MAKSUNA BRASILEIRA: UMA COLCHA DE RETALHOS
Daniela Silva da Silva
PUCRS
Se futuro e passado existem, quero saber onde estão. Se ainda não consigo
compreender, todavia sei que, onde quer que estejam, não serão futuro nem
passado, mas presente. Se aí fosse futuro, não existiria ainda; e se fosse
passado, já não existiria. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem,
seja o que for, não podem existir senão no presente. Quando narramos os
acontecimentos passados, que são verdadeiros, nós os tiramos da memória.
(Santo Agostinho)
Cala. Pensa. Concentra-se. Se esforça. Se perde para se achar. Ativada, a
memória recua. Busca resgatar o passado. Retirá-lo do mais fundo do tempo.
Devassar o escuro abismo. Tornar hoje o ontem.
(Salim Miguel)
Os estudos sobre as questões identitárias no mundo contemporâneo
passam inevitavelmente pelo conceito de hibridismo cultural. Néstor García
Canclini, na introdução de seu Culturas híbridas, nos diz entender hibridização
como os “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas,
que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,
objetos e práticas.” (CANCLINI, 2003: XIX). As identidades, pois, não podem
ser consideradas puras, mas uma fusão de acontecimentos, de pessoas e de
atribuições que se modificam e acabam por redefinir valores, derrubar
fronteiras e movimentar conceitos, sejam eles, de etnia, nação e classe, os
quais, por sua vez, reverberam no próprio sujeito que se situa nesses instantes
de transformação.
Os eventos que cada indivíduo retira de sua memória são verificáveis no
tempo e no espaço, porque foram vivenciados por ele. No entanto, esses
acontecimentos, quando narrados, não são expressos na sua integridade
existencial; o que encontramos são “as palavras que exprimem as imagens dos
próprios fatos, passando pelos sentidos.” (AGOSTINHO, 1984: 321). A
narrativa de uma vida é o resultado da reunião de recortes de imagens
passadas que ficaram retidas na memória e que são evocadas a partir do
presente, o que sugere, nas palavras de Paul Ricoeur, que “as histórias vividas
de uns estão emaranhadas nas histórias dos outros. Partes inteiras de minha
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vida fazem parte da história da vida dos outros, de meus pais, de meus amigos,
de meus companheiros de trabalho e lazer.” (RICOEUR, 1991: 190)
Partindo dessa perspectiva e acrescentando que as histórias dos países
onde se situam (ou situaram-se) os indivíduos também participam da
construção de suas identidades, pretende-se apresentar uma análise do
romance Nur na escuridão (2004), de Salim Miguel. Tal abordagem tem por
objetivo verificar em que medida o entrelaçamento de trajetórias nele presentes
aponta para a constituição identitária de sujeitos híbridos e como essa mistura
de heterogeneidades termina por configurar o multiculturalismo que delineia o
quadro das sociedades contemporâneas e também os gêneros da escrita.
Em Nur na escuridão, os fragmentos da autobiografia do pai do narrador
servem de matéria-prima para a feitura da obra, aparecendo destacados em
relação às demais partes constitutivas do texto. A narrativa inicia contando a
chegada da família de libaneses ao Brasil, mais especificamente ao cais do
porto da Praça Mauá, Rio de Janeiro, no dia 18 de maio de 1927, constituída,
na época, pelo pai (Yussef), a mãe (Tamina), o tio (Hanna) e os filhos (Fádua,
Hend e Salim). Após a tentativa frustrada de ir para os Estados Unidos, pela
fronteira do México, eles desembarcam em terras brasileiras e seguem de táxi
até à casa de um patrício, onde se instalam por algum tempo, antes de ir para
Santa Catarina.
Reconstituindo o fio cronológico da história, contada em zigue-zague por
um narrador em terceira pessoa, a impressão que temos é a de um Brasil
plural. O aprendizado do pai sobre essa nação nos oferece as imagens que
vão compondo a fisionomia do lugar e as identidades de todos os membros da
família. Através da descrição de um trem como sendo o microcosmo brasileiro
podemos perceber uma metáfora do contato intercultural, ou seja, da
multiplicidade de elementos que participam da formação do país, conforme se
explicita na passagem seguinte:
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desde pessoas enfatiotadas, nariz empinado, fala impostada, até
humildes trabalhadores, roupas de brim amarfanhadas, alguns
de chinelo ou descalços, chapéus de palha. Brancos, negros,
louros, mulatos, morenos, velhos e moços, homens e mulheres,
comunicando-se nos mais diferentes sotaques, quietos uns, mal
respondem ao que lhes perguntam, falastrões outros. (MIGUEL,
2004: 42)
A mestiçagem cultural descrita nesse fragmento é representativa do que
Néstor García Canclini designa como “processo fundacional nas sociedades do
chamado novo mundo” (CANCLINI, 2003: XXVII). A variedade de grupos
étnicos, crenças, formas de pensamento, falas, classes, etc, encontradas nos
conjuntos sociais, obrigam que antigos valores acerca de unidade sejam
reformulados e nos seus lugares introduzidos outros mais atualizados e
determinados, principalmente pelos processos de globalização e hibridismo
cultural.
As
dificuldades
de
adaptação,
comunicação
e
entendimento
demonstradas pelos imigrantes libaneses são também devidas a essa
transculturalidade
e
aos
contatos
“interétnicos,
transclassicistas
e
transnacionais” (CANCLINI, 2003:XXIII) inerentes ao contexto brasileiro e ao
mundial. A cada novo lugar que chegavam tinham de se adaptar a diversos
costumes, enfrentar diferentes preconceitos, conhecer variadas linguagens e
se relacionar com grupos distintos, cada um com hábitos, modos alimentares,
ritos e ritmos particulares. Nada conheciam do Brasil ou sabiam dos outros
idiomas, apenas rudimentos, e como agravante, logo no desembarque, “o que
lhes chega é uma verdadeira babel, os mais diferentes falares se cruzam,
palavras esdrúxulas lhes agridem os ouvidos, sotaques e pronúncias que não
têm como identificar” (MIGUEL, 2004: 77).
A língua portuguesa caracteriza-se, portanto, como um dos muitos
obstáculos enfrentados pela família Miguel. Mesmo depois de algum tempo, em
que já sabiam ler e escrever, o português era muito carregado, talvez precário.
“Até o fim da vida iriam ter dificuldades com palavras, bresente, borcaria,
barrato, misturando expressões portuguesas com árabe, jura bra freguês,
maksut, salam pra você, algumas vezes a mistura nem era na frase, mas na
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própria palavra, baisa em lugar de casa, mistura de bait e casa, em outras
interrompem o que iam dizer em busca de um termo exato – ou
correspondente, deslembrando o português e esquecendo o árabe.” (MIGUEL,
2004: 71).
Assim como Yussef e sua família, de início, não conseguiram dominar
inteiramente a língua portuguesa também não puderam avaliar de forma
precisa a dimensão do território brasileiro. A imensidão do país, segundo ele,
apontava a existência de intermináveis vazios, o que requisitava “mão-de-obra
para o campo, para o interior, para a cidade, para tudo, país rico com amplas
possibilidades para os que desejassem iniciar vida nova e não temessem
trabalhar para valer.” (MIGUEL, 2004: 68). Imbuído desse pensamento e
ajudado pelo casal de patrícios, pela sua irmã Sada e pelos seus
companheiros, aos poucos, Yussef foi descobrindo as malícias da boa venda.
Através do trabalho, ele verificou que “havia imigrantes, por ali, de
variadas nacionalidades, cada qual com seu jeito peculiar, sua psicologia, sua
maneira de reagir, precisavam saber chegar-se até eles, o alemão mais direto,
o italiano mais misterioso, português e espanhol mais parecidos, judeus e
árabes não dispensavam descontos.” (MIGUEL, 2004: 90). Com o passar dos
tempos, porém, a função de mascate tornou-se desconfortável e enfadonha,
fazendo Yussef questionar a irmã sobre a localização de Santa Catarina. Foi
assim que Florianópolis tornou-se uma possibilidade de mudança e que a
capital catarinense veio a ser, mais uma vez por obra do acaso, a nova morada
da família.
Mesmo enfrentando preconceitos, o início do pai como comerciante no
sul do país foi promissor, “até já se fazia entender, com dificuldade, certo, mas
aquela mistura de alemão, árabe, português, funcionava.” (MIGUEL, 2004: 98).
A identidade dos Miguéis, pode, nesse caso, ser determinada pela ótica do
hibridismo cultural. Os três primeiros filhos de Yussef e Tamina, assim como os
outros dois concebidos no Brasil, são um exemplo disso, pois cada um deles é
“árabe/brasileiro, melhor, (...) brasileiro/árabe” (MIGUEL, 2004: 98).
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Dos traços que caracterizam suas histórias de vida participam elementos
provenientes das duas nações, bem como
condutas
éticas
e
morais
que
os
costumes, tradições, língua,
designam
como
heterogêneos
e
miscigenados, características que exemplificam, dentre outras coisas, o
rompimento entre as fronteiras culturais. Nas palavras de Canclini, “as diversas
formas em que os membros de cada grupo se apropriam dos repertórios
heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos circuitos transnacionais
geram novos modos de segmentação.” (CANCLINI, 2003: XXIV).
A mestiçagem intercultural exemplifica, nesse caso, a divisão do Brasil
em grupos formados pelas mais variadas características. As cidades
catarinenses por onde os Miguéis passaram antes de se fixarem em
Florianópolis, como Biguaçu, por exemplo, e as pessoas que encontraram pelo
caminho: negros, índios, alemães, italianos, etc, demonstram isso e o processo
híbrido que participa da formação das sociedades contemporâneas. Ao
resgatar os fatos passados, promovendo o encontro entre a memória de seu
pai e a sua, o narrador de Nur na escuridão realiza esteticamente a escrita
dessa
mestiçagem
cultural.
Ele
traz
para
o
presente
da
narrativa
acontecimentos que vão aos poucos construindo a sua identidade e a do grupo
que integra, bem como dos países que os contextualiza.
As reuniões familiares, as dificuldades nos novos lugares, as saudades
que os pais sentiam da terra Natal, expressas por Yussef em sua autobiografia
e recuperadas pelo filho, os mistérios envolvendo o namoro dos pais e a vida
de seu tio Hanna, são eventos que marcam temporalmente suas trajetórias de
vida. A própria história do Brasil, de Santa Catarina e das muitas outras que lhe
determinaram e ainda hoje influenciam, como a Segunda Guerra Mundial, a
revolta paulista de 1932, a chamada Intentona Comunista, o putsch integralista
de 1937 e, finalmente, a decretação do Estado Novo, são narradas e também
delineiam as particularidades dos países e lugares por onde o grupo passou.
As informações fornecidas pelo narrador são sempre cruzadas com os
ensinamentos que o pai gostava de transmitir através de fábulas milenares, da
música e também da literatura árabes. A autobiografia deixada por Yussef
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funciona para o filho como uma máquina do tempo, cujo ajuste dos botões
proporciona viagens pelos mais diferentes espaços e lugares, através de uma
trajetória em zigue-zagues, porque “a memória não possui uma lógica
cartesiana” (MIGUEL, 2004: 165). Para ele, afundar no passado significa
recuperar o mundo perdido de seu pai e, por sua vez, o seu também, a fim de
que o mesmo fosse traduzido e o ultimo desejo de Yussef realizado.
A tradução das vivências de uma língua para outra já se constitui numa
segunda leitura ou até mesmo na reescritura do que foi dito ou vivido. Com
outras palavras e em outro tempo, o narrador necessita preencher os vazios
deixados pela infância e encontrados nas relações com seus irmãos, pais e
com seu tio, bem como com os amigos e ainda com os diferentes lugares
porque passaram, desde o transplante do Líbano para o Brasil, antes de
finalmente fixarem residência em Santa Catarina. Mas como “a memória se
esgarça, flutua, se decompõe, se compacta. Fios se atam/desatam.
Fragmentos somem e reaparecem.” (MIGUEL, 2004: 165),
o narrador não
pode reter todo o seu passado tampouco o de sua família.
Mesmo tendo recorrido à autobiografia do pai como registro mais
próximo de sua história, suas lembranças não puderam ficar imunes ao tempo,
tornando-se umas mais nítidas e presentes e outras mais desgastadas e
apagadas. Por vezes, o que chega “nem é memória vivida, é memória de
outrem que se incorpora reconstituída – e passa a ser nossa.
Simulacros
apenas.” (MIGUEL, 2004: 166), o que ratifica a tese de Paul Ricoeur de que “as
histórias vividas de uns estão emaranhadas nas histórias dos outros”; no caso
da família Miguel, nas incertezas, medos, dúvidas, mistérios, costumes,
tradições, etc., que permearam seu caminho.
O emaranhado de percursos que se confundem na narrativa afirma que
a teoria de Ricoeur sobre a construção das histórias de vida – e portanto das
identidades – possui significação forte em relação ao processo híbrido de
formação das culturas. A morte de Yussef é o episódio-chave, ou seja, o
evento que permite a abertura desse passado através de seus escritos, e,
conseqüentemente, que se desatem os fios e encontrem a variedade de fatores
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que interferem e se agregam à constituição heterogênea das sociedades e dos
sujeitos na contemporaneidade.
Seguindo as orientações de Ricoeur e Canclini, percebemos que, ao
narrar a formação dessa conjuntura, caracteristicamente constituída pela
multiculturalidade, o narrador aponta para o apagamento das fronteiras entre
os grupos sociais, étnicos, raciais, etc., o que termina, segundo Canclini, por
“relativizar a noção de identidade” (CANCLINI, 2003: XXII), que passa a se
sustentar e ser entendida através da ótica do hibridismo cultural. Tal
apagamento
também
se
reflete
em
nível
estético,
apontando
o
desaparecimento das divisas entre os gêneros literários, uma vez que Nur na
escuridão é perpassado por diferentes registros, provenientes da autobiografia,
do romance e da própria História.
O “tecelão” Salim Miguel foi buscar no passado “as palavras que
exprimem as imagens dos próprios fatos, passando pelos sentidos”, como diz
Santo Agostinho, nos oferecendo o aprendizado sobre essa brasilidade vária.
As histórias narradas em Nur na escuridão constituem umas das muitas
“peças” que integram essa grande colcha de retalhos que é a Maksuna
brasileira.
Ao tornar hoje o ontem, ou seja, ao presentificar o passado, o narrador
recuperou importantes eventos que ocorreram no Brasil e que lhe atribuem,
acima de tudo, um caráter híbrido, como também a si mesmo porque nesse
país inscreve a narrativa de sua vida, em busca de sua identidade. Essa
escrita, por sua vez, ainda que baseada em fatos verdadeiros, como menciona
Santo Agostinho, sofre a ação do tempo, caracterizando-se como simulacro,
feito de fios unidos harmonicamente com o objetivo de alcançar “uma ilusória
eficácia”, isto é, a fim de “iluminar a noite” que é o próprio passado retido nos
instantes da memória.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulinas, 1984.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo: EDUSP, 2003.
CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MIGUEL, Salim. Nur na escuridão. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.
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