Comunidade de Peropava: Resistências e Permanências1
Caroline de Oliveira Morais2
Cecília Cruz Vecina 3
Gabriel Henrique Idalgo 4
Júlio César Suzuki5
Resumo
O reconhecimento da identidade quilombola apresenta-se para Peropava como uma
possibilidade de resistência, sobretudo em relação à desestruturação dos saberes tradicionais,
levando seus sujeitos a construir uma nova idéia de si próprios e do mundo que os envolve,
trazendo à tona a discussão do que é ser quilombola ontem e hoje.
Assim, objetivou-se com este trabalho, analisar as principais formas de resistência
encontradas pela comunidade quilombola Peropava (ainda não reconhecida legalmente),
garantindo sua identidade territorial e perpetuando seu modo de ser, agir e se reproduzir no
espaço.
O que ficou da pesquisa, porém, é uma sensação de impossibilidades, uma vez que em
quase todos os recursos previstos em lei, há a possibilidade de contestação por terceiros –
presente desde o processo de reconhecimento até o de titulação -, podendo ser repetidas vezes
feita, entravando e muitas vezes dando fim a todo o processo que se apresentar contra as
vontades do grande capital.
Assim, o reconhecimento da comunidade de Peropava, pelo Estado/sociedade, como
sendo remanescente de quilombo, traz consigo a promessa do possível diálogo com o mundo
do mercado; da construção de uma identidade e com ela o reconhecimento como sujeito de
uma história própria e de direitos; e, finalmente, traz consigo a possibilidade da emancipação,
da escolha do próprio futuro.
Palavras-chave: quilombola, identidade, território, cultura, Peropava.
1
Pesquisa realizado com apoio das Pró-Reitorias de Graduação e de Cultura e Extensão da Universidade de São
Paulo, junto ao projeto "Geografia da oralidade - Uma recuperação da história oral de populações tradicionais no
estado de São Paulo" do grupo de pesquisa Agricultura e Urbanização do Laboratório de Geografia Agrária da
Universidade de São Paulo.
2
Graduação em Geografia – FFLCH/USP; [email protected].
3
Graduação em Geografia – FFLCH/USP; [email protected].
4
Graduação em Geografia – FFLCH/USP; [email protected].
5
Professor do Departamento de Geografia/FFLCH/USP; [email protected].
'Olhares sobre o processo investigativo'
Introdução
As comunidades quilombolas são marcadas pela permanência de práticas
socioespaciais que as definem como tradicionais, tais como o uso do tempo cíclico, uma
relação densa com a natureza, baixo uso de tecnologias modernas, dentre outras
características. São, assim, locus de resistência ao processo de homogeneização cultural,
evidenciado pelas permanências de suas tradições, o que foi fortificado pelas possibilidades
constituídas com a promulgação da Constituição Federal de 1988, na qual se garantiu o direito
dos remanescentes de quilombolas requererem as terras há muito ocupadas.
Wagner e Wiksell6, discutindo os temas da geografia cultural, explicitam que cultura sendo considerada tanto um atributo inerente ao homem, como um artifício intelectual para a
compreensão do nosso comportamento - é a chave para a compreensão sistemática das
semelhanças e diferenças dos agrupamentos culturais.
Assim, a noção de cultura leva em consideração não indivíduos isolados (somente suas
característcas pessoais), mas também os observa inseridos num contexto – em um local e
tempo específico. A cultura resultaria da capacidade dos sujeitos se comunicarem entre si por
meio de símbolos, por exemplo: quando duas pessoas pensam e agem de maneiras
semelhantes, elas o fazem porque estão inseridas em um mesmo contexto; porém isso não
impede que elas possuam diferenças, o que representa que estão, concomitantemente, situadas
em realidades e influências diferentes. Dessa forma, fica claro perceber que a cultura também
está assentada numa base geográfica - características que o espaço local oferece – sendo um
dos fatores determinante das relações.
Desse modo, buscamos, neste trabalho, analisar as principais formas de resistência
encontradas pela comunidade quilombola Peropava (ainda não reconhecida legalmente),
garantindo sua identidade territorial e perpetuando seu modo de ser, agir e se reproduzir no
espaço.
Para tanto, entendemos que será necessária a compreensão de seu grau de inserção no
que compreendemos por modo de produção capitalista, discutindo a própria idéia de
comunidade quilombola uma vez que é apropriada como forma de garantir seu território e
“direitos”.
6
In CORRÊA, Roberto Lobato e ROSENDAHL, Zeny (orgs) Introdução à Geografia Cultural. 2ª edição – Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Assim, a pesquisa foi fundada em levantamento de campo, com base em relatos orais,
séries fotográficas7 e observações do modo como interpretamos que se de a resistência, ou
não, pela manutenção de seus costumes (agricultura de subsistência – se possui excedentes
que são comercializados -, socialização dos mais novos, constituição da família, como vêem o
“mundo externo” etc.). Além de estudos pré e pós-campo, apoiados em autores como Simone
Rezende Silva, Fábio Sanches, Antonio Diegues, Marilena Chaui, entre outros especificados
nas referências bibliográficas e incorporados no decorrer da análise.
Assim, dividimos o trabalho em dois eixos principais. No primeiro (compreendendo os
tópicos "A Ocupação do Vale do Ribeira" e "A constituição de 1988 e as Comunidades
Quilombolas"), pretendeu-se, não apenas realizar uma contextualização do processo histórico
que se deu na região do Vale do Ribeira, como, também, relacioná-lo à constituição das leis
que vieram a institucionalizar a situação de “comunidade quilombola”, direcionando,
portanto, tal histórico à formação de agrupamentos de “ex-escravos” e sua presença como
grupo político a partir de 1970 e na atualidade.
E no segundo eixo (ponto "Práticas socioespaciais tradicionais na comunidade"),
buscamos trabalhar mais diretamente com as entrevistas, focando a cultura tradicional em si e
os conflitos que esta vive na comunidade de Peropava – a visão de seus moradores sobre o
mundo externo à comunidade e as concepções que têm de si -, buscando, portanto, discutir as
características por excelência de cultura tradicional e analisar suas dificuldades de
permanência.
A Ocupação do Vale do Ribeira
A região, originalmente ocupada por índios Tupis, Tupinambás, Carijós, entre outros
(com influências presentes até hoje tanto na cultura da região como nas nomeações das
formas de relevo, fauna e flora), esteve entre as primeiras a serem ocupadas pelos ibéricos,
sendo Martim Afonso de Souza responsável pela fundação das primeiras vilas, sendo elas:
São Vicente (1532), Santos (1545), Bertioga (1553), Itanhaém ( 1561) – região da Baixada
Santista. Quanto à região do Vale do Ribeira, é possível que tenha tido contato com os
portugueses e espanhóis antes da chegada de Martim Afonso, porém foi apenas com as
expedições organizadas por este, à procura de ouro, que se iniciou o povoamento de fato – de
7
Ao final do trabalho, foi constituído uma breve série fotográfica, na qual se selecionaram as principais imagens
feitas em campo. Assim, indicamos que se vejam as fotografias 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7.
'Olhares sobre o processo investigativo'
forma mais dispersa até o século XVII e mais densa após a descoberta do Morro do Ouro em
Apiaí.
Assim, eram vilas organizadas sob uma agricultura voltada primordialmente para
subsistência, constituídas graças à mineração - responsável pela vinda dos escravos à região -,
e expandidas devido às expedições que percorriam todo o Vale do Ribeira.
Foi a partir da descoberta de ouro, em Minas Gerais (aproximadamente século XVIII),
que a região, junto à mineração, começou a entrar em declínio – iniciando o que Fabio
Sanches (2004) e Daniela Andrada (2003) chamaram de “isolamento da região” -, sendo a
maioria dos escravos redirecionados para o trabalho nas novas fronteiras minerais, enquanto
outros estavam voltados para a agricultura do arroz – caracterizada por pequenos e médios
produtores com mão de obra familiar, bem como por grandes proprietários que se utilizavam
do trabalho escravo - que teve seu apogeu até início do século XIX – principalmente em
Cananéia e Iguape -, transformando a região, segundo Fábio Sanches (2004), na maior
produtora nacional, com escoamento para os portos de Santos e Rio de Janeiro, beneficiados
pelo transporte fluvial via o Rio Ribeira.
A partir de 1930, começa o período de decadência, tanto dos canais fluviais, frente à
competição com as primeiras estradas de rodagem – ligando a região ao planalto paulista -,
como do cultivo do arroz, decorrente tanto da abolição da escravidão, como da expansão da
cultura do café no oeste paulista (atraindo os grandes proprietários) e do desenvolvimento do
cultivo de arroz em outros estados brasileiros, levando a permanências apenas dos pequenos
agricultores - voltados agora para subsistência e pesca - e de negros libertos - que ou abriam
novas terras ou se apropriavam das antigas fazendas (há relatos de doações por parte da igreja
e dos antigos senhores de terras). Formando-se tanto conglomerados de caiçaras como de
comunidades negras, quilombos, que muitas vezes se misturavam em termos étnicos, ou seja,
quilombo-caiçaras.
Inicia-se, assim, a partir de meados do século XIX, em um período de decadência
econômica, “àquilo que alguns autores chamaram de ‘processo de caipirização’ da população,
e outros chamaram de ‘pequena agricultura de excedentes camponeses’” (SANCHES, 2004,
p.60), isto é: uma economia do excedente, conforme a definiu José de Souza Martins (1975 e
1997), centrada na produção para subsistência e de venda de excedentes (sendo estes previstos
no momento do plantio), organizada em bairros rurais de trabalho familiar e de cooperação.
Relacionada a esse período, não podemos esquecer que a abolição da escravidão não
se fez de forma simples. Inserida em um contexto de pressões internacionais e nacionais, com
mudanças no Brasil: de regime (de império para o que chamou de república velha); da
'Olhares sobre o processo investigativo'
produção predominante (fortalecimento cada vez maior do café e com isso de seus “barões”
envolvidos diretamente com as políticas do novo regime); e de tentativas de industrialização,
a exemplo do Conde Matarazzo, conforme discutido por José de Souza Martins (1990).
O movimento abolicionista veio acompanhado da política de colonização primeiramente conduzida pelo capital dos próprios fazendeiros de café e, mais tarde, com
recursos do Estado -, que visava entre outras coisas: o embranquecimento da população com a
vinda de imigrantes brancos e, conseqüentemente, uma marginalização da cultura do negro
com a imposição de uma cultura do branco (uma dominação social); e da Lei 601 de 1850
(Lei de Terras), responsável por tirar o pobre, isto é, o negro, índio, mestiço, colono, dentre
outros despossuídos, do processo de aquisição de terra, uma vez que inviabilizava a posse das
terras devolutas por uso, podendo apenas se tornar proprietário aquele que tivesse meios para
comprá-la.
Segundo a Lei 601 de 1850, em seu terceiro artigo, terras devolutas seriam:
“§1º As que não se acharem aplicadas a algum uso publico nacional,
provincial, ou municipal;
§ 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer titulo
legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo
Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das
condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do
Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta
Lei.
§ 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se
fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.”8
Sendo o Vale do Ribeira constituído por grande extensão de terras devolutas, tal
definição, assim como a obrigatoriedade posta por esta de posse apenas via a compra da terra,
é de suma importância para seu entendimento, assim como as futuras leis e decretos, que
acabam por se sobrepor e muitas vezes se contradizer, fazendo da questão fundiária no vale
um processo longo e de difícil resolução judicial.
Frente ao fim da renda capitalizada no trabalho do escravo9, fez-se necessário aos
fazendeiros, uma nova forma de renda capitalizada, além de meios de garantir que os colonos
trazidos ao Brasil trabalhassem em suas fazendas, e não simplesmente chegassem aqui e
adquirissem terras. Assim:
8
Do site http://www.planalto.gov.br, acessado, em 22/5/2009, por Cecília Cruz Vecina.
O escravo representava a riqueza do fazendeiro, bem como era fundamento de hipotecas.
9
'Olhares sobre o processo investigativo'
“A renda capitalizada no escravo transforma-se em renda territorial: num
regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de
trabalho livre, a terra tinha que ser cativa. No Brasil, a renda territorial
capitalizada (...) é engendrada no bojo da crise do trabalho escravo, como
meio para garantir a sujeição do trabalho ao capital, como substituto da
expropriação territorial do trabalhador e substituto da acumulação primitiva
na produção da força de trabalho. (...) A propriedade do escravo se
transfigura em propriedade da terra como meio para extorquir trabalho e não
para extorquir renda. (...) Nesse processo, ao libertar o trabalhador, o capital
se liberou a si mesmo” (MARTINS,1990, pp. 32-3)
Criam-se assim as bases para a formação do que veio a se chamar a sociedade urbanoindustrial, iniciada com as políticas de Getúlio Vargas, em 1930, e intensificadas na década de
1950 com as políticas desenvolvimentistas de Juscelino Kubitschek, associando o Estado ao
capital nacional e estrangeiro, promovendo a aliança da elite urbano-industrial com a agrárioexportadora, fornecendo incentivos e tentando estender aos setores agrários a lógica
empresarial, além de fornecer e realizar, para tanto, incentivos e investimentos em infraestrutura, a fim de viabilizar a entrada dos órgãos governamentais, como também dar suporte
para o desenvolvimento capitalista nas regiões distantes dos grandes centros econômicos e
industriais.
Tal política chega ao Vale do Ribeira via construção da rodovia Regis Bittencourt
(BR116, concluída em 1962), colocando a região em localização privilegiada, entre os
mercados consumidores de Curitiba e São Paulo, dando início às políticas voltadas para
região, preocupadas com o suposto sub-desenvolvimento regional. Assim, de acordo com
Fabio Sanches (2004), em 1958, formou-se a primeira comissão, com a missão de
desenvolver estudos e planos para a região, chamada de “Operação Caiçara”, incluída, em
1959, na Comissão do Litoral do Estado, criando o Serviço Regional do Vale do Ribeira
(SVR), responsável, já em ano de ditadura militar, por executar o Plano de Desenvolvimento
do Vale do Ribeira e Litoral Sul, em 1966.
O Plano foi então, em 1968, substituído pela Superintendência de Desenvolvimento do
Litoral Paulista (Sudelpa), concretizando a ação estatal por meio de políticas de incentivo
fiscal e financiamentos, a fim de transformar as bases técnicas produtivas da agricultura.
Voltadas não para o fortalecimento do produtor familiar de pequena propriedade já instalado
na região, e sim visando “capacitar a região ao aproveitamento privado daqueles incentivos
públicos” (ANDRADA, 2003, p.77).
Assim, o vale, visto como uma região atrasada e de vazio demográfico, passou a atrair
a atenção dos militares - que baseados na Doutrina de Segurança e Desenvolvimento
buscavam fazer-se presentes, impulsionados também a afastar possíveis influências de grupos
'Olhares sobre o processo investigativo'
políticos de esquerda da região - e de proprietários de outras regiões, dispostos a investir na
área para a aquisição e produção para comercialização.
Tais produções exigiam grande quantidade de mão de obra, fornecida muitas vezes
pela própria população local, desestruturando a agricultura tradicional (uma vez que o
pequeno produtor familiar passava a dedicar parte de seu tempo ao trabalho como parceiro,
arrendatário ou assalariado contratado nessas grandes fazendas monocultoras, deixando sua
terra em segundo plano), o que revela o fazendeiro em sua dupla dimensão: aquele
considerado estrangeiro na região e, ao mesmo tempo, aquele que garante o salário do final do
mês.
Deste modo, as ações estatais acabaram por desestruturar a lavoura tradicional,
desqualificando suas técnicas e produtos, excluindo o caboclo dos benefícios dos programas
de crédito e conseqüentemente da rede de transporte, uma vez que:
“Se o sitiante entra em programa de crédito agrícola, necessariamente,
deverá introduzir técnicas mais intensivas para aumentar a sua produção a
ponto de poder quitar o empréstimo adquirido. Tal manobra era bastante
improvável para o sitiante, que não tinha conhecimento sobre técnicas
intensivas e não foi instruído para tal” (ANDRADA, 2003, p.80).10
Assim, no Vale, foi se formando um sitiante com problemas tanto internos - quanto à
organização da produção intra-bairros rurais, devido aos problemas financeiros e à falta de
mão de obra para intensificar a produção -, como de estrutura externa – acesso limitado desde
os transportes de pessoas e da produção agrícola até os créditos e assistência técnica.
Somados a estas dificuldades, tem-se, na região, no final do século XIX, a
intensificação da especulação fundiária, responsável por desapropriar muitas das comunidades
que não possuíam título de terra11, ou até mesmo compelir muitos dos caboclos a deixar o
campo, tendo a venda de sua propriedade como solução para os problemas imediatos de
endividamento, partindo para as cidades próximas.
10
No caso da comunidade de Peropava, vê-se que não é a falta de instrução técnica (pois foram muitos os cursos
citados nas entrevistas realizadas por nós), mas a falta de unidade no grupo de moradores, no momento de
produção - o que levaria a um fortalecimento do produto nos momentos da produção à comercialização,
podendo, por exemplo, os custos com transporte e compra de insumos serem divididos -, acarretando em uma
sucessão de projetos e cultivos que não duram mais que um ciclo produtivo. Além de problemas com relação aos
próprios cursos, uma vez que não há uma pesquisa com relação às necessidade da comunidade, tendo até sido
relatado cursos totalmente descontextualizados da realidade do grupo (como, por exemplo, o de fabricação de
ovos de chocolate).
11
De acordo com o jornal Folha de São Paulo, em artigo sobre o Vale do Ribeira, de 22 de outubro de 1978,
apenas 40% das terras eram tituladas, sendo o restante, posses irregulares ou terras devolutas do Estado.
(www.uol.com.br/fsp, acessado, em 25/5/2009, por Cecília Cruz Vecina).
'Olhares sobre o processo investigativo'
Vão se formulando, portanto, as causas que deram origem à questão fundiária na
região. Cenário composto de um lado pelos posseiros - remanescentes de quilombo -, para
quem a terra representa fonte de sustento e elemento de existência simbólica necessário para a
sua reprodução social; de outro, os fazendeiros e grileiros que começaram a ocupar as terras
com a valorização decorrente dos planos desenvolvimentistas do governo; e mediando estes, o
Estado, que ao mesmo tempo em que busca a regularização das terras para atrair o capital, o
faz timidamente quando se trata de proteger o pequeno agricultor camponês.
A partir da década de 1980, com a eleição (em 1982) para governador do Estado de
São Paulo de André Franco Montoro, os direcionamentos dos projetos estatais começam a
mudar. Passa-se a ter como princípio de ação o “diálogo com os movimentos e associações
organizadas pela população local - apoiando e incentivando a organização dessas associações
- e da inclusão da questão ambiental na pauta política do Estado para o Vale” (SANCHES,
2004, p.67). Vê-se assim a composição de associação nos bairros rurais como um canal
privilegiado para o diálogo com as comunidades em época de redemocratização do país.
Neste contexto, ocorre o desenvolvimento, por Plínio Sampaio a pedido do governo do
estado, do Plano Diretor de Desenvolvimento Agrícola do Vale do Ribeira (MASTERPLAN),
que detectava como principal problema para a agricultura, no vale, a situação fundiária,
agravada pelas políticas desenvolvimentistas dos anos anteriores, que levaram a inúmeros os
casos de grilagens e conflitos agrários.
Assim, inicia-se um processo de olhar para o vale, para as comunidade tradicionais,
consequência do crescimento dos movimentos sociais do final da Ditadura Militar, que
exigiam políticas públicas voltadas para o bem social e não em favor do capital; e mais
especificamente do movimento negro, originado nos anos 1930 e reinventado nos anos 1970,
sendo, até então, segundo Fábio Sanches (2004), pensado por duas vertentes: a culturalista, no
qual o quilombola era visto como um fenômeno contra-aculturativo, isto é, de resistência da
cultura africana frente à aculturação da sociedade escravista; e a materialistas, que se focava
na rebeldia dos escravos dentro de um contexto de luta de classes. Para ambas, o quilombo era
visto sob o prisma da marginalização, o que impunha ao escravo tornar-se sujeito de sua
própria história.
Dessa maneira, surge o movimento negro, que se estabeleceu, em um primeiro
momento, segundo Simone Rezende da Silva (2008), com a Frente Negra Brasileira (FNB),
em 1930, colocando a identificação do negro pelo elemento cor e não pelo elemento cultural,
procurando afirmar o negro como brasileiro e renegar as tradições afro-brasileiras; e, num
segundo momento, em 1978, com o Movimento Negro Unificado (MNU), passa à auto-
'Olhares sobre o processo investigativo'
afirmação e à valorização da herança africana na constituição da população brasileira, não
numa tentativa de homogeneização da população sobre um falso suposto de uma democracia
racial, mas sim de admitir que as heterogeneidades são importantes e necessárias e por isso
devem ser respeitadas, elaborando “uma identidade positiva, isto é, não subordinada ao
branco (...). Trazendo questões como: identidade, direito à diferença, autonomia”
(SANCHES, 2004, p.46), o que permite ao FNB e ao MNU levarem a luta para a discussão na
elaboração da Constituição de 1988.
Cabe salientar que não apenas o movimento negro se fez presente no final da ditadura,
como também o movimento ambientalista, posicionado contra a maioria dos planos
econômicos da época da ditadura - devido à enorme desconsideração com o meio ambiente
nestes, assim como também o era com o social -, que levavam a altos índices de degradação e
destruição da fauna e flora, aproveitando-se do momento de abertura política e fazendo-se
presente também na Constituição de 1988.
Tal colocação tem sua importância neste trabalho devido às influências do plano
ambiental nas políticas voltadas para os quilombolas do Vale do Ribeira, uma vez que – como
já citado anteriormente – na região, encontra-se a mais significativa área de remanescente de
Mata Atlântica, em conflito12 com a agricultura itinerante do quilombo, baseada na queima e
rodízio das terras.
A constituição de 1988 e as Comunidades Quilombolas
É então, no momento de redemocratização da década de 1980, que os movimentos,
após muitas lutas e reivindicações, conseguem ver seus direitos contemplados pela nova
Constituição13, sendo o movimento negro, inserido nesta luta, fortalecido pela conjuntura
formada pelo centenário da abolição da escravatura, o que deixou os constituintes mais
cautelosos quanto a possíveis brechas racistas, o que permitiu a aprovação - dentre outros
artigos, leis e decretos que serão tratados ao longo do trabalho - dos artigos 215 e 216 da
Carta Magna:
12
Será discutido, mais adiante, a existência ou não do conflito entre remanescentes quilombolas e preservação da
mata, uma vez que há diversos trabalhos que defendem que esta só foi preservada até hoje devido à presença de
tais grupos.
13
Veremos que a Constituição, por seu caráter muitas vezes contraditório, deixa abertura a interpretações, ou até
mesmo sobrepondo direitos (como veremos no choque da legislação ambiental com os direitos das comunidade
quilombolas), sendo insuficiente ao delimitar as ações necessárias à defesa dos direitos dos menos favorecidos,
fazendo com que, na maioria das vezes, o mais forte, o que tem mais capital, seja beneficiado.
'Olhares sobre o processo investigativo'
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais
e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e
a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta
significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira [...]
§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.
§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da
documentação governamental e as providências para franquear sua consulta
a quantos dela necessitem.
§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens
e valores culturais.
§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da
lei.
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos.” 14
Foi, também, de suma importância, no reconhecimento das populações quilombolas, a
aprovação do artigo 68 presente no Ato das Disposições Transitórios15: “Aos remanescentes
das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”16. Assim, via
legislação federal as comunidades remanescentes de quilombo não apenas passaram a ser
reconhecidas como patrimônio cultural, como também tiveram seus territórios defendidos e
assegurados por lei.
A partir de então, inicia-se um processo de reconhecimento e levantamento das
comunidades, bem como de discussões quanto às definições do que seria um “remanescente
de quilombo”, isto é: Quem são as comunidades remanescentes de quilombo? Qual a
definição de quilombo deve-se levar em consideração para identificar seus remanescentes
14
Constituição Federal de 1988, consultada no site www.senado.gov.br, com acesso, em 21/5/2009, por Cecília
Cruz Vecina.
15
Que, de acordo com Simone Rezende da Silva (2008, p.69): “transitórias e não como uma obrigação
permanente do Estado, infere-se que a visão que predominou nesse processo foi a de transitoriedade da situação,
que vê o país em processo de embranquecimento. Diversas tentativas de regulamentação da lei, feitas em 1995,
1997, 1998 e 1999, indicam a premência que tem a aplicação do artigo 68 do ADCT, mas até o momento, todas
elas esbarram [...] no sujeito do direito e nos procedimentos de titulação, responsabilidades e competências”.
16
Constituição Federal de 1988, consultada no site www.senado.gov.br, com acesso, em 21/5/2009, por Cecília
Cruz Vecina.
'Olhares sobre o processo investigativo'
hoje? A quem cabe fazer a identificação? Quem é responsável por fazer a titulação das
terras? Como deve ser o título? O que é ser quilombola? Estas e tantas outras que foram aos
poucos, e lentamente, sendo trabalhadas no âmbito nacional, e mais fortemente no âmbito do
Estado de São Paulo com a formação do Grupo de Trabalho instituído pelo Decreto 40.723 de
1996, com o objetivo de fazer preposições para a plena aplicabilidade dos dispositivos
constitucionais. Tendo como diretrizes:
“garantir aos quilombolas o respeito a seus direitos fundamentais e sua
cidadania; garantir a melhoria da qualidade de vida de sua população
segundo seus padrões e valores, a partir do fomento e da proteção das
condições básicas à sua reprodução física e cultural, tais como, base
territorial, e projetos de desenvolvimento econômico adaptados à sua raiz
cultural e à capacidade regional” (ANDRADE, 1997, p.38)
O Grupo de Trabalho identificou a ação do INCRA até então como deficitária, uma
vez que este seria incapaz de avaliar grandes extensões de terra e seus usos particulares - ora
individual, ora familiar, ora comunal, em uma mesma comunidade quilombola. Assim,
avaliou-se como necessária a superação, pelo Poder Público, do conceito de direito, que trata,
segundo o Grupo de Trabalho, a propriedade apenas de maneira individual, fazendo-se
necessária a discussão do direito à propriedade coletiva, respeitando assim diferenças étnicas
e culturais presentes em nossa sociedade e as necessidades garantidas não só aos espaços de
moradia e produção, como de recriação social, isto é: espaço que garanta também a formação
socioespacial da comunidade.
Não podemos esquecer que não apenas o Grupo de Trabalho instituído pelo Estado de
São Paulo foi responsável por discutir as aplicabilidades da Constituição de 1988, como
outros órgãos, tanto de ordem estatal, como o Instituto Terras do Estado de São Paulo
(ITESP), como de ordem nacional, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) – autarquia federal, criada pelo Decreto nº 1.110/70 -, a Fundação Cultural
Palmares (FCP) e, em 2003, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial.
A FCP, vinculada ao Ministério da Cultura, foi instituída pela Lei Federal nº 7668 de
1988, cabendo-lhe promover e apoiar eventos sociais visando a interação cultural, social,
econômica e política do negro, sendo às suas funções inseridas, ao passar dos anos, outras
responsabilidades voltadas mais diretamente à consolidação das comunidades remanescentes
de quilombo, como a de identificação e delimitação territorial, tratados nos itens que se
seguem.
'Olhares sobre o processo investigativo'
A identidade quilombola
As noções de identidade quilombola e de “comunidade remanescente de quilombo”
são tratadas por uma grande quantidade de autores, como Fábio Sanches (2004), havendo
entre os estudados certo consenso quanto à origem da identidade, já que não acreditam ter
sido trazida desde a formação dos quilombos nas épocas distantes do período colonial até os
dias atuais, mas muito mais uma categoria juridicamente instituída. Isto é, mais do que uma
ligação com a cultura africana propriamente dita, as comunidades atuais têm como referência
uma noção criada externamente a eles.
Como defende Fábio Sanches (2004), uma identidade nascida do conflito político,
gerada no contexto das reivindicações do movimento negro de 1970/1980, ganhando o sujeito
visibilidade pública ao ser adjetivado (o ser humano reconhece aquilo que pode ser nomeado),
deixando de ser vista apenas como uma população atrasada pelo governo e público em geral,
para ganhar um mínimo de representação na sociedade atual.
Assim, seu reconhecimento deve ser pensado dentro do contexto de conflitos políticos,
em um momento de sobreposição de territorialidades. Isto é, no momento em que o espaço
vivido e apropriado, fisicamente e simbolicamente - lugar de autonomia e um modo de vida
próprio -, pela comunidade é ameaçado pela sobreposição de uma territorialidade diversa: a
da sociedade capitalista, sendo a identidade instituída pela Constituição - instituinte de uma
nova categoria de sujeitos - que a utilizará na luta pelos seus direitos.
“O processo de territorializar-se ou reterritorializar-se impõem a construção
de identidade políticas e culturais que entrarão em conflito com as
territorialidades impostas e identidades estabelecidas e, em geral,
dominantes no tempo e no espaço” (SILVA, 2008, p.11)
Isto é,
“Se hoje existem territórios quilombolas é por que em um momento
histórico dado um grupo se posicionou aproveitando uma correlação de
forças políticas favoráveis e instituiu um direito que fez multiplicar os
sujeitos sociais e as disputas territoriais. (...) Ou seja, quando uma
comunidade quilombola se organiza e reivindica seus direitos sobre um
território ancestral, quando ela luta para se territorializar, ela está negando o
lugar marginal que lhe havia sido designado pela sociedade abrangente.”
(SILVA, 2008, p.24, grifo nosso)
'Olhares sobre o processo investigativo'
Portanto, a discussão sobre o reconhecimento das comunidades remanescentes de
quilombo - que a muitos acadêmicos deveria passar por comprovação sociológica ou
antropológica, acreditando que a estas cabem definições como se fossem grupos
sociologicamente definidos e possíveis de delimitação, ou ainda, possuindo ancestralidade
reconhecível e determinante de seus modos de vida atual – recai sobre processos políticos, na
formação de uma categoria jurídica, reconhecendo que não se tratam apenas de descendentes
africanos, e sim, e principalmente, de brasileiros resistindo e lutando por sua autonomia.
Deste modo, fica claro tanto o porquê não usar o termo descendente e sim
remanescente (uma vez que com este subentende-se um processo histórico, responsável
muitas vezes por forçar ou compelir tais comunidade a mudar seu modo de vida - resignificando seus valores culturais ancestrais -, emigrando, ou sendo submetida aos grandes
fazendeiros), respeitando assim as condições enfrentadas por esses sujeitos; como o porquê da
queda do Decreto 3912 de 2001, que incumbia a FCP, em seu primeiro artigo, a dar
“seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das
comunidades dos quilombos, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação,
titulação e registro imobiliário das terras por eles ocupadas”17, podendo apenas ser
reconhecida de direito da comunidade a propriedade ocupada por quilombo em 1988, e
estando em posse da comunidade desde 5 de outubro de 1988.
Desfez-se assim a idéia de isolamento e de população homogênea, o que deu origem
ao Decreto 4887, votado em 2003, no qual se institui o processo de titulação das terras pela
auto-atribuição da comunidade, definindo os remanescentes de quilombo como: “grupos
étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados
de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida”18; competindo ao INCRA a identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas, e à FCP assistir e
acompanhar, a fim de garantir a preservação da identidade cultural do grupo, e subsidiar os
trabalhos da elaboração do relatório técnico quando caso de contestação por terceiros
(recorrente em quase todos os processos, evidenciando o problema da questão fundiária).
Não podemos deixar de ressaltar que a decisão de tomar como princípio de
identificação das comunidades o auto-reconhecimento já havia sido feita, parcialmente, pelo
Grupo de Trabalho do Estado de São Paulo no ano de 1998, pelo Decreto Estadual 42839, no
17
Constituição Federal de 1988, consultada no site www.senado.gov.br, com acesso, em 21/5/2009, por Cecília
Cruz Vecina.
18
Constituição Federal de 1988, consultada no site www.senado.gov.br, com acesso, em 21/5/2009, por Cecília
Cruz Vecina.
'Olhares sobre o processo investigativo'
qual as comunidades seriam reconhecidas por auto-identificação e dados histórico-sociais
e/ou orais, porém (e é aí que enfatizamos o “parcialmente”) “conforme conceituação
antropológica”19, submetidas ao Relatório Técnico-Científico elaborado no âmbito da ITESP,
indo de acordo com a Lei 9.757/97 à respeito da disposição da legitimação das terras públicas
estaduais aos remanescentes das comunidades quilombolas.
Assim, caberia aos especialistas, ou melhor, à Associação Brasileira de Antropológica
(ABA), o reconhecimento, defendendo que apenas estes teriam os instrumentos necessários,
tanto para reconhecer como para realizar a mediação entre o pleito do grupo e as instâncias
judiciais.
Voltando ao âmbito federal, cabe salientar que o Decreto 4887 de 2003 é, em 2004,
reforçado com a elaboração da Instrução Normativa número 16 (responsável por regulamentar
os procedimentos para reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes quilombolas), que, em seu terceiro artigo, referente à
conceituação, considera remanescentes “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com
presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida”20, cabendo à FCP a confirmação mediante a elaboração da Certidão de Registro no
Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos, sendo encaminhado à
Superintendência Regional do INCRA responsável pela titulação.
O processo de aquisição do título da terra, porém, não ocorre de forma simples e
direta. Como em todo o problema fundiário no Brasil, tanto relacionado às comunidades
tradicionais (remanescentes de quilombo, índios, caiçaras etc.), como aos movimentos
camponeses de luta pela terra (que apesar de grupos conceitualmente separados, tratam-se
todos, de sujeitos impulsionados por uma mesma causa, uma mesma carência radical21,
representada pela luta pela terra, pela des-marginalização), esbarra no processo judiciário graças a artigos e leis fatídicos - em imposições que representam majoritariamente as classes
dominantes: os grandes proprietários de terra/capital, representados e defendidos nas bancadas
do governo.
Assim, buscaremos tratar no próximo item do processo de titulação das terras
ocupadas por comunidades remanescentes de quilombo.
19
Consulta realizada no site http://www.itesp.sp.gov.br, no dia 20/5/200, por Cecília Cruz Vecina.
Retirada do site http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/legislacao/legislacao-docs/quilombola/instr_normat_16.pdf
acessado em 1/6/2009, por Cecilia Cruz Vecina
21
In: PATTO, Maria Helena S. Introdução ao pensamento de Agnes Heller. (apostilado)
20
'Olhares sobre o processo investigativo'
A Titulação
Considerando-se tratar de apropriações por um coletivo, da comunidade remanescente
de quilombo, a partir de 1982, com a eleição de André Franco Montoro (como já tratado), o
Governo do Estado de São Paulo passa a priorizar o diálogo com aqueles grupos que já
tivessem se organizado em associações; tornando-as um requisito para a titulação pela Lei
9757 de 1997, que em seu artigo segundo coloca:
“O título de legitimação de posse será expedido, sem ônus de qualquer
espécie, a cada associação legalmente constituída, que represente a
coletividade dos Remanescentes das Comunidades de Quilombos,
com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade”22.
Para a identificação, em 1998, com o já citado decreto estadual 42.839, em que o
requerimento para abertura do processo só poderia ser pedido mediante a associação dos
remanescentes. Atualmente, por parte do governo Federal, têm-se também a Instrução
Normativa n°16 de 2004, que em seu artigo 17 destaca: que a titulação será feita por título
coletivo e pró-indiviso, em nome da associação legalmente constituída.
O Estado, segundo Fabio Sanches (2004), se justifica colocando que tal medida
ampliaria o diálogo da comunidade com o Poder Público, assim como a participação da
população, fortalecendo as associações e, conseqüentemente, os modelos coletivistas.
Porém, tais organizações demonstraram-se, na maioria dos casos, deficitárias
provavelmente porque tal imposição não é acompanhada por um trabalho sério do governo,
tanto de informação quanto de formação dos sitiantes, para que assim possam aproveitar e se
apropriar desse recurso como forma de fortalecimento da comunidade frente sua interlocução
com agentes de fora do bairro - principalmente quando se diz respeito à comercialização, na
qual a existência de uma associação poderia melhorar a situação tanto na venda do produto
como na compra de insumos.
Assim, se em um primeiro momento essas comunidades representavam grupos
tradicionalmente organizados em torno de práticas de ajuda mútua e grupal, como o mutirão;
hoje, passam por um momento de desarticulação da ação coletiva, gerada pela entrada do
mercado e de culturas estranhas às suas (como a evangélica, que será tratada mais adiante),
22
Da página da internet:
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/dh/volume%20i/prolei9757.htmo,
2/6/2009, por Cecília Cruz Vecina
'Olhares sobre o processo investigativo'
acessado
em
como também problemas de ordem prática, uma vez que para se dedicarem às associações
teriam que arcar com dias de ausência em suas lavouras.
Portanto, não se trata de não terem consciência coletiva, mas sim, de não terem a
formação necessária para se adequarem a sistemas que exigem lidar com burocracias, cargos e
hierarquias diferentes da familiar, e articulações com agentes que antes de entenderem suas
carências impõe-lhes necessidades e deveres que, na maioria das vezes, não condizem com
seus problemas reais.
Tais dificuldades de gestão da associação, então, estão, em grande medida,
relacionadas à construção cultural em que se inserem os quilombolas, tal qual a da
comunidade de Peropava.
Práticas socioespaciais tradicionais na comunidade
A comunidade de Peropava pode ser caracterizada, seguindo a discussão de Simone
Rezende da Silva (2004), como camponesa, pois esta é uma população em que há um tipo de
organização econômica simples e de vida em comunidade, cuja produção visa, primeiramente,
o provimento familiar, sendo o excedente comercializado, ou seja, trata-se de uma economia
do excedente. Outro elemento que permite a identificação de Peropava como comunidade
camponesa é a presença do trabalho familiar, conforme compreensão de José de Souza
Martins (2002), além da presença da policultura, na qual se utiliza o método da rotação de
terras.
O elemento fundamental, para a particularização de uma comunidade quilombola, é a
manutenção, como resistência cultural, de práticas socioespaciais, relacionadas ao seu modo
de vida, tão vinculado ao tempo cíclico e à forte relação com a natureza, em que as atividades
estão reguladas pelas estações do ano, períodos lunares etc.
Desta maneira, seguem uma lógica diversa da definidora do modo de produção
capitalista, regulada pelo tempo do relógio, dos ciclos de reprodução do capital, de presença
do trabalho assalariado.
Nas populações quilombolas, em particular, e nas tradicionais, em geral, a
dependência do mercado é muito pequena, portanto, a produção não segue os ditames do
mesmo, como bem identificou Antonio Carlos Diegues:
'Olhares sobre o processo investigativo'
“Dentro de uma perspectiva marxista (especialmente dos antropólogos
neomarxistas), as culturas tradicionais estão associadas a modos de produção
pré-capitalistas 23, próprios de sociedades em que o trabalho ainda não se
tornou mercadoria, onde há grande dependência dos recursos naturais e dos
ciclos da natureza, em que a dependência do mercado existe, mas não é
total” (DIEGUES, 2004, p.82).
A cultura, no entanto, não se define apenas pelas suas marcas materiais, mas, ainda,
simbólicas, imateriais, conforme aponta, também, Antonio Carlos Diegues:
“padrões de comportamento transmitido socialmente, modelos
mentais utilizados para relatar e interpretar o mundo, símbolos
significados socialmente compartilhados, além de seus produtos
materiais, próprios do modo de produção mercantil” (DIEGUES,
2004, p.87).
Porém, observamos, segundo os relatos orais, um contexto de perda deste modo
tradicional de vida - o qual possui práticas sociais, visões de mundo, valores, particulares de
suas tradições, provenientes de longa data, por gerações -, evidenciada pela mudança da
religião, a qual se define como uma das manifestações culturais que expressam a identidade
das comunidades tradicionais e explica, em grande parte, sua história. Marilena Chaui (2000)
ao discutir tal noção, defende que a dicotomia entre “religião oficial” e “religião popular” se
originou na sistematização teórica da antropologia, sendo que tal separação exprimiria
somente o posicionamento ideológico do pesquisador, pois a religião é formada pela
confluência de várias culturas.
Em comunidades tradicionais isso é facilmente observável, muitas delas com grande
influência do catolicismo, porém, permanecendo diversos traços de religiões africanas, em
que o melhor exemplo disso seria a própria Umbanda, nascida do sincretismo dessas duas
religiões - ao mesmo tempo em que ela crê nos santos e em Jesus Cristo, crê também nos
Orixás e nos ritos de incorparação de entidades - intensamente condenados pela Igreja
Católica.
23
Diegues compartilha de uma fase pré-capitalista na história brasileira, diversa da que orienta o presente
trabalho. No entanto, mesmo havendo tal divergência, suas discussões nos são de suma importância, sobretudo
ao apontarem para a diversidade de temporalidades presentes na contemporaneidade, bem como na análise de
sua coexistência.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Há, então, elementos cruciais para a consolidação da identidade desta população e,
portanto, fundamentais para a sua fixação no território, apresentando, entre outros motivos, a
perda em relação às dificuldades encontradas na transmissão dos saberes tradicionais.
Assim, culturas, sociedades, populações tradicionais são fundamentalmente definidas
pelo modo de vida e também pelo ato de se reconhecerem como pertencentes àquele grupo
social, o que remete à afirmação da identidade.
Portanto,
transmissão
cultural,
nas
populações
tradicionais,
ocorre,
predominantemente, por meio da oralidade, ou seja, algum locutor transmite suas memórias
ou conhecimentos via histórias, de maneira que os conhecimentos são apropriados pela
memória coletiva.
Porém, a categoria memória, segundo Simone Rezende da Silva (2008), necessita
melhor explicação, não podendo ser interpretada somente como vivência armazenada de um
indivíduo, ela deve fazer parte de um contexto social maior; possuindo, inclusive, uma
seletividade sobre o que guardamos e excluímos, dependendo das experiências sociais e
coletivas, isto é: uma reconstrução do passado impregnada da leitura simbólica com
categorias do presente, “a memória é o vivido, a história é o elaborado” (SILVA, 2008, p.26).
Os relatos permitiram observar que, em função de motivos religiosos, a tradição de
contar “causos”, histórias, foi preterida de maneira que somente os mais velhos se recordam
dos pais executarem este tipo de atividade. O problema é que os mitos e contos não são
somente uma forma de divertir e entreter as pessoas, eles possuem (e este é seu maior valor
social) uma grande capacidade de transmitir valores, conhecimentos, que dizem respeito às
maneiras pelas quais aquela comunidade se produz e reproduz no espaço, possuindo o papel
de afirmar a coesão social da população.
Porém, foi possível identificar que os conhecimentos tradicionais que resistem, na
maioria dos casos, foram transmitidos quando os indivíduos observam outros executando as
atividades do cotidiano, portanto, a maioria dos conhecimentos transmitidos pelas gerações como a produção da farinha, fabricação de vassouras etc. -, o que ocorreu em relação à
presença dos indivíduos no momento da execução da atividade, tal qual, manifestam Eliseu e
Creusa em entrevista na comunidade:
- Quem ensinou vocês a fazer a farinha?
Creusa: - Nós via os mais velhos né. Eles faziam né. Tinha noites que a
gente fazia farinha entrava na noite, ai dormia, eles forneavam, faziam a
farinha e a gente ficava ali né, o dia a noite.
- Que nem eles estão aqui? (referindo-se aos meninos presentes no local)
Eliseu: - Isso mesmo.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Creusa: - Que nem eles... Já aconteceu isso com nós.24
A transmissão dos saberes relacionados à produção agrícola sofreu forte impacto, em
Peropava, por conta das restrições ambientais advindas por conta da presença de resíduos de
mata atlântica.
A legislação ambiental, existente no país, baseada no modelo estadunidense, prega a
idéia de “Mata sem Homem” (o qual considera que qualquer intervenção humana na natureza
é intrinsecamente negativa), gerando assim, barreiras para a manutenção do modo tradicional
de produção agrícola, uma vez que interpreta a atividade humana sobre a natureza como
sendo potencialmente perigosa e danosa à sobrevivência da área natural.
Concretizando-se no Código Florestal e na Constituição de 1988, principalmente pelo
artigo 225, o qual define a Mata Atlântica (bioma predominante no Vale do Ribeira) como
Patrimônio Nacional, sendo responsabilidade do Poder Público a sua preservação para as
gerações futuras. Para tanto, é responsável pela criação de parques ecológicos e reservas onde
é proibida qualquer forma de exploração. Reforçado pelo Decreto 99547 de 1990 que em seu
artigo 1º decreta a proibição, por prazo indeterminado, da exploração e corte da vegetação
nativa da Mata25.
Assim, este modelo dificulta a manutenção das atividades agrícolas tradicionais como a rotação de terras, prática da derrubada de um trecho de mata, seguida da queima
controlada desta área (coivara) e posterior plantio; quando há queda da produtividade,
reinicia-se o processo em outro trecho da mata (aproximadamente 15 anos). Este quadro de
dificuldades produtivas na agricultura fica evidente, bem como o da permanência da caça, no
trecho da entrevista com a Dona Maria Regina:
- Daí vocês foram limpando a mata?
É, daí foi plantando laranja, banana, e foi limpando, foi limpando, até que
ficou nessas condição.
- Vocês caçam alguma coisa assim, as capivaras?
Ah não isso não, isso aí é perigoso, nem faz isso porque é perigoso.
- Mas antigamente?
Ah antigamente tinha, meu pai matava, e também minha mãe. Agora não dá
pra falar nem em matar um passarinho, que a gente vai preso
- E outro rouba e não vai preso, né?
24
Entrevista realizada, em 09 de maio de 2009, em Peropava/SP, por Caroline de Oliveira Morais, Cecília Cruz
Vecina e Gabriel Henrique Idalgo.
25
Cabe salientar que, em 2006, pela Lei 11428, fica permitida a exploração eventual da mata (independente de
autorização dos órgãos competentes) contanto que não seja para fins comerciais – excluindo assim a extração de
palmito, presente em algumas comunidades remanescentes de quilombo. Porém continuando proibido o corte ou
queima para a constituição de plantações, mesmo que voltadas para a subsistência.
'Olhares sobre o processo investigativo'
É não vai preso, e a pessoa que precisa pra comer aí vai preso, mas o ladrão
não vai, o que mata não vai, vai?! Agora um cutadinho que quer trabalhar,
corta um cabo da enxada, um cabo de foice uma coisa, eles vão em cima,
não é pra corta. O que eu to falando pra vocês é verdade. 26
Em função da impossibilidade de manutenção da rotação das terras, nos moldes
tradicionais, tem-se o seu empobrecimento nutricional, com redução da capacidade produtiva.
Assim, os cultivos passaram a ser executados com períodos de pousio menor e sempre nas
mesmas terras, sem avançar nas áreas de mata, assim como se afirma no trecho da entrevista
de Maria Regina Silva Cabral:
- Aqui a terra é boa?
Aqui ela é boa, só que tá muito cansada de tanto que faz de planta
mandioca, foi tirando tudo, ai pra recupera é difícil.
- Vocês fazem rodízio?
Fazemo.
- Mas mesmo assim não é suficiente?
Não é suficiente não.27
As práticas produtivas tradicionais, baseadas no trabalho familiar e, muitas vezes,
comunitário28, passam por sérias alterações. Em primeiro lugar, vale frisar que a maioria das
famílias entrevistadas utiliza a produção, atualmente, para complementar as necessidades da
família. A produção de farinha, presente em quase todas as famílias, não apresenta mais o
caráter de base da renda familiar, sendo apenas utilizada para consumo próprio, pois a renda é
proveniente do salário constituído em trabalho fora da comunidade de algum dos
componentes do núcleo familiar, apresentando um processo de proletarização.
Observa-se que a participação das crianças e jovens nas tarefas produtivas é muito
reduzida, descaracterizando a produção tradicional embasada na socialização da criança,
como fundamento da sua inserção na produção familiar. Desta maneira, geralmente o trabalho
produtivo fica sob a responsabilidade de poucos entes familiares, geralmente pelos pais.
Os trabalhos de ajuda mútua (assim como o de mutirão) também não estão mais
presentes, apesar de esta ser uma atividade comum em meio às comunidades tradicionais,
como relata Maria Regina, uma de nossas entrevistadas:
26
Entrevista realizada, em 09 de maio de 2009, em Peropava/SP, por Caroline de Oliveira Morais, Cecília Cruz
Vecina e Gabriel Henrique Idalgo.
27
Entrevista realizada, em 09 de maio de 2009, em Peropava/SP, por Caroline de Oliveira Morais, Cecília Cruz
Vecina e Gabriel Henrique Idalgo.
28
Vale salientar que na comunidade em questão não há a existência da prática do mutirão (proibida pela
Congregação Cristã do Brasil, comungada predominantemente pelos moradores da comunidade, por apresentar,
obrigatoriamente, festividade em seu término).
'Olhares sobre o processo investigativo'
Era tudo família como é agora, assim quando ia fazê uma roça, fazia
tipo um mutirão, igual agora mesmo, ali ia todo mundo ia ajuda um,
depois ia ajudar um outro. Mas hoje já não funciona assim, se eu for
fazer uma roça, eu tenho que trabalha ali sozinho, então mudou
bastante, não sei por que, mas mudou. E tinha que continua assim, se
era uma tradição tinha que continuar e passa pros menorzinhos e
assim.29
Já a ausência da participação dos jovens e crianças nas atividades produtivas, ocorre
tanto por vontade “própria”, quanto em função das atitudes governamentais que buscam a
erradicação do trabalho infantil. O exemplo que implica diretamente na comunidade é o
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que pertence ao Programa Brasil
Quilombola, responsável por orientar os processos de regularização fundiária das terras
quilombolas. O programa busca incentivar a permanência, o bom desempenho escolar, e
também busca - em períodos complementares ao escolar (em jornada ampliada) - fomentar e
incentivar o universo do conhecimento.
O objetivo do programa é positivo, porém não se encaixa totalmente às necessidades
reais das crianças e jovens quilombolas. É necessário fazer questionamentos: que
conhecimento será ensinado? Será que no tempo prolongado em que a criança e o jovem
estiver na escola irão receber os conhecimentos tradicionais que necessitam para dar
continuidade a seu modo de vida tradicional?
Neste contexto, cabe ressaltar a necessidade de uma educação que possua vínculos
com os sujeitos sociais concretos, mas sem se desligar da universalidade, ou seja, uma teoria
pedagógica desde a realidade particular de uma determinada população, neste caso, a
comunidade quilombola, de maneira que se garanta o seu direito à educação. Assim, como
afirma Caldart (2002), ao considerar que o povo tem direito de ser educado no lugar onde
vive, a partir de uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, tendo
como parâmetros as suas necessidades humanas e sociais.
Porém, contraditoriamente, as escolas freqüentadas pelos jovens quilombolas
possuem um sistema de ensino que não é voltado para a valorização dos saberes tradicionais
das comunidades, as escolas seguem um sistema de ensino urbano, o qual objetiva a formação
de indivíduos em uma lógica completamente diferente do modo de vida das populações
29
Entrevista realizada, em 09 de maio de 2009, em Peropava/SP, por Caroline de Oliveira Morais, Cecília Cruz
Vecina e Gabriel Henrique Idalgo.
'Olhares sobre o processo investigativo'
tradicionais. Podendo abalar, inclusive, a afirmação de identidade da comunidade, sendo esta,
um dos pressupostos principais, para a manutenção e reprodução da própria comunidade.
As crianças da comunidade, efetivamente não trabalham, passando pouco tempo em
contato com os pais no processo produtivo e nas atividades cotidianas da comunidade; sendo
que este momento seria fundamental para a transmissão cultural, pois o aprendizado cotidiano
pela observação das atividades executadas pelos pais é muito reduzido, bem como a sua
integração como partícipe do processo produtivo. O que pode ser constatado no trecho da
entrevista:
- Eles te ajudam aqui na roça? Eles sabem mexer?
Eliseu: - Não isso aqui o maior, dezesseis anos, é o mais velho ele chega da
escola duas horas, ele deita, levanta pelas quatro hora, e hoje, sabe como que
é as coisa, eu num posso tirá ele da escola porque hoje a coisa é complicada
se a gente tira eles da escola prá trabalhar é capaz da coisa complica...eles
tão trabalhando aí vem em cima de eu ai vai ter que pagar, nós num força ele
em nada, deixa ele. 30
A pouca participação nas atividades produtivas tradicionais e uma escola que segue
modelos urbanos são elementos que podem desencadear no rompimento de uma corrente, a
qual permeava a transmissão dos conhecimentos provenientes de muitas gerações, os quais se
constituem como legado de uma memória coletiva, patrimônio simbólico, devendo ser
preservados a todo custo, pois afirmam a identidade que viabiliza e constrói a resistência pela
permanência do modo de vida que define tais sujeitos.
O resultado mais direto desse processo se encontra na tendência, entre os jovens, de
migrar para o núcleo urbano. Eles planejam sair da comunidade para encontrar emprego e a
possibilidade de freqüentar um curso de nível superior. Os motivos da saída são basicamente
a falta de perspectivas de melhora das condições de vida em que se encontram. Como
evidenciado no trecho a seguir:
- E vocês não querem ficar aqui, vocês querem sair?
Alessandro: - Nós queremos sair.
- E pra onde vocês querem ir?
Alessandro: - Eu pretendo sair pra Curitiba.
Norival: - É, eu também.
- E porque sair daqui?
Alessandro: - Porque as coisa aqui num é muito fácil. No trabalho, essas
coisas.
- E trabalhar com a terra vocês não gostam?
30
Entrevista realizada, em 09 de maio de 2009, em Peropava/SP, por Caroline de Oliveira Morais, Cecília Cruz
Vecina e Gabriel Henrique Idalgo.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Alessandro: - Não.
- Mesmo se tivesse máquina, se tivesse adubo, se desse dinheiro
trabalhar com a terra?
Alessandro: - Mesmo assim não, eu queria arrumar um emprego bom.
- O que é um emprego bom pra você?
Alessandro: - Ah agora eu não sei direito.
- Vocês acham que na cidade vocês vão ganhar mais, vão ter um
emprego melhor?
Alessandro: - Eu acho que sim.
- Vocês já foram pra Curitiba?
Alessandro: - Não.
Norival: - Não.
- Então porque vocês pensam em ir pra Curitiba?
Alesandro: - É porque nós ouve falar que lá é muito bom de estudar, de
trabalhar.
- Aí vocês pensam em terminar o colegial e ir pra lá?
Alessandro e Norival: - Aham.
- E trabalhar em qualquer coisa?
Alessandro: É depende de qualquer coisa né.31
Esta ânsia pela cidade talvez ocorra devido à referência negativa que estes jovens
possuem sobre a vida no campo, que os remete a muito trabalho penoso com pouco retorno
financeiro, ao passo que a cidade é idealizada como um locus de oportunidades e de
modernidade, apesar de estes nem conhecerem, nas cidades, as realidades que podem
encontrar. O fetiche pelo urbano, se dá, em grande medida, como fuga ao trabalho árduo
presente na agricultura, mas, também, por conta da visão que positiva a cidade moderna como
detentora de desenvolvimento, de qualidade de vida, de avanços técnicos, enquanto negativiza
o campo por associá-lo ao atraso, o que conformariam dois pólos opostos (PÉREZ, 2001).
As implicações do anseio em deixar a comunidade resultam na saída de vários
descendentes das famílias quilombolas, o que contribui para a diminuição da mão-de-obra
disponível para os trabalhos da comunidade. Além disso, é importante ressaltar que muitos
vão para a cidade e voltam, pois as condições de vida encontradas no meio urbano chegam a
ser mais degradantes às existentes na comunidade. Porém quando voltam, já absorveram
muitas das características do modo de vida urbano, apresentando dificuldades na readaptação.
Considerações Finais
O reconhecimento da identidade quilombola apresenta-se para Peropava como uma
possibilidade de resistência, sobretudo em relação à desestruturação dos saberes tradicionais,
31
Entrevista realizada, em 09 de maio de 2009, em Peropava/SP, por Caroline de Oliveira Morais, Cecília Cruz
Vecina e Gabriel Henrique Idalgo.
'Olhares sobre o processo investigativo'
levando seus sujeitos a construir uma nova idéia de si próprios e do mundo que os envolve,
trazendo à tona a discussão do que é ser quilombola ontem e hoje.
A luta pelo reconhecimento desta comunidade quilombola traz a oportunidade para
uma reflexão tanto sobre sua história, como de possibilidade de fortalecimento de sua cultura
frente à chegada de modos de vida diversos do que construíram de geração a geração. Para
tanto, torna-se fundamental a elaboração de políticas direcionadas para as suas
especificidades, isto é, um aparato legal que englobe desde as necessidades básicas (saúde,
trabalho, terra) até um projeto de educação vinculado à sua realidade; pensado e discutido
com a população, fugindo do histórico processo de imposições governamentais
descontextualizadas.
Assim, acreditamos ser necessário construir uma conciliação entre a sociedade urbanoindustrial e as comunidades quilombolas, em particular, e as tradicionais em geral, almejando
uma autonomia econômica e uma soberania alimentar. De forma a evitar a crescente
dependência desta comunidade em relação ao trabalho assalariado em propriedades que não
sejam as suas ou em cidades próximas, sendo que a falta de autonomia faz com que muitos
tenham que imigrar para as cidades próximas a procura de trabalho, criando até a ilusão de
que a vida é, ou seria melhor, se morassem na cidade.
No final das contas, porém, o que fica de nossa pesquisa é uma sensação de
impossibilidades, uma vez que em quase todos os recursos previstos em lei, como já
apontado, há a possibilidade de contestação – presente desde o processo de reconhecimento
até o de titulação -, podendo ser repetidas vezes feita, entravando e muitas vezes dando fim a
todo o processo que se apresentar contra as vontades do grande capital.
Além disso, observou-se a continua troca de deveres por parte dos órgãos estaduais e
federais: ITESP, INCRA e a Fundação Cultural Palmares, cabendo cada vez a um deles o
dever de titulação e reconhecimento, confusão agravada com os diversos programas lançados,
ligados desde a Secretária Especial para Políticas de Promoção de Igualdade Racial (criada
em 2003), como o Programa Brasil Quilombola, o Fome Zero, ou ainda aqueles lançados por
entidades não governamentais, que por falta de articulação e comunicação entre si e entre a
comunidade, acabam por realizar trabalhos com baixos resultados.
O reconhecimento da comunidade de Peropava, pelo Estado/sociedade, como sendo
remanescente de quilombo, traz consigo a promessa do possível diálogo com o mundo do
mercado; da construção de uma identidade e com ela o reconhecimento como sujeito de uma
história própria e de direitos; e, finalmente, traz consigo a possibilidade da emancipação, da
escolha do próprio futuro.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Referências
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ acessado em 22 de maio de 2009, por Cecília Cruz
Vecina
'Olhares sobre o processo investigativo'
Álbum fotográfico
Foto 2 – Dona Maria Regina
mostra a sua vassoura artesanal
Foto 1 – Maria Regina da Silva Cabral na casa de
farinha
Fonte: Gabriel Henrique Idalgo, 9 de maio de 2009.
Fonte: Gabriel Henrique Idalgo, 9 de
maio de 2009
Foto 3 – Casa de Dona Maria Regina
Fonte: Gabriel Henrique Idalgo, 9 de maio de 2009.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Foto 4 – Creusa, Eliseu e filho na casa
de farinha
Foto 5 – Alessandro na casa de farinha
Fonte: Gabriel Henrique Idalgo, 9 de
maio de 2009
Fonte: Gabriel Henrique Idalgo, 9 de
maio de 2009
Foto 6 – Casa da família de Eliseu
Fonte: Gabriel Henrique Idalgo, 9 de maio de 2009.
'Olhares sobre o processo investigativo'
Foto 7 – Congregação Cristã no Brasil, da comunidade
Fonte: Gabriel Henrique Idalgo, 9 de maio de 2009.
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Comunidade de Peropava: Resistências e Permanências1