CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA GERAL E ANÁLISE DO COMPORTAMENTO PSICOLOGIA CLÍNICA NA ANÁLISE DO COMPORTAMENTO CONSIDERAÇÕES SOBRE A INSTITUIÇÃO PÚBLICA E A CLÍNICA PARTICULAR EM CASOS DE ABUSO DE SUBSTÂNCIAS Natália Regina Pinheiro de Freitas Silva Rafaela Ventura Silvério Biz Talita Machado Vieira A questão do uso e abuso de substâncias psicoativas pode ser considerada, na atualidade, um problema de saúde pública. Frente a isso e juntamente com outros fatores, especialmente de ordem econômica, nota-se a necessidade de instituições públicas especializadas para lidar com estas situações, uma vez que a clínica psicológica particular aparenta ter limitações no atendimento destes casos1. No Brasil, o índice do consumo deste tipo de substância é relativamente alto, especialmente entre adolescentes, tanto para as drogas de uso lícito quanto para aquelas de uso ilícito (NOTO, 2004). Entre as drogas de uso lícito o tabaco e o álcool se destacam de forma alarmante. 1 Dados de 2004 da Organização Mundial de Saúde (OMS), O principal problema aqui levantado diz respeito à questão econômica como fator que impede o acesso generalizado a este tipo de serviço, exigindo iniciativas dos órgãos públicos para lidar com esta realidade. aproximadamente 2 bilhões de pessoas consomem bebidas alcoólicas. Seu uso indevido é um dos principais fatores que contribui para a diminuição da saúde mundial, sendo responsável por 3,2% de todas as mortes e por 4% de todos os anos perdidos de vida útil. O II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, promovido pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), em 2005, aponta que 12,3% das pessoas, com idades entre 12 e 65 anos, apresentam problemas devido ao uso de alcoólicas. Os dados também indicam o consumo de álcool em faixas etárias cada vez mais precoces. São de extrema relevância, também, dados do Ministério da Saúde apontando que no Brasil, de 1995 a 1997, o alcoolismo ocupava o quarto lugar no grupo das doenças incapacitantes. Em 1996, a cirrose hepática de etiologia alcoólica foi a sétima maior causa de óbito na população acima de 15 anos. Os gastos públicos do Sistema Único de Saúde - SUS, com tratamento de dependentes de álcool e outras drogas em unidades extra-hospitalares, como os Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad), atingiram, entre 2002 e junho de 2006, a cifra de R$ 36.887.442,95. Além disso, outros R$ 4.317.251,59 foram gastos em procedimentos hospitalares de internações relacionadas ao uso de álcool e outras drogas no mesmo período. Percebe-se, portanto, uma preocupação do governo com relação a estes dados, principalmente por meio das tentativas de implementação de intervenções no nível primário, secundário e terciário. Segundo Castro e Bornholdt (2004), a intervenção primária diz respeito à implementação de programas de ação preventivos ao desenvolvimento de problemas de saúde; a intervenção secundária, por sua vez, diz repeito à atuação do profissional quando já existe uma demanda, visando à prevenção de efeitos adversos e do desenvolvimento da situação; já a intervenção terciária atua para a diminuição dos danos e do sofrimento quando o problema já está instalado. Diversas leis encaixam-se claramente nos dois primeiros níveis de intervenção citados, mas, a superlotação dos serviços públicos (e outras instituições) destinados ao tratamento do abuso de substâncias, dá indícios da ineficiência das políticas propostas nestes dois níveis (primário e secundário). Apesar desta superlotação e de outras dificuldades encontradas para se promover o sucesso na intervenção em casos de dependência química, a abordagem da Redução de Danos (RD) tem-se mostrado eficiente e vem ganhando espaço nos programas de políticas públicas. Segundo Fontes et al. (2004) a RD consiste em “um conjunto de medidas de saúde pública voltadas a minimizar as consequências adversas do uso de drogas, quer sejam lícitas ou ilícitas” (FONTES et al., 2004, p. 559). Por conta disso, tal política pode ser considerada como uma intervenção no nível terciário, uma vez que suas ações destinam-se a interromper ou diminuir consequências ocasionadas pelo uso contínuo de substâncias psicoativas. Tal política nasceu na Europa, em resposta à crescente propagação da síndrome de imunodeficiência (AIDS). Um dos locais em que se adota esta política são os "CAPS ad", que consistem em serviços de atenção psicossocial, com um caráter comunitário e local, e que focam o atendimento a indivíduos que possuem algum transtorno resultante do uso ou da dependência de substâncias químicas. O atendimento no "CAPS ad" pode ocorrer em três modalidades: a intensiva, em que o paciente tem acompanhamento diário; a semi-intensiva, na qual o paciente recebe um tratamento freqüente, mas não diário, e a não-intesiva, que se caracteriza por um atendimento de baixa freqüência. Além disso, as atividades que são desenvolvidas podem se configurar em atendimentos individuais ou de grupo, oficinas terapêuticas, acompanhamento domiciliar, etc. É importante destacar que o serviço oferecido pelo “CAPS ad” tende a ser mais efetivo quando realizado em conjunto com outras instituições da rede de saúde pública, que se utilizam de outras práticas e abordam outras dimensões da vida do indivíduo. Existem alguns princípios básicos que compõem a RD e auxiliam no planejamento de ações para o tratamento em instituições públicas. Marltt (1999), citado por Fontes et al. (2004), descreve cinco princípios fundamentais da RD: - RD como alternativa de saúde pública para modelo moral, criminal e de doença; - Reconhecimento da abstinência total como resultado ideal, mas aceitando também alternativas que reduzam danos; - É uma abordagem em defesa do dependente; - Se baseia em programas de “baixa exigência” como alternativa às abordagens de “alta exigência”; - Baseia-se em princípios do pragmatismo empático. Estes cinco elementos da política de redução de danos buscam, de forma geral, romper com uma cultura de julgamento do comportamento aditivo a partir de princípios morais (certo e errado), legais (licito e ilícito) e patológicos (saudável e doente), visando estabelecer um cenário de preocupação real com o indivíduo usuário de drogas e as pessoas de seu convívio que também são afetadas por isso. Além disso, a RD esforça-se também para promover a melhoria da qualidade de vida dos usuários, mesmo que a abstinência total não seja conseguida. A abstinência total, ainda que seja considerada como o resultado ideal, diminui significativamente a taxa de adesão dos usuários aos programas de reabilitação, assim a RD, ao estabelecer outras metas, cujo custo de resposta é menor, consegue atingir um maior número de pessoas. Neste sentido, é uma política que visa criar condições para que este indivíduo seja visto para além de seu vício. Apesar do esclarecimento sobre a política adotada pelos órgãos públicos no que tange a questão da adicção, fica claro que tal parâmetro serve como norteador de ações, necessitando que se discorra mais detalhadamente sobre métodos pontuais de intervenção. Cabe ressaltar que tais métodos ou modelos de tratamento podem servir como recurso tanto aos atendimentos psicológicos realizados em instituições públicas quanto em clínicas particulares. O tratamento de um vício não se constitui somente pela retirada da substância ou permanente abstinência desta. Atualmente, sabe-se que é importante que se siga todo um processo com uma duração maior, uma vez que tratamentos que trabalham com os opostos "tudo ou nada" exigem um custo elevado de resposta por parte do usuário. É necessário que o indivíduo reconheça o seu problema e, com as mudanças de seu estilo de vida, se adapte tornando-se apto a enfrentar as dificuldades consequentes da abstinência, como crises, recaídas, arcando com eles através das novas habilidades e recursos que o tratamento lhe trará para consolidar uma nova vida sem as drogas. Essa nova visão acerca do tratamento da dependência química rompe com um modelo farmacológico que reduz a adicção a simples ativação do sistema cerebral de recompensa e incorpora a importância dos fatores ambientais, tanto antecedentes quanto consequentes, ao comportamento de uso da droga. Na adicção a álcool e drogas, muitos são os fatores motivacionais envolvidos. Existem razões biopsicossociais complexas, que dificultam, por exemplo, a compreensão sobre as características nela envolvidas. Como consequência desta complexidade, o tratamento deve ser realizado, principalmente, de forma a respeitar as particularidades do caso, uma vez que tratamentos generalizados nem sempre atingirão todas as peculiaridades que estão envolvidas na drogadicção de cada indivíduo. Na tentativa de estruturar uma intervenção que compreenda o que há de individual no uso e abuso de substâncias é que a abordagem cognitivo-comportamental criou intervenções como a que trabalha com as habilidades de enfrentamento para o comportamento de beber (HECBs) e a Assessoria motivacional sistemática. No primeiro tipo de estratégia, o comportamento tido como problema (no caso, o de beber) é que está centralizado e há uma preocupação em considerar as condições a ele relacionadas (antecedentes e consequentes do beber). Já a segunda estratégia, centra-se naquilo que motiva o problema que a pessoa tem com a bebida. (COX; CALAMARI; LANGLEY, 2003). O programa das HECBs é realizado no contexto do relacionamento de colaboração que se constrói entre terapeuta e cliente, e se divide em fases. São elas: fase de avaliação ampla (na qual são preenchidos instrumentos que irão guiar a constituição do tratamento e que oferecerão informações objetivas acerca do comportamento desadaptativo do comportamento de beber e onde começa a elaboração de auto registro), a fase de preparação para a mudança (onde se dá o fortalecimento das habilidades relacionadas à tomada de decisão), o treinamento de habilidades de enfrentamento (na qual se dá o aprendizado de habilidades) e a última, constituída pela generalização estruturada, na qual essas habilidades são transferidas para a vida do sujeito. (COX; CALAMARI; LANGLEY, 2003). Considera-se que o comportamento de beber em excesso é um meio desadaptativo que o indivíduo encontrou para lidar com as situações pelas quais passa. Entende-se que alguns indivíduos nunca tiveram a oportunidade de aprender as habilidades que são consideradas adaptativas, enquanto outros podem ter aprendido, mas não conseguem colocá-las em prática. Essas habilidades estariam relacionadas à capacidade de atender adequadamente aos estímulos e tarefas sem desviar a atenção para outros comportamentos que não iriam proporcionar o real enfrentamento destas. São ensinadas habilidades que ajudam o indivíduo a obter reforços alternativos não químicos para que seja aumentada a sua competência social global e para que saiba controlar os estados de humor negativos causados pela abstinência de substâncias. Já a Assessoria Motivacional Sistemática (AMS), também criada pelas abordagens cognitivo-comportamentais, trabalha com o afeto sendo ele positivo (como a alegria e a felicidade) ou o negativo (como a tristeza). O tratamento se baseará, portanto, em mudar o afeto, produzindo resultados na pessoa que a façam querer coisas boas e se livrar de coisas que as façam se sentir mal. Se trabalha, portanto, com conceitos como o incentivo e o objetivo. O incentivo é um acontecimento que provocará uma mudança eficaz, e o objetivo é um incentivo particular pelo qual o individuo se comprometeu a perseguir (como sair para jantar a noite, conseguir concretizar feitos de longo prazo e etc). Beber também pode ser um objetivo, mas é um problema quando atrapalha a busca de outros objetivos. (COX; CALAMARI; LANGLEY, 2003). No modelo de AMS também são consideras as particularidades de cada indivíduo que tornam o tratamento tão complexo quanto as circunstâncias que levaram o indivíduo a beber. Porém, apesar das características particulares, de uma forma geral, o que se busca fazer neste tratamento é identificar os padrões motivacionais dos bebedores-problema (ou consumidores de outras substâncias) que são considerados desadaptativos, por tirarem dos indivíduos a possibilidade de lutar pelo que anseiam e que os fazem buscar na bebida a satisfação emocional que lhes falta. Após essa identificação, o que se faz é mudar o que é desadaptativo através da assessoria que buscará o aumento da satisfação pela vida, tirando o foco da satisfação alocado no comportamento de beber. (COX; CALAMARI; LANGLEY, 2003). Com relação à Análise do Comportamento, em qualquer intervenção deve ser feita uma minuciosa análise em que a tríplice contingência seja considerada, uma vez que o comportamento de beber é mantido tanto pelo biológico como pelo que foi aprendido pelo indivíduo, bem como por aquilo que se vive na cultura em que ele está inserido. No que tange ao conteúdo filogenético podem ser considerarados aqueles grupos com maior suscetibilidade e sensibilidade à bebida quando comparados a outros grupos sem essa disposição. A história do indivíduo contribuiria para que fossem aprendidos comportamentos relacionados à bebida além de todos os rituais sustentados por muitas culturas, muitos deles nos quais bebidas são amplamente consumidas. Sendo considerados todos estes fatores, é importante que, primeiramente, seja realizada uma análise funcional sobre a forma como o indivíduo aprendeu a buscar reforçadores no ato de beber, percebendo as relações existentes entre este comportamento e sentimentos como alegria, tristeza, raiva, frustração e etc, que muitas vezes funcionam como estímulos discriminativos para o uso de álcool e drogas. (OLIANI, 2012) A partir daí pode-se fazer uma análise das consequências do comportamento de beber, uma vez que muitas vezes o próprio adicto não se interessa verdadeiramente pelo tratamento e pela possibilidade de se abster da bebida. É necessário fazer toda uma análise para que a situação do usar e a do não usar sejam contrastadas, tendo suas consequências avaliadas de tal maneira que o indivíduo possa escolher sobre como proceder diante da possibilidade de tratamento. Desta forma a pessoa se decide se sua vida seria melhor se não usasse substâncias químicas ou se prefere continuar usando ainda que saiba de todas as consequências que este comportamento trará. O terapeuta trabalhará então com estratégias como a prevenção de recaídas para que o indivíduo desenvolva, em ambiente terapêutico, habilidades características de um repertório de enfrentamento de situações que até então não tinha para lidar com situações comuns de sua vida diária, que muitas vezes os levava a beber. Serão trabalhadas, portanto, situações sociais que ofereceriam alguma ameaça para o parar de beber, como as muitas vezes em que substancias químicas voltarão a ser oferecidas. A Terapia de Prevenção de Recaídas que, apesar de ter origem nas teorias cognitivocomportamentais, é muito utilizada pela Análise do Comportamento. Nesta terapia o Terapeuta, após fazer a Análise Funcional Detalhada com seu Cliente ensina algumas habilidades de reconhecimento e redução de fissura através da identificação de situações de risco. A partir de então, a terapia se direcionará ao treino de habilidades de auto controle e desenvolvimento de comportamentos alternativos ao comportamento de beber ou de usar drogas. Portanto, após identificar as situações de riscos, o Cliente será capaz de explorar as consequências negativas e positivas do uso da substância química, fazer automonitoramento para evitar a recaída e desenvolver estratégias para lidar com a fissura, além de se preparar para emergências eventuais.(KNAPP, 2002) Nota-se então que o tratamento da adicção, do ponto de vista comportamental, se foca sobre o comportamento mal-adaptado, procurando o desenvolvimento de habilidades mais adequadas para enfrentar as situações estressantes ou de risco que aumentam a probabilidade de respostas de busca e consumo de álcool e drogas. Neste sentido, pode-se afirmar uma confluência entre os princípios da política de Redução de Danos e intervenções baseadas em abordagens cognitivo-comportamentais e comportamentais. Referências: CASTRO, Elisa Kern de; BORNHOLDT, Ellen. Psicologia da saúde x psicologia hospitalar: definições e possibilidades de inserção profissional. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 24, n. 3, set. 2004 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S141498932004000300007&script=sci_arttext>. Acesso em: 20 maio 2012. COX, W. Miles; CALAMARI, John E.; LANGLEY, Mervin. Habilidades de enfrentamento para o comportamento de beber e assessoria motivacional sistemática: tratamentos cognitivocomportamentais para pessoas que têm problemas com álcool. In: Caballo, V. E. Manual para o tratamento cognitivo-comportamental dos transtornos psicológicos. São Paulo: Santos. 2003 FONTES, Andrezza et al.. Redução de danos – uma abordagem legítima para lidar com o consumo de substâncias psicoativas. In: FIGLIE, Niliana Buzi; BORDIN, Selma; GÓMEZ, José Luis Graña; MUÑOZ-RIVAS, Marina J. Tratamento cognitivo comportamental do vício em heroína e cocaína. In: Caballo, V. E. Manual para o tratamento cognitivo-comportamental dos transtornos psicológicos. São Paulo: Santos. 2003 KNAPP, Werner Paulo, Intervenções psicossociais em transtornos por uso de psicoestimulantes: uma revisão sistemática, 2002, 148f. (Dissertação de Mestrado em Medicina) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul. LARANJEIRA, Ronaldo (orgs.). Aconselhamento em dependência química. São Paulo: Roca, 2004. NOTO, Ana Regina. Os índices de consumo de psicotrópicos entre adolescentes no Brasil. In:PINSKY, Ilana; BESSA, Marco Antônio (orgs.). Adolescência e drogas. São Paulo: Contexto, 2004. Vídeo: Entrevista sobre terapia comportamental em casos de abuso de substâncias. Produção de Natália Regina Pinheiro de Freitas Silva, Rafaela Ventura Silvério Biz e Talita Machado Vieira. Participação de Simone M. Oliani. Londrina: Faculdade Pitágoras, 2012.