1
IDENTIDADE GENÉTICA E INTIMIDADE DO DOADOR:
A PROBLEMÁTICA DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA1
Alice Frajndlich2
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre o direito do filho
gerado por reprodução humana assistida heteróloga em face ao direito do sigilo do
doador do material genético e os efeitos que a quebra do sigilo pode acarretar para
todos os envolvidos. Em busca do aperfeiçoamento das normas infraconstitucionais,
tendo por norte torná-las mais eficazes, a fim de que possam cumprir o seu
verdadeiro papel dentro da sociedade, é que foi concebido o presente trabalho
monográfico. Primeiramente, analisou-se a origem e a evolução das técnicas de
reprodução medicamente assistida, através de aspectos médicos e históricos, bem
como suas diferenciações. Do mesmo modo, foram considerados os aspectos
jurídicos sobre a reprodução assistida, ponderando a legislação existente no Brasil,
tais como o Código Civil, a Resolução Federal de Medicina nº 1.957 e a Lei da
Biossegurança e avaliando o tema em outros países, através do exame da
legislação comparada. Em seguida, foi estudado o conflito doutrinário acerca do
dilema em questão, analisando o direito à identidade genética, o direito à identidade
pessoal, bem como o direito à filiação e o direito à intimidade genética. Por fim,
realizou-se a análise da colisão entre os direitos fundamentais, com destaque ao
princípio da dignidade da pessoa humana, com o objetivo de verificar as possíveis
formas de resolução do conflito.
Palavras-chave: Direito de família. Reprodução assistida. Doação anônima de
sêmen. Identidade genética. Socioafetividade. Dignidade da pessoa humana.
Conflito de direitos.
1
Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul.
2
Acadêmica do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da PUCRS. Contato: [email protected]
2
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como escopo tratar do direito do filho gerado por
reprodução humana assistida heteróloga em face ao direito do sigilo do doador do
material genético.
O avanço científico permitiu o surgimento de técnicas que viabilizam a
reprodução humana por meios diversos da cópula genital.
São as chamadas
técnicas de reprodução assistida. Alterando a natureza da reprodução entre seres
humanos, indubitável que essa nova técnica acabou por trazer mudanças também
no mundo sócio-jurídico. Nesse contexto, a problemática que decorre da
possibilidade da concepção de um ser humano a partir de meios que afastam o
elemento volitivo do doador do material genético, no sentido de querer a
paternidade, reveste-se na pergunta: uma pessoa gerada por inseminação artificial
realizada com sêmen de doador anônimo, a chamada reprodução assistida
heteróloga, tem o direito de conhecer a sua origem biológica?
O doador anônimo, revestido pelo principio constitucional do direito à
intimidade, permanece descompromissado de qualquer espécie de vínculo com a
mãe ou com o concebido, encarando o processo apenas como um agente auxiliador
na concretização do desejo de uma mulher em conceber um filho sem a presença de
uma figura paterna, ou, ainda, com o intuito de ajudar em problemas de fertilidade.
De outro lado, existe a privação do filho de conhecer sua origem genética,
direito esse que é derivado do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, e
que acarreta em diversas celeumas.
A diversidade de consequências surgidas a partir de uma concepção advinda
de inseminação artificial heteróloga leva a questionar se o sigilo das informações
decorrentes da doação do material genético é a melhor maneira de se encarar o
processo de pós-concepção do indivíduo.
3
Nesse contexto, ocorre, portanto, o choque entre o direito do concebido em
conhecer a sua origem genética e o direito da manutenção do anonimato por parte
do doador.
A atualidade do assunto e a falta de legislação acerca do tema tornam
impositiva a discussão sobre do conflito de interesses em questão.
2. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
Com o avanço científico, surgiram técnicas que viabilizam a reprodução
humana por meios diversos da relação sexual, as quais são conhecidas como
inseminação artificial, ou reprodução assistida.
O mundo sócio-jurídico da procriação, anteriormente, estabelecia a presunção
de que havia uma relação causal entre a cópula e a procriação. De modo que, em
princípio, provada a relação sexual, era presumida a fecundação. Novas técnicas
acarretaram mudanças, alterando a natureza da reprodução entre seres humanos.
2.1 ASPECTOS HISTÓRICOS
Desde as mais remotas manifestações de arte é possível destacar o desejo
humano de procriar e a representação da mulher fecunda, grávida, capaz de gerar
novos seres.3 A infertilidade de um casal era motivo de degradação familiar,
podendo, inclusive dar causa à anulação do casamento. A fertilidade era
considerada uma dádiva divina.4
Havia a crença de que a esterilidade, até o final do século XV, era um
problema exclusivamente feminino, e somente com a invenção do microscópio, foi
3
4
LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1995, p. 22.
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. Curitiba: Juruá, 2011, p. 39.
4
admitida a possibilidade de esterilidade masculina por ausência ou escassez de
espermatozóides.5
A infertilidade provocava sentimentos de incompetência, frustração e baixa
auto-estima.
O
fracasso
no
projeto
parental
poderia
provocar,
inclusive,
desagregação familiar. Nesse contexto, surge a reprodução assistida, como meio de
concretizar o desejo de ter filhos por aqueles que sofrem do problema.
Comprovada historicamente, a primeira tentativa de reprodução artificial
envolvendo um ser humano ocorreu em 1790. Sem obter êxito, o médico inglês John
Hunter realizou uma inseminação artificial em mulher com o sêmen de seu marido. O
primeiro experimento de sucesso ocorreu em 1838, com a introdução de líquido
seminal no canal cervical da mulher, experiência realizada pelo ginecologista francês
Jaime Marion Sims. Em 1884, o médico inglês Pancoast realizou a primeira
inseminação artificial heteróloga, ao introduzir gameta masculino de um doador na
cavidade uterina da mulher, de maneira artificial.
Em 1910, Elie Ivanov descobriu uma nova possibilidade de conservação do
líquido seminal através de seu resfriamento, dando origem aos bancos de sêmen, os
quais surgem como a solução para os casais que têm dificuldade para ter filhos por
fatores masculinos6.
O primeiro ser humano originado de uma concepção concretizada fora do
corpo humano nasceu em 25 de julho de 1978, na Inglaterra.
Foi o primeiro fato
renomado envolvendo a reprodução humana assistida, principalmente pela
repercussão que gerou. Louise Brown, o primeiro bebê de proveta (test tube baby)
do mundo. A mesma técnica só alcançou o sucesso no Brasil em 1984, quando
nasceu, pelo mesmo método, Anna Paula Caldeira, em 07 de outubro daquele ano.
5
6
MACHADO, Maria Helena. Reprodução humana assistida – controvérsias éticas e jurídicas.
Curitiba: Juruá, 2006, p. 22.
GRACIANO, L. L. Reprodução humana assistida: determinação da paternidade e o anonimato do
doador. In: X SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA E VI MOSTRA DE PESQUISA DA PUCPR,
2002, CURITIBA. Caderno de Resumos da PUC-PR. Curitiba: Pró Reitoria de Pesquisa e Pós
Graduação da PUC-PR, 2002. p. 64.
5
Ainda ao longo do ano de 1978, além do nascimento de Louise Brown, outra
técnica foi desenvolvida, dessa vez pelos irmãos médicos Randolph W. Seed e
Richard W. Seed. Consiste no transplante do embrião proveniente de uma mulher
para outra, que passou a ser chamada de mãe substituta ou mãe de aluguel. Em
1984, outro grande avanço foi registrado na área da biogenética, com o nascimento
do primeiro bebê (Zoe Leyland), gerado a partir de embrião criopreservado na
Austrália, em 1984.
Ao longo dos anos, as técnicas de reprodução assistida foram desenvolvidas
e se tornaram mais específicas para cada tipo de infertilidade. A medicina atual
conta com diversos procedimentos em termos de reprodução assistida, através de
técnicas como a inseminação artificial e a fertilização in vitro.
3 A LEGISLAÇÃO ACERCA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA
A problemática em decorrência da carência legislativa sobre a reprodução
humana assistida exige urgência na resolução dos problemas que advêm dessa
deficiência legal. Existe, hoje, somente uma abordagem superficial sobre questões
relacionadas, de onde é possível depreender a autorização dos procedimentos.
Porém, essa conclusão é decorrência da ausência normativa acerca do tema, e não
da proibição quanto a utilização das técnicas.
3.1 ASPECTOS JURÍDICOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA
Sob o aspecto das questões legais os progressos científicos oriundos da
genética e da técnica aplicada à reprodução humana assistida permitiram ao homem
dominar um setor até então regido pelas leis naturais.
Como ciência, o Direito existe com o propósito primordial de regular as
relações sociais. Porém, o mundo dos fatos é mais dinâmico que o próprio Direito e,
em especial, que a legislação. O acesso mais amplo do grande público a técnicas
inicialmente restritas a uma minoria, tem atingido os princípios do Direito,
demonstrando quão delicada é a estrutura de uma ciência que se passava por
sólida, duradoura e inquestionável.
6
Diante do novo conflito, não basta acenar com os argumentos da lacuna ou
da incompletude da ordem jurídica; o judiciário, por meio do magistrado, tem o dever
de decidir os litígios que se apresentam a sua apreciação. A lei deve assegurar e
modelar uma orientação social da prática médica, a fim de evitar possíveis abusos.7
Embora não exista lei específica que regulamente a técnica de reprodução
humana assistida, existem dezenas de dispositivos legais que disciplinam, ainda que
de forma dispersa e lacunosa, alguns aspectos de sua prática. Por vezes, estas
normas aparentam ser contraditórias entre si, gerando insegurança e demonstrando
a necessidade de uma regulamentação que unifique a legislação.
3.2 A LEGISLAÇÃO NO BRASIL
O Código Civil de 1916 determinava, em seu artigo 338, serem presumidos,
concebidos na constância do casamento, os filhos nascidos 180 dias, pelo menos,
depois de estabelecida a convivência conjugal. Os nascidos dentro dos 300 dias
subsequentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite ou anulação,
acrescentou mais três causas de presunção de paternidade abordando as técnicas
de reprodução assistida. O legislador, para o Código Civil atual, adequou as normas
aos avanços científicos, imprevistos anteriormente, enfocando a possibilidade de
nascimento de filho através das técnicas de reprodução medicamente assistida
homóloga, heteróloga e dos embriões excedentários em seu artigo 1.587.
Entretanto, os dispositivos acrescidos ao dispositivo legal refletiram mais
dúvidas do que soluções. Aspectos civis importantes deveriam ter sido atribuídos
como novidade à matéria foram omitidos, sendo necessária a regulação da matéria
através de lei específica, para que as novidades introduzidas pela biotecnologia
tenham suas lacunas jurídicas supridas.
7
ECIO JUNIOR, Perin. Aspectos jurídicos da reprodução humana assistida em face do meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/351
0/aspectos-juridicos-da-reproducao-humana-assistida-em-face-do-meio-ambiente-ecologicamenteequilibrado/3>. Acesso em: 29 jun. 2011.
7
Neste contexto legislativo, na esfera deontológia, o Conselho Federal de
Medicina, visando equacionar os problemas advindos, publicou a Resolução nº
1.957 de 2010, de 06 de janeiro de 2011, em substituição à Resolução nº 1.358 de
1992, a qual, após 18 anos de vigência, recebeu algumas modificações,
principalmente no que se refere a procedimentos com material biológico
criopreservado (conservado sob condições de baixíssimas temperaturas) após a
morte e a possibilidade de pessoas se beneficiarem com as técnicas, independente
do estado civil ou orientação sexual. Introduziu Normas Éticas para utilização das
técnicas de reprodução assistida, baseada na Lei nº 3.268 de 1957 e no Decreto nº
44.045 de 1958. Todavia, essa é uma resolução dirigida e aplicada aos profissionais
médicos, sem previsão de qualquer sanção penal para condutas.
A Resolução nº 1.957 de 2010 prevê que terão um papel auxiliar as técnicas de
reprodução humana assistida, somente devendo ser utilizadas quando restarem
infrutíferas os métodos terapêuticos. Portanto, um profissional não pode utilizar o
procedimento porque um casal, embora fértil, deseja ter uma gestação múltipla. É
vedada a utilização das técnicas para seleção de sexo ou qualquer característica
biológica do filho, com exceção da possibilidade de existirem doenças ligadas ao sexo.
É de extrema importância, também, a informação clara e precisa, devendo o
paciente firmar documento de consentimento informado, no qual constará a técnica
que será empreendida, os resultados obtidos com sua utilização, as implicações
biológicas, jurídicas, éticas e econômicas.8
Deste modo, o Código Civil de 2002 atentou a certos avanços científicos,
como a reprodução humana assistida, se omitindo de regularização específica,
restando as lacunas jurídicas refletidas pela falta de especificação quanto às
novidades desses progressos.
4 O DIREITO À ORIGEM GENÉTICA DO FILHO GERADO ATRAVÉS DA
REPRODUÇÃO ASSISTIDA E O DIREITO À INTIMIDADE DO DOADOR DO
MATERIAL GENÉTICO
8
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. Curitiba: Juruá, 2011, p. 59.
8
4.1 O CONFLITO DOUTRINÁRIO ACERCA DO DIREITO À INTIMIDADE GENÉTICA
DO DOADOR FRENTE AO DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA
Com a doutrina divergente acerca do tema que envolve a reprodução humana
assistida, cabe entendimento de que, diante da complexidade da matéria, há
necessidade de lei específica, uma vez que a única regulamentação existente
acerca do tema é a Resolução do Conselho Federal de Medicina de 2010. O
confronto entre aqueles que defendem a prevalência do anonimato do doador do
material genético, e os que se posicionam pelo direito à identidade genética da
pessoa gerada pela técnica de reprodução assistida heteróloga reforça a
necessidade de uma regulamentação específica.
Segundo Albertino Daniel Melo a criança gerada por reprodução assistida não
perderia sua identidade por não ter conhecimento de sua origem genética, pois, com
a afirmação dos direitos de personalidade, certo é que a identidade se altera com o
esforço pessoal próprio, ganhando nova imagem, foros de honra, e de intimidade.9
O anonimato, portanto, seria uma forma de incentivar a doação, justamente
por sua garantia de ausência de qualquer responsabilidade do doador para com o
gerado. Somente devido à garantia do anonimato a pessoa pôde nascer, pois, caso
o contrário, não teria havido a doação.10
Em outro sentido, o direito à identidade genética é defendido com o
argumento principal dos graves transtornos psicológicos que geraria para o filho o
desconhecimento da suas origens, no caso de descobrir que não é filho biológico de
seu pai e que está impossibilitado de conhecer a verdadeira origem, ou, por
exemplo, a questão dos impedimentos matrimoniais e das enfermidades genéticas.11
9
MELO, Albertino Daniel de. Filiação biológica: tentando diálogo direito-ciências. In: LEITE, Eduardo
de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade. DNA como meio de prova da filiação. Rio
de Janeiro: Forense, 2000, p. 2.
10
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. Curitiba: Juruá, 2011, p. 147.
11
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. Curitiba: Juruá, 2011, p. 151.
9
Tycho Brahe Fernandes sustenta a idéia de que o filho concebido através de
técnica de reprodução assistida poderá investigar sua paternidade e os
responsáveis pela guarda dos dados do doador de sêmen deverão fornecê-los em
segredo de justiça. Segundo o autor, o direito ao reconhecimento da origem genética
é um direito personalíssimo da criança, “não sendo passível de obstaculização,
renúncia ou disponibilidade por parte da mãe ou do pai”.12
Defende a tese de que o direito ao anonimato do doador fere o direito
personalíssimo da criança gerada pela técnica de reprodução humana assistida.
Para Alejandro Bugallo Alvarez, embora reconhecendo a importância do novo
conceito, o juízo de paternidade biológica não foi substituído pela teoria da
paternidade afetiva e, portanto, não se poderia afirmar que a paternidade afetiva
comporte a necessidade e o direito da pessoa, nascida através da técnica de
reprodução assistida, de buscar sua origem genética, pelo menos quando adquire a
maioridade.
Argumenta Reinaldo Pereira e Silva13 que foi eliminada a distinção entre
filhos, de qualquer natureza, com o advento da Magna Carta, em 1988, e destaca
que a regra do anonimato não possui base constitucional, pois se fundamenta,
apenas, na Resolução do Conselho Federal de Medicina de 2010. Portanto o filho
concebido mediante as tecnologias da reprodução assistida poderá propor ação de
investigação de paternidade contra os supostos doadores de gametas.
O doutrinador afirma ainda que existiriam duas motivações jurídicas para
tanto: o conhecimento da ascendência biológica ser um direito garantido a todos os
filhos, sem exceção, por prerrogativas como a indisponibilidade e imprescritibilidade
dos interesses envolvidos em sede familiar e, também, porque ninguém seria
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
12
FERNANDES, Tycho Brahe. A reprodução assistida em face da bioética e do biodireito: aspectos
do direito de família e do direito das sucessões. Florianópolis: Diploma Legal. 2000, p. 85.
13
SILVA, Reinaldo Pereira e. Introdução ao biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto
da concepção humana. São Paulo, LTr. 2002, p. 318.
10
Guilherme Calmon Nogueira da Gama compara o filho concebido pela técnica
de reprodução humana assistida de forma heteróloga com o filho adotado. Entende
que o sigilo em relação ao doador para com as pessoas envolvidas pela reprodução
assistida deve ser mantido. Entretanto, os princípios do sigilo deverão curvar-se em
prol do adotado ou do filho oriundo da técnica de reprodução heteróloga em razão
do Direito Brasileiro reconhecer o direito à identidade, à privacidade e à intimidade,
proporcionando à pessoa o acesso às informações acerca de sua origem biológica,
não pela curiosidade, mas para resguardar sua existência e se proteger contra
eventuais doenças hereditárias ou genéticas.
O conflito doutrinário acerca do direito à intimidade genética do doador frente
ao direito à identidade genética é uma questão geradora de muita polêmica, pois
envolve direitos fundamentais de várias ordens. De um lado, o direito dos doadores
de preservarem o anonimato – de acordo com o princípio do direito à intimidade e à
privacidade -, de outro, o direito das pessoas geradas pela reprodução heteróloga de
buscarem a formação de sua identidade pessoal, com reflexos importantes em sua
integridade físico-psíquica.
4.2 DO DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA E À IDENTIDADE PESSOAL
O direito à identidade genética e direito à identidade pessoal, segmentos do
direito da personalidade, compõem um conjunto de bens tão próprio do individuo
que podem chegar a se confundir com ele próprio. Eles constituem a manifestação
da personalidade do sujeito.14
A certeza da identidade genética tem preponderância ímpar para a pessoa
que busca a sua origem e esse direito não importa em desconstituição da filiação
jurídica ou socioafetiva, pela enfatização, nos dias de hoje, da desbiologização da
paternidade.
4.2.1 Direito à identidade genética
14
BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade – De acordo com o Novo Código Civil. São
Paulo: Atlas, 2005, p. 24.
11
A identidade genética corresponde à dimensão da individualidade biológica
do indivíduo, ao genoma de cada ser humano. O direito à identidade genética surge
como um bem jurídico fundamental, portanto, objeto de proteção constitucional. Os
avanços da engenharia genética provocam o despertar de uma nova concepção de
Direito Constitucional, uma vez que afeta diretamente o significado das expressões
direitos
fundamentais
e
dignidade
da
pessoa
humana,
gerando,
ainda,
consequências no direito de filiação.15
O direito ao conhecimento da origem genética é personalíssimo e, por
conseguinte, indisponível e irrenunciável. O direito à identidade genética, baseado
no princípio da dignidade da pessoa humana, busca positivação e normatização
como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
O desenvolvimento da engenharia genética propiciou a obtenção da
decodificação do genoma humano. Algo que a princípio parecia impossível, foi
transformado em realidade. Juntamente com esta descoberta da ciência, surgem
questões concernentes à identidade genética e a identidade pessoal do ser humano
e, consequentemente, novas indagações ao direto, principalmente no plano do
direito constitucional.
O conceito de identidade genética corresponde às dimensões da
individualidade biológica de cada indivíduo, ou seja, “ao genoma de cada ser
humano e as bases biológicas da sua identidade. Salvaguarda-se a constituição
genética individual”.16
É considerada uma expressão da dignidade humana a identidade genética,
que busca a consagração dentro do ordenamento jurídico. É um bem fundamental a
ser tutelado e consagrado pelo Direito Constitucional, abrangendo debates em torno
do reconhecimento da origem genética do ser humano como um direito de
personalidade do indivíduo.
15
16
SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes; THIESEN, Adriane Berlesi. O direito de saber a nossa
história: identidade genética e dignidade humana na concepção da bioconstituição. Revista Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, n. 7, p. 35, jan. 2010.
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A identidade genética do ser humano. Bioconstituição:
bioética e direito. Disponível em:<http://www.gontijo- familia.adv.br/2008/artigos_pdf/Jose_Alfredo_
de_Oliveira_Baracho/Identidadegenetica.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2011.
12
O discurso jurídico-constitucional em torno da identidade genética que
propiciou o surgimento da bioconstituição como um conjunto de normas com base
na tutela da vida, na identidade e integridade das pessoas, provoca ainda outro
raciocínio que compreende o direito ao conhecimento da origem histórica do ser
humano com contornos no direito de filiação, pois engloba não apenas o direito à
investigação da identidade genética, mas também à identidade pessoal do indivíduo
como um ser único, dotado de direitos e deveres, em busca do reconhecimento de
suas origens genética e histórica.17
Com o advento da utilização das técnicas de reprodução artificial assistida,
especificamente, no caso da reprodução heteróloga, há um vazio jurídico nas
instituições estruturais do Direito como: família, filiação e direitos sucessórios e há
ampla discussão acerca do direito à identidade genética da pessoa gerada pela
técnica.
Entre os que defendem o direito à identidade genética, Maria Clara Osuma
Diaz Falavigna e Edna Maria Farah Hervey Costa afirmam não mais ser admitida, no
ordenamento brasileiro, a vedação do acesso de uma pessoa às suas origens, sob
pena de violação dos direitos de personalidade, essencialmente da integridade e da
dignidade.
Nesse sentido, também discorre Belmiro Pedro Welter que afirma não ser
importante a diferenciação entre reprodução natural ou medicamente assistida. Em
qualquer caso, os filhos e os pais possuem o direito de investigar e, até mesmo,
negar a paternidade biológica, como parte integrante de seus direitos de cidadania e
dignidade da pessoa humana. Em caso de interesse do filho, na reprodução humana
heteróloga, o anonimato deveria ser desocultado, uma vez que não participou do
acordo entre os doadores e os receptores.
Defende que a investigação da
paternidade permitiria o conhecimento da ancestralidade, da origem, da identidade
pessoal, impedindo o incesto, preservando os impedimentos matrimoniais e evitando
17
SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes; THIESEN, Adriane Berlesi. O direito de saber a nossa
história: identidade genética e dignidade humana na concepção da bioconstituição. Revista Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba n. 7, p. 37, jan. 2010.
13
enfermidades hereditárias. Portanto, também ao doador caberia o direito da
investigação de paternidade.18
Segundo Karla Corrêa Cunha, o instrumento da ação de investigação de
paternidade não é o mais adequado para a busca da ascendência genética nos
casos de reprodução assistida, em especial por passar a idéia errônea de que a
origem genética confunde-se com o instituto da paternidade.19
Portanto, mesmo com as divergências doutrinárias sobre o direito à
identidade genética e o quanto isso afetaria o direito à identidade pessoal do
indivíduo, inegável que, embora a pessoa gerada por procedimentos medicamente
assistidos apresente algumas peculiaridades, não deixa de ser detentora dos
mesmos direitos que as demais.
4.4 DIREITO À INTIMIDADE GENÉTICA
Sempre presentes ao longo da história do homem, a privacidade e a
intimidade, tiveram importâncias distintas em diferentes épocas ao longo dos
tempos. A intimidade passou de privilégio de uma minoria, relacionando-se com a
cultura e a propriedade, a um direito universal, disposto na Declaração dos Direitos
Humanos de 1948.
No plano jurídico-constitucional, foi estabelecida uma conexão entre o artigo
da intimidade e o conjunto de direitos e bens jurídicos constitucionalmente
protegidos. O direito à intimidade, derivado da dignidade da pessoa, protege uma
necessidade ou um bem básico para a livre autodeterminação individual.20
O direito de intimidade possui grande importância nas relações familiares e na
vida privada, e talvez encontre nestas ocasiões a sua maior aplicação. Presentes
18
WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 231.
19
CUNHA, Karla Corrêa; FERREIRA, Adriana Moraes. Reprodução humana assistida: direito à identidade
genética x direito ao anonimato do doador. Publicado em: 11 dez. 2008. Disponível em:
<http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 04 jul. 2011.
20
HAMMERSCHMIDT, Denise. Intimidade genética e direitos da personalidade. Curitiba: Juruá,
2008, p. 94.
14
situações sentimentais, qualquer intromissão externa deve ser realizada com
cautela. A privacidade do indivíduo deve ser respeitada pelo Estado, bem como por
toda a sociedade, estando o respeito à intimidade de qualquer indivíduo diretamente
vinculado à dignidade da pessoa humana.
Com relação à intimidade genética, define Denise Hammerschmidt tratar-se
“do direito a determinar as condições de acesso à informação genética”.21 O direito
do indivíduo de decidir por si mesmo sobre a utilização de seus dados médicos e
genéticos, implicaria o direito de poder aceder aos mesmos, controlar sua existência
e autorizar sua revelação.
É garantida, pelo inciso X do artigo 5º da Constituição Federal de 1988,22 a
inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, e da imagem da pessoa,
assegurando ainda, indenização pelo dano moral ou material decorrente dessa
violação. É considerada parte da intimidade da pessoa o sigilo de dados, na relação
entre o laboratório que coleta o material genético e o doador, uma vez que se trata
da proteção da vida íntima da pessoa, seus familiares e amigos, que integra o
conceito de vida privada e, portanto, inviolável.23 Ademais, o indivíduo possui a
garantia do sigilo médico, nos termos no artigo 102 do Código de Ética Médica,24
que só pode ser violado ao se averiguar a presença de justa causa.
Por justa causa, permitindo a quebra do sigilo médico, Genival Veloso de
França entende ser o interesse de ordem moral ou social que autoriza o não
cumprimento de uma norma25. Entretanto, necessário que os motivos apresentados
sejam relevantes para essa violação. Cabe salientar, contudo, que delimitar o que
21
HAMMERSCHMIDT, Denise. Intimidade genética e direitos da personalidade. Curitiba: Juruá,
2008, p. 96.
22
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
23
OLIVEIRA, Deborah Ciocci Álvares de; BORGES JR., Edson. Reprodução assistida: até onde
podemos chegar? Compreendendo a ética e a lei. São Paulo: Gaia, 2000, p. 35.
24
Código de Ética Médica, Art. 102 – é vedado ao médico: Revelar fato de que tenha conhecimento em
virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do
paciente.
25
FRANÇA, Genilval Veloso de. O segredo médico e a nova ordem bioética. In: BARBOZA, Heloisa
Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (Org.). Temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar,
2001.
15
vem a ser justa causa é medida subjetiva, e que poderá vir a ofender o sigilo
constitucionalmente garantido ao indivíduo.
Portanto, com proteção constitucional, é resguardado e inviolável o direito à
intimidade da pessoa, assim como o direito a sua identidade genética. Todavia, esse
direito pode ser relativizado caso existam motivos relevantes e que justifiquem a
violação da intimidade.
5 A COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS FORMAS DE RESOLUÇÃO
DO CONFLITO
O direito à identidade genética do filho gerado por reprodução humana
assistida e o direito ao anonimato do doador do material genético são vertentes de
dois direitos fundamentais oriundos da Carta Magna, quais sejam, o direito à
personalidade, congregado, ainda, com o direito à igualdade e o direito à intimidade.
Portanto, para encontrar solução para o conflito existente entre esses dois direitos, é
necessário, primeiro, verificar como solucionar os potenciais conflitos envolvendo
direitos fundamentais.26
5.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SEU LIMITE
CONSTITUCIONAL À TÉCNICA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA
É fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa
humana, conforme previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 198827.
É o princípio máximo, ou princípio dos princípios.28 Pela primeira vez uma
Constituição Brasileira o elege como fundamento, elevando-o como principal base
do sistema vigente e o último pilar da defesa dos direitos individuais.29
26
CUNHA, Karla Corrêa; FERREIRA, Adriana Moraes. Reprodução humana assistida: direito à
identidade genética x direito ao anonimato do doador. Publicado em: 11 dez. 2008. Disponível em:
<http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 04 jul. 2011.
27
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
28
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Coords.). Manual de direito
das famílias e das sucessões. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.
29
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. Curitiba: Juruá, 2011, p. 36.
16
Ingo Wolfgang Sarlet define como
o reduto inatingível de cada indivíduo e, neste sentido, última fronteira
contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a
impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias
fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite
30
intangível pela dignidade humana.
Uma vez tendo o poder do Estado como meta a promoção de uma vida digna
para todas as pessoas, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe limites a
sua atuação, de modo que o Estado não pode praticar atos que a violem. Por outro
lado, impõe também limites nas relações entre particulares, não permitindo
comportamentos que violem a dignidade.
Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz ressalta que a garantia
constitucional da dignidade humana é a base de toda a bioética, e, por conseguinte,
o respeito à pessoa humana manifesta-se como limitador de qualquer legislação que
venha a surgir sobre reprodução humana assistida e como limite à atuação do
profissional, que não pode tratar a pessoa como meio para lucrar financeiramente,
tampouco para obter resultados em uma pesquisa científica utilizando-a como
cobaia, mas sim, tratá-la com qualidade e respeito.31
Portanto, o princípio possui um valor supremo, indissociável de qualquer
outro, atuando como limitador de situações delicadas como o caso dos limites que
impõe a utilização das técnicas de reprodução assistida, tanto em relação ao agir
profissional, quanto aos limites ético-legais referente a essa tecnologia.
5.2 A COLISÃO ENTRE DOIS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A carência de legislação específica que regulamente as técnicas de
reprodução humana assistida gera instabilidade, em virtude das celeumas jurídicas
30
31
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 124.
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. Curitiba: Juruá, 2011, p. 38.
17
que são erguidas com a utilização dessas técnicas, destacando-se o conflito entre o
direito ao anonimato do doador e o direito à identidade genética.
O direito ao anonimato do doador do material genético e o direito à identidade
genética do filho gerado por reprodução humana assistida são produtos de dois
direitos fundamentais encontrados na Constituição Federal, quais sejam, o direito à
intimidade e o direito à personalidade. Desse modo, descobrir a resposta para o
choque existente entre esses dois direitos, só é possível, após a análise da solução
dos conflitos envolvendo direitos fundamentais.
Partindo da premissa de que os direitos fundamentais em questão têm base
no princípio da dignidade da pessoa humana, aplicável a mesma forma de solução
utilizada quando o conflito discutido envolve princípios. Embora os direitos
fundamentais não sejam tecnicamente princípios, pois eles são pré-existentes, ou
seja, são valores que, ao traduzir em norma constitucional, ganham a roupagem de
princípios
fundamentais,
por
terem
sido
historicamente
objetivados
e
progressivamente introduzidos na consciência jurídica e encontrarem uma recepção
expressa ou implícita no texto constitucional, como a dignidade da pessoa humana,
soberania nacional, direitos humanos, são direitos destinados a preservar a vida
humana dentro dos valores de liberdade e dignidade, não sendo possível a exclusão
de nenhum destes direitos, em caso de conflito, uma vez que inexiste qualquer
espécie de hierarquia entre eles.
A solução da antinomia entre princípios constitucionais reside na ponderação
e na harmonização. Portanto, havendo colisão entre dois ou mais direitos
fundamentais é imprescindível buscar sempre minimizar o prejuízo dos direitos
envolvidos, tendo em vista que os mesmos não poderão ser excluídos, uma vez esta
colisão não indicar que estes direitos são contrários uns aos outros, sendo apenas
opostos quando analisados em casos concretos.
Na colisão de direitos fundamentais devem ser aplicados quatro princípios,
que poderão ser utilizados como parâmetros para que se estabeleça prevalência de
um ou de outro.
São eles unicidade da Constituição, o princípio da
18
proporcionalidade, o princípio da razoabilidade e o princípio da dignidade da pessoa
humana.32
O princípio da unidade da Constituição exige a coordenação e combinação
dos bens jurídicos em conflito com o escopo de evitar o sacrifício total de uns em
relação aos outros. É utilizado um juízo de ponderação, o qual, ao ser aplicado, visa
alcançar uma interpretação harmônica da Constituição para indicar qual dos direitos
fundamentais em conflito deve prevalecer.33
O princípio da proporcionalidade, utilizado como um instrumento para
estabelecer os limites de cada bem jurídico constitucionalmente tutelado, permite a
ponderação e a harmonização destes bens, definindo qual dos direitos fundamentais
em questão prevalecer. A análise de, no caso concreto, quais os princípios que
orientam os direitos conflitantes em questão, mensurando-os, no sentido de indicar
qual dos direitos conflitantes é o mais adequado.34
O princípio da razoabilidade é uma diretriz de bom-senso aplicada ao Direito.
No qual é essencial diante do conflito entre direitos fundamentais, uma vez que, em
virtude da impossibilidade de exclusão de um deles, é necessário que o intérprete,
baseado no bom-senso comum, pondere qual deles deve prevalecer no caso
concreto.35
Para Humberto Ávila36 os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade
não são, tecnicamente, princípios, porque não possuem, ínsitos em si, um valor.
Seriam postulados normativos, pois estruturam a aplicação de outros princípios. Os
32
33
34
35
36
PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução assistida hereróloga: direito ao conhecimento da
identidade genética. Recanto das Letras, São Paulo, 30 nov. 2007. Disponível em:
<www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/720659>. Acesso em: 07 jul. 2011.
PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução assistida hereróloga: direito ao conhecimento da
identidade genética. Recanto das Letras, São Paulo, 30 nov. 2007. Disponível em:
<www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/720659>. Acesso em: 07 jul. 2011.
PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução assistida hereróloga: direito ao conhecimento da
identidade genética. Recanto das Letras, São Paulo, 30 nov. 2007. Disponível em:
<www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/720659>. Acesso em: 07 jul. 2011.
PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução assistida hereróloga: direito ao conhecimento da
identidade genética. Recanto das Letras, São Paulo, 30 nov. 2007. Disponível em:
<www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/720659>. Acesso em: 07 jul. 2011.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 81.
19
postulados não impõem a promoção de um fim, mas estruturam a aplicação do
dever
de
promover
um
fim,
além
de
não
prescreverem
indiretamente
comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a
normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Quanto à análise dos
postulados de razoabilidade e de proporcionalidade, o autor defende:
está longe de exigir do aplicador uma mera atividade subsuntiva. Eles
demandam, em vez disso, a ordenação e a relação entre vários elementos
(meio e fim, critério e medida, regra geral e caso individual), e não um mero
exame de correspondência entre a hipótese normativa e os elementos de
fato. A possibilidade de, no final, requerer uma aplicação integral não
37
elimina o uso diverso na preparação da decisão.
Segundo Karla Corrêa Cunha e Adriana Moraes Ferreira:
os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade não estão previstos
expressamente na Constituição Federal, contudo, isso não lhes retira a
característica de serem princípios reguladores dos conflitos entre os demais
princípios e garantias fundamentais, tanto que os mesmos vêm sendo
frequentemente citados pelos Tribunais, já que viabilizam a observância do
devido processo legal, permitindo o funcionamento do Estado Democrático
38
de Direito e preservando os direitos e garantias fundamentais.
Por fim, quando não é possível uma solução desejada com a aplicação dos
três princípios anteriores, é necessário recorrer ao princípio da dignidade da pessoa
humana, uma vez que todos os direitos fundamentais têm como fim a proteção da
dignidade da pessoa humana, o valor da pessoa como motivo de existência de um
regramento jurídico, prevalecendo aquele que em maior grau a defenda.39
Dessa forma, na colisão de conflitos existentes entre princípios constitucionais
a tentativa deve ser sempre no sentido de diminuir ao máximo a lesão aos direitos
em questão, pois, diferentemente de normas antagônicas, eles podem existir no
mundo jurídico mutuamente, apenas não sendo aplicáveis a um mesmo caso
concreto.
37
38
39
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São
Paulo: Malheiros, 2003. p.83.
CUNHA, Karla Corrêa; FERREIRA, Adriana Moraes. Reprodução humana assistida: direito à
identidade genética x direito ao anonimato do doador. Publicado em: 11 dez. 2008. Disponível em:
<http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 04 jul. 2011.
PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução assistida hereróloga: direito ao conhecimento da
identidade genética. Recanto das Letras, São Paulo, 30 nov. 2007. Disponível em:
<www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/720659>. Acesso em: 07 jul. 2011.
20
5.3 OS PRINCÍPIOS E OS MEIOS DE SOLUÇÃO DOS CONFLITOS
Os princípios constitucionais são regras-mestras dentro do sistema positivo,
que fundamentam e sustentam a ordem jurídica, guardam os valores supremos e
basilares do ordenamento normativo de uma dada sociedade, uma vez que não
objetivam regular situações específicas, mas desejam lançar a sua força sobre todo
o mundo jurídico. Não constituem em meros programas ou linhas sugestivas da
ação do poder público ou da iniciativa privada, mas vinculam e direcionam essa
atividade, uma vez que dotados de eficácia jurídica vinculante.40
Em relação às normas jurídicas, podem ser entendidas como imperativos de
conduta pelos quais são estabelecidos os comportamentos necessários à
organização da convivência humana. São diretivas que norteiam o convívio social
sob determinados valores eleitos pela própria sociedade, com o objetivo de regular
situações específicas.41
Enquanto os princípios são normas com grau de abstração relativamente
elevado (generalidade), as regras são normas com grau de abstração relativamente
reduzido (especificidade). Os princípios gozam de certa indeterminabilidade na
aplicação ao caso concreto, enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta,
imediata.42
Segundo Humberto Ávila
43
decisiva diferenciação entre princípios e regras
ocorreu com o estudo de Ronald Dworkin44, ao afirmar serem as regras aplicadas ao
modo tudo ou nada (all-or-nothing), e no caso de colisão entre regras, uma delas
40
41
42
43
44
CRISTÓVAM, Jose Sergio da Silva. A resolução das colisões entre princípios constitucionais.
Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3682/a-resolucao-das-colisoes-entre-principiosconstitucionais/3>. Acesso em: 25 jul. 2011.
CRISTÓVAM, Jose Sergio da Silva. A resolução das colisões entre princípios constitucionais.
Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3682/a-resolucao-das-colisoes-entre-principiosconstitucionais/3>. Acesso em: 25 jul. 2011.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3 ed. Coimbra:
Almedina, 1998, p. 1086.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São
Paulo: Malheiros. 2003, p. 83.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 42.
21
deverá ser considerada inválida, ou seja: se a hipótese de incidência de uma regra é
preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou não
é considerada válida. Por sua vez, os princípios contêm fundamentos que devem ser
conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios e não
determinam absolutamente uma decisão. Portanto, os princípios, ao contrário das
regras, possuem uma dimensão de peso demonstrável na hipótese de colisão entre
eles, caso em que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe ao outro, sem
que este perca sua validade.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello seria mais grave do que a transgressão
de uma norma qualquer, a violação de um princípio jurídico, pois agride a todo o
sistema normativo:
A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais
grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do
princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema,
subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu
45
arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
Um princípio reconhecido pelo ordenamento constitucional não pode ser
declarado inválido, somente porque não aplicável a uma situação específica. Ele
apenas recua frente ao maior peso, naquele caso, de outro princípio também
reconhecido pela Constituição. A solução do conflito entre regras, em síntese, dá-se
no plano da validade, enquanto a colisão de princípios constitucionais no âmbito do
valor.46
É preciso considerar, na resolução da colisão entre princípios constitucionais,
as circunstâncias que cercam o caso concreto, para que, pesados os aspectos
específicos da situação, se chegue ao preceito mais adequado, determinando qual
dos interesses opostos possui maior peso no caso concreto.
Ao decidir pela utilização de determinado princípio constitucional, no confronto
deste com outros, em vista das circunstâncias do caso concreto, o magistrado deve
45
46
CRISTÓVAM, Jose Sergio da Silva. A resolução das colisões entre princípios constitucionais.
Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3682/a-resolucao-das-colisoes-entre-principiosconstitucionais/3>. Acesso em: 25 jul. 2011.
CRISTÓVAM, Jose Sergio da Silva. A resolução das colisões entre princípios constitucionais.
Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3682/a-resolucao-das-colisoes-entre-principiosconstitucionais/3>. Acesso em: 25 jul. 2011.
22
basear sua decisão não somente em convicções de foro íntimo, mas em argumentos
e razões jurídicas plenamente aceitas pela sociedade e consentâneas ao
ordenamento normativo vigente. Caso contrário, pode estar avançando a passos
largos para uma nefasta e deletéria substituição do primado da lei, como existia no
tradicional modelo formal-positivista, pelo primado das valorações subjetivas dos
juízes, sem parâmetros e critérios aferíveis e justificáveis para respaldar a atividade
jurisdicional.47
O Poder Judiciário possui grande responsabilidade, sobretudo das Cortes
Supremas, acerca do controle da constitucionalidade de leis restritivas de direitos,
bem como da solução de conflitos entre direitos fundamentais colidentes no caso
concreto
e
amparados
pela
Constituição.
A
ponderação
entre
princípios
constitucionais é tarefa árdua e significativa à manutenção da ordem constitucional
coesa.
Dessa forma, nos casos de conflitos existentes na hipótese de colisão entre
princípios, esses, diferentemente das regras, que se tornam inválidas com o
preenchimento de outra, no caso concreto, se tornam apenas sobrepostos sobre
outro, em determinado momento, sem a perda de sua validade completa.
Pelo princípio da ponderação dos resultados, deve ser examinado o grau de
satisfação e efetivação do mandamento de otimização que a decisão procurou
atender. Quanto mais alto for o grau de afetação e afronta ao princípio limitado pelo
meio utilizado, maior deverá ser a satisfação do princípio que efetivar.
Em razão da não existência de hierarquia entre princípios constitucionais, a
solução do conflito entre princípios se dará através da prevalência de um sobre o
outro, de acordo com o peso que cada um possui no caso concreto.
Conforme Humberto Ávila “os princípios estipulam fins a serem perseguidos,
sem determinar, de antemão, quais os meios a serem escolhidos. No caso de
47
CRISTÓVAM, Jose Sergio da Silva. A resolução das colisões entre princípios constitucionais.
Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3682/a-resolucao-das-colisoes-entre-principiosconstitucionais/3>. Acesso em: 25 jul. 2011.
23
entrecruzamento entre dois princípios, várias hipóteses podem ocorrer”.48 Quando
princípios apontam para finalidades alternativamente excludentes, como é o caso do
princípio da intimidade do doador do material genético em face do princípio de
personalidade da pessoa gerada, a realização do fim instituído por um princípio
exclui a realização do fim estipulado pelo outro e essa colisão só pode ser
solucionada com a rejeição de um deles. Essa situação é semelhante ao caso de
colisão entre regras.
Para José Sérgio da Silva Cristóvam não há dificuldades na aplicação na lei
da colisão de princípios:
quando da colisão entre dois ou mais princípios constitucionais
reconhecidamente válidos em nosso sistema normativo, deve-se dar
prevalência ao princípio de maior peso, levando-se em conta as
circunstâncias do caso concreto, em detrimento dos demais. Em uma
relação de precedência condicionada, o princípio constitucional de maior
densidade, em determinado caso, prevalece sobre os demais. A dificuldade
reside em fixar critérios capazes de nortear a decisão pela precedência do
49
princípio constitucional que deve ser aplicado.
De acordo com o autor, a decisão pela maior densidade valorativa de
determinado princípio constitucional, em detrimento de outro, deve ser pautada por
critérios razoáveis, racionais, capazes de serem justificados dentro de uma
racionalidade lógica, ainda que não se possa afastar a considerável carga subjetiva
característica da decisão.
A interpretação dos princípios em colisão no caso concreto deve ser feita
atentando as circunstâncias específicas em análise, de forma que a solução
encontrada seja aquela na qual a dignidade da pessoa humana esteja melhor
representada. Ou seja, os argumentos usados para cada posição podem ter peso
distinto em face de um caso determinado, na medida em que o significado da norma
vai ganhar o sentido que melhor represente o valor constitucional em questão.
48
49
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 53.
CRISTÓVAM, Jose Sergio da Silva. A resolução das colisões entre princípios constitucionais.
Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3682/a-resolucao-das-colisoes-entre-principiosconstitucionais/3>. Acesso em: 25 jul. 2011.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dos anos as técnicas de reprodução assistida foram desenvolvendose e tornaram-se cada vez mais específicas para cada tipo de infertilidade. A
medicina atual conta com diversos procedimentos em termos de reprodução
assistida através de técnicas como a inseminação artificial e a fertilização in vitro.
Dentre as modalidades de reprodução assistida, a fecundação homóloga é
aquela na qual se utiliza apenas os gametas (óvulo e esperma) do casal, a criança
terá informação do casal ao nascer. Na reprodução heteróloga, é utilizado gametas
de terceiros e a criança, então, terá apenas a informação genética de um dos pais e
do doador, ou de dois doadores, no caso de os dois gametas serem de terceiros.
Acerca da reprodução heteróloga, o dilema entre o sigilo do doador do
material genético frente ao direito do filho gerado pela técnica em ter conhecimento
de sua origem genética insurge uma questão ético-jurídica que divide a doutrina.
O direito de filiação assume novos contornos com a evolução da engenharia
genética, pois com as técnicas de reprodução medicamente assistida o indivíduo
busca no ordenamento jurídico o direito a ter conhecimento de sua identidade
genética, saber sua ascendência biológica. Em vista disso, suscitam-se novas
concepções jurídicoconstitucionais que visam proteger a identidade genética
individual de cada ser humano.
Atualmente, a doutrina e jurisprudência tendem a firmar um posicionamento
no sentido de que pai é aquele que educa, dá carinho, isto é, aquele que mantém
uma relação socioafetiva com o filho.
Assim, é possível que o doador de material genético utilizado na reprodução
assistida heteróloga não pode ser chamado a contribuir para o sustento
do concebido ou mesmo a prestar-lhe qualquer apoio emocional, já que inexiste
relação socioafetiva entre ambos.
25
Todavia, não pode ser totalmente desconsiderado o aspecto biológico que
reveste as relações familiares. Verifica-se, portanto, que o direito ao anonimato do
doador vai de encontro ao direito de qualquer ser humano de ter acesso à sua
origem genética.
A identidade genética, um direito de personalidade, é um bem jurídico
fundamental, que, pela sua importância e relevância, com o sustentáculo do
princípio da dignidade da pessoa humana, é elevado a posição de direito
fundamental.
São diversos os argumentos favoráveis ao sigilo do doador. Principalmente,
cabe destacar que o conhecimento da identidade do doador pode produzir
interferências negativas na relação familiar, atentando contra a instabilidade. Ainda,
que o doador pode reclamar direitos sobre o filho, e este, sobre o doador.
Embora o direito ao anonimato esteja firmado na premissa de que aquele que
doa o material genético age tão somente com objetivo solidário, a fim de auxiliar
outra pessoa que deseja conceber um filho, essa não prevalece diante da
prerrogativa do concebido de ter acesso à sua identidade genética. Isso ocorre vez
que o direito ao conhecimento da origem genética possui raízes mais profundas,
sendo direito de qualquer ser humano ter acesso à sua identidade genética, como
forma de conhecer elementos importantes formadores da sua personalidade e da
sua autodeterminação.
Outros argumentos podem ser suscitados na defesa do direito à identidade
genética, de forma a determinar a relativização do sigilo das informações. Por
exemplo, a probabilidade da existência de relações incestuosas entre irmãos ou
entre doador e filha, que desconhecem seus laços consanguíneos. Afinal, em um
mundo em que o progresso tecnológico tornou irrisórias as distâncias, não há como
impossibilitar que irmãos ou pai e filha se conheçam.
O conflito entre o direito ao anonimato do doador e o direito à identidade
genética, produtos de dois direitos fundamentais encontrados na Constituição
Federal, quais sejam, o direito à intimidade e o direito à personalidade, possui uma
26
carência de legislação específica que regulamente as técnicas de reprodução
humana assistida, acarretando em uma lacuna jurídica geradora de instabilidade.
Portanto, descobrir a resposta para o choque existente entre esses dois
direitos, só é possível após a análise da solução dos conflitos envolvendo direitos
fundamentais.
Ao contrário de normas antagônicas, princípios constitucionais podem existir
no mundo jurídico mutuamente, apenas não sendo aplicáveis em um mesmo caso
concreto. Assim, na colisão de conflitos existentes entre princípios constitucionais a
tentativa deve ser sempre no sentido de diminuir ao máximo a lesão aos direitos em
questão.
Desse modo, foi possível verificar que, na falta de legislação específica sobre
a matéria, para se chegar ao preceito mais adequado, determinando qual dos
interesses opostos possui maior peso no caso concreto, é necessário pesar as
circunstâncias do caso e os aspectos específicos da situação.
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