira própria e de inovação, fará parte de um setor de concorrência agressiva, em que serão decisivos a escala de acumulação de capital e de poder político (envolvido no planejamento e garantia de mercado para a produção) muito acima das possibilidades do Brasil – ou da Gerdau. 8. Referência Bibliográficas AÇO BRASIL (2013) A indústria do aço no Brasil e no Mundo (apresentação). Instituto Aço Brasil, 2013. Disponível em: <www.acobrasil.org.br>. Acesso em: 25/11/2013. AÇO BRASIL; BOOZ&CO (2012). Análise comparativa da carga tributária na cadeia de aço (apresentação). Instituto Aço Brasil, outubro de 2012. Disponível em: <www.acobrasil.org.br>. Acesso em: 25/11/2013. ANDRADE, M.L.A.; CUNHA, L.M.S.; GANDRA, G.T. (2000). A ascensão das mini-mills no cenário siderúrgico mundial. BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 12, p. 51-76, set. 2000. ATHIA, Felipe; DALLA COSTA, Armando (2009). Grupo Gerdau: uma análise do crescimento produtivo e da expansão internacional. 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Disponíveis em: <www.gerdau.com.br>; Anuários Estatísticos do Setor Metalúrgico (2004-2012) do Ministério de Minas e Energia. Disponíveis em: <www.mme.gov.br>; Steel Statistical Yearbook (diversos anos), World Steel Association. Disponíveis em: <http://www.worldsteel.org/statistics/statistics-archive/yearbook-archive.html>; Revista do Aço (diversos números), Editora Revista do Aço. Disponível em: <www.revistadoaco.com.br>. 301 ANEXO D: Grupo JBS “Não somos construtores. Reformamos” (Joesley Batista, presidente da JBS) 303 1. Introdução A JBS, antiga Friboi, é uma empresa brasileira do ramo de carnes, que se tornou a maior do mundo ao levar ao máximo sua estratégia de aquisição de concorrentes em dificuldades operacionais e econômicas. Esta estratégia, que implicou a internacionalização do grupo desde 2005 – o mais internacionalizado das empresas brasileiras - só foi possível devido aos aportes do BNDES na empresa, financiando boa parte das muitas aquisições feitas no setor. Contudo, esta empresa, ao atuar no ramo do abate e venda de carne in natura, principalmente, se apropria de uma parcela menor do valor agregado, em um setor com margens deprimidas e orientado pela demanda – doméstica dos países produtores, mas também de alguns mercados importadores que são responsáveis por barreiras sanitárias e comerciais que recorrentemente impactam o mercado. Além disso, a JBS convive com endividamento considerado alto devido às aquisições seguidas e é pressionada por custos crescentes e pela liderança do varejo dentro da cadeia. Para compreender o quadro em que opera a JBS, será exposta em primeiro lugar a qualificação do mercado de carnes, buscando mostrar em especial quem são os produtores, exportadores e importadores, como se comportaram preços e em especial qual é a posição relativa dos frigoríficos dentro da cadeia das carnes. Em seguida virá a exposição sobre a empresa, com descrição da estratégia e análise de suas bases produtiva e financeira, finalizando com a síntese. Observação: Este relatório incorpora das informações dos Relatórios Anuais e de Administração da JBS desde 2006. Contudo, como o nível de exigência das informações é pequeno – a JBS não possui ações diretamente negociadas na NYSE como as outras três desta pesquisa –, alguns dados importantes não estão disponíveis e parte das séries históricas está incompleta. 2. Histórico O grupo JBS é uma empresa de origem familiar oriunda do frigorífico Friboi, que remonta aos negócios iniciados pelo patriarca da família Batista, nos anos 1950 em Goiás. Ao longo de décadas, o negócio cresceu e a Friboi se tornou um dos maiores frigoríficos brasileiros na virada do século. O salto da empresa, que por causa disso se torna objeto de estudo, é o 304 processo de internacionalização por aquisição de concorrentes iniciado em 2005, que levou a empresa, rebatizada JBS S.A. em 2007, a se tornar a maior empresa no ramo de proteína animal do mundo. A JBS-Friboi ainda hoje está principalmente no seu negócio de origem: o abate de bois e venda de carne bovina in natura ou industrializada. Segundo as informações oficiais da JBS, o fundador da empresa José Batista Sobrinho (daí o nome recente, JBS), ou “Zé Mineiro”, iniciou a atividade com o açougue Casa de Carne Mineira, em Anápolis-GO, em 1953 (LETHBRIDGE & JULIBONI, 2009). Ao vender gado próprio para o abate, o fundador percebeu a importância de controlar o processo do abate e resolveu fundar o próprio negócio (GRULEY & KASSAJ, 2013), iniciado com capacidade de 5 cabeças por dia e que logo controlou o negócio na cidade. O negócio chegou a operar na Brasília em obras, quando Juscelino Kubitschek ofereceu isenção tributária para fornecedores na capital, mas voltou atrás quando Jânio Quadros cancelou a isenção. Em 1968, adquiriu a primeira planta de abate em Planaltina (DF) e dois anos depois sua capacidade de abate diário chega a 500 cabeças ao adquirir planta de abate em Luziânia (GO). Segundo as poucas informações disponíveis, nas três décadas que se seguiram, a empresa cresceu comprando concorrentes e melhorando a eficiência das plantas adquiridas189. Em 2002, a capacidade de abate chegou a 5,8 mil, mais de dez vezes a de 1970 (Relatório Anual de 2008). Nos anos 1990, o setor foi marcado pela saída de grandes multinacionais que se queixavam da sonegação de impostos por frigoríficos locais; a Friboi aproveitou para adquirir vários ativos das empresas que partiam (SALOMÃO, RIBEIRO & TODESCHINI, 2009). Também é do período o início das exportações da empresa, o primeiro salto para a internacionalização, em um período em que o mercado para carnes bovinas era corroído pela competição com a carne de frango e as dificuldades operacionais do setor (ZUCCHI & CAIXETA-FILHO, 2010). Até o ano de 2005, quando se iniciaram os investimentos no estrangeiro, foram adquiridas uma dúzia de empresas e a Friboi atingiu o meio da década com uma margem EBITDA de 9,6% 189 A reportagem da Época Negócios resume assim o período: “No comando, [José Batista] Júnior [o filho mais velho] consolidou ao longo da década de 90 a estratégia de crescimento baseado em aquisições, que marca o grupo. Foram incorporados mais de uma dúzia de frigoríficos. Parte deles andava em dificuldades financeiras por deficiências na gestão, mas com infraestrutura azeitada. Os Batista barganhavam o preço, assumiam as dívidas e arrumavam a casa. Em pouco tempo, o frigorífico voltava a ser rentável. Tornaram-se especialistas na recuperação e na integração de empresas deficitárias. Quando visualizavam oportunidades em negócios nos quais não tinham experiência, não sentiam constrangimento – encontravam alguém capaz e passavam a tarefa adiante” (SALOMÃO, RIBEIRO & TODESCHINI, 2009). 305 em 2005 e 14,2% em 2006. Atingiu a liderança do mercado brasileiro mesmo antes do processo de internacionalização via estratégia de aquisição de concorrentes. Em entrevista, o presidente Wesley Batista resume esse padrão: “Época Negócios: A JBS cresceu por aquisição. Por quê? Wesley: É curioso isso. Cerca de 90% do nosso crescimento foi por aquisição. Mas não sei a razão. Acho que não somos construtores. Reformamos. Se não posso adicionar valor, não compro” (SALOMÃO, RIBEIRO & TODESCHINI, 2009). Figura D.1. JBS – Aquisições (1953-2005) Fonte: SALOMÃO, RIBEIRO e TODESCHINI (2009) Embora a Friboi já fosse uma grande empresa antes mesmo de iniciar sua internacionalização, não tinha nem parte do status que adquiriu após a grande aquisição da Swift em 2007. O capital era fechado (nenhum frigorífico ainda tinha lançado ações) e o grupo não constava na lista dos maiores grupos brasileiros do anuário “Valor Grande Grupos”, provavelmente por falta de informações públicas. Foi somente após a capitalização da empresa pelo BNDES, em consonância com os setor líderes eleitos para serem reforçados pelo governo, e as aquisições que vieram em seguida que a Friboi, já JBS, virou uma “campeã nacional”. 3. Mercado 306 Nesta seção será apresentado, de uma maneira geral, o funcionamento do mercado mundial de carnes, em que a JBS atua. Sua primeira parte objetiva mostrar uma visão geral do mercado, quais são suas subdivisões e tendências. Em seguida, apresentaremos a dinâmica dos preços dos anos 2000 e na sequência a dinâmica do mercado mundial, destacando quais são os grandes produtores e consumidores. Apresentaremos um pouco mais, por fim, do principal mercado da JBS, o de carne bovina. 3.1. Visão geral do mercado A JBS é uma empresa que atua hoje no setor de proteína animal em geral, não apenas mais no setor de carne bovina (ainda que seja o principal), mas também no de suína e de aves (frango). Este mercado é composto, então, por quatro tipos principais: suína, aves/frango (poultry), bovina e ovina. A seguir, podem ser vistos os dados com uma série que remonta a 1980 e permite enxergar a mudança na composição da oferta total. Gráfico D.1. Oferta mundial de carne por tipo (bilhões de toneladas) Fonte: FAOSTAT (Elaboração própria) Deste gráfico se depreendem três fatos principais: (a) ao longo do período de quase três décadas, a carne suína foi e permaneceu a mais produzida – e consumida –; (b) a carne bovina 307 perdeu o posto de segundo mercado para a carne de frango; (c) o crescimento do consumo de carne de frango é muito forte e prossegue até os dias de hoje, embora tenda a desacelerar – conforme mostram os estudos da OCDE/FAO (2012). Uma quarta informação se obtém da observação da tabela abaixo: a produção total destes 4 tipos de carnes mais que dobrou entre 1980 e 2007, enquanto que a população aumentou em um terço apenas. Consequentemente, o consumo per capita de carnes tem aumentado consideravelmente. Como o consumo de carne per capita em países desenvolvidos é muito estável, pois atingiu um patamar alto, o principal do aumento do consumo vem dos países da periferia, chamados “emergentes”. Tabela D.1. Produção mundial de carne (1980-2009) por tipo (%) e total (em ton. bi) 1980 1985 1990 1995 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Bovino 36% Ovino e caprino 34% 31% 28% 26% 25% 25% 25% 24% 24% 24% 24% 24% 23% 5% 5% 5% 5% 5% 5% 5% 5% 5% 5% 5% 5% 5% 5% Suíno 40% 40% 40% 40% 40% 40% 40% 40% 39% 39% 39% 38% 38% 39% Aves 19% 21% 23% 27% 30% 30% 31% 31% 31% 31% 32% 33% 33% 33% Total (bi ton) 13,1 14,7 17,2 19,7 22,5 22,6 23,3 23,8 24,3 24,9 25,5 26,1 26,9 27,3 Pop. mundo (bi) 4,44 4,84 5,28 5,70 6,10 6,18 6,26 6,34 6,41 6,49 6,57 6,65 6,73 6,81 Prod. per capita 2,94 3,04 3,26 3,45 3,68 3,66 3,73 3,76 3,78 3,83 3,88 3,92 3,99 4,01 Fonte: FAOSTAT e Banco Mundial (Elaboração própria) O mesmo conjunto de dados pode ser visto abaixo para um período mais próximo do período de estudo, com dados atualizados até 2011. Estes dados podem ser considerados o estado do mercado mundial com o qual se defrontou o grupo JBS no período relevante de estudo (a partir de 2006). 308 Tabela D. 2. Consumo mundial de carnes (2005-2011) por tipo Aves Suíno Ovino Bovino Soma 2005 66.163 89.877 7.757 52.561 216.358 2006 67.221 91.584 8.020 53.591 220.416 2007 72.018 90.034 8.545 52.680 223.277 2008 74.647 93.249 8.447 51.547 227.890 2009 75.378 96.010 8.369 51.422 231.179 2010 78.179 98.556 8.269 51.335 236.339 2011 80.254 96.820 8.171 50.788 236.033 Fonte: GIRA Consultancy and Research (elaboração própria) As tendências para o setor, como já mostrado, são: suíno: estável (pequena queda percentual); aves: em alta (absoluta e relativamente); ovino e bovino: declínio percentual e, para o caso da carne bovina, absoluto. Gráfico D.2. Consumo mundial de carnes (2005-2011) por tipo (%) Fonte: GIRA Consultancy and Research (elaboração própria) Para efeitos de comparação entre os quatro tipos principais, vale observar as taxas médias de variação anual na produção, exportação e consumo per capita de cada uma delas, conforme os dados da ODCE/FAO: 309 Tabela D. 3. Variação anual média da produção, da exportação e do consumo per capita de carnes, por tipo (%) Todas Bovino Porco Aves Ovelha Produção Exportação 2003-2012 2,3 1,2 1,8 3,7 2,1 2003-2012 4,3 1,7 4,8 6,7 0,3 Consumo per capita 2003-2012 1,3 0,2 0,7 2,5 1,0 Fonte: OCDE/FAO (2012) Segundo o anuário OECD-FAO Agricultural Outlook, os fatores decisivos do mercado de carne são os de demanda, e o decisivo nos últimos anos é o crescimento da demanda de países “em desenvolvimento”, devido ao seu crescimento econômico e populacional e à sua urbanização: “In the medium term, increasing world population along with economic growth and urbanisation are key factors driving global meat consumption. Once income growth rates recover, consumer preferences will continue to shift away from food of vegetable origin to food of animal origin. This trend is naturally most relevant for developing and emerging economies, and to a much smaller extent for OECD countries. In developing countries, increases in demand for food of animal origins have mostly been met through poultry, eggs, pigmeat, and to a lesser extent, by bovine meat consumption. Higher retail price of beef compared to pigmeat and poultry mostly explains this phenomenon. This trend is expected to continue over the next 10 years. In OECD countries, growth in meat consumption is limited by small population growth and with already high consumption levels, the incentive to consume more meat driven by increased income is limited”. (OCDE/FAO, 2009, p. 168). Em continuidade às tendências atuais, o mercado de carnes continuará dinamizado por países “em desenvolvimento”, responsáveis por 77% do aumento na produção contra 23% dos países desenvolvidos, e setorialmente, pelo aumento da carne de frango, de até 20,68% em uma década contra 17,61% de suínos e 10,87% de bovinos. 310 Gráfico D.3. Crescimento da Produção de Carnes, por região e por tipo de carne (previsão 2012-2021), em milhares de toneladas Fonte: OCDE/FAO (2012) O mercado de carnes é caracterizado por não ser dominado pelo comércio internacional. Ou seja, a maior parte da produção mundial não é exportada, mas consumida no âmbito nacional ou regional. Há uma tendência de aumento do comércio no período de estudo, como se vê na tabela abaixo. Tabela D. 4. Parcela exportada da produção mundial de carnes, por tipo (%) 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Bovina 7,4% 7,5% 10,8% 12,2% 15,7% 20,2% 21,5% 23,1% 23,5% 20,0% 17,9% 17,1% 14,8% 16,4% Porco 4,0% 4,2% 4,3% 4,7% 4,6% 5,1% 5,2% 5,3% 5,5% 6,3% 5,6% 5,8% 6,8% 6,9% Frango 9,4% 9,7% 10,8% 10,9% 10,8% 10,6% 11,3% 10,6% 10,6% 11,5% 11,4% 11,3% 11,7% 12,1% Fonte: USDA (elaboração própria) É a produção local, ou no máximo regional, o principal elemento de oferta. Isso faz com que os países ou regiões produtores sejam os que mais consomem carne, de acordo com os tipos produzidos e preferidos em cada lugar. Uma comparação feita para o setor de carne bovina, o principal da JBS, mostra a correlação existente entre os grandes países produtores – incluindo aqui a União Europeia, agregando diversos países – e os grandes consumidores. Os poucos 311 países, incluindo a U.E., são responsáveis por mais de 80% da produção e do consumo de carne bovina. Tabela D. 5. Carne Bovina – principais produtores e consumidores (% do total) Produção 1999 2006 2012 Consumo 1999 2006 2012 EUA 24,4% 22,3% 20,6% EAU 24,9% 24,7% 21,0% Brasil 12,6% 16,8% 16,2% Brasil 11,9% 13,4% 14,0% União Europeia 15,3% 15,0% 13,4% União Europeia 15,0% 16,5% 13,9% China 10,2% 13,9% 9,6% China 10,1% 14,3% 10,0% Índia 3,3% 4,4% 6,0% Índia 2,9% 3,3% 3,6% Argentina 5,7% 5,8% 4,6% Argentina 5,1% 4,9% 4,4% Austrália 3,9% 4,1% 3,7% Austrália ND ND ND México 3,8% 4,0% 3,2% México 4,6% 4,9% 3,3% Rússia 3,8% 2,7% 2,4% Rússia 5,5% 4,5% 4,3% Canadá 2,5% 2,6% 1,8% Canadá 2,0% 2,1% 1,8% ND ND 2,7% Paquistão ND ND 2,7% 1,2% 1,3% 0,0% Japão 3,1% 2,2% 2,2% 7,1% 15,8% 14,9% 9,2% 18,9% o comércio Paquistão África do Sul Demais 13,1% Demais Fonte: USDA (elaboração própria) 3.2. Comércio internacional Como se mostrou na visão geral do mercado, internacional (exportações/produção total) de carnes é ainda muito pequeno: partiu de 7,5% em 2000 para 16,4% em 2012 para carnes bovinas; de 4,2% em 2000 para 6,9% em 2012 para carnes de porco; e de 9,7% em 2000 para 12,1% para carnes de aves. Sendo muito pequeno e como as carnes são itens menos suscetíveis à especulação (veremos no item seguinte), sua importância fundamental é nos impactos que cria nos países exportadores quando há bloqueios à venda (choques de demanda). E isso é muito importante em países onde a JBS atua (Brasil, EUA, Austrália). Na tabela abaixo, pode-se ver como as exportações e as importações de carne bovina são concentradas em um conjunto pequeno de países (exceto a União Europeia responde por um mercado regional com muitos países). O comportamento dos mercados é similar para outras carnes. 312 Tabela D.6. Principais Exportadores e Importadores de carne bovina Exportações Brasil Índia Austrália EUA Nova Zelândia Uruguai Canadá Paraguai União Europeia Argentina México Subtotal 2000 8,3% 6,2% 22,6% 18,9% 8,5% 4,0% 8,8% 0,0% 10,9% 6,0% 0,0% 94,3% 2006 29,3% 9,6% 20,1% 7,3% 7,5% 6,5% 6,7% 0,0% 3,0% 7,8% 0,5% 98,3% 2012 18,7% 17,3% 17,3% 13,7% 6,3% 4,4% 4,1% 3,1% 3,6% 2,0% 2,5% 92,0% Importações Rússia EUA Japão Hong Kong China Coreia do Sul União europeia Canadá México Egito Venezuela Subtotal 2000 9,3% 26,8% 20,7% 0,0% 0,0% 6,3% 8,8% 5,1% 8,2% 4,6% 0,0% 89,9% 2006 17,6% 26,2% 12,7% 1,8% 0,0% 5,6% 13,4% 3,4% 7,2% 5,5% 0,0% 93,4% 2012 15,4% 15,2% 11,1% 3,6% 1,5% 5,6% 5,3% 4,5% 3,2% 3,8% 3,3% 72,6% Fonte: USDA (elaboração própria) Há outro traço importante do mercado internacional: ele é dividido entre relações comerciais estáveis e duradouras e entre relações fortuitas e mais recentes. Este dado se explica especialmente pelas barreiras sanitárias e exigências de qualidade dos principais países importadores (OCDE/FAO, 2009: p. 168), que acaba criando uma “fidelização” nas aquisições feitas. Periodicamente, doenças animais surgem e são anunciadas barreiras parciais ou absolutas à importação de carnes de algum tipo de países inteiros. Além de barreiras sanitárias, o comércio também é impactado por uma grande quantidade de políticas agrícolas, como subsídios, impostos e quotas de importação. A preocupação dos grandes produtores exportadores com o controle de saúde dos animais tem ampliado nos últimos anos (o Brasil é um exemplo disso), de modo a conquistar mercados mais tradicionais de países desenvolvidos. Países em que o consumo de carnes crescente é mais recente possuem menores barreiras sanitárias, criando mercados para produtores com menos padrões e controles. Estas relações podem ser vistas nas três figuras abaixo, que ilustram os principais fluxos de comércio, por pais/região, para carnes bovina, suína e de aves. Pode-se observar a concentração do comércio e a existência de relações estáveis entre exportadores de países desenvolvidos (EUA, Austrália, União Europeia) e os importadores destes países (incluindo, além dos produtores, os países ricos da Ásia). 313 Figura D. 2. Bovinos - Fluxos de Comércio, inclusive vivos (2011-2012) Fonte: GIRA Consultancy and Research (2012) 314 Figura D. 3. Suínos - Fluxos de Comércio (2010, com tendência até 2015) Fonte: GIRA Consultancy and Research (2008) Figura D. 4. Frango - Fluxos de Comércio (2010, com tendência até 2015) Fonte: GIRA Consultancy and Research (2009) 315 O Brasil fornece carne bovina especialmente para Rússia, MENA (Middle East, North Africa, Oriente Médio e Norte da África) e Europa em menor quantidade. As exportações brasileiras de carne de porco têm como destino principal a Rússia. O segmento de carne de frango é o que possui mais aceitação em mercados ricos, como Europa e Japão; a Rússia e a MENA continuam sendo importantes compradores do produto nacional. 3.3. Dinâmica dos preços O primeiro e mais importante elemento que chama a atenção no que tange aos preços das carnes durante os anos 2000 é que o seu patamar de crescimento foi menor do que o de outros alimentos ou commodities. Com a exceção da carne de frango, que teve um aumento relevante – um dos maiores dentre as commodites agrícolas –, as demais carnes variaram muito menos que os outros itens. 316 Tabela D.7. Índice de preços (nominais) de commodities agrícolas (2002=100) (Ordenado pela média do valor no período) Butter Poultry Ethanol Raw sugar Whole milk powder Skim milk powder White sugar Cheese Rice Protein meals Fish oils Fishmeal Maize Oilseeds Veg oils Sheep Wheat Pigmeat Beef Cotton Biodiesel Fish 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 100 129 172 204 170 281 349 225 387 429 316 100 129 140 169 175 228 247 230 251 347 318 100 120 111 166 216 194 218 207 284 411 303 100 89 125 204 141 161 205 288 390 315 271 100 128 147 165 159 303 285 176 252 282 252 100 127 148 163 162 316 244 167 228 268 232 100 102 124 182 148 155 188 264 325 276 239 100 111 154 167 158 236 275 174 235 254 224 100 98 120 136 142 167 328 231 223 270 231 100 140 117 109 143 242 196 195 215 238 275 100 96 117 122 138 171 268 134 191 261 322 100 101 107 115 166 182 176 191 261 238 241 100 109 92 100 146 205 163 153 259 268 276 100 128 109 106 138 233 163 170 228 228 264 100 115 105 111 149 248 149 173 249 231 230 100 113 126 140 110 121 122 159 172 251 263 100 97 97 106 131 218 174 136 188 191 207 100 113 150 143 135 135 137 118 158 189 175 100 126 126 130 127 137 138 124 142 171 183 100 123 94 101 106 131 109 139 248 180 145 100 100 101 100 109 124 179 133 145 193 172 100 106 110 114 118 124 134 126 135 151 152 Fonte: OECD/FAO Agricultural Outlook 2013 (Elaboração própria) A relativa estabilidade dos preços das carnes se explica, segundo os estudos da OCDE/FAO pela menor proporção que as carnes ocupam dentro do conjunto de alimentos que compõem as refeições básicas (em inglês, staple food), o que torna relativamente menos sensível ao aumento da demanda por alimentos (ainda que o consumo per capita esteja aumentando), e pela sua perecibilidade maior, que impede que as carnes sejam fartamente estocadas – o que faz com que impede o “panic buying” de estoques. Outro fator técnico diz respeito ao ciclo de produção, que equivale ao ciclo de vida dos animais e que é mais longo do que seria para as decisões de produção incorporarem significativamente o ciclo de variações de preços das rações e aditivos alimentares. Apesar do percentual de aumento maior que as outras carnes, as carnes de aves (frango em especial) têm, pelo menos nas últimas duas décadas, o menor preço por unidade de massa dentre os quatro tipos. A carne de carneiro foi a que atingiu o maior valor dentre os quatro, 317 ultrapassando a carne bovina no período. São estas duas carnes mais caras as que têm hoje a menor parte no mercado e são as cuja produção cresceu menos nos anos 2000, respondendo parcialmente aos seus preços – chegaram a custar o dobro da carne de porco ou três vezes a carne de frango em 2012. Gráfico D.4. Preços mundiais de carnes (termos reais) – em US$/ton. Fonte: OCDE/FAO (2012) No gráfico abaixo, pode-se ver de forma mais clara a evolução dos preços das carnes no atacado para os anos 2000, nosso período de estudo. Embora haja elevação de preços em todos os setores – em 2012 atinge aumento de 100% frente aos preços do ano 2000 –, ele é bem desigual e possui efeitos distintos. Como apresentado no gráfico em unidades monetárias, no gráfico de índice de preços, a carne ovina foi a que mais cresceu, mas é a carne de aves que puxa o índice para cima, pois o índice é ponderado pelo consumo. 318 Gráfico D.5. Índice de Preços de Carnes da FAO (2000 = 100) Fonte: FAO Meat Price Index Além dos fatores gerais que influenciam no preço das carnes, há uma diferenciação dentro dos mercados nacionais. Apesar de relativamente restrito, o comércio internacional afeta diretamente os grandes mercados produtores pelo diferencial que pode se obter nos preços das exportações e quando há choques de demanda provocados por barreiras sanitárias – o que simplesmente faz com haja uma sobra importante que derruba os preços internos. 3.4. A cadeia da carne bovina Para explicar melhor a natureza do negócio da JBS, é fundamental apresentar como funciona a cadeia produtiva de carnes. Nesta análise, usaremos o exemplo da cadeia de carne bovina no Brasil, que é representativa para o estudo da empresa: 319 Figura D.5. Estrutura da cadeia da carne bovina no Brasil Fonte: MAPA (2007) Segundo o estudo do Ministério da Agricultura (MAPA), os segmentos da cadeia podem ser assim descritos: Tabela D.8. Segmentos da cadeia da carne bovina no Brasil Subsistema de apoio: Subsistema de produção da matéria-prima (produção agropecuária): Subsistema de industrialização: Subsistema de comercialização Subsistema de consumo Os agentes fornecedores de insumos básicos e os agentes transportadores. Empresas rurais que geram, criam e engordam os animais para o atendimento das necessidades das indústrias de primeira transformação; podem estar integradas em um único empreendimento ou dissociadas em empreendimentos diversos. Indústrias de primeira transformação: abatem os animais e obtêm as peças de carne, conforme as condições de utilização necessárias para os demais agentes da cadeia; Indústrias de segunda transformação: incorporam a carne em seus produtos ou agregam valor a ela. Atacadistas ou exportadores: efetuam o papel de agentes de estocagem e/ou de entrega, simplificando o processo de comercialização; Varejistas: efetuam a venda direta da carne bovina ao consumidor final, tais como supermercados e açougues; Empresas de alimentação coletiva/mercado institucional ou aquelas que utilizam a carne como produto facilitador, como restaurantes, hotéis, hospitais, escolas, presídios e empresas de fast food. Consumidores finais, responsáveis pela aquisição, pelo preparo e pela utilização do produto final. Determinam as características desejadas no produto, influenciando os sistemas de produção de todos os agentes da cadeia produtiva. Fonte: MAPA (2007) Para se entender a importância do estudo desta segmentação, veremos adiante que a JBS se posiciona fundamentalmente no subsistema de industrialização, na indústria de primeira 320 transformação (ofertando carne in natura), e no subsistema de comercialização como atacadista e exportador. Isto determina a capacidade que o frigorífico possui de se apropriar do valor distribuído ao longo da cadeia. A primeira questão a se abordar é quanto do valor adicionado ao longo da cadeia é apropriado pelas partes, em especial pelo processador/frigorífico. Para dados de 2000 no Brasil, o estudo de Perez et alli (2002) estimou dados para duas empresas da participação no preço final da carne bovina (cortes tradicionais) em 22,4% e 26,1%, sendo que em ambos os casos a maior parte da agregação (52,6% e 64,1%) ficavam com o pecuarista. No estudo do IPARDES e GEPAI (2002: p. 168) para o setor de carnes no Paraná, foram apurados os seguintes valores para o valor adicionado pela indústria: em 1995, no setor de carne suína era de 8,01%, no de bovina 7,24% e no de aves, 28,81%; em 2000, no de suína era de 14,43%, no de bovina, 6,45%, e no de aves, 48,65%. Já o estudo de Viana e Silveira (2007: p. 1126) chega ao resultado de 7,61% da participação da indústria no setor de carnes do Rio Grande do Sul com venda em Santa Maria em 2005. Os dados o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) mostram valores compatíveis com os dados brasileiros citados: 321 Tabela D.9. Valores e distribuição da participação dos preços de carnes bovina e suína dos EUA (médias anuais), 2007-2012. Distribuição do preço da carne suína Participação sobre o preço de varejo CARNE SUÍNA Valor de Total Atac. até Faz. até Atac.Fazend.Fazendeiro Varejo Varej. Atac. Varej. Atacado. Centavos por libra de equivalente de varejo Percentual 287,1 205,1 165,6 39,5 57,7 13,8 28,6 2007 293,7 211,2 169,3 41,9 57,6 14,3 28,1 2008 292,0 220,5 180,7 39,8 61,9 13,6 24,5 2009 311,4 215,7 170,2 45,5 54,7 14,6 30,7 2010 343,4 229,4 184,6 44,8 53,8 13,0 33,2 2011 346,7 241,8 199,5 42,3 57,5 12,2 30,3 2012 Distribuição do preço da carne bovina Participação sobre o preço de varejo CARNE BOVINA Valor de Total Atac. até Faz. até Atac.Fazend.Fazendeiro Varejo Varej. Atac. Varej. Atacado. Centavos por libra de equivalente de varejo Percentual 415,8 218,0 184,8 33,2 44,4% 8,0% 47,6% 2007 432,6 235,6 197,9 37,7 45,7% 8,7% 45,5% 2008 425,8 244,8 208,6 36,2 49,0% 8,5% 42,5% 2009 438,4 234,5 197,3 37,2 45,0% 8,5% 46,5% 2010 480,7 239,9 205,0 34,9 42,6% 7,3% 50,1% 2011 498,6 238,5 208,0 30,5 41,7% 6,1% 52,2% 2012 Fonte: USDA – Economic Research Service (adaptado) O que os dados apresentam é que, ao menos para o setor de carnes bovinas, que a participação do agroindustrial do processamento da carne no valor total é muito pequeno. Sabe-se que os setores de carnes suína e de aves são conhecidos por apresentarem, ao nível do processamento, margens melhores que a do de carne bovina. No estudo do MAPA (2007), afirma-se que o segmento em que mais se pode incorporar e difundir tecnologia é o da produção agropecuária. Particularmente isso ocorre naqueles segmentos que buscam ampliar a produtividade da produção de carne por animal – melhoramento genético, alimentação, saúde dos animais, confinamento etc. – e naqueles voltados para o aumento da produção por área – pastejo rotacionado, adubação, irrigação etc. –, sendo o primeiro grupo o mais intensivo em tecnologia. Não é o foco deste estudo aprofundar nestes outros segmentos da cadeia, mas cabe se deter brevemente na incorporação de tecnologia, uma área nobre da cadeia. Alguns dados obtidos 322 para os mercados de aditivos à indústria de alimentação animal190, farmacêutica veterinária191 e de melhoramento genético192 mostram como é grande a presença de empresas transnacionais. Como há o controle deste largo mercado brasileiro por empresas estrangeiras (MARTINELLI, ROHENKOHL & MURAKAMI, 2011), com produção local ou não, ocorre um apreciável custo de importação (de insumos ou produtos finais) ou remuneração ao capital estrangeiro (como remessas de lucros, pagamentos por royalties ou patentes etc.). Para exemplificar, o déficit de produto farmoquímicos usados na alimentação é de aproximadamente US$ 200 milhões em 2005 e 2011 (MDIC, 2012: p. 15), enquanto o déficit no comércio de vacinas é de US$ 118 milhões (FERNANDES et alli, 2013: p. 3). Apesar de algum crescimento de empresas de controle brasileiro registrado na indústria farmacêutica de saúde animal, de 10% para 19% do mercado entre 2005 e 2012, ou a longa tradição de sucesso da Embrapa no desenvolvimento de tecnologia nacional, o patamar geral ainda é de controle das estrangeiras em um padrão altamente competitivo. Embora não esteja no escopo deste trabalho calcular o peso que os custos destes insumos podem impor sobre os criadores de animais e sobre o restante da cadeia, não seria surpreendente se tal peso fosse apreciável sobre o preço do animal que vai ao abate. Ainda segundo o estudo do MAPA (2007), a tecnologia utilizada nos segmentos de abate e processamento é considerada tradicional, de uso generalizado e relativamente livre. Desta forma, afirma o documento, não há defasagem considerável entre frigoríficos estrangeiros e nacionais. O que está a seu alcance, no caso das carnes bovinas, é “agregar valor às suas 190 O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior fez um estudo em 2012 para apresentar um horizonte de investimentos no setor de aditivos à alimentação animal. A principal preocupação é que o Brasil é um imenso consumidor que, dada as limitações de oferta local, importa muitos insumos para venda direta ou processamento local. O fato de a maior parte do setor estar sob o controle de transnacionais (60% do mercado mundial é controlado por 10 empresas) impede que a decisões de investimento caminhem no sentido da integração produtiva no país. Para mais, ver MDIC (2012). 191 Segundo estudo de pesquisadores do BNDES (CAPANEMA et alli, 2007), a indústria farmacêutica veterinária brasileira é divida entre as multinacionais, de grande porte e líderes mundiais, e as nacionais, menores e com atuação localizada e com foco em nichos. Dentre as empresas líderes em 2005, apenas 10% do mercado corresponderia a empresas nacionais (Vallée e Ouro Fino). 192 A despeito dos progressos feitos no Brasil em inseminação artificial e melhoramento genético, a abertura dos anos 1990 implicou entrada das transnacionais no setor, com aquisição de empresas brasileiras e concentração (ESPÍNDOLA, 2005). Martinelli Jr. et alli (2011) afirmam: “A capacitação brasileira [na genética bovina] está assentada quase que exclusivamente na inseminação artificial. Existem dois tipos básicos desse tipo de atividade de melhoramento genético. O primeiro tipo diz respeito àquelas atividades realizadas com o uso de tecnologias mais avançadas e com criadores especializados em selecionar animais da mais alta estirpe e criar matrizes de alto valor econômico em função de suas qualidades reprodutoras. Nessa categoria estão principalmente as filiais de grandes empresas com atuação global (...).” (p. 11). 323 atividades pelo desenvolvimento de produtos de conveniência, que não apresentem perda de qualidades organolépticas e nutricionais” (MAPA, 2007: p. 55). Por fim, a realidade é distinta no final da cadeia, nos ramos de comercialização. Alguns estudos mostram que o segmento de carnes seria comandado (dentro do que se convencionou chamar de governança da cadeia) pelos elos finais da cadeia, os varejistas, em geral grandes redes de supermercados, ou pelos varejistas em alianças estratégicas com frigoríficos, como pode ser visto nos estudos de Gereffi e Lee (2009) e Lundström (2007). Está ocorrendo uma razoável transição do simples varejista que vende pedaços em açougues para um padrão de produto ditado pelas exportações e linhas de vendas de grandes varejistas. O MAPA (2007) explica as tendências no setor de varejo: “A evolução do mercado varejista, marcada pela concentração das grandes cadeias de supermercados em busca de economias de escala e escopo e pela busca de estratégias diferentes dessas por lojas independentes, tem impulsionado a modernização tecnológica desse setor. A tecnologia da informação, por exemplo, passou a ser amplamente utilizada, interligando e automatizando, em tempo real, as transações de compra e controle de estoques entre produtores/fornecedores e pontos de venda. Os demais avanços tecnológicos observados nos países desenvolvidos, principalmente voltados à área de embalagens e conservação (incluindo a cadeia do frio) são incorporados de forma rápida e direta, visto que as grandes empresas varejistas nacionais são, em grande parte, controladas por redes internacionais, principalmente dos Estados Unidos e França. Ainda na parte de comercialização, os segmentos de hotéis, restaurantes e fast-food possuem comportamentos similares aos das grandes empresas varejistas nacionais, especialmente os direcionados à população com melhores condições de renda. A tendência da “cozinha de montagem” (cozinha responsável pela preparação de refeições coletivas e que utilizam pratos pré-preparados como forma de diminuir custos de matérias-primas e preparação) exige produtos mais adequados, com cortes de carne e embalagens específicas a essas atividades. A tendência do aumento de importância dos food services nos hábitos alimentares dos brasileiros pode se refletir em oportunidades importantes de mercado para as indústrias que se disponham a fabricar e distribuir produtos com as características demandadas por esse setor” (MAPA, 2007: pp. 55-56). Desta forma, há uma hierarquização dentro da cadeia desfavorável para a posição dos frigoríficos. Aquelas empresas que não possuem ramos mais verticalizados terminam por sofrer os problemas de instabilidade de margens advindas desta posição. 4. Crescimento/Transformações 324 A estratégia de crescimento do grupo JBS pode ser resumida pelas aquisições. A síntese feita pelo presidente da empresa – expressa na frase em que diz “não construímos, reformamos” – é excelente para mostrar qual é o negócio principal: adquirir unidades produtivas e aumentar sua eficiência operacional e econômica num segmento da cadeia caracterizado por baixas margens. Considerando que a empresa tenha a capacidade de sanear outras empresas em dificuldades, a questão da implementação da estratégia se desloca para o financiamento das aquisições. A envergadura das aquisições feitas pela JBS desde 2005, em especial as maiores, só pode ser enfrentada com os aportes feitos pelo BNDES, sem o qual a internacionalização e o status de maior do mundo jamais seriam possíveis. A despeito da posição de líder mundial no setor de proteína animal, a JBS persiste em um elo menos forte da cadeia, o frigorífico – abate e atacado –, com margens limitadas e dependente de mercados externos para seus excedentes. Para entender a trajetória da empresa nos anos 2000, é preciso ver em primeiro lugar a evolução das receitas. A receita de 2012, comparada à de 2004, antes das aquisições, portanto, revela um crescimento de mais de 20 vezes. Parte desse crescimento, obviamente, corresponde à transformação de receitas em dólares em receitas em reais, com tendência geral de apreciação do Real (já que parcela apreciável das vendas passou a ser feita em dólares). Gráfico D.6. JBS – Receitas Líquidas (em R$ mil) Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) Um dado que revela a descontinuidade do crescimento da JBS é a sua participação no ranking dos 200 maiores grupos do Brasil segundo a publicação anual do jornal Valor Econômico. O grupo só aparece na listagem a partir de 2006, mas não exatamente por ter receitas 325 menores do que o necessário para constar (estaria em 2004 ou 2005 na mesma posição que em 2006, aproximadamente), mas provavelmente pela falta de informações públicas da companhia, que não possuía nem de longe a projeção que veio a ter e que só lançou relatórios anuais a partir de 2006 (na CVM). Tabela D.10. JBS – Posição no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (por receita) 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 200 grupos - - ND* - - 69º 31º 17º 5º 5º 9º 25 maiores indústria - - ND* - - 14º 6º 5º 1º 2º 3º Brasil *ND: Dado não encontrado Fonte: Elaboração própria com dados do anuário Valor Grandes Grupos. Como afirmamos, este crescimento só foi possível pela agressiva estratégia de aquisições, concentrada em um espaço de cinco anos: 326 Tabela D.11. JBS – Principais Investimentos Fonte: MACEDO & LIMA, 2012. 327 A explicação da empresa, segundo a versão oficial dos relatórios da empresa de 2006 até 2012, seria o binômio adquirir e melhorar a eficiência. “A tudo isso é somado o contínuo esforço de reduzir custos e aumentar eficiências operacionais, que é o foco desde a fundação da Companhia, visando sempre aumentar a produção e produtividade. A Companhia pretende continuar a ser um dos produtores de carne bovina com uma das menores estruturas de custo do mundo (...)” (JBS, RADM 2006: p. 2). “O grupo opera em regiões de alta competitividade, com rígido controle de custos, e promove há mais de duas décadas sua expansão por meio de aquisições e participações societárias. Analisa constantemente novas oportunidades de negócios, ampliando sua atuação em novos mercados e permitindo ganhos de escala e sinergias operacionais, com foco no retorno sobre o capital investido. também são diferenciais de sua plataforma de produção o constante aumento da eficiência operacional, o investimento em tecnologia da informação e a qualificação profissional de seus colaboradores” (JBS, RA 2012: p. 24). O processo de aquisições internacionais aparece como uma oportunidade possibilitada momentaneamente pela apreciação do Real frente ao dólar na maior parte do período e pela disponibilidade de grandes empresas em dificuldades no período, como a Swift e a Pilgrim’s Pride. Internamente, a maior aquisição, do grupo Bertin, foi possível por um acordo de troca das ações do frigorífico adquirido por parte (minoritária) do controle da JBS. Contudo, antes que pareça que o grande mérito no processo foi das competências gerenciais da companhia, exaltadas pela mídia especializada e por inúmeros trabalhos acadêmicos193, é preciso pontuar o fator decisivo para a execução da estratégia: o financiamento do BNDES. O BNDES fez grandes aportes (ver em detalhes no tópico “Base financeira” adiante) que cobriram a maior parte do valor das mais importantes compras como da Swift dos EUA e da Pilgrim’s Pride (MACEDO & LIMA, 2012). Além disso, ele o fez como acionista através do BNDESPar e não como Banco, tendo como contrapartida dividendos incertos (sem nenhum 193 A JBS carrega consigo uma curiosa característica de um grupo de gestão ainda familiar: a simplificação dos processos e o conhecimento operacional do negócio. Como se trata de um mercado de grande competitividade e baixas margens, onde o processo de criação e alimentação dos animais e os processos de embalagem e distribuição não possuem grande diferenciação, o processo de abate e corte é um dos diferenciais (FAO, 2009; SCHNEPF, 2013; LEAHY, 2013). A presença quase folclórica dos filhos do fundador no comando direto da companhia – e seu “modelo” de gestão “Frog”, ou “From Goiás” – é o que, aparentemente, viabilizou sucesso na empreitada de internacionalização e recuperação de gigantes adquiridas, como a Swift e a Pilgrim’s Pride nos EUA, como foi coberto pela imprensa e academia internacional: estudo da Harvard Business School/HBS (BELL & ROSS, 2008) e reportagens da Businessweek (GRULEY & KASSAJ, 2013) e do Financial Times (LEAHY, 2013), além do The Washington Post (FORERO, 2011); na mesma linha, a reportagem da EXAME (LETHBRIDGE & JULIBONI, 2009) e da Época Negócios (Salomão et alli, 2009). 328 pagamento em 2010 e 2011). Tornar líderes alguns grupos em setores especiais foi estratégia do governo, coerentemente com o Política de Desenvolvimento Produtivo (2008-2010), a política industrial do segundo governo Lula. No PDP, estão elencados sete setores prioritários194, em que se buscava consolidar uma posição de liderança, dentre os quais o de carnes. O relatório de conclusão da Política (BRASIL, 2010) menciona que o objetivo no segmento era tornar o Brasil o maior exportador mundial e as carnes o produto mais exportado do agronegócio brasileiro (não superior à mineração), ou seja, está vinculado ao fortalecimento da balança comercial. Uma dos resultados conquistados segundo o relatório foi a constituição de “players internacionais” (JBS, Marfrig e BRFoods) e que as metas futuras buscavam enfrentar questões sanitárias e de rastreamento – fundamentalmente fortalecer a posição de exportador. Nos últimos anos, a movimentação mais interessante foi a entrada no mercado de carnes de frango. Trata-se, como já foi visto, do mercado mais dinâmico no setor de carnes e a JBS acabou incorporando-se através da aquisição da americana Pilgrim’s Pride e do arrendamento da Frangosul em 2012 e, mais recentemente, em 2013, da aquisição da Seara Brasil, antiga propriedade do grupo Marfrig. Representa de certa forma a busca por oportunidades mais rentáveis ainda sob a estratégia da aquisição para saneamento econômicooperacional. Desta estratégia acima descrita, resultam duas modificações importantes: a JBS entrou em outros segmentos de carnes e internacionalizou a produção (não somente exportações), com as operações estrangeiras passando a contar mais nas receitas do que as operações brasileiras ou da América do Sul. A primeira grande modificação pode ser vista no gráfico adiante: de 92% das receitas com em 2006, a JBS passa a ter apenas 64% em 2011, com 10% em carne suína e 20% em carne de frango. 194 Os setores são: complexo aeronáutico, petróleo, gás e petroquímica, bioetanol, carnes, celulose e papel, siderurgia e mineração. Não à toa, em quase todos os casos há uma correlação com setores muito oligopolizados ou uma atenção especial para os grupos maiores. Para mencionar os de controle brasileiro, que compões a lista dos maiores, temos: Embraer, Petrobras, usinas como a Cosan, os frigoríficos JBS, Marfrig, Minerva, Bertin, Fibria, Suzano, siderúrgicas como Gerdau, Usiminas e CSN, além da Vale. 329 Gráfico D.7. Receita Líquida por segmento de atividade (%) Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) Com as operações estrangeiras, as receitas vindas de operações estrangeiras passam a ser majoritárias na empresa: Tabela D.12. Receita Líquida por divisão (em US$ mi) RECEITA LÍQUIDA 2007 2008 2009 2010 2011 2012 14.142,0 30.340,0 23.339,2 30.524,3 36.385,2 38.316,8 JBS USA Carne Bovina 8.626,6 19.417,6 11.232,3 13.103,5 16.459,6 17.477,6 JBS USA Carne Suína 2.545,6 4.247,6 2.245,0 2.956,7 3.472,6 3.501,1 0,0 0,0 6.813,8 6.881,7 7.535,7 8.121,4 2.969,8 6.674,8 3.048,1 7.582,4 8.917,3 9.216,7 Total JBS USA Frango JBS Mercosul Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) De acordo com o padrão mundial do setor de carnes, as exportações da JBS são uma parte pequena das suas vendas totais. Este padrão, contudo, só se desenhou com a internacionalização da JBS, em que o destino principal de suas maiores operações (EUA) é o próprio mercado doméstico. Os anos iniciais mostrados na Tabela abaixo servem como uma aproximação do mercado da JBS nas operações Brasil ou Mercosul: metade da produção é exportada, aproximadamente (não temos dados mais recentes). A julgar pelos objetivos da política brasileira para o setor, as exportações serão sempre um objetivo a se alcançar, apesar do crescimento do consumo de carnes no Brasil também oferecer um mercado promissor. 330 Tabela D.13. JBS – Receitas Líquidas – doméstico (operações) x exportações (%) Receitas líquidas por segmento 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Doméstico 52% 44% ND 68% 76% 77% 76% 75% Exportações 48% 56% ND 32% 24% 23% 24% 25% Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) Apesar da redução do percentual exportado, o volume de exportações aumentou com o aumento da companhia. Em especial, o acesso à bases produtivas de países desenvolvidos como EUA e Austrália criou o canal para que a JBS pudesse atingir mercados importadores mais nobres, independente das barreiras sanitárias impostas ao Brasil. Revela-se alguma divisão entre o que está ao alcance da empresa – mercados mais nobres – e o que está ao alcance do Brasil – ainda limitado pelas questões sanitárias. O crescimento não representou, contudo, um resultado proporcional do ponto de vista financeiro. No gráfico abaixo pode-se ver que as Receitas Líquidas não foram acompanhadas pelo Resultado antes do resultado financeiro e dos tributos, pelo Resultado antes da Tributação e Participações e pelo Lucro Líquido/Prejuízo. Destaca-se a queda que o resultado financeiro leva ao Resultado. Gráfico D.8. JBS - Receitas líquidas, Resultados e Lucro/Prejuízo (em R$ bilhões) (Eixo da direita para Receita Líquida) Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) 331 O resultado é a redução das margens da companhia, conforme se vê no gráfico abaixo. Não se trata, contudo, de um cenário atípico para o setor de frigoríficos como um todo. Por outro lado, demonstra que poder financeiro dispõe a empresa estando no setor de processamento, particularmente o setor de carnes in natura. Este, além da base financeira dependente do Estado e da base produtiva ainda sujeita a limitações sanitárias, é um dos principais problemas da JBS dentro do seu negócio. A sua posição de líder mundial se refere aos dados absolutos – receitas, vendas físicas –, mas não mostram qual a posição do setor de frigoríficos na cadeia: como visto no item 3.4. “A cadeia da carne bovina”, é limitada. Gráfico D.9. JBS – Margens Operacional, EBITDA e Líquida (%) Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) As perspectivas que estão desenhadas para a JBS no futuro próximo revelam a continuidade das aquisições, mas com foco no mercado brasileiro. Segundo o presidente da companhia Wesley Batista, em entrevista em meados de 2012 (KPMG, 2012), o mercado brasileiro passou a ser mais atraente para aquisições do que os externo (EUA, Austrália ou México), devido à capacidade de expansão da produção intensificando a produção por área. A aquisição da Seara revela essa preferência pelo Brasil, ainda que seja em setor diverso do bovino. Outro desafio diz respeito à posição do frigorífico enquanto tal. As campanhas publicitárias ocorridas em 2013 para fortalecer a marca “Friboi” como opção direta do 332 consumidor no varejo buscam diminuir a condição de commodity que as carnes possuem, em especial a bovina195. Um último será o endividamento. Apesar dos aportes públicos, a empresa continua bastante alavancada e sua posição piorou depois que adquiriu a Seara Brasil da Marfrig e assumiu suas dívidas (ver adiante “Base financeira”). 5. Base produtiva A JBS é a maior produtora de proteínas do mundo. Embora atue nos quatro tipos de carnes, sua especialidade é a carne bovina, tendo entrado nos outros segmentos apenas nos últimos seis anos. Sua atividade principal é o processamento de carnes e seu produto principal é carne in natura, embora atue ainda no ramo de carnes industrializadas e no processamento de couros. Atua ainda, em menor medida, em áreas correlatas, como a comercialização de produtos de higiene e limpeza, colágeno, embalagens metálicas, biodiesel e outros. Após o conjunto de aquisições internacionais, a JBS se tornou uma empresa maior proporção de receitas fora do que dentro do Brasil, sendo a mais internacionalizada do país. O frigorífico JBS se tornou o maior do mundo após o conjunto de aquisições internacionais e nacionais feitas. No gráfico abaixo fica claro, observando a sua capacidade de abate, como ocorrem os saltos na capacidade de bovinos a partir de 2006, ano de aquisição da Swift argentina, e 2007, ano de aquisição da Swift americana, além da entrada em outros ramos em que não tinha atuação. 195 Recente campanha do frigorífico Minerva oferecendo nova linha de cortes (“Carnes Nova Mesa”) prontos para preparo responde ao mesmo problema. 333 Gráfico D.10. JBS – Capacidade de abate diário – por segmento de atividade Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) Outra característica fundamental para se compreender a posição da JBS é a divisão de suas atividades entre produção in natura, industrialização da carne (aquilo que o Ministério da Agriculta chamou de “indústrias de segunda transformação”) e outras atividades. Curiosamente, ao adquirir grandes empresas estrangeiras, a tendência da JBS foi aprofundar sua especialização em atividades mais simples: a produção in natura, que consiste apenas no corte e acondicionamento/embalagem para venda. Curiosamente, após comprar operações em países desenvolvidos, sua produção se “primarizou” em geral. 334 Gráfico D.11. JBS – Produção por segmento (%) Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) A distribuição geográfica da JBS pode ser entendida pela separação das unidades organizacionais entre JBS Mercosul (Brasil, Argentina e demais) e JBS USA (dividida em três segmentos: bovina, suína e frangos), englobando EUA, Canadá, Austrália e outros menores. No que diz respeito ao seu principal negócio, a maior capacidade produtiva de abate de bovinos ainda é o Brasil/Mercosul, ainda que as receitas de bovinos sejam maiores no mercado da JBS USA. 335 Tabela D.14. JBS – Capacidade de abate diário por segmento e região (%) Bovinos Total Brasil ou JBS Mercosul Argentina Paraguai Uruguai EUA ou JBS EUA Austrália Canadá Outros 2007 51.400 2008 65.700 18.900 6.700 28.600 8.500 3.000 2009 90.290 ND ND ND ND ND ND ND ND 2010 86.000 ND ND ND ND ND ND ND ND 2011 87.100 53.000 ND ND ND 34.100 ND ND ND 2012 83.991 42.550 1.730 521 900 26.025 7.765 4.500 - Aves 2007 Total 0 Brasil JBS USA (EUA, Mex. Porto Rico) 2008 0 - 2009 7.600.000 7.600.000 2010 7.600.000 ND 2011 7.200.000 7.200.000 2012 8.950.000 1.450.000 7.500.000 2007 47.900 47.900 2008 47.900 47.900 2009 48.500 48.500 2010 48.500 ND 2011 50.100 50.100 2012 51.300 51.300 Ovinos Total EUA Austrália 2007 0 2008 20.500 4.000 16.500 2009 27.500 ND ND 2010 27.500 ND ND 2011 28.300 ND ND 2012 24.900 2.800 22.100 Couros (peças) Total Brasil China 2007 ND 2008 ND 2009 55.600 55.600 - 2010 ND 2011 ND - - 2012 73.800 71.600 2200 Suínos Total JBS USA (EUA) Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) Como já foi visto em tópico anterior, a JBS não é uma empresa majoritariamente exportadora: suas exportações como percentual das receitas totais não excederam 30% nos últimos quatro anos. Dentro deste universo, se destacam entre 2008 e 2010 (período com dados disponíveis) o acesso a dois grandes consumidores tradicionais, a Europa e o Japão (também chega a outros ricos asiáticos: Coreia do Sul, Hong Kong e Taiwan), e três consumidores que vem crescendo, a Rússia, o México e o MENA (Oriente Médio e África do Norte). 336 Tabela D.15. JBS – Destinos das exportações, por pais/região (%) Exportações por país África e Oriente Médio México Japão Rússia União Europeia Hong Kong Coreia do Sul Canadá China EUA Taiwan Indonésia Outros 2008 7% 18% 9% 13% 11% 5% 4% 8% 3% 3% 4% 0% 15% 2009 7% 8% 17% 10% 11% 6% 7% 8% 5% 7% 12% 3% 3% 2010 18% 14% 12% 10% 8% 7% 5% 4% 4% 4% 2% 1% 12% Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria) 6. Base financeira A principal forma de financiamento da JBS no período de estudo foi o BNDES, particularmente através da subscrição de ações. O grupo JBS abriu seu capital em 2007, quando o BNDES fez o seu primeiro aporte que financiou quase integralmente a aquisição da Swift nos EUA. Desde então o BNDESPar tem sido o principal investidor no grupo JBS, especialmente via ações. Na tabela abaixo estão as captações do grupo no mercado de capitais, onde as subscrições, maior parte feita pelo BNDES, se destacam (R$ 7.203,8 milhões) contra as demais fontes (R$ 4.010,0 milhões). Tabela D.16. JBS – Captação de Recursos Via Mercado de Capitais Fonte: MACEDO & LIMA (2012). 337 Observando mais detidamente a composição do grupo controlador (vide tabela baixo), temos os seguintes fatos principais: (i) O governo se tornou o principal sócio minoritário do grupo através dos aportes feitos pelos BNDES (via BNDESPAr), que chegou a deter 30,4% das ações do grupo (a Caixa se apossou de 10,1% da JBS em 2012, fatia que pertencia ao BNDESPAr, simplesmente para fechar as contas da União no ano196); (ii) em 2009, foi criada uma nova empresa, a FB Participações, controlada pela J&F Participações (família Batista) mas com parcela dada aos controladores do frigorífico Bertin em troca da incorporação de seus ativos à JBS; (iii) Em 2011, o Banco Original, de propriedade dos Batista, assume parte do controle. 196 Parte do episódio conhecido como a “contabilidade criativa” do governo no fechamento das contas de 2012. 338 Tabela D.17. JBS - Composição do Controle Acionário Acionistas J&F Participações S.A. FB Participações S.A. Banco Original Administradores ZMF Fundo de Invests. Parts. Ações em Tesouraria Ações em circulação (total) BNDES Participações S/A FRDT-FP/PROT-FIP Caixa Econômica Federal Minoritários TOTAL DE AÇÕES Capital Social (R$ mi) Acionistas J&F Participações S.A. FB Participações S.A. Banco Original Administradores ZMF Fundo de Invests. Parts. Ações em Tesouraria Ações em circulação (total) BNDES Participações S/A FRDT-FP/PROT-FIP Caixa Econômica Federal Minoritários TOTAL DE AÇÕES Capital Social (R$ mi) 2007 597.195.003 55,4% 0,0% 0,0% 17 0,0% 87.903.348 8,2% 0,0% 392.301.632 36,4% 139.470.609 12,9% 0,0% 0,0% 252.831.023 23,5% 1.077.400.000 100,0% 1.945,58 2010 2008 632.781.603 44,0% 0,0% 0,0% 0,0% 87.903.348 6,1% 34.226.200 2,4% 683.167.775 47,5% 186.891.800 13,0% 205.365.101 14,3% 0,0% 290.910.874 20,2% 1.438.078.926 100,0% 4.495,58 2011 0,0% 1.399.867.018 54,5% 0,0% 0,0% 0,0% 74.753.200 2,9% 1.092.851.258 42,6% 437.102.282 17,0% 205.365.101 8,0% 0,0% 450.383.875 17,5% 2.567.471.476 100,0% 18.083,54 0,0% 1.322.594.285 43,2% 77.272.728 2,5% 0,0% 0,0% 97.185.895 3,2% 1.563.936.283 51,1% 931.069.588 30,4% 205.365.101 6,7% 0,0% 427.501.594 14,0% 3.061.444.191 100,0% 21.561,11 2009 0,0% 1.399.867.018 59,1% 0,0% 0,0% 0,0% 43.990.100 1,9% 923.614.358 39,0% 437.102.282 18,5% 205.365.101 8,7% 0,0% 281.146.975 11,9% 2.367.471.476 100,0% 16.483,54 2012 0,0% 1.294.186.864 44,0% 97.519.895 3,3% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 584.417.512 19,9% 0,0% 296.392.500 10,1% 671.127.237 22,8% 2.943.644.008 100,0% 21.506,25 Fonte: JBS – Relatórios de Administração, diversos anos (elaboração própria). Dentre as capitalizações feitas pelo BNDES, estão a de R$ 1.115 milhões em 2007 e a de R$ 3.477 milhões, realizada através de capitalização de créditos das debêntures emitidas pela JBS. A primeira foi decisiva na aquisição da Swift dos EUA, enquanto a segunda, para a aquisição da Pilgrim’s Pride, também dos EUA. A contrapartida da JBS para os acionistas – dentre eles o BNDES –, os dividendos, têm ocorrido de forma bastante irregular e simplesmente não houve nos anos de prejuízo de 2010 e 2011. 339 Tabela D.18. JBS – Pagamento de dividendos Pagamento de Dividendos (R$ mi) 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 21.800 31.700 11.200 17.500 12.300 61.500 0 0 170.700 Dividendos/Receita Líquida (%) 0,6% 0,9% 0,3% 0,1% 0,0% 0,2% 0,0% 0,0% 0,2% Dividendos/Lucro Líquido (%) 18,5% 37,7% 7,1% -10,4%* 54,6% 27,9% 0,0% 0,0% 22,4% (*) Em 2007 houve prejuízo, mas a JBS pagou dividendos. Fonte: JBS, Relatórios Anuais, diversos anos (elaboração própria) Duas informações que são importantes na análise da base financeira das empresas estão na tabela abaixo. Enquanto o prazo é majoritariamente longo, a composição em moedas é majoritariamente nacional. Infelizmente, não mais informações nos Relatórios Anuais acerca de quais são os credores, as principais operações e os prazos. Particularmente a composição em moeda, concentrada em reais, destoa das demais empresas desta pesquisa e não podemos apurar sua origem. Tabela D.19. JBS – empréstimos e financiamentos, composição das moedas e prazos (%) Empréstimos e Financiamentos Moeda Nacional Prazos 2008 44% 2009 47% 2010 58% 2011 62% 2012 63% Estrangeira 56% 53% 42% 38% 37% Curto Prazo 33% 43% 33% 28% 30% Longo Prazo 67% 57% 67% 72% 70% Fonte: JBS, Relatórios Anuais, diversos anos (elaboração própria) O indicador utilizado pela JBS para avaliar sua capacidade de pagamento das dívidas é a Dívida Líquida/EBITDA. Como se vê no gráfico abaixo, o indicador tem se mantido bastante estável por volta de 3,0. No fechamento do terceiro trimestre de 2013, após a incorporação da Seara, este indicador chegou a 4,03, colocando na agenda da companhia a redução para um patamar de 3,0. 340 Gráfico D.12. JBS – Dívida Bruta (R$ mi) e razão Dívidas Bruta e Líquida/EBITDA (%) Fonte: JBS, Relatórios Anuais, diversos anos (elaboração própria) 7. Síntese A JBS é um capital que atua dentro do segmento de agronegócio e cresce através de aquisições, fortemente alavancado pelo Estado brasileiro. É a partir do processo de internacionalização, iniciado em 2005 e acelerado em 2007, que se torna a empresa com projeção internacional. Sua estratégia consiste em adquirir e sanear empresas concorrentes com dificuldades financeiras e operacionais. No entanto, tanto a posição da empresa na cadeia produtiva quanto o custo do endividamento necessário para as aquisições implicam baixas margens e um pequeno raio de manobra da empresa. O decisivo é que, além de não ter a base financeira necessária para executar sua estratégia, a JBS atua em um segmento da cadeia de carnes que é comandado por outros segmentos. Sua tecnologia é básica, suas margens são pequenas, a eficiência exige escalas muito altas e ela não controla os canais mais importantes da cadeia, no varejo ao consumidor ou na incorporação de progresso técnico na criação dos animais. Desta forma, apesar de atuar como uma empresa transnacional, sua condição não a torna uma líder real do setor. O fortalecimento da JBS fortalece o agronegócio no Brasil, a dependência tecnológica e de mercados externo, o padrão de uso da terra baseado no latifúndio, a necessidade de converter o negócio em fonte de equilíbrio na balança comercial – e nas contas externas em geral –, e o endividamento do Estado para financiar grandes negócios privados. 341 A JBS atua no ramo de carnes e é especializada no ramo de carnes bovinas. Este é um ramo do agronegócio mais estável que outros por motivos de demanda – crescimento permanente do consumo de proteína animal – e técnicos, o que fez com que os preços subissem menos e oscilassem menos que outras commodities. O segmento principal da JBS, a carne bovina, é o menos dinâmico entre os quatro principais, com preços maiores e atratividade menor, marcado por margens menores. Tanto o é que a JBS tem aproveitado as suas aquisições para obter a oportunidade de entrar nos segmentos mais dinâmicos, como é o caso da carne de frango. De qualquer forma, até agora o padrão produtivo da JBS é o fornecimento de carne in natura, um processo de baixo valor agregado, com tecnologia livre e muito dependente de custos. Baseada na estratégia de aquisições de concorrentes, a JBS se sintetiza pelos dizeres do presidente: “não construímos, reformamos”. Embora seja possível que possua alguma vantagem frente a outras empresas por uma gestão mais eficiente, a transformação da antiga Friboi na multinacional JBS só foi possibilitada pelo comprometimento do Estado através do BNDES. Tal comprometimento não só foi grande – a JBS foi o frigorífico e uma das empresas brasileiras que mais recebeu recursos do banco nos anos 2000 –, como foi feito através de participação acionária, sem contrapartida regular em juros, mas na forma de dividendos instáveis e algumas vezes inexistentes. Foi uma maneira mais barata e prática de transferir imenso volume de recursos para uma empresa; Seus principais mercados consumidores são os mesmos países onde possui produção, uma característica própria do mercado de carnes, em que a fatia da produção destinada ao comércio internacional é relativamente pequena – ainda que, no Brasil estimemos que as exportações sejam bastante relevantes para a empresa. No entanto, as qualidades exigidas por mercados importadores importantes e a recorrência de embargos sanitários ou comerciais às importações são fonte de oscilação em preços e impactam fortemente os frigoríficos. São variáveis exógenas às empresas produtoras, exacerbando uma característica fundamental do setor: é movido pela demanda do consumidor. Outro ponto fundamental é quem controla os segmentos mais relevantes ao longo de toda a cadeia. Na ponta inicial, a incorporação de progresso técnico ocorre fundamentalmente na saúde animal – outro fator mobilizado por motivos de demanda –, com alimentação e farmacêutica veterinária, e no melhoramento genético. Todos estes setores são controlados 342 majoritariamente por grandes empresas internacionais, havendo algum espaço para o capital local se incorporar na revenda, associação ou nichos de mercado. Na outra ponta, a final, residem que a literatura afirma ser os segmentos mais dinâmicos, controlados pelos grandes varejistas e empresas de food services. São eles que conseguem se apropriar de uma parcela maior do valor adicionado até o produto final. O setor é controlado por alguns segmentos mais importantes que incorporam parte maior do valor, relegando a outros, como o dos frigoríficos, parcelas menores ou residuais. No Brasil em particular, o mercado consumidor de carne bovina e carnes em geral se aqueceu com o período de crescimento com aumento de salários reais e transferência de renda. Isso torna para a empresa o mercado interno relevante, ainda que a orientação de política econômica, bem como a coerência dos negócios da empresa, empurre para o processo de exportação. Desta forma, o segmento de carnes, e a JBS nele, seriam uma peça fundamental da estabilização do setor externo, garantindo saldos comerciais – a meta é que o setor fosse o maior exportador no agronegócio brasileiro e que o país fosse o maior exportador do mundo. Desta forma, a transnacionalização da JBS, que reduz seus vínculos com o mercado interno, ainda que ele continue a ser importante mercado consumidor, reforça características regressivas do agronegócio: o uso intensivo de recursos naturais e da terra; o custo do suporte estatal ao setor; a busca por atender a mercados externos – e a correspondente vulnerabilidade aos choques de demanda típicos do setor primário; a busca pelo diferencial em atividades de gestão e não na incorporação de progresso técnico ou criação de novas mercados; a constituição da empresa em mais uma peça das estratégias globais do capital que podem desestruturar economias nacionais com mudanças de planos produtivos e financeiros, exacerbando as tendências à reversão neocolonial. 8. Referências Bibliográficas ABDI (2011). Relatório – setor de carnes brasileiro. Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, junho de 2011. Disponível em: <www.abdi.org.br>. Acesso em: 4/1/2014. 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