SERVIÇO SOCIAL COMO PROFISSÃO DE SAÚDE: CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE Kathleen Elane Leal1 A inserção de assistentes sociais nos serviços de saúde ocorre desde o início da tessitura da política sanitária no país, embora apenas com a Resolução nº 218/1997 do Conselho Nacional de Saúde (depois retificada na Resolução nº 287/1998), bem como a Resolução nº 383/99 do CFESS, o Serviço Social passe a ser reconhecido - oficialmente - como profissão de saúde. Não obstante os documentos mencionados e as redefinições no trabalho em saúde decorrentes do advento do Sistema Único de Saúde (SUS), esse relativamente novo estatuto do assistente social aparentemente não é consensual, visto que, tanto no interior do Serviço Social quanto no debate sanitário em geral, nem sempre tal ethos é reconhecido com clareza, inclusive existe a dificuldade, por parte dos demais profissionais de saúde, em compreender o papel da profissão no trabalho em saúde (CFESS, 2010). Em nossa acepção, a existência de tais polêmicas indica a necessidade de aprofundamento da discussão sobre o tema, para o que este artigo visa contribuir. O texto está organizado da seguinte forma: iniciamos traçando considerações sobre o significado das profissões em geral, discorrendo em seguida sobre as profissões de saúde. Adiante, tratamos das demandas e necessidades colocadas à/ao assistente social na área da saúde, delineando considerações sobre seu estatuto como profissional de saúde, com destaque para o significado de debate sobre a determinação social da saúde. NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE AS PROFISSÕES A priori, é importante situar, ainda que em linhas gerais, a concepção que aqui assumimos em relação ao significado das “profissões”. Segundo Mota (1987), o trabalho é uma atividade social, fruto da prática histórica dos indivíduos em sociedade, que, ao produzirem bens que respondem a suas necessidades, produzem a si próprios e aos demais seres humanos, gerando novas necessidades e novas formas de lidar com elas, o que conforma o processo de produção e reprodução da vida social. Segundo a referida analista, é no bojo da existência de necessidades e da busca de formas de responder a elas que ocorrem vários graus de divisão do trabalho, gerando atividades que tomam a forma de especializações, como meios para suprir necessidades sociais de natureza 1 Professora Doutora pela Universidade Estadual de Paraíba (UEPB). material ou espiritual. Desse modo, as profissões surgem na “estreita relação dialética entre necessidades humanas básicas e organização da produção, determinada pela necessidade da acumulação e da reprodução capitalista” (MOTA, 1987, p.26). Na mesma direção, Netto (1992, p.87) assinala que “(...) o erguimento de uma configuração profissional [ocorre] a partir de demandas histórico-sociais macroscópicas”. Em síntese, de acordo com Mota (1987), as profissões são forjadas com base no reconhecimento de uma relação entre a existência de necessidades e a possibilidade de seu suprimento, através de uma ação especializada que, portanto, adquire caráter social. A autora aludida afirma que a existência de determinação social na emersão de qualquer profissão é evidenciada tanto pela finalidade/utilidade do resultado da ação profissional, quanto pela maneira como é gerada. “(...) Ou seja, através dos conhecimentos, métodos e técnicas que são utilizados na sua produção” (MOTA, 1987, p.21). Não obstante, segundo a estudiosa, a determinação social abrange também o reconhecimento ou a legitimação social das profissões, o que vai além dos produtos criados pela mesma. Netto (1992) considera que o surgimento e o desenvolvimento de um estatuto profissional (bem como dos papéis a eles associados) acontecem através de um duplo movimento: de um lado, provocado pelas demandas socialmente atribuídas; de outro, instigado pelo que o autor denomina de reservas próprias de forças (relacionadas à teoria e às práticas de cada profissão), que podem estar competentes ou não para responder às requisições. “O espaço de toda e cada profissão no espectro da divisão social (e técnica) do trabalho na sociedade burguesa consolidada e madura é função da resultante destes dois vetores (...)” (NETTO, 1992, p.89). Destarte, a mediação entre a necessidade e sua satisfação ocorre tanto pela via da existência de condições objetivas, quanto pela possibilidade de ação dos seus agentes profissionais. O analista chama a atenção que um traço característico do processo de institucionalização das profissões é que o dinamismo histórico social postula, a cada uma de suas modulações, a premência de reestruturar os estatutos das profissões particulares. Isto significa que, em lapsos diacrônicos variáveis, todos os papéis profissionais veem-se em xeque – pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas, pelo grau de agudeza e de explicitação das lutas de classes, pela emergência (ou rearranjo ponderável) de novos padrões jurídico-políticos etc. Decorrentement e, a original legitimação de um estatuto profissional encontra-se periodicament e questionada – e não é suficiente o apelo à sua fundamentação anterior, senão que se lhe põe premente uma reatualização que a compatibilize com as demandas que se lhe apresentam (NETTO, 1992, p.89). Tendo tais considerações como horizonte, debruçar-nos-emos no debate sobre as profissões de saúde. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PROFISSÕES DE SAÚDE No campo da saúde, o processo de reconhecimento das profissões está associado à divisão social e técnica do trabalho na área – associada às respostas às necessidades sociais -, às configurações do Estado e à tessitura das políticas sociais, principalmente da política de saúde, com seu modelo de atenção predominante, tendo por base a compreensão sobre a saúde e as necessidades sanitárias, bem como às formas de responder a elas. Consideramos que a definição das necessidades de saúde possui íntima relação com as determinações contraditórias e simultâneas decorrentes da relação dialética entre as necessidades do capital e as do trabalho, que, passando por uma série de mediações (TEIXEIRA, 1989), incidem e conformam o campo das políticas sociais, no caso, a política de saúde. Nesse sentido, as demandas em saúde são historicamente construídas e determinadas pelo movimento societário (MIOTO; NOGUEIRA, 2009, p.223), processo no qual distintos sujeitos “(...) tensionam e disputam em torno do entrelaçamento de necessidades e poderes” (PINHEIRO, MATTOS, 2010, p.1). Laurel (1982) alerta que, historicamente, as necessidades das classes dominantes se evidenciam como se fossem necessidades da sociedade em geral e acabam por condicionar uma ou outra concepção de saúde e doença, num processo que possui relação com processos de busca da hegemonia. Cumpre destacar que a indissolvível relação entre saúde e condições de vida se revela em várias necessidades de saúde, enquanto expressões das múltiplas manifestações da questão social (COSTA, 2010). É importante situar que o projeto da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), inserindo-se no quadro geral das lutas de classes no Brasil, coloca a premência de apreensão e resposta às necessidades das classes populares, passando, sobretudo, pelo enfrentamento da determinação social da saúde. Reivindica, dessa forma, o atendimento às necessidades das classes subalternas, concomitantemente ferindo as “necessidades” das grandes empresas privadas e das multinacionais da área de saúde (GALLO; NASCIMENTO, 1989). Sob a hegemonia do modelo biomédico (envolta em uma série de interesses políticos e econômicos), as necessidades de saúde são tratadas de forma individualizada, biologizadas; o foco dos serviços de saúde é a cura, a produção de procedimento; o máximo que se busca é a prevenção da saúde, enquanto que a Promoção da Saúde (PS) fica secundarizada. Sob tal ideário, o trabalho em saúde paulatinamente migra de uma prática médica liberal para um processo coletivo de trabalho, organizado prioritariamente em hospitais. A formatação desse tipo de trabalho resulta em novos arranjos na divisão social e técnica do trabalho, redefinindo tanto o papel da medicina quanto de várias outras profissões que atuam no âmbito da saúde. Costa (1998) indica que, sob a direcionalidade técnica do(a) médico e a incorporação da lógica da gerência científica, ocorre a padronização das rotinas e procedimentos, reproduzindo nos serviços de saúde, em certa medida, a organização taylorista da indústria, seja nos hospitais, seja na própria medicina comunitária. Assim, continua a autora, os serviços e as profissões de saúde sofrem um processo de fragmentação e especialização, numa lógica concatenada ao ideário biomédico. Nesta perspectiva, as/os médicas/os assumem um papel central e os demais profissionais tem sua atuação a eles subordinados, sendo considerados, em geral, como paramédicos ou profissionais “não-médicos”. Bravo e Matos (2006) colocam que o conceito de saúde elaborado em 1948 pela OMS, que aponta os aspectos biopsicossociais como componentes da saúde, requisitou outras/os profissionais para atuarem na área, entre os quais as/os assistentes sociais. Esse conceito de saúde da OMS, aliado ao agudizamento da divisão do trabalho em saúde, bem como às lutas pelo direito à saúde, fizeram tomar corpo a ideia da importância das várias áreas de atuação profissional na saúde. Com a emersão da RSB, a partir de fins da década de 1970, os fundamentos medulares do modelo biomédico são postos em questão e, também, a lógica de organização dos serviços de saúde: a concepção da determinação social da saúde e o conceito ampliado de saúde constituem um solo extremamente profícuo para a redefinição do trabalho dos diversos profissionais sanitários. Neste quadro, ganha força a compreensão de que a implementação do SUS requisita um trabalho multiprofissional em saúde (CORREIA, 2005). Deste modo, em 1997, o Conselho Nacional de Saúde, pautando-se na concepção ampliada de saúde, nos princípios da integralidade e da participação social e no “reconhecimento da imprescindibilidade das ações realizadas pelos diferentes profissionais de nível superior constitui um avanço no que tange à concepção de saúde e à integralidade da atenção” (CNS, 1998, p.1), publica a Resolução, anteriormente mencionada, que reconhece quatorze (14) profissionais como de saúde2, entre eles, os/as assistente sociais. Ao seguir a Resolução do CNS3 de caracterizar as profissões de saúde, bem como de 2 Assistentes Sociais; Biólogas/os; Biomédicas/os; Enfermeiras/os; /Educadores(as) Físicas/os; Farmacêuticas/os; Fisioterapeutas; Fonoaudiólogas/os; Médicas/os; Médicas/os Veterinárias/os; Nutricionistas; Odontólogas/os; Psicólogas/os; Terapeutas Ocupacionais. 3 É preciso situar que é indiscutível a relevância política do referido documento, especialmente para as profissões que não se inserem apenas nos serviços de saúde (como assistentes sociais, biólogos/as, delegar aos Conselhos de Classe tal qualificação, o CFESS publica a resolução (que já indicamos) que reconhece o assistente social como profissional de saúde. DEMANDAS E NECESSIDADES COLOCADAS À/AO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAÚDE Vale aqui lembrar que o Serviço Social é considerado uma profissão, inserida na divisão social e técnica do trabalho, que surge enquanto parte das estratégias de enfrentamento das múltiplas expressões da questão social, no alvorecer da era dos monopólios, e associada à (re)produção das relações sociais, ou seja, com a reprodução tanto da vida material e do modo de produção, quanto das formas de consciência e modo de vida na sociedade, atuando em diversificadas situações sociais que afetam as condições de vida da população (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985), inclusive na área da saúde. Como mostramos anteriormente, embora não possamos desconsiderar a forma como uma profissão responde às demandas que lhe são postas e, no caso específico do setor saúde, o papel do MRS e da construção do SUS, a inserção de assistentes sociais na saúde responde a determinadas demandas e necessidades sociais. Ainda que fuja ao escopo deste trabalho aprofundar a discussão, é importante situar que, num sistema de saúde cindido entre a “saúde pública” e a medicina previdenciária até o SUS, a inserção de assistentes sociais se dava predominantemente na segunda subárea, sendo que o principal motivo para a expansão da absorção de assistentes sociais nos serviços de saúde se refere à necessidade de atuação junto à principal contradição do sistema, “(...) qual seja, o confronto expresso pela necessidade de inter-relação entre quem produz e quem consome os serviços de saúde, com o conteúdo e a forma de organização desses serviços (...)” (COSTA, 1998, p.61). Os objetivos de tal atuação estavam voltados para a manutenção da ordem, para a amenização de conflitos entre usuários e instituição. Neste quadro, o Serviço Social Médico era tido como profissão paramédica, ou seja, subsidiária da ação médica. A partir do lugar subalterno atribuído ao “social” na política de saúde, bem como às demandas – geralmente assistenciais - que lhe eram colocadas, as respostas profissionais das/os assistentes sociais eram norteadas por um referencial teóricopolítico biomédicos/as e veterinários/as). Contudo, são necessárias duas observações. A primeira é que, como lembram Carvalho e Ceccim ([s.d.]), não existe uma única relação acerca de quais são as profissões de saúde. A segunda é que, apesar da ampla divulgação da citada Resolução, pouco é conhecido o principal objetivo do documento: definir as profissões de saúde para participarem do debate sobre a política nacional de saúde (CARVALHO, CECCIM, [s.d.]). Neste sentido, o próprio texto alerta que, em conservador, que se alinhava perfeitamente à lógica do modelo de atenção à saúde hegemônic o (CORREIA, 2005). Com a implementação do SUS e as propostas de alteração do modelo de atenção à saúde e seus pressupostos, o Serviço Social adquire um novo estatuto na área (MIOTO; relação às últimas profissões citadas, há que se atentar aos dispositivos legais e aos Conselhos das categorias profissionais. NOGUEIRA, 2009). Neste cenário, em nossa análise, os principais vetores das demandas ao Serviço Social na saúde podem ser apreendidos a partir de dois ângulos principais: o do modelo biomédico - associado ao projeto do SUS possível4, apesar de suas heterogeneidades - e o dos princípios associados às teses clássicas da RSB, em disputa nos espaços institucionais. Quanto ao primeiro, Costa (2010, p.139) demonstra que: no contexto de desenvolviment o do SUS, as dificuldades de absorver as reais necessidades dos usuários, sobretudo as que se relacionam às péssimas condições de vida da população, agravadas com as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, terminam demandando a institucionalização de ações e ocupações voltadas para atender tais problemas, que, se não forem imediatamente enfrentados resultam em mortes, sequelas, iniquidades e denúncias que afetam a imagem e o reconhecimento do SUS. Tais necessidades, em geral, constituem demandas ao serviço social no cotidiano do SUS, na maioria das vezes requerendo mediações de natureza intersetorial. Soares (2010) acrescenta que o cenário atual da contrarreforma do Estado coloca requisições específicas para o trabalho em saúde, inclusive para o Serviço Social, “(...) seja porque inserem novos elementos e instrumentos de gestão no espaço das unidades de saúde, seja porque reiteram velhas práticas não superadas e reprodutoras do modelo de atenção à saúde prioritariamente assistencial, curativo e individualista (SOARES, 2010a, p.17). Destarte, para esta analista, o lugar prioritário da profissão na política de saúde, segundo a racionalidade hegemônica, continua aquele voltado para a assistência direta aos usuários – nas redes de atenção secundária e terciária - majoritariamente atendendo demandas assistenciais/emergenciais. Contraditoriamente, porém, as demandas do novo modelo de atenção também se anunciam no cotidiano profissional. Destarte, segundo Bravo e Matos (2006), o projeto da RSB apresenta como demandas que a/o assistente social se volte para a busca de democratização do acesso as unidades e aos serviços de saúde, para um atendimento humanizado, para a busca de estratégias de interação da instituição de saúde com a realidade, de interdisciplinaridade, de 4 Soares (2010) usa tal terminologia para se referir ao intenso movimento de transformismo de lideranças do projeto de reforma sanitária, que “(...) se aproxima das influências da Terceira Via que procura tornar mais digerível a proposta da contrarreforma, sendo os seus defensores antigas lideranças dos trabalhadores" (SOARES, 2010a, p.187). ênfase nas abordagens grupais, de acesso democrático às informações e estímulo à participação cidadã. É pertinente indicar que, nos distintos espaços ocupacionais, o confronto entre as distintas demandas, associadas aos projetos sanitários, vai se manifestar, de forma velada ou aberta, no cotidiano profissional. Destarte, “a prática profissional na saúde pública realiza-se em meio às diversas contradições e conflitos do sistema que dialeticamente afirma e nega os princípios e direitos constitucionais em sua execução” (SOARES, 2010, p.18). É neste contexto, face às necessidades e demandas colocadas ao Serviço Social na saúde, que refletiremos agora sobre o que Netto (1992) denomina de “reservas próprias de forças” da profissão, ou seja, como esta vem respondendo ao contexto no qual se situa. ASSISTENTE SOCIAL COMO PROFISSIONAL DE SAÚDE Iniciaremos a discussão traçando os argumentos da Resolução do CFESS que reconhece o(a) assistente social como trabalhador(a) de saúde. Tal documento coloca algumas justificativas para tal certificação, que aqui agrupamos em três partes. A primeira referenda a argumentação da Resolução do CNS para definir a importância do trabalho interdisciplinar na saúde, citando as modificações advindas do SUS, como o conceito ampliado de saúde, a necessidade de consolidação de seus princípios e diretrizes, a importância da interdisciplinaridade para responder às necessidades de saúde da população. Na segunda parte do documento, são tratadas especificamente as contribuições da/o profissional para o trabalho em saúde, entre as quais é mencionada, inicialmente, a intervenção em relação ao fenômenos socioculturais e econômicos que comprometem a “eficácia dos programas de prestação de serviços nos níveis de promoção, proteção e/ou recuperação da saúde (CFESS, 1999, p.1). Em seguida vem a contribuição do(a) assistente social para “(...) o atendimento das demandas imediatas da população, além de facilitar o seu acesso às informações e ações educativas para que a saúde possa ser percebida como produto das condições gerais de vida e da dinâmica das relações sociais, econômicas e políticas do País” (CFESS, 1999, p.1). Por fim, é indicada a imprescindibilidade, para a consecução do SUS, da efetivação do Controle Social e que o profissional de Serviço Social, “(...) com base no seu compromisso ético-político, tem focalizado suas atividades para uma ação técnico-política que contribua para viabilizar a participação popular, a democratização das instituições, o fortalecimento dos Conselhos de Saúde e a ampliação dos direitos sociais” (CFESS, 1999, p.2). Vale situar também que, como expressão do amadurecimento teórico-político do Serviço Social na área, é publicado, após ampla discussão com a categoria, o documento “Parâmetros para a atuação de assistentes sociais na política de saúde” (CFESS, 2010, p.9), marco fundamental da atual discussão sobre o tema. Embora fuja ao escopo desse trabalho um incursão mais alongada sobre a importância e diretrizes emanadas do documento, não podemos deixar de evidenciar que o texto expressa que o objetivo do trabalho do(a) assistente social na saúde “(...) passa pela compreensão dos determinantes sociais, econômicos e culturais que interferem no processo saúde-doença e na busca de estratégias político-institucionais para o enfrentamento dessas questões” (CFESS, 2010, p.26). Não obstante esse amadurecimento da produção sobre o Serviço Social na saúde, bem como do reconhecimento “oficial” do assistente social como profissional de saúde, este ethos (conforme indicamos), é palco de questionamentos, tanto no campo sanitário em geral, quanto no interior do próprio Serviço Social: às vezes, o assistente social é referido como de “outras áreas” ou partícipe de “áreas afins à saúde”; outras vezes, é tido como “profissional da assistência social”. Além disso, podemos detectar outras tensões no debate do Serviço Social, como indicam as anotações de Bravo (2006) e do CFESS (2010): a adoção, por assistentes que realizam formação em saúde pública, da autorrepresentação de “sanitaristas”, desconsiderando sua identidade como assistentes sociais; a busca de determinados profissionais/grupos profissionais por uma especialização nas diferentes áreas da medicina, através da criação de entidades ou fóruns de capacitação, o que restringe a concepção e a atuação profissional, além de reforçar a fragmentação, afrontando a ideia da integralidade; o surgimento de uma vertente denominada “Serviço Social Clínico”, que propõe a terapêutica como um dos atributos do exercício profissional do(a) assistente social, o que implica numa “(...) tentativa de obscurecer a função social da profissão na divisão social e técnica do trabalho” (CFESS, 2009, p.26). Consideramos que a existência de tais polêmicas decorre da conjunção de alguns elementos: seja porque, como menciona o CFESS (1999), não é profissional exclusivo da saúde, podendo atuar nas diferentes dimensões da questão social no âmbito das políticas sociais, inclusive a da saúde; seja porque, como o/a assistente social não atua na assistência direta à enfermidade, sob a égide do ideário biomédico a relevância de seu trabalho não é reconhecida pelos demais profissionais. Nesta direção, Costa (1998) afirma que (...) o modelo médico-hegemônico, ao centrar suas ações nas atividades da clínica médica curativista individual, secundariza e desqualifica as ações e atividades profissionais que não se constituem objeto de práticas privilegiadas por este modelo assistencial, como é o caso das ações de educação em saúde e das atividades de categorias profissionais, como: assistentes sociais, nutricionistas, sociólogas/os e em certa medida psicólogas/os (COSTA, 1998, p.138 – grifos nossos). A atribuição de um significado subalterno ao Serviço Social na saúde tem a ver, portanto, a concepção de saúde e o embate entre os projetos sanitários (e societários) nos serviços de saúde, ou seja, com o próprio o modelo de atenção à saúde, que define quais necessidades são consideradas de saúde, bem como que profissionais são “importantes” para a assistência à saúde; com a direção do processo coletivo de trabalho no cotidiano dos serviços; e também com o próprio perfil do trabalho do(a) assistente social, que abrange tanto seus referenciais teóricometodológicos, ético-políticos e técnicos-operativos, quanto suas ações. Supomos que a existência desses “dilemas” em relação ao Serviço Social na saúde indica a necessidade de adensamento dos alicerces que sustentam o trabalho de assistentes s ociais na área, pautado no Projeto Ético Político (PEP) do Serviço Social. Um dos elementos centrais, que precisa ser aprofundado no debate profissional, é sobre a determinação social da saúde que, inquestionavelmente, é (ou deve ser) o horizonte da atuação do assistente social na área. A DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE: debate imprescindível para o Serviço Social Conforme Vasconcelos (2013), embora esse debate seja aparentemente consensual e o termo tido como sinônimo “determinantes sociais da saúde” (DSS), tais conceitos estão relacionados a distintas perspectivas teórico-políticas. Aqui vale indicar que a concepção da determinação social da saúde é basilar nas teses clássicas da RSB, tendo influência do referencial marxista. Tal perspectiva põe em questão as limitações do modelo biomédico para explicar o processo saúde-doença e defende que a saúde está relacionada à organização da vida social, com base no trabalho e na reprodução social. Deste modo, propõe-se a apreender as “determinações contraditórias e simultâneas decorrentes de necessidades do capital e do trabalho” (TEIXEIRA, 1989, p. 18) e suas relações com as condições de vida e de saúde das populações. Em outras palavras, tal abordagem não nega a determinação biológica das condições de saúde, mas busca precisar o seu peso em face dos determinantes comportamentais e sociais (TEIXEIRA, 2009). Já no tocante aos DSS, é uma concepção bastante utilizada pela OMS e presente em diversos eventos e documentos elaborados este organismo. Visa considerar os aspectos “sociais” na apreensão e no enfrentamento do adoecimento e reconhece que a desigualdade tem influência decisiva nos padrões de morbimortalidade da população. Contudo, de acordo com o CEBES ([s/d]), seu aporte teórico é o modelo da epidemiologia tradicional, no qual estes aparecem unicamente na qualidade de fatores causais de morbidade e mortalidade, sendo um conceito puramente empírico: não existiria aí nenhum tipo de teoria da sociedade de caráter crítico ou ao menos explicativo, conforme alerta o Cebes ([s/d]). Isso termina por colocar “(...) no mesmo patamar todos os determinantes, não destacando a primazia da determinação social a partir da conformação capitalista de organização social” (MIOTO; NOGUEIRA, 2009, p.227). Neste sentido, de acordo com o CEBES ([s/d]), o problemático da concepção do DSS é acreditar que a atuação nos “fatores de risco” pode minimizar a determinação social, sem que se transformem efetivamente as condições sociais. Apesar da importância dessa discussão para a inserção [e o debate sobre] do(a) assistente social na saúde, bem como de sua relação com as demandas colocadas no cotidiano profissional, tal debate vem acontecendo de forma ainda bastante tímida em nossa área (VASCONCELOS, 2013). Vasconcelos (2013) mostra que, aparentemente, as importantes distinções entre a perspectiva da determinação e dos DSS não vem sendo percebidas e explicitadas na maioria dos textos da área e a terminologia comumente utilizada é a primeira, inclusive nos Parâmetros para atuação de assistentes sociais na saúde (CFESS, 2010). Além disso, apesar da relação do debate com as demandas cotidianos colocadas ao trabalho dos assistentes sociais na saúde, Nogueira (2009) revela que, no Brasil, esse debate não vem se destacando na agenda do Serviço Social. Na mesma direção, Costa (2010) alerta que, embora encerre preocupação e reconhecimento acerca dos determinant es sociais, o conjunto das respostas dadas pelo Serviço Social [no trabalho em saúde] não resulta de reflexões aprofundadas acerca dos determinantes sociais. Esta é condição essencial para que o Serviço Social possa ampliar sua contribuição ao debate junto à equipe de saúde, à gestão do SUS, aos espaços de controle social e ao movimento sanitário, na perspectiva de construir argumentos que possam colaborar para desenvolver alternativas metodológicas e técnico-operativas alinhadas à construção de práticas contra-hegemônic as , como é o caso das práticas moldadas pela intersetorialidade (COSTA, 2010, p.218). Embora o debate da política de saúde relacionada à discussão sobre a questão social e suas expressões no campo da saúde esteja presente no debate do Serviço Social e este possa ser importante canal para o amadurecimento da discussão sobre a determinação social da saúde, sob o referencial marxista, é importante considerar que, além do aporte advindo do debate geral da profissão, para uma atuação antenada com os princípios do SUS e da RSB, as/os assistentes sociais precisam também de referências do campo da saúde para iluminar e legitimar suas ações. Ao realizar suas ações profissionais no campo da saúde, o assistente social depara-se com um conjunto complexo de situações que exigem conhecimentos próprios não só da área sanitária como de outras áreas do conhecimento, os quais devem ser apropriados e ressignificados para a sua ação cotidiana, abarcando o campo teórico, ético, político e operativo (NOGUEIRA, 2011, p.51). Neste sentido, Nogueira (2011) defende a necessidade de suportes teóricos que contribuam para uma leitura crítica da realidade, bem como para a tessitura de respostas às demandas do SUS, posto que “(...) a legitimidade e o reconhecimento profissional dependem [também] da clareza teórica e da qualidade técnica do exercício profissional (MIOTO, NOGUEIRA, 2009)” (NOGUEIRA, 2011, p.49). Sabemos que o trabalho do assistente social não deve se pautar somente na demanda colocada pelo espaço sócio-ocupacional, “mas da releitura profissional crítica dessa demanda, mediada pelos princípios que regem seu projeto profissional e dos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS)” (CAMARGO, 2009, p.141). Isso é fundamental, como se destacou em momento anterior, para “dissecar” as reais necessidades subjacentes às demandas, bem como para a construção de respostas que considerem as necessidades das classes populares e apontem para a determinação social da saúde, e que, portanto, este debate também possui implicações para o delineamento do trabalho. Tal quadro nos remete à necessidade de ampliação/consolidação do arsenal heurístic o necessário ao trabalho do(a) assistente social no setor, que demanda, em nossa análise, a retomada das bases da Saúde Coletiva e o aprofundar a discussão das perspectivas críticas das Ciências Sociais em saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS Refletimos que a concepção que dá sustentação ao estatuto do assistente social como profissional de saúde, numa direção conectada ao PEP, é o da determinação social na saúde. Isto porque este referencial sinaliza a importância de profissões que vão além da assistência à doença para o trabalho em saúde; pode contribuir para a ultrapassagem da ideia do Serviço Social como paramédico; bem como iluminar as tensões que existem no debate sobre o tema. Desta forma, a discussão acerca da determinação social da saúde precisa adquirir amadurecimento e densidade no debate profissional. BIBLIOGRAFIA BRAVO, M.I.S. ; MATOS, M.C. Projeto Ético-Político do Serviço Social e sua relação com a Reforma Sanitária: elementos para o debate. In: MOTA, A.E. et al (orgs). Serviço Social e Saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2006. CAMARGO, M. Configurações do processo de trabalho em que participa o assistente social na saúde coletiva no espaço sócioocupacional da atenção básica . Dissertação (Programa de Pós- Graduaç ão da Faculdade de Serviço Social. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). Porto Alegre, 2009. CARVALHO, Y.M.; CECCIM, R.B. 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