NOVOS SABERES E NOVAS INSTITUCIONALIDADES PARA A CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE NO MEIO DO MUNDO TROPICAL Marco Antonio Chagas (UNIFAP/Ciências Ambientais) Doutor em Desenvolvimento Socioambiental [email protected] Resumo Este artigo apresenta ensaios epistemológicos sobre o discurso da conservação da biodiversidade nos trópicos, com foco em experiências embrionárias de gestão das áreas protegidas do Amapá. Identifica significados de biodiversidade que coexistem e/ou se confrontam no mundo tropical. A conservação da biodiversidade segue uma tendência ainda hegemônica denominada “globalocêntrica”, mas se defronta com alternativas que se insurgem pelas práticas de gestão das áreas protegidas, incluindo a elaboração de planos de manejo e os consequentes conflitos suscitados pelo conhecimento científico, que se insinua “consiliente” diante do aparato institucional imposto para responder as questões afetas à perda da biodiversidade, rivalizado pelo reconhecimento de outras biodiversidades epistemologicamente construídas pelas experiências sociais de práticas alternativas de gestão das áreas protegidas e visões de mundo. Introdução A biodiversidade é uma área controversa e de conceito em permanente reinterpretação (SANTOS, 2005). O (não)entendimento sobre este conceito instiga campos de conhecimentos rivais que têm gerado perdas para a gestão da conservação da natureza nos trópicos, muito mais pelas indiferenças no trato do seu significado do que propriamente pela causa comum que os unem diante do desafio de construir a dimensão humana da biodiversidade. A ideia de que a ação humana representa uma ameaça à biodiversidade é aparent praticamente, não incorporadas aos processos de desenvolvimento local e regional (MEDEIROS; GARAY, 2006, p. 159). A literatura mantém registros que demonstram manifestação extremista de preservacionistas que se recusam a transpor as barreiras do conceito hegemônico da biodiversidade, por considerá-lo o único epistemologicamente adequado para a conservação da natureza: A presença de comunidades permanentes de extratores, indígenas ou não, dentro do núcleo de terras com a natureza preservada é antiética para a meta de conservação de longo prazo da área e, em muitos países, está em conflito com a definição legal de „parque nacional‟ e de outras categorias de proteção estrita (TERBORG; PERES, 2002, p. 336). As lições aprendidas ensinam que as áreas restritas para proteção da biodiversidade não podem ser consideradas à parte das sociedades que as mantêm. Essa máxima do “ecologismo dos pobres”1 é repleta de significados que estimulam a interpretação de experiências a partir de práticas e atores sociais que constroem conhecimentos alternativos. O campo de saberes conhecido como etnoconservação2 tem inserido as experiências locais no foco de outras possíveis interpretações para a conservação da biodiversidade nos trópicos, mas ainda são tímidos os relatos de tais experiências. Santos (2005) destaca que, para preservar a biodiversidade, faz-se necessário o conhecimento não científico e propõe “repensar o conhecimento científico em toda a sua diversidade à luz das suas possíveis relações com outros saberes não científicos que orientam a vida quotidiana das pessoas”. Qual o significado das indiferenças em torno da conservação da biodiversidade? Distinção entre as ciências? Manifestação hegemônica de um discurso sobre um tema “não controverso” e ratificado em instrumentos jurídicos globais? Não há indiferenças? O tema da biodiversidade pode ser traduzido em outras perspectivas a partir de práticas de conhecimento em diferentes escalas? Este artigo discute a conservação da biodiversidade a partir da interpretação do discurso de cientistas naturais, como do biólogo evolucionista Edward Wilson, e cientistas sociais, como o antropólogo Arturo Escobar e o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, tendo como foco as áreas protegidas criadas no Estado do Amapá. 1 Ecologismo dos pobres refere-se a uma das correntes do ecologismo identificada por Joan Martínez Alier (2007), caracterizada pela luta de grupos minoritários por justiça ambiental, por vezes motivada por conflitos ambientais em nível local, regional, nacional e global causados pelo crescimento econômico e pela desigualdade social. As outras correntes do ecologismo são “o culto à vida silvestre” com adeptos da natureza intocada, e “evangelho da ecoefiência”, grupo que defende o desenvolvimento sustentável e o controle dos impactos do crescimento econômico. 2 Existem poucos centros de pesquisa no Brasil dedicados a estudos no campo da etnoconservação e áreas protegidas. O Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade de São Paulo – NUPAUB-USP apresenta um considerável acervo de estudos sobre etnoconservação. O Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará – NAEA-UFPA tem desenvolvido estudos sobre comunidades tradicionais e biodiversidade na Amazônia. Ainda, como desdobramento do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – EICOS-UFRJ, desde 2005 é realizado o Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – SAPIS. Conservação da biodiversidade no Amapá As práticas de conservação da biodiversidade no Amapá foram direcionadas prioritariamente pelas politicas de criação de áreas protegidas e de combate ao desmatamento da floresta amazônica, não significando dissociação entre instrumentos e atuação institucional diante de um Estado historicamente percebido como isolado, territorialmente vazio e selvagem3. Nos idos dos anos 1980, numa conjugação de esforços da Secretaria Especial de Meio Ambiente da Presidência da República – SEMA/PR e do Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal – IBDF, particularmente motivado pela atuação institucional pioneira do biólogo Paulo Nogueira Neto e da engenheira agrônoma Maria Tereza Jorge Pádua, o Amapá teve parte de seu território transformado em áreas legalmente protegidas. Foram criadas no Amapá estações ecológicas, reservas biológicas e parques nacionais. Nos anos 1990 o conceito de corredores de biodiversidade foi introduzido como uma estratégia do componente de parques e reservas do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil – PPG74, e o ordenamento da criação de áreas protegidas no Brasil passou a seguir o cenário desenhado pelo workshop “áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade da Amazônia”, coordenado pelo Instituto Socioambiental - ISA, em Macapá, no ano de 1999. Como resultado dessas ações, a partir dos anos 2000, um conjunto de “big” áreas protegidas foi criado na região conhecida como Escudo das Guianas, dentre os quais, o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, no Amapá; a Reserva Biológica Maicuru e Estação Ecológica do Grão Pará, no Pará; e o Parque Amazônico da Guiana, na Guiana Francesa. A transformação do Escudo das Guianas em área protegida é uma meta da conservação da biodiversidade em escala global. Em 2002, com o objetivo de desmistificar o slogan de “áreas protegidas no papel”, foi criado o Programa Áreas Protegidas da Amazônia – ARPA, uma iniciativa do Governo Federal, coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente - MMA, com recursos de cooperação internacional e nacional estimados em US$400 milhões e execução em 15 anos. No Amapá, o ARPA creditou politicamente sua primeira ação, em 22 de agosto de 2002, quando da criação do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, um mês antes do programa ser lançado na Rio+10, na África do Sul (CHAGAS, 2008). Atualmente, o ARPA apoia a elaboração de planos de manejo de algumas áreas protegidas no Amapá, com prioridade para as áreas de proteção integral, como os Parques e Reservas. O Amapá apresenta cerca de 70% de seu território transformado em áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terras Indígenas) e alimenta simbolicamente o discurso de “O Estado mais 3 4 O termo “selvagem” corresponde ao significado do termo norte-americano “wilderness”. O PPG7 foi um programa de cooperação internacional executado na primeira década dos anos 2000, voltado para o combate as principais causas do desmatamento nas florestas tropicais brasileiras, sendo um de seus objetivos específicos a proteção da biodiversidade por meio da criação de Parques e Reservas. Preservado do Brasil”. Qual o significado das áreas protegidas para o Amapá? Trata-se da consolidação de uma política territorial global preservacionista? Para qual entendimento de conservação de biodiversidade se aplica o discurso da preservação e a prática dos atores locais? Enfoques epistemológicos sobre a conservação da biodiversidade O termo “diversidade biológica” foi cunhado por Thomas Lovejoy em 1980, enquanto que “biodiversidade” é um neologismo cunhado por Walter G. Rosen em 1985, durante a preparação do Fórum Norte-Americano sobre BioDiversidade, organizado pelo Conselho de Pesquisa em 1986. Rosen falou, mas não “cacarejou”, pois foi o biólogo evolucionista Edward Osborne Wilson que estampou o termo “Biodiversity” no relatório do fórum, publicado em 1988 nos EUA e em 1997 no Brasil. Edward Wilson tem o mérito de trazer ao público o termo “biodiversidade”. O Fórum realizado nos Estados Unidos reuniu “cientistas preservacionistas” para analisar o ritmo da destruição das florestas tropicais e a consequente extinção da biodiversidade, além de “alfinetar” comunidades científicas que compartilham de outros paradigmas: “Os políticos e cientistas sociais que questionam a extensão das atuais extinções estão apenas demonstrando sua profunda ignorância em ecologia; a modificação do hábitat e sua destruição e a extinção de populações e espécies andam de mãos dadas”, escreveu Ehrlich no relatório do Fórum (1997, p. 29). Sem perder de vista a assertiva de que a expansão populacional nos trópicos é um problema para a conservação da biodiversidade, o fórum caiu na tentação da máxima malthusiana ao concluir que “a preservação a longo prazo da biodiversidade irá depender de um controle populacional efetivo nos países tropicais do Terceiro Mundo” (CHALLINOR, 1997, p. 627). Mas, se as comunidades científicas rivalizam conhecimentos científicos, não científicos e outros alternativos, vem de Edward Wilson a proposta conciliatória. O cientista natural propõe “biologizar o social” como uma expressão de racionalidade para a conservação da biodiversidade: [...] segue-se que as ciências biológicas são essenciais para se alcançar a coerência entre todos os ramos do saber, das humanidades até descer às ciências físicas. A tarefa é um tanto facilitada pelo fato de que as disciplinas dentro da própria biologia tornam-se cada vez mais consilientes a cada ano (WILSON, 1999, p. 77). A proposta da “consiliência”, feita por Wilson, trata-se de uma manifestação metódica de conhecimento que busca aproximar as ciências sociais (ametódicas e ateóricas)5 das ciências naturais, representando uma espécie de unidade fundamental de todo conhecimento. Consiliência, para Wilson, representa um “salto conjunto” do conhecimento que permite a ligação de fatos com a teoria baseada em todas as disciplinas para criar uma base comum de explicação. 5 Na visão de Edward Wilson as ciências sociais não são capazes de construir metodologias de pesquisa e são incapazes de formular teorias verdadeiramente científicas. A única forma de estabelecer ou refutar a consiliência é através de métodos desenvolvidos nas ciências naturais, afirma Wilson (1999, p.7). Os conceitos associados à biodiversidade evoluíram das ciências naturais, sobretudo da biologia da conservação6, e como tal, influenciou a criação de instrumentos políticos voltados à gestão da natureza para os quais o conhecimento científico não oferece respostas para os problemas enfrentados pela incapacidade de controlar todas as variáveis que os integram, incluindo as incertezas decorrentes da lógica que instrui a visão de biodiversidade pelos diferentes atores sociais que a vivenciam. O modelo de conservação da biodiversidade praticado nos trópicos é uma construção derivada das ciências naturais, impregnada de concepções indolentes, positivistas, que impõem à racionalidade científica a responsabilidade de identificar responsáveis e punir as consequências impactantes das atividades humanas diante de uma conservação da biodiversidade inconteste. As ciências sociais, por sua vez, não têm ocupado o espaço de investigação sobre a conservação da biodiversidade nas áreas protegidas e, quando o faz, enquadra-se nas orientações preconcebidas de instituições que pouca importância lhes atribui nas tomadas de decisão. Santos (2005, p. 23) faz a seguinte crítica a esse respeito: É insustentável a situação de, por exemplo, as ciências sociais continuarem a descrever e interpretar o mundo em função de teorias, de categorias e de metodologias desenvolvidas para lidar com as sociedades modernas do Norte, quando a maioria das sociedades existentes não só apresenta características e dinâmicas históricas diferentes, como tem gerado as suas próprias formas de conhecimento das suas experiências sociais e históricas e produzido contribuições significativas para as ciências sociais, ainda que remetidas para as margens destas. Uma possível interpretação que possa confortar o dilema da biodiversidade sobre o domínio da verdade pelas comunidades científicas que a praticam tem inspiração Kuhniana: O argumento principal do trabalho de Kuhn era o de que a história da ciência apresenta um certo padrão e de que esse padrão pode ser explicado por referência à estrutura institucional da ciência, nomeadamente a forma como os cientistas profissionais baseiam as suas pesquisas em objetos consensuais, que Kuhn apelidou de paradigmas (MASOLO, 2010, p. 315). Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham e a comunicação entre comunidades distintas é árdua, frequentemente resultando em mal-entendidos e desacordos significativos (KUHN, 2011, p. 221). A pesquisa científica sobre biodiversidade oferece campos limitados de investigação voltados para outros conhecimentos que não se adequam àqueles enquadrados pelos interesses das ciências 6 A biologia da conservação é uma disciplina científica que nasceu no final dos anos 60, mesclando conhecimentos sobre biologia populacional, taxonomia, ecologia e genética, aplicada ao estudo sobre a perda da diversidade biológica (PRIMACK; RODRIGUES, 2001). naturais, como a quantificação da biodiversidade, causas e consequências de sua perda para o funcionamento dos ecossistemas e a verificação da relação entre a biodiversidade e os serviços providos pelos ecossistemas. As definições estabelecidas de biodiversidade não possibilitam novos objetos de pesquisas, pois estão fora das definições existentes na biologia e na ecologia. Pelo contrário, "biodiversidade" é a resposta dada a uma situação concreta que é, certamente, preocupante, mas que vai bem além das hipóteses formuladas pelo domínio científico (ESCOBAR, 1998). “Cada macaco no seu galho” à parte, Escobar (1998), comentado por Santos (2005), traz como contribuição a citação de que o discurso sobre a biodiversidade é, de fato, um conjunto de discursos em que se cruzam diferentes conhecimentos, culturas e estratégias políticas, a saber: 1. Na visão “globalocêntrica”, a biodiversidade apresenta concretos referenciais biofísicos e sustenta o discurso historicamente construído por uma complexa rede de atores, desde organizações internacionais de pesquisa e de fomento, a ONGs do Norte e movimentos sociais. O documento de referência do pensamento desta corrente é a Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB7, assinada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992 na cidade do Rio de Janeiro. 2. Existe uma perspectiva nacional do Terceiro Mundo sobre a conservação da biodiversidade que, sem questionar o discurso globalocêntrico, não obstante, procura negociar os termos dos tratados de biodiversidade e suas estratégias, principalmente quanto à soberania de acesso aos recursos genéticos, à dívida ecológica, e à transferência de recursos financeiros para o Terceiro Mundo. 3. A Biodemocracia é uma perspectiva progressiva defendida por ONGs do Sul, segundo a qual os valores dominantes da perspectiva globalocêntrica são formas de bioimperialismo. Ao reinterpretar as ameaças à biodiversidade, os defensores da biodemocracia deslocam a atenção do Sul para o Norte como a origem da crise da biodiversidade. Enfatizam o controle local dos recursos naturais como reconhecimento da base cultural da diversidade biológica. 4. Finalmente, a visão da biodiversidade pelos movimentos sociais que explicitamente constroem uma estratégia política para a defesa do território baseada na cultura e na identidade ligada a modos de vida associados a lugares. Apesar de ter muitos pontos em comum com a perspectiva das ONGs do Sul, são distintos, conceitual e politicamente, por ocupar uma posição diferente da rede da biodiversidade com interesses associados a projetos de vida e não apenas a defesa de recursos ou da biodiversidade. 7 Artigo 2º da Convenção sobre Diversidade Biológica, por exemplo, fornece a seguinte definição: "A diversidade biológica" significa a variabilidade entre os organismos vivos de todas as origens, incluindo, inter alia, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos dos quais fazem parte; compreende a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas". Escobar (1998) argumenta em defesa de uma visão de biodiversidade como uma construção de interfaces entre natureza e cultura, dando origem a uma vasta rede de comunidades e atores através dos quais os conceitos, políticas e, finalmente, culturas e ecologias são criticados, reconstruídos e negociados. O cientista natural José Márcio Ayres, referência em pesquisa sobre biologia da conservação de primatas na Amazônia, quando de sua experiência com uma área de proteção integral na Amazônia, mais tarde transformada em área de uso sustentável, assim traduziu a premissa do antropólogo Arturo Escobar: “Algumas pessoas ainda pensam que podem proteger as reservas somente com guardas, mas isto já se mostrou insuficiente. Um envolvimento mais amplo da população é necessário para a conservação ser um sucesso, além de investimentos a longo prazo em educação, saúde e participação política”. Ensaios sobre a conservação da biodiversidade no Amapá pelas práticas dos atores A conservação da biodiversidade, entendida apenas como uma construção hegemônica das ciências naturais e de instrumentos politicamente concebidos pelas instituições que a praticam, tem se desdobrado em ações preservacionistas que encontram dificuldades em se firmar nos trópicos diante da complexidade das visões de mundo e do significado da biodiversidade. No Amapá, a gestão das áreas protegidas segue a visão globalocêntrica de biodiversidade (SOARES; CHAGAS, 2009, p. 185), mas no dia-a-dia as instituições têm se apropriado de experiências e práticas que possibilitam conectar o conhecimento científico do modelo imposto, com outros conhecimentos concebidos a partir da reflexão epistemológica de diversos atores em busca de um novo pacto para conservação da biodiversidade. Os planos de manejo das áreas protegidas em elaboração apresentam encontros e desencontros entre roteiros institucionais programáticos e modos de vida, construindo perspectivas para discursão sobre a conservação da biodiversidade segundo diferentes visões. No caso do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, no Amapá, os pesquisadores que estudaram as questões indígenas e as populações locais para subsidiar a elaboração do plano de manejo da área protegida mostraram que a conservação da biodiversidade é mais complexa do que sugerem as visões dominantes, e que existem políticas alternativas para a conservação de áreas naturais para além dos roteiros. Tais roteiros, aliás, podem contabilizar metas institucionais cumpridas, mas também podem significar “nada”, quando avaliadas pela ótica dos valores e cultura local. Os acordos de pesca firmados pelos moradores da localidade do Sucuriju, na costa do Amapá, e a instituição responsável pela gestão da Reserva Biológica do Lago Piratuba para dirimir conflitos da pesca nos lagos da reserva ou “das pessoas”, é outra manifestação explícita de alternativas de conservação da biodiversidade para além da visão globalocêntrica estudada por Sautchuk (2007). Conclusões O escudo das Guianas, onde está localizado o Amapá, é considerado pelos globalocêntricos área de extrema importância para a conservação da biodiversidade e a sua transformação em Reserva da Biosfera destinada à proteção integral da natureza é uma meta em consolidação pela rede de atores que integram a corrente dominante da biodiversidade. As atividades humanas em áreas protegidas institucionalmente são interpretadas como ameaças à biodiversidade a serem combatidas e anuladas, mas também pode significar processos historicamente construídos de ocupação e uso dos recursos naturais que demandam investigações a partir de conhecimentos ecológicos resilientes e outros saberes desprovidos de estereótipos e enquadramentos consensuados. Os planos de manejo das áreas protegidas elaborados/em elaboração são instrumentos transitórios enquanto representação socialmente legitimada e demandam tempo para um entendimento e acordo sobre o significado de sua intervenção no território. O Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque completa dez anos de criação em 2012 e sua história, apesar de um tempo relativamente curto para revelar aprendizados de gestão, traduz a principal referência das políticas públicas que transformam territórios em espaços legalmente protegidos. De quem? Há de se colher lições! Outras experiências e práticas de conservação da biodiversidade nas áreas protegidas estão por se revelar/libertar. Enquanto isso, as instituições responsáveis pelas áreas protegidas seguem sua trajetória de cumprimento dos ritos com resultados contabilizados como metas alcançadas pelas estruturas de gestão dominante voltada para a conservação da biodiversidade, mas repleto de outras possibilidades de gestão produzidas e reproduzidas a partir do conhecimento local, científico e não científico. Referências CHALLINOR, David. Epílogo. In: Biodiversidade. Wilson, Edward (org.). São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1997. CHAGAS, Marco Antonio. Tumucumaque – O “Big Park” e a História do Conservacionismo no Amapá. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2008. EHRLICH, Paul R. A Perda da Diversidade – Causas e Consequências. In: Biodiversidade. Wilson, Edward (org.). São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1997. ESCOBAR, Arturo. Whose Knowledge, Whose nature? 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