Francisco Rodrigues Rocha
Breves notas sobre o direito de preferência sobre
a venda ou dação em cumprimento de bens
culturais classificados ou em vias de
classificação
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Direito de preferência sobre a venda ou dação em cumprimento de bens culturais classificados ou em vias de classificação : 2
Breves notas sobre o direito de preferência sobre a venda
ou dação em cumprimento de bens culturais
classificados ou em vias de classificação
Francisco Rodrigues Rocha
Advogado
§1. Introdução
I. As presentes nótulas visam a resolução dum caso, e, como ex casu oritur ius, na expressão
do incomensurável Mestre, o Professor Doutor RUY DE ALBUQUERQUE, e como o Direito é praxis
problemático-normativamente orientada, cremos pertinente escrever sobre a seguinte hipótese.
O problema é o que se segue. Suponhamos que um particular pretende dar como entrada em
espécie para a constituição (ou aumento de capital) duma sociedade (scilicet, comercial) um imóvel
que, à luz da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, é um bem cultural classificado ou em vias de
classificação: tem o alienante de dar preferência ao comproprietário, Estado, Regiões autónomas e
municípios, sobre a dação em espécie de semelhante imóvel? Qual o sentido normativo correcto dos
artigos 35.º a 39.º da Lei n.º 107/2001? Lidos à letra, parecem inculcar no intérprete a ideia segundo
a qual o comproprietário, Estado e demais entidades públicas seriam titulares dum direito de
preferência no presente caso. Abordemos, então, o problema ora exposto.
§2. Âmbito de aplicação do direito legal de preferência
II. Como ponto de partida podemos assentar no seguinte ponto: não existe direito legal de
preferência no caso de alienação através de negócios gratuitos, apenas existindo na hipótese de
negócios onerosos.
Confirma-o o próprio conceito de direito de preferência, que, logo à partida, exclui que seja
possível no caso de negócios gratuitos de alienação: “convenção pela qual alguém assume a
obrigação de escolher outrem como contraente, nas mesmas condições negociadas com terceiro, no
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caso de decidir contratar”1 ou “faculdade de chamar a si, em igualdade de condições (tanto por
tanto), com prioridade sobre o comum dos interessados, a oferta ou a declaração de venda ou dação
em cumprimento desse local”2.
Confirma-no-lo, também, o argumento sistemático que advém dos muitos outros casos
consímiles de preferências legais, com (concorrência de) fins de interesse público subjacentes, no
arrendamento urbano, no direito de superfície, no trespasse, no caso de prédio serviente, no caso de
prédio confinante, ou para o comproprietário: só se verificam na hipótese de “venda”, “dação em
cumprimento” ou “aforamento”, i. e., precisamente, no caso de negócios onerosos, que não gratuitos,
por conseguinte (cf. o art. 1091.º CC para o arrendatário que fala em “venda ou dação em
cumprimento”, art. 1409.º para o comproprietário que fala em “venda ou dação em cumprimento”,
1112.º, n.º 4, para o trespassário que fala em “venda ou dação em cumprimento”, art. 1535.º, n.º 1,
para o superficiário, fala em “venda ou dação em cumprimento”, arts. 1380.º e 18.º do Decreto-Lei
n.º 384/88, de 25 de Outubro, para o proprietário de prédio confinante, que fala em “venda, dação
em cumprimento ou aforamento”, 1555.º, n.º 1, para o prédio serviente, que fala em “venda, dação
em cumprimento ou aforamento”, e 2130.º, n.º 1, nos quinhões hereditários, que fala em “venda ou
dação em cumprimento”).
II. Um segundo ponto deve tomar-se como assente na presente análise. Parafraseemos, neste
particular, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 2009, que sobre a questão
também se debruçou, ainda que noutro quadrante: o direito de preferência “só deve ser imposto em
relação a negócios (translativos, naturalmente) onerosos em que o preferente, ao substituir-se ao
terceiro adquirente, possa objectivamente colocar o alienante na situação em que estaria se a
alienação ao terceiro se tivesse mantido”3. Ora, esta conclusão decorre, de igual forma, do próprio
conceito de preferência: dar preferência é dar a outrem a faculdade de contratar nos mesmos moldes
que o projecto de contrato originário, e a verdade é que isso não pode, pela natureza das coisas,
suceder no caso de dação do imóvel por entrada em espécie, ou seja, o direito de preferência traz
ínsita “a exigência do “tanto por tanto””, o que não pode suceder no presente caso.
Nem tão-pouco se diga poder alguém preferir em dinheiro4 no caso de dação do imóvel (ou
móvel) como entrada em espécie, uma vez que, alega-se, poderia sempre a sua contraprestação ser
em dinheiro e com esse mesmo dinheiro o alienante poderia, de igual forma, entrar para a sociedade
1
MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I7, p. 252.
2
PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. II4, sub art. 47.º RAU.
3
Ac. STJ 22.I.2009 (MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), proc. n.º 08B2918. Cf. tb., neste mesmo sentido, o Ac. STJ
16.XI.2006 (ALBERTO SOBRINHO), proc. n.º 06B3596 (ambos em www.dgsi.pt), numa linha que podemos dizer de entendimento
maioritário na jurisprudência.
4
Teria de ser em dinheiro necessariamente, dada a impossibilidade de preferir dando em troca participações sociais (salva a
hipótese muito remota de o titular da preferência, designadamente no caso de bens culturais classificados ou em vias de
classificação, ser também ele titular de acções daquela sociedade em causa (mas, neste último caso, já não estaríamos perante uma
entrada, mas antes perante uma cessão de partes sociais, quotas ou acções, o que pode não ser equivalente, na medida em que o
transmissário ingressará na posição do transmitente).
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(mas agora mediante entrada em dinheiro, e não em espécie). Outro argumento poderia consistir no
facto de as entradas em espécie terem também de ser objecto de avaliação patrimonial (pecuniária:
cf. o artigo 28.º do Código das Sociedades Comerciais), e isto sob pena de, não o sendo, a entrada
dever ser realizada em espécie (artigos 9.º, n.º 1, als. g) e h), e n.º 2, e 25.º, n.º 4, do Código das
Sociedades Comerciais5). Ora, tais argumentos são manifestamente improcedentes: primo loco,
atenta contra a própria ideia de “preferir tanto por tanto”, de realizar uma atribuição do mesmo
género, espécie e conteúdo que o outro contraente, primário destinatário do projecto de contrato,
faria; secundo loco, porque, naturalmente, pode não ser despiciendo, p. e., para a realização do
objecto social, uma entrada em dinheiro ou uma entrada em espécie; tertio loco, a avaliação dos bens
com que os sócios entram em espécie prende-se com a determinação do valor nominal das suas
participações, e não é por serem tais entradas avaliadas em espécie que passam a ser “fungíveis” com
entradas em dinheiro, nem a sua avaliação dita que sejam iguais a entradas em dinheiro.
III. Um terceiro argumento, que pode ser visto na jurisprudência que sobre o tema se
debruçou, prende-se com o facto de o direito de preferência, porque restritivo do direito de
propriedade e da liberdade de escolha do contratante, “só exist[ir] nos casos taxativamente previstos
[nos correspectivos normativos legais], ou seja, na venda ou dação em cumprimento do prédio6”,
pelo que não seria susceptível de aplicação analógica (artigo 10.º do Código Civil): ora, constatado
que só existe preferência legal nas hipóteses de “venda” ou “dação em cumprimento” (negócios
onerosos translativos), e que, sem menoscabo de o contrato de sociedade ser real quoad effectum
quando haja entradas em espécie (portanto, negócio oneroso translativo7), não é nem uma “venda”
nem uma “dação em cumprimento”, então não existe direito de preferência na aquisição do imóvel
quando a sua alienação se dá por entrada no capital duma sociedade.
Ora, uma vez que a entrada em espécie não tem como contrapartida nem o direito ao
pagamento duma quantia em dinheiro (venda: cf. os artigos 874.º e 879.º do Código Civil), nem a
exoneração do alienante de uma obrigação através prestação de coisa diferente do originariamente
acordado (cf. artigo 837.º do Código Civil), não pode haver direito de preferência. Neste sentido,
depõe também o ensinamento de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, quando escrevem que “não
pode qualificar-se como venda, nem como dação em cumprimento, a realização, pelo sócio de uma
sociedade, do valor da sua quota no capital social com uma coisa sujeita a prelação. Trata-se de
um negócio diferente, que em caso algum possibilita o exercício do direito de preferência”8. Ao que
5
Sobre a articulação dos referidos preceitos, PAULO DE TARSO DOMINGUES, Código das Sociedades Comerciais em
Comentário, vol. I, Almedina, Coimbra, 2011, sub art. 25.º.
6
Cf. Ac. STJ 16.XI.2006 (ALBERTO SOBRINHO), proc. n.º 06B3596. No caso da sentença que se transcreve, tratava-se dum
prédio arrendado.
7
Sobre a eventual natureza real quoad effectum do contrato de sociedade, vd., recentemente, NUNO AURELIANO, O risco nos
contratos de alienação, Almedina, Coimbra, 2008, passim.
8
PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. III2, com a colaboração de HENRIQUE MESQUITA, sub art.
1409.º.
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juntamos nós a consideração da jurisprudência do nosso Tribunal superior, a de que “[b]asta pensar
que a contrapartida é a participação no capital social; e que essa aquisição não pode resultar da
substituição do senhorio à sociedade adquirente do estabelecimento”9.
IV. Questão diferente seria se a dação do estabelecimento fosse uma dação em cumprimento,
em virtude de tal sócio ser, previamente, devedor da sociedade: aí, sim, aplicar-se-ia o direito legal
de preferência10.
Ainda assim, e não obstante este entendimento ter sido sufragado pela jurisprudência do
nosso Tribunal superior, cremos não valer sem reservas (sérias): é que “entrar” com o pagamento
duma dívida à sociedade, não é, em rigor, “entrar”, não é realizar uma atribuição patrimonial a favor
da sociedade, mas sim extinguir uma dívida. Uma coisa é alguém entrar em espécie numa sociedade
com um crédito que contra esta detém – circunstância a que, à partida, não vemos quaisquer óbices
–, outra, diametralmente oposta, será alguém “entrar” para a sociedade pagando uma dívida prévia
que tinha com esta… É bem de ver que, em semelhante circunstância, “não se entrou com nada”,
antes se solveu uma dívida já existente. Uma cláusula no contrato de sociedade que permitisse tal
situação seria nula ex artigo 27.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais.
Ou seja: o entendimento do STJ está correcto ao mencionar haver nestes casos direito de
preferência, pois há uma alienação onerosa através de datio in solutum; o STJ andou mal, ao não
prever, porém, que este tipo de “entradas em espécie” através de “pagamento de anterior dívida”
seria sempre nula ex artigo 27.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais.
§3. O caso específico do direito de preferência no caso de alienação de imóveis (ou móveis)
classificados ou em vias de classificação. A obrigação de comunicação do artigo 36.º e a
obrigação de comunicação para preferir do artigo 37.º da Lei n.º 107/2001
V. O mesmo raciocínio – e consigo todo o iter argumentativo antecedente – se aplica ao
direito de preferência do Estado e demais entidades públicas, pois, nos termos do artigo 37.º, n.º 1,
“os comproprietários, o Estado, as Regiões Autónomas e os municípios gozam, pela ordem indicada,
do direito de preferência em caso de venda ou dação em pagamento de bens classificados ou em
vias de classificação ou dos bens situados na respectiva zona de protecção”
Ora, conforme vimos, por impossibilidade dogmática e conceptual (e de regime, acrescentese), o direito de preferência só pode valer nos casos de negócios onerosos translativos em que se
assegure o “tanto por tanto”, o “tantundem”, e a verdade é que o Estado não pode substituir-se à
sociedade e atribuir determinada participação social ao alienante. Isto dito, o direito de preferência
9
Ac. STJ 22.I.2009, suso citado.
10
Neste sentido também o Ac. STJ 22.I.2009, já citado.
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no caso de venda ou dação em cumprimento de bens classificados ou em vias de classificação não
vale nos casos de cumprimento de obrigação de entrada em espécie para uma sociedade (civil ou
comercial)
Mais ainda – e em abono de quanto é dito –, não comporta tal norma uma aplicação analógica
por força da restrição do direito fundamental de propriedade e de escolha da liberdade do contratante.
O artigo 37.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, não singra, portanto, aplicação aos casos
de realização de entradas em espécie com o imóvel em causa.
VI. Todavia, porque é uma preferência legal, oponível erga omnes, ou, melius, uma situação
jurídica absoluta (na perene correcção dogmática do Professor Doutor OLIVEIRA ASCENSÃO), por
força da sequela/inerência, o imóvel – agora integrando o património societário – continuará a estar
onerado com a preferência legal: ou seja, se a sociedade vender ou der em cumprimento o imóvel,
estará sempre obrigada a dar preferência às entidades referidas no artigo 37.º, n.º 1, da Lei n.º
107/2001, já mencionada.
VII. Não obstante tudo quanto até agora escrevemos, a solução a dar ao caso que nos
propusemos abordar não resulta de forma assim tão clara da lei, que, bem pelo contrário e
infelizmente (numa técnica legislativa pro Statu), dá a entender, ictu oculi, ter o Estado direito de
preferência na alienação de bens classificados ou em vias de classificação em todos os casos em que
haja uma alienação, seja onerosa, seja gratuita, de tal bem.
Com efeito, a Lei n.º 107/2001 vem dispor no artigo 36.º, n.º 1 (cuja epígrafe é “dever de
comunicação na transmissão”), existir obrigação prévia de comunicação nos casos de “alienação,
constituição de outro direito real de gozo ou dação em pagamento de bens classificados (…) ou em
vias de classificação como tal”.
Pelo contrário, o artigo 37.º, n.º 1 (cuja epígrafe é “direito de preferência”), dispõe existir
direito de preferência nos casos de “venda ou dação em pagamento dos bens classificados ou em
vias de classificação ou dos bens situados na respectiva zona de protecção”. Quid iuris? Existe
direito de preferência, ao abrigo desta lei, no caso de alienações gratuitos ou onerosas que não se
traduzam numa venda ou dação em cumprimento, quando se trate de bens classificados ou em vias
de classificação?
O problema aqui em causa reside na circunstância de o artigo 36.º, n.º 1, falar em “alienação”
e não em “venda”, o que inculca ao intérprete, (i) numa interpretação sistemática, a ideia de que o
direito de preferência conferido aos comproprietários, Estado e demais entidades públicas no caso
de imóveis culturais abrangeria qualquer alienação, fosse gratuita, fosse onerosa mesma que não se
tratasse duma venda ou dação em cumprimento. Mais: (ii) a obrigação de comunicação prévia
antecede cronologicamente ou, pelo menos, é momento cronologicamente anterior ao vero exercício
da preferência pelo seu beneficiário, pelo que lidos em sequência os artigos 36.º e 37.º fariam todo o
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sentido, devendo um integrar ou servir de apoio interpretativo ao outro. E, por último, (iii) o artigo
38.º fala em dever de comunicação estabelecido “nos artigos anteriores”, o que inculca a ideia de se
tratar dum único dever de comunicar, praecise o concernente ao exercício do direito de preferência.
É aquilo a que podemos chamar a tese da interpretação extensiva do direito de preferência conferido
pela Lei n.º 107/2001, através da leitura integrada do artigo 37.º, n.º 1, com o artigo 36.º, n.º 1.
Este entendimento não é, porém, o mais correcto.
Com efeito, em contrário do mesmo, militam os seguintes argumentos.
Em primeiro lugar, a inadmissibilidade conceptual, dogmática e de regime em conceber um
direito de preferência em que é impossível o “tanto por tanto”, o “tantundem”, ou seja, preferir nos
mesmos moldes que o negócio base, sobre o qual se prefere.
Em segundo lugar, frise-se, em todos os direitos legais de preferência existe a restrição à
“venda” ou “dação em cumprimento” (arts. 1091.º, 1409.º, 1112.º, n.º 4, 1535.º, n.º 1, 1380.º e 18.º
do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro, 1555.º, n.º 1, e 2130.º, n.º 1, do Código Civil), o que
sucede por motivos lógicos, uma vez que só nestes casos é possível o beneficiário do direito de
preferência oferecer ao alienante/obrigado a preferir condições de negócio estruturalmente idênticas
àqueles que lhe são comunicadas no projecto de contrato.
Por outro lado, o facto de o direito de preferência ex lege ser restritivo do direito de
propriedade e do direito à autonomia da vontade e à escolha do outro contraente, o que não autoriza
uma interpretação extensiva da preferência às entidades referidas no artigo 37.º, n.º 1, a todos os
casos de alienação.
Pelos mesmos motivos expostos em (ii) não é avisada a integração analógica, pois, além de
ser uma norma excepcional (artigo 10.º do CC), não existe qualquer lacuna.
Quinto loco, o legislador distingue claramente entre “dever de comunicação da transmissão”
e “direito de preferência”, em dois artigos distintos, sendo que o primeiro não se refere à obrigação
de comunicação para preferir, pois: (i) o artigo 37.º, n.º 2, remete para os artigos 416.º a 418.º e 1410.º
do CC: ora, o artigo 416.º regula, expressamente, a obrigação de comunicação para preferir, pelo que
seria uma duplicação inútil, contrária aos cânones interpretativos (artigo 9.º, n.º 3, do CC), presumir
que o legislador quis regular a obrigação de preferir no artigo 36.º da Lei n.º 107/2001, quando, em
sede própria (o artigo 37.º, para ser mais preciso), vem remeter a regulação do exercício do direito
de preferência, v. g. a obrigação de preferir, para o disposto no Código Civil. (ii) O facto de o artigo
36.º, n.º 1, falar em transmissão e não em venda, o facto de a sua epígrafe falar em transmissão e não
em venda, o facto de o n.º 2 do artigo 36.º, a presunção de que o legislador soube exprimir-se em
termos adequados e de que a menção a transmissão e não a venda não é fortuita (artigo 9.º, n.º 3, do
CC), induzem claramente à ideia de que o artigo 37.º deve ser lido de forma autónoma em relação ao
artigo 36.º. (iii) O facto de o artigo 36.º, n.º 2, estender a obrigação de comunicação prévia nos casos
de “transmissão por herança ou legado de bens classificados (…) ou em vias de classificação”,
portanto um caso, grosso modo, equivalente ao de alienação gratuita, no qual, natura rerum, não
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existe direito legal de preferência, induz claramente à distinção, na Lei n.º 107/2001, entre a
obrigação prévia de comunicar a transmissão ou oneração (artigo 36.º) e a obrigação de preferir
(artigo 416.º CC ex 37.º, n.º 2, da Lei n.º 107/2001). (iv) O facto de o artigo 36.º, n.º 1, indicar que a
transmissão implica a “prévia comunicação escrita ao serviço competente para a instrução do
respectivo procedimento” destoa largamente com o facto de o artigo 37.º atribuir direito legal de
preferência (graduado em primeira linha) ao comproprietário, ao qual manifestamente não se aplica.
(v) O facto de o artigo 38.º, n.º 2, vir dispor que o incumprimento do dever de comunicação
estabelecido nos artigos 35.º e 36.º, n.º 1 (e não do dever de comunicação do artigo 37.º, n.º 2),
determinar a anulabilidade “pelos tribunais sob iniciativa do membro da administração central,
regional ou municipal competente, dentro de um ano a contar da data do conhecimento”: ora, tal
preceito distingue claramente a obrigação prévia de comunicação (ao Estado) da obrigação prévia
para preferir, além de lhes associar consequências diferentes (desde logo, temos seriíssimas dúvidas
de que se aplique à hipótese de preferência legal do comproprietário do artigo 37.º, n.º 1). (vi) Refirase também que o direito de preferência que é atribuído, nestes casos, ao comproprietário (artigo 37.º,
n.º 1, da Lei n.º 107/2001) há-de ser necessariamente lido em conexão com o direito de preferência
de que este é titular ex artigo 1409.º, n.º 1, do Código Civil: ora, neste último preceito, apenas se fala
em “venda, ou dação em cumprimento”, pelo que também dessa forma deve ser lido o artigo 37.º, n.º
1, da Lei n.º 107/2001, dado não existirem razões justificativas para distorcer conceptualmente e pela
natureza das coisas a figura do direito de preferência (nem muito menos, neste caso, razões de
interesse público).
Em suma, dos argumentos expostos resulta claramente não serem as entidades referidas no
artigo 37.º, n.º 1, titulares de direito legal de preferência no caso de alienação gratuita, nem no caso
de dação em espécie como entrada em sociedade comercial do bem classificação ou em vias de
classificação.
VIII. Isto dito, cremos que, ainda assim, os dois preceitos se intersectam. É verdade, p. e.,
que seria desnecessário comunicar previamente ao Estado a alienação onerosa do imóvel e vir depois
comunicar o projecto de contrato para preferir…; é verdade também que, malgrado a remissão para
o artigo 416.º do Código Civil operada pelo artigo 37.º, n.º 2 ,a comunicação para preferir, quando
estejam em causa, entidades públicas, far-se-á através de “prévia comunicação escrita ao serviço
competente para a instrução do respectivo procedimento”, ou seja, neste tocante, a interpretação do
artigo 37.º deve ser concatenada com a do artigo 36.º (o que, de resto, é confirmado pela parte final
do artigo 37.º, n.º 2: “com as necessárias adaptadações”). Aí, nesses circunscritos casos, a aplicação
do artigo 36.º toldará a aplicação do artigo 37.º, ou, pelo menos, consumirá a remissão ex artigo 37.º,
n.º 2, para o artigo 416.º do Código Civil.
Mas podem, muito bem, ter âmbitos de aplicação distintos: no caso de alienação gratuita ou,
e. g., de entrada em espécie, amplius de negócios onerosos que não consubstanciem vendas ou dações
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em cumprimento, existirá apenas a cargo do proprietário a obrigação de prévia comunicação do artigo
36.º – que trará à colação a aplicação do artigo 38.º, v. g. impedimento de os notários celebrarem a
escritura e os conservadores o registo, bem como anulabilidade do negócio (se o negócio fosse
gratuito e houvesse lugar a preferência do comproprietário, como vimos, não se aplica o artigo 38.º,
n.º 2, e portanto o negócio não será anulável) –, mas já não a obrigação de dar preferência às entidades
referidas no artigo 36.º.
FRANCISCO RODRIGUES ROCHA
Portal Verbo Jurídico | 11-2013
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