○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Formação docente Infância como condição da existência humana... um outro olhar para formação docente Childhood as a condition of human existence... Another look at faculty education Marta Regina Paulo da Silva Mestre em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo – Umesp, atua na formação de educadoras e educadores em instituições públicas e particulares. E-mail: [email protected] R e s u m o O artigo pretende discutir o papel da infância na formação das educadoras e educadores. Trabalha com a hipótese de que a infância, compreendida como condição da existência humana, possa ajudar na construção de uma formação que prime pela autonomia das educadoras e educadores. Propõe que nos espaços de formação se resgatem as narrativas, que se invista na formação cultural, na experiência estética, transformando estes espaços em espaços poéticos. Conclui questionando acerca da possibilidade de se pensar uma formação que aprenda com a infância; um espaço marcado pela experiência, onde seja possível estabelecer relações mais infantis consigo, com os outros e com o mundo. Unitermos: formação docente, infância, experiência. S y n o p s i s The article intends to discuss the role of childhood in the teaching of educators. It works based on the hypothesis that one’s childhood, understood as a condition of the human existence, can assist in the construction of an education which highlights the autonomy of the educators. It proposes that within the auspices of education, narratives be redeemed, investments be made in cultural education, and in esthetic backgrounds, thus transforming these spaces into poetic spaces. It concludes by questioning the possibility of considering an education which is learned through one’s childhood; a space marked by experience, where it may be possible to establish more childlike relations with oneself, with others and with the world as a whole. Terms: faculty education, childhood, experience. Resumen Este artículo pretende discutir el papel de la infancia en la formación de las educadoras y educadores. Trabaja con la hipótesis de que la infancia, comprendida como condición de la existencia humana, puede ayudar en la construcción de una formación que prime por la autonomía de las educadoras y educadores. Propone que en los espacios de formación se rescaten las narrativas, que se invierta en la formación cultural, en la experiencia estética, transformando estos espacios en espacios poéticos. Concluye cuestionando acerca de la posibilidad de pensarse una formación que aprenda con la infancia; un espacio marcado por la experiencia, donde sea posible establecer relaciones más infantiles consigo, con los otros y con el mundo. Terminos: formación docente, infancia, experiencia. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ 107 ○ ○ ○ ○ Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ F Revista de Educação do Cogeime A criança passa a ser vista como um ser que pensa ○ ○ 108 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ submeter aos adultos que irão moldá-la para o que deve ser. Quanto à infância, corresponde a primeira etapa do desenvolvimento humano, uma etapa passageira, um preparo para a vida adulta, período em que cabe a educação forjar nestas “almas imperfeitas” os valores e ideais da sociedade. Tais imagens foram, ao longo dos séculos, sendo revistas. Deste modo, no século XX, trabalhos como os de Piaget, Vygostky e Wallon, citando aqui aqueles mais conhecidos no meio educacional, foram mostrando como os fatores biológicos e o meio social estão interligados, influenciando-se mutuamente. A criança passa a ser vista como um ser que pensa, que vai, a partir de suas experiências e nas interações com outras crianças e adultos, criando e recriando uma série de idéias e teorias sobre o mundo físico e social. Assim, diferentes concepções foram sendo construídas no decorrer da História e, apesar de coexistirem na prática pedagógica, esta ainda traz a marca de um discurso dominante sobre o ser criança, ou seja, ela continua sendo vista como: “reprodutora de cultura e de conhecimento; a criança inocente nos anos dourados da sua vida; a criança como natureza ou a criança científica, o ‘desenvolvimento infantil’ biologicamente determinado por estágios universais; e a criança como ser humano imaturo que está se tornando adulto” (Moss, 2002, p. 239). Sombra e luz, céu azul, horizonte fundo e amplo dizem de mim. Sem eles apenas sobrevivo, menos do que existo. Minha biblioteca de adulto tem algo disso. Às vezes, é como se fosse a sombra da mangueira de minha infância. (Paulo Freire) reire nos fala aqui em comunhão. Comunhão entre o adulto que é, e a criança que foi e continua sendo. O menino vive no adulto, convive com ele: “sou uma inteireza e não uma dicotomia. Não tenho uma parte esquemática, meticulosa, racionalista e outra desarticulada, imprecisa, querendo simplesmente bem ao mundo. Conheço com meu corpo todo, sentimentos, paixão. Razão também” (Freire, 2001a, p. 18). Este educador nos apresenta uma infância compreendida para além de uma determinada etapa cronológica do desenvolvimento humano. Uma infância que acompanha o adulto por toda vida. Uma criança em permanente diálogo com este adulto. Uma idéia de infância que vem na contramão de uma imagem dominante sobre ser criança e sua infância, que define a primeira como falta e a segunda como minoridade. Sabemos que, desde Platão, na antiguidade, e depois com maior ênfase na modernidade, a criança é vista como um ser incompleto, insuficiente, inferior, uma vez que representa apenas a ausência da razão, da compreensão ou juízo, devendo, pois, se ○ ○ Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Embora a modernidade tenha colocado as crianças e a infância como centro das atenções das famílias, legisladores, educadores e demais profissionais, exigindo destes cuidados para com elas, trouxe consigo também uma imagem de desqualificação das mesmas, colocando-as no lugar daqueles que nada sabem, que nada pensam, que nada produzem, contrapondo ao adulto que tudo sabe, tudo pensa, tudo produz. E por tudo saber, a maioridade – idade do adulto – nada deixa as crianças saberem. Sabedora de todas as coisas, tem deixado pouco espaço para o desconhecido, para o imprevisível, para o inacabado que é o ser humano. Quando cheios de saber, olhamos para as crianças já procurando enquadrá-las em categorias, pouco espaço sobra para a novidade, para o encontro. Cheios de saber não falamos com as crianças, falamos sobre elas e para elas. Não há diálogo. Encontramos aqui o “não lugar” da infância. Larrosa (2003) ao discutir a infância chama nossa atenção para um outro lado da mesma, a infância entendida como “um outro”, e não apenas como aquilo que nossos saberes e práticas já capturaram. Para o autor (op. cit., p. 184), um outro é: “aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Embora a modernidade tenha colocado as crianças e a infância como centro das atenções das famílias, legisladores, educadores e demais profissionais A criança e a infância não são passíveis de aprisionamento. Haverá sempre aquilo que é singular, único, original ○ ○ 109 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ acolhimento”. A criança e a infância não são passíveis de aprisionamento. Haverá sempre aquilo que é singular, único, original. É fato que, enquanto seres sociais, históricos e culturais, carregamos algo que é de continuidade, teremos que percorrer um longo processo de socialização; mas também carregamos algo de novo, de enigmático; e que sendo assim rompe com as supostas certezas que temos de nós mesmos, do mundo, das crianças, da infância. Por que então, não nos permitir ser tocados pela criança e desta forma nos deixar levar também pelo desconhecido? Vê-la como novidade e não apenas como continuidade? Aprender com ela? Enquanto seres humanos, somos seres da intervenção e não da adaptação; a intervenção carrega o germe da esperança, que por sua vez carrega a novidade, abrese ao desconhecido, ao novo. E é nesta perspectiva, que nas últimas décadas, muitos trabalhos (entre eles: Barros, 2003; Kohan, 2003; Kramer, 2003; Larrosa, 2003; Oliveira, 1992; Rosemberg, Campos e Pinto, 1998; Sarmento, 2001); vêm sendo realizados nas diferentes áreas de conhecimento (literatura, filosofia, psicologia, sociologia, pedagogia...) a fim de construirmos um outro olhar para a criança e para a infância; observando quem é ela, que não é nem anjo nem demônio, nem tábula rasa nem natureza pura, e sim um ser humano, que possui um corpo, Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ uma história, diferentes saberes, diferentes modos de compreender o mundo, que cria, sonha, chora, fala, pensa, aprende, sofre, se alegra, se encanta... Um olhar a partir dela e não para ou sobre ela, onde seja escutada, onde possa falar, onde possa ser reconhecida como sujeito da e na História, produto e produtora de cultura. Um olhar que a respeite. Que respeite o seu direito de ser criança, de “ser mais”, de ser recebida como um ser original. Um olhar que não a subordine ao adulto, mas que possibilite entre eles um encontro, sendo o mesmo marcado pelo diálogo; diálogo que implica em respeito e amor por si e pelo outro. Um olhar que possibilite uma outra compreensão sobre a infância, deixando de vê-la como um tempo de imaturidade, incapacidade, inferioridade, de dependência, como um vir a ser, e passando a pensá-la como novidade, encontro, imprevisibilidade, criação. Que rompa com a idéia de uma temporalidade linear, cronológica (passado-presente-futuro; infância-adolescência-maturidade-velhice), que define a existência humana em etapas, pressupondo entre elas uma gradativa evolução, do inferior para o superior, do menor para o maior, do sem razão para o com razão, do dependente para o independente... Kohan (2003, 2004), a partir das idéias de Agamben (2001), fala-nos de uma infância para além de sua etapa cronológica. Embora não abandone a idéia Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 110 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ desta como primeira fase da vida, a amplia, no sentido de pensá-la como condição de possibilidade da existência humana. Desta forma, ela nos acompanha por toda a vida, independente da idade, não estando, portanto, necessariamente relacionada às crianças. Para este autor, a ausência de voz – enfant – não significa uma falta, e sim uma condição, uma vez que é na infância que nos constituímos como sujeitos na e pela linguagem: “é nela que se dá essa descontinuidade especificamente humana entre o dado e o adquirido, entre a natureza e a cultura. O ser humano é o único animal que aprende a falar, e não poderia fazê-lo sem infância” (Kohan, 2004, p. 54). Paulo Freire se auto definia como um “menino conectivo”; segundo Gadotti (1998) isto significa que ele guardou esta forma de ser criança, pois era uma pessoa alegre, feliz, contente, que se contentava com as coisas mais simples da vida; quanto ao adjetivo “conectivo” significa uma “pessoa que quer se ligar com os outros, que quer se comunicar com os outros. Ele foi um articulador de pessoas, ele conectava as pessoas não a ele, mas entre elas também, então eu poderia dizer que a própria pedagogia dele era uma extensão deste menino conectivo”, uma vez que entendia que a educação no fundo era “impregnar de sentido cada ato cotidiano (...) que tem que partir das coisas simples, a Um olhar que a respeite. Que respeite o seu direito de ser criança, de “ser mais”, de ser recebida como um ser original ○ ○ ○ Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ simplicidade é a sabedoria”. Mas o aprendizado da fala, da comunicação, não se restringe a um tempo cronologicamente determinado; enquanto seres inacabados iremos carregá-lo vida afora, uma vez que, como “infantes”, estaremos sempre aprendendo a falar e a ser falados, já que não falamos tudo, não pensamos tudo, não sabemos tudo (Kohan, 2003, p. 246). Infância e inacabamento se encontram aqui. Aprendemos com Paulo Freire que, enquanto humanos, somos seres inacabados, inconclusos. Conscientes deste inacabamento nos tornamos curiosos frente as coisas do mundo; queremos desvelar seus mistérios, compreendê-los, transformar, criar novos significados. Em nosso processo de humanização fomos nos diferenciando de outros animais dada a nossa condição de transformar o suporte 1 e então comunicá-lo; inventamos assim a linguagem, tornamo-nos seres culturais. Estaria aqui a nossa infância? A infância da humanidade? O momento em que, curiosos, inventamos o mundo? Depois disto tudo é reprodução? Conservação? Nada mais é original? ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Enquanto humanos, somos seres inacabados, inconclusos As crianças estão mais preocupadas em construir seu próprio mundo do que em imitar o adulto 1. Para Freire, suporte é o “espaço, restrito ou alongado, a que o animal se prende “afetivamente” tanto quanto para resistir; é o espaço necessário a seu crescimento e que delimita seu domínio. É o espaço em que, treinado, adestrado, ‘aprende’ a sobreviver, a caçar, a atacar, a defender-se” (1996, p. 56). Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Somos seres de intervenção, nossa vocação ontológica (Godotti, 1996, p. 732) é a de “ser mais”, de transgredir, de fazer rupturas, de movimentar a História. Benjamin (1984, p. 77) pontua que as crianças estão mais preocupadas em construir seu próprio mundo do que em imitar o adulto. Isto me faz pensar que talvez as crianças estejam mais próximas, ou em maior sintonia, com a nossa condição de inacabamento. Estão mais abertas ao mundo. Agamben afirma que se há uma história humana é porque há infância (Bazílio e Kramer, 2003, p. 118); eu ampliaria a idéia dizendo que: se há infância é porque há inacabamento. Talvez aí esteja a raiz crianceira da infância: nosso inacabamento. Raiz que nos torna abertos ao mundo, curiosos, inquietos, criativos, capazes de pensar uma outra realidade, de construir uma outra História; de sermos sujeitos da experiência. Experiência compreendida aqui como aquela na qual somos tocados pelas coisas do mundo, afetados por elas, e de onde saímos transformados (Benjamim, 1984, Larrosa, 2004). Porém, vivemos numa sociedade, marcada pela política neoliberal, que tem dificultado nossa experiência; haja vista a força do 2. Vocação ontológica do homem é “o chamado que sentem os homens e as mulheres desde dentro de si mesmos para que se convertam em pessoas capazes de pensar e transformar sua sociedade e de transformar-se em seres para si mesmos. A vocação histórica do homem é ‘ser sujeito’.” ○ ○ 111 ○ ○ ○ ○ Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ seu discurso que busca roubar de nós nossa própria humanidade. Discurso que afirmando ser o capitalismo a única forma possível de relações econômicas e sociais, prega o fim da História, o fim das utopias, querendo nos fazer acreditar que somos apenas seres de adaptação e que é preciso permitir o curso “natural” da História. Discurso que cria o sonho do consumo, onde o sentido de pertencer está atrelado ao acúmulo das coisas, sejam elas bens materiais ou informações. Ter cada vez mais. Acumular e rapidamente descartar para então consumir novos produtos. Eis o sentido criado por esta política, o de “ter”, da novidade, do descartável, da substituição e inovação das mercadorias, do supérfluo. Vivemos a cultura do espetáculo, da aparência, do empobrecimento da vida cotidiana. Tudo é muito rápido. Vivemos correndo atrás de um tempo que nunca chega: o amanhã, mais tarde, depois, agora não dá... No presente corremos atrás das informações e novidades, que nos chegam cada vez mais veloz e que terminam por não serem apreendidas por nós, o que as torna quase sempre descartáveis. Consumimos as novidades, engolimos o que nos chega sem apreciar o seu sabor e, com a mesma facilidade com que engolimos também a eliminamos, para então ingerir novas informações. Não há tempo para a digestão. Vivemos agitadamente o mundo, aligeiradamente a vida; estamos Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Vivemos agitadamente o mundo, aligeiradamente a vida; estamos ligados, constantemente excitados e, justamente por isso, nada nos acontece ○ ○ 112 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ligados, constantemente excitados e, justamente por isso, nada nos acontece. Benjamim, em 1913, dizia que a máscara do adulto chama-se “experiência”, sendo ela impenetrável, inexpressiva, sempre igual (1984, p. 23); e hoje, não continuamos a nos esconder com tal máscara? Falas como: “eu tenho vinte anos de experiência”, “sempre fiz assim e deu certo”, “eu sei o que estou dizendo, já passei por isto”, “não há o que fazer, as coisas são assim mesmo”... não mascaram o medo que temos de nos permitir o desconhecido, o imprevisível? Fico pensando, será que tem vinte anos de experiência ou um ano de experiência repetido vinte vezes? Não teria tal máscara a função de nos proteger de nós mesmos pela falta de sentido da vida, pelos sonhos não realizados, pelas paixões não vividas, pelo isolamento, pela infância não respeitada, pela “saudade daquilo que não fui” (Barros, 2003)? Tirada a máscara o que realmente experimentamos? A modernidade capturounos com sua pretensa objetividade em detrimento de nossa subjetividade; exaltou a razão, desprezou a paixão, o corpo; a ciência transformou experiência em experimento, a quantificou; a infância silenciou sua voz, acreditou ser ela inferior, inútil. A modernidade consagrou a maioridade, entendida como racionalidade, maturidade, emancipação, liberdade. No entanto, a infância não nos abandona, ela Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ insiste em nos acompanhar por toda a vida. “Ela é condição. Não há como abandonar a infância, não há ser humano inteiramente adulto. A humanidade tem um sôma infantil que não lhe abandona e que ela não pode abandonar. Rememorar esse soma infantil é, segundo Agamben, o nome e a tarefa do pensamento” (Kohan, 2003, p. 245); para este autor pensamento chama-se política. Somos seres políticos; capazes de desvelar a beleza escondida nas coisas do mundo, seres poéticos, capazes de amar, de criar, de sonhar, de lutar, seres utópicos; um projeto ilimitado. Mas também capazes de explorar o outro, de “matar” o sonho, de negar a liberdade, de desumanizar. Desta forma, se a humanização é uma possibilidade de nossa condição de ser inconcluso, seu contrário também o é, ou seja, uma outra possibilidade é a desumanização. No entanto, e aqui concordando com Freire apenas a humanização seria nossa vocação ontológica; vocação esta negada na opressão, na injustiça; mas afirmada no desejo de liberdade e de justiça, uma vez que, nascemos para sermos felizes. É preciso reinventar o mundo, buscar sua boniteza. Boniteza que passa pela nossa capacidade de imaginar, de criar, de agir, de transgredir... de nos comprometer com a existência humana, alimentados aqui pela esperança. Esperança que faz parte da condição humana, pois sem ela não Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Não há como abandonar a infância, não há ser humano inteiramente adulto Talvez aqui tenhamos o maior desafio no trabalho de formação das educadoras e educadores, o desafio da esperança ○ ○ 113 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ haveria História. É ela que nos motiva a resistir e enfrentar os obstáculos que impedem nossa alegria, que instiga nossa curiosidade na busca da compreensão e transformação do mundo. Mundo que reivindica hoje, mais do que nunca, nossa opção por uma educação libertadora. Talvez aqui tenhamos o maior desafio no trabalho de formação das educadoras e educadores, o desafio da esperança, da crença em nossa possibilidade de reinventarmos o mundo. Crença cada vez mais sufocada frente ao discurso fatalista do neoliberalismo: Constituir-se como sujeito e como educador em meio à sociedade neoliberal é uma tarefa difícil, que exige capacidade de resistir a todas as formas de agressão que o sistema faz no sentido de tirar, de cada sujeito, o direito de construir a própria identidade com liberdade e autonomia de tal forma a ser autor da própria história e a participar, solidária e criativamente, da construção da história coletiva. A esperança estará presente, como antídoto e como estímulo, se estiver presente nas práticas educativas: no momento da construção do projeto políticopedagógico da escola; (...) na reflexão crítica da prática individual; na reflexão crítica da prática coletiva; na análise do contexto no qual a vida se faz e refaz; nas maneiras de fazer a formação continuada dos educadores (Santos Neto, 2004, p. 61). Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Sem a dimensão da esperança, não há forças para problematizar o presente e conseqüentemente o futuro, cabendo a este último apenas continuar o presente, afinal: a realidade é assim mesmo o que se há de fazer? “Nenhuma realidade é assim porque assim tem que ser. Está sendo assim porque interesses fortes de quem tem poder a fazem assim” (Freire, 2000, p. 123). É preciso, como as crianças, fuçar nos destroços e construir a história a partir do lixo da história (Benjamim,1984, p.14); pois é esta nossa condição infantil, marcada pela curiosidade, pela paixão, pelo sonho, pela imaginação, pela criação, pela transgressão... que tem possibilitado a nós humanos construirmos a História, e acredito ser ela que nos possibilitará resgatar nossa humanidade, tão esquecida nos dias atuais, resgatar nosso direito de “ser mais”, de ser sujeito e não objeto, de encontrarmos um sentido para a vida, para a existência humana, de sermos sujeitos da experiência. Uma experiência, como diz Kohan, amiga da infância. Uma experiência aberta à infância. Uma infância aberta à experiência da novidade, do imprevisível, da diversidade, da busca, da ruptura... Uma infância da infância, e não uma fase a ser abandonada. Contudo, tememos a infância; tememos nos reconhecer inacabados. A sociedade capitalista exige de nós “competência”. Competência muitas vezes entendida na Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ perspectiva de tudo saber, de ter todas as respostas, de saber lidar com todas as situações... Penso numa outra competência. Acredito que ser competente é reconhecer-se inacabado e por isso mesmo aberto a novas aprendizagens, a novas experiências: Uma experiência aberta à infância. Uma infância aberta à experiência da novidade, do imprevisível, da diversidade, da busca, da ruptura... Eu acho que uma das coisas melhores que eu tenho feito na minha vida, melhor do que os livros que eu escrevi, foi não deixar morrer o menino que eu não pude ser e o menino que eu fui, em mim. (...) Sexagenário, tenho sete anos; sexagenário, eu tenho quinze anos; sexagenário, amo a onda do mar, adoro ver a neve caindo, parece até alienação. Algum companheiro meu de esquerda já estará dizendo: Paulo está irremediavelmente perdido. E eu diria a meu hipotético companheiro de esquerda: Eu estou achado, precisamente porque me perco olhando a neve cair. Sexagenário, eu tenho 25 anos. Sexagenário, eu amo novamente e começo a criar uma vida de novo (Freire, 2001b, p. 101). Freire nos ensina sobre a experiência, sobre a infância. Uma infância que nos acompanha por toda vida: “sexagenário, tenho sete anos... tenho quinze... tenho 25 anos”. Perdendo-se ele se acha, avança para o começo, como nos diz o poeta Manoel de Barros (1997). Ensina a pensarmos num tempo que não é linear, onde passado, presente e futuro se cruzam, todos inacabados. Ao ○ ○ 114 ○ ○ ○ ○ Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ pensar uma história que não está acabada, cria de novo: “começo a criar uma vida de novo”. Ensina, sobretudo, que criança e adulto podem dialogar, conviver na mesma casa que é o sexagenário; o diálogo é permanente: “minha biblioteca de adulto tem algo disso”. Não é preciso matar o menino para que o sexagenário viva. Matar o menino é também matar o sexagenário. Matar o menino é matar a infância. Matar o menino é matar nossa condição humana de sermos afetados pelo mundo. Matar o menino é matar a experiência; é matar o próprio homem. Deixemos então o menino viver e assim conviver com o adulto; pois como canta Milton Nascimento e Fernando Brant: “há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração, toda vez que o adulto balança ele vem pra lhe dar a mão”. Assim, encontramos uma outra infância, mais afirmativa, entendida como condição da existência humana. Infância que traz o germe da criação, da transgressão, da paixão, da expressão de vida. Infância como experiência. Infância que nos possibilita repensar o caráter estetizante 3 da formação docente. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Formação marcada pela mecanização da vida, por uma rotina na qual muitas coisas passam por nós sem que sejamos tocados por ela 3. O caráter estetizante tipifica a existência desenraizada e, por isso, furtiva, a que se aceite como acidente efêmero, sem a certeza de que vale a pena ter um projeto sólido e realizá-lo. Trata-se, por outro lado, de uma existência que percebe a realidade, mas uma realidade entre aspas, porque forjada por um conjunto de aparências” (Morais, 1989, p. 126). Revista de Educação do Cogeime ○ ○ 115 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Formação, em sua grande maioria, marcada pela superficialidade do conhecimento, pelo fazer, pelo pragmatismo da atividade docente; pelo programa pautado nas metodologias de ensino em detrimento das dimensões políticas-ideológicas que marcam a educação. Formação marcada pela mecanização da vida, por uma rotina na qual muitas coisas passam por nós sem que sejamos tocados por ela, sem que olhemos para nós mesmos tentando compreender o que significa para cada um de nós aquilo que estamos vivendo, sem perceber o que isto nos provoca. Nesta sociedade caracterizada pela lógica do mercado, uma lógica acumulativa, de aparências, onde ter e parecer valem muito mais do que ser, já não há tempo para ser tocado pelo que nos acontece, já não há tempo para a experiência. Na cultura do espetáculo perdemos a visão da totalidade, ficamos presos a imagens que escapam ao nosso controle e que nos afastam do mundo vivido, há um empobrecimento da vida cotidiana; “imagem é tudo”, como nos afirma insistentemente a mídia, aqui muitas coisas se passam sem que nos afetem, entre elas as pessoas, já que também as relações sociais são mediatizadas pelas imagens. É preciso desacelerar, suspender o automatismo de nossas ações, ater-se aos detalhes, estar aberto ao que se passa conosco e com os outros, estar disponível. Pensando no contexto em que Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ vivemos, tal tarefa parece impossível, mas se assim o fosse, estaria aqui concordando com a posição determinista e fatalista dos neoliberais, com a qual não concordo. Afinal, estaria a formação apenas atendendo às exigências do mercado neoliberal? Penso que não. Como Freire, acredito que somos seres da intervenção no mundo e não da adaptação, e se agimos assim hoje, não significa que o faremos no amanhã. O amanhã é possibilidade, o que implica em agirmos no presente. E aqui, talvez possamos começar por inverter a direção do olhar na formação das educadoras e educadores, ou seja, ao invés de olhar para estes cheios de certezas sobre o que fazer com eles, se permitir ser olhado pelos mesmos e, deste modo, ouvir suas vozes, tantas vezes silenciadas. Vê-los como um “outro”, esvaziar-se de tantas certezas para então poder escutá-los, recebê-los: “receber é criar um lugar: abrir um espaço em que aquele que vem possa habitar; pôr-se à disposição daquele que vem, sem pretender reduzi-lo à lógica que impera em nossa casa” (Larrosa, 2003, p. 188). Receber é estar aberto ao diálogo. Diálogo entendido como encontro entre mulheres e homens para “serem mais”, na perspectiva de sua humanização. Lembrando Freire, a compreensão de nossa condição inconclusa nos inquieta fazendo com que tenhamos que nos abrir ao outro e ao mundo na busca de Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Ninguém se educa sozinho e sim em comunhão, e o diálogo é a forma que nós, seres humanos, historicamente, criamos para comunicar o mundo e assim modificá-lo ○ ○ 116 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ respostas às nossas questões. Ninguém se educa sozinho e sim em comunhão, e o diálogo é a forma que nós, seres humanos, historicamente, criamos para comunicar o mundo e assim modificá-lo; é, portanto, um ato de criação e recriação. No entanto, não há diálogo na arrogância, quando um dos lados se acha sabedor de todas as coisas e procura depositar no outro seus conteúdos: “se alguém não é capaz de sentir-se e saberse tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais” (Freire, 2003a p. 81). Os programas de formação que chegam às educadoras e educadores, na maioria das vezes, não se traduzem em encontro, não chegam para falar com eles e sim para eles, lidando com estes como se fossem “coisa”, negando sua singularidade, padronizando modos de agir, de falar, de pensar, de se relacionar com o outro; negando seu desejo, doando autoritária e mecanicamente o conhecimento, tornando-os meros executores de didáticas, negando a própria experiência. O diálogo solicita de nós o aprendizado da escuta, o que só é possível fazer quando reconheço o outro como sujeito, quando não o discrimino, quando estou aberto a aprender com ele; soAno 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ mente escutando é que aprendemos a falar com o outro e não para o outro. E como têm sido as educadoras e educadores escutados nos diferentes espaços de formação? Como escutam uns aos outros? Larrosa instiga-nos a “escutar mais devagar”, o que significa uma ruptura, uma transgressão em nossa sociedade. Para o autor, “uma pessoa que não é capaz de se pôr à escuta cancelou seu potencial de formação e de transformação” (Veiga-Neto, 2002, p. 137). Escutar é um aprendizado que nos convida a ter menos idéias, menos certezas; que implica em amor ao outro e a si próprio; em abertura ao desconhecido, ao imprevisível, a termos uma relação mais infantil com o outro e conosco mesmo. Na lógica capitalista aprender significa “somar, adicionar, agregar, aumentar”; o que propomos aqui é a lógica da subtração, onde aprender significa criar um espaço, esvaziar; desaprender para que possamos ver como nunca tenhamos visto; “raspar a tinta com que pintaram os sentidos (...) desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser eu”, como propunha Alberto Caeiro (Pessoa, 1965). Despir-se de conceitos, valores, hábitos que sufocam, que impedem o vôo, que aprisionam, que roubam do humano o seu direito de “ser mais”, de ser autor, de ser dono do seu destino. Despir-se de discursos fatalistas e desesperançosos, que nos imobilizam. Tirar os excessos para que Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ haja espaço àquilo que nos é verdadeiramente significativo; para que aprender seja, então, buscar a boniteza das possibilidades, a boniteza da vida. Aprender é “acordar o lado adormecido”: Escutar é um aprendizado que nos convida a ter menos idéias, menos certezas; que implica em amor ao outro e a si próprio; em abertura ao desconhecido Quando o mistério é muito impressionante, a gente não ousa desobedecer. Por mais absurdo que aquilo me parecesse a mil milhas de todos os lugares habitados e em perigo de morte, tirei do bolso uma folha de papel e uma caneta. Mas lembrei-me, então, que eu havia estudado de preferência geografia, história, cálculo e gramática, e disse ao garoto (com um pouco de mau humor) que eu não sabia desenhar. Respondeu-me: Não tem importância. Desenha um carneiro (Saint-Exupéry, 1986, p. 12). Acordar o lado adormecido é ser tocado pela criança, como fez Saint-Exupéry em “O pequeno príncipe”. O olhar da criança é curioso, investigador, não pára, é um olhar descobridor, brincalhão. E quanto ao olhar adulto? O que vê? Como vê? Olhar apressado já não vê mais o mundo? Olhar instrumental, funcional, prático, já não pode mais fruir? “Coitados dos adultos! Arrancaram os olhos vagabundos e brincalhões de crianças e os substituíram por olhos ferramentas de trabalho, limpa-trilhos (...). Seus olhos eram escravos do dever (Alves, 2000, p. 74). Olhos escravos do dever é um “olhar-fôrma”, ○ ○ 117 ○ ○ ○ ○ Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ que enquadra, padroniza, aprisiona. E quem aprisionou o olhar brincalhão da criança que agora é adulto e já não olha mais? Para Kramer (2000, p. 33) as crianças “possuem um olhar crítico e maroto que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem”; talvez isso explique porque, historicamente, as imagens atribuídas a elas e à infância foram marcadas apenas por uma falta, por um vir a ser. Imagens que nos fazem pensar no quanto a criança ameaça. Ameaça a ordem, ameaça aquilo que é dado como certo e verdadeiro, ameaça, sobretudo, nossos saberes e nosso poder: O olhar da criança é ameaçador porque, curioso, vê a possibilidade de criar novos mundos, o que assusta, principalmente aqueles que querem manter as coisas como estão. Daí os neoliberais buscarem nos convencer de que ser curioso pode trazer-nos muitos problemas, daí criarem discursos e situações que nos fazem temer, que nos imobilizam; daí considerarem a infância como uma fase inútil e que precisa ser acelerada e preenchida com saberes úteis e práticos. Ao longo de nossa História temos observado como a educação vem servindo a este propósito, sendo ela marcada pelo depósito de conteúdos, o que termina por domesticar nossa curiosidade, fazendo-a ficar comportada; não nos perguntamos e nem perguntamos, simplesmente calamos e engolimos sem masRevista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ tigar. Somos assim, bombardeados diariamente pela superficialidade do conhecimento. O olhar da criança ameaça porque nos provoca a pensar o mundo, pois o mundo a provoca. Como diz Saramago: O olhar da criança é ameaçador porque, curioso, vê a possibilidade de criar novos mundos, o que assusta, principalmente aqueles que querem manter as coisas como estão ○ ○ 118 ○ ○ ○ ○ Para a criança o mundo é todo uma tentação, desde as mais simples e óbvias como a do bolo, da desobediência, até a da surpresa diante das coisas desconhecidas. Ela quer saber como é o mundo e, por isso, passa algum tempo da vida a perguntar “por quê, por quê, por quê”. É a pergunta que mais se ouve da boca de uma criança. E há um momento em que ela deixa de perguntar, mas isso não significa que já saiba. Só significa que ela se resigna a não saber porque ninguém respondeu (Carvalhal, 1999, p. 50). E quanto às educadoras e educadores, quais são suas tentações para com o mundo? Como este os têm provocado? Quais suas curiosidades? O que os inquieta? O que os inspira? Concordo com Freire (1996, p. 95) que sem a curiosidade não aprendo nem ensino e que exercer a curiosidade é um direito que todos temos. Neste sentido, acredito que os espaços de formação possam constituir-se em momentos onde os docentes sejam instigados em sua curiosidade, experimentando e saboreando o mundo; estabelecendo com o conhecimento uma outra relação, Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ não mais como algo exterior a si próprios, como mercadoria, e sim como algo que os atravessa, os transforma, algo conectado com a própria vida. Assim como têm feito muitos escritores, poetas, músicos, cineastas, artistas plásticos...; como têm feito também muitas educadoras e educadores, que já descobriram o quanto as crianças, do mundo e a nossa, têm a nos ensinar. Entendo a formação como uma viagem, uma aventura; uma viagem cujo destino não nos é claro, não sabemos ao certo aonde vamos chegar. Não é uma viagem de negócios, como parecem defender os neoliberais, onde se vai vender um produto, fechar um contrato, comprar algo...; e sim uma viagem que possibilite nos conhecer melhor, onde possamos encontrar sentidos para o nosso trabalho e para a própria vida. Uma viagem aberta a muitas possibilidades, a muitos caminhos. Viagem marcada por nossas histórias, muitas cavadas em solo infantil, memórias infantis; memórias que já não são mais apenas do passado, mas que se reescrevem no presente ao atualizarem-se no momento de sua fala; memórias não saudosistas e sim esperançosas, que atravessam os limites de um tempo linear, passado-presente-futuro se entrecruzam. Memórias que somadas a tantas outras histórias, suas, das crianças e todas aquelas construídas e as que estão se construindo nas diferentes culRevista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A vida humana está aberta, ela não é uma sucessão de acontecimentos determinados Pensando na prática formativa, esta tem possibilitado este encontro? ○ ○ 119 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ turas, nos permitem mergulhar em seus enredos, fruir e assim, reinventá-los, criando então novos desfechos; isto porque a vida humana está aberta, ela não é uma sucessão de acontecimentos determinados. Histórias narradas que ao serem compartilhadas vão sendo re-significadas, deixando novas marcas. Narrar que não significa um tagarelar repetitivo e sem sentido e sim um resgate daquelas experiências que estão arraigadas em cada um de nós e também do conhecimento que fomos construindo historicamente; um encontro das experiências pessoais com as experiências coletivas. Pensando na prática formativa, esta tem possibilitado este encontro? Nela as educadoras e educadores têm sido convidados a narrarem suas experiências, suas práticas, suas histórias...? A deixarem suas marcas, sua autoria? Para Gadotti (2004, p. 12) a educação precisa ser “biófila”, precisa amar a vida; sendo a autobiografia uma forma de encontrarmos sentido para nossa vida e ainda, centrar a educação na vida. Para tanto, propõe que ensinemos as crianças, desde cedo, a contar sua vida, escrever sua biografia. No entanto, é possível ensinar isto às crianças quando as próprias educadoras e educadores não o fazem? Quando eles próprios não compartilham suas histórias? Numa cultura do espetáculo como a que vivemos há espaço para as narraAno 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ tivas? Neste sentido, não somos nós que precisamos aprender com as crianças a contar nossas vidas? Aprender a deixar marcas, a ser autores? Penso a formação como encontro, marcado pelo diálogo, pela criação, pela diferença, pelo imprevisível, pela aventura. Encontro que mantenha a paixão pela vida e por ela lute, que possibilite a tomada de consciência, a descoberta de sentidos para a vida, rompendo assim com a circularidade da tarefa sem fim, sem sentido, mecânica; com o mundo das aparências; que desvelando as coisas do mundo possa reinventá-lo. Formação poética. Poética entendida aqui como nossa capacidade de criar, de desvelar as coisas do mundo e então transformá-lo. Diz respeito a nossa dimensão estética, a forma de nos relacionarmos com o mundo, de como o apreendemos. Com Freire (2003b), compreendo que a educação é por natureza um exercício estético, uma vez que lida com a formação permanente de mulheres e homens, com o seu crescimento: ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ nosso conhecimento tem qualidade de dar vida, criando e animando os objetos enquanto os estudamos (p. 145). Encontro que mantenha a paixão pela vida e por ela lute, que possibilite a tomada de consciência, a descoberta de sentidos para a vida, rompendo assim com a circularidade da tarefa sem fim Como nada produz, além do prazer que nos proporciona, a Arte de um modo geral tem sido negligenciada nos espaços escolares Outro ponto que faz da educação um momento artístico é exatamente quando ela é, também, um ato de conhecimento. Conhecer, para mim, é algo belo! Na medida em que conhecer é desvelar um objeto, o desvelamento dá “vida” ao objeto, chama-o para a “vida”, e até mesmo lhe confere uma nova “vida”. Isto é uma tarefa artística, porque Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 120 ○ ○ ○ ○ Eis a dimensão estética da educação, dar vida ao objeto. Não é justamente isto que fazem as crianças, os poetas, pintores, músicos...? Desvelar o mundo dando-lhe nova vida? Não teríamos então algo a aprender com eles? Estimular nas crianças e em nós próprios o desejo de aprender, de dar nova vida? Não seria isto a própria experiência? Mas como a poesia, os contos, o romance, a pintura, o cinema, o teatro... têm entrado nos espaços de formação das educadoras e educadores? Quais têm sido suas experiências com estas diferentes linguagens? Em minha experiência como formadora de educadoras e educadores tenho observado que pouco se investe neste aspecto da formação docente, e quando este ocorre, termina por ter um caráter apenas utilitário; por exemplo, ler para as professoras algumas histórias infantis para que estas leiam para as crianças, ou ainda ensinar-lhe algumas técnicas de desenho para que façam com estas... Como nada produz, além do prazer que nos proporciona, a Arte de um modo geral tem sido negligenciada nos espaços escolares. Numa passagem rápida, à grande maioria das escolas, é possível observar, através do próprio espaço físico, o “não-lugar” desta linguagem: Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ poucas ou nenhuma produção de artistas ou das próprias crianças pelos espaços; é comum a presença de produções mimeografadas para que as crianças pintem não permitindo a estas construírem seus próprios significados; a área de Artes ainda a serviço de outras áreas de conhecimento, como uma técnica; rotinas ausentes de espaços para dança, teatro...; mesmo a literatura, quando acontece, é seguida de desenho ou prova, como forma de produto que indique a compreensão dos educandos sobre a história. Apenas fruir e compartilhar suas experiências não é suficiente, e aqui, muitas vezes, tanto a leitura quanto o desenho acabam tendo seus conteúdos esvaziados de sentidos. Fruto de uma formação que tem privilegiado a razão em detrimento do corpo e de nossa sensibilidade, o contato dos docentes com esta linguagem tem sido pouco expressiva. Como as crianças, a Arte, num mundo capitalista como o nosso, é tratada como algo menos importante, inferior, talvez por isso ela nos aproxime tanto das crianças; talvez por sua capacidade de transgredir ela também ameace. A arte nos aproxima então da infância, nossa e a do mundo; já que temporal, tem sua marca numa determinada época, num determinado contexto; mas também é intemporal, ultrapassando os limites de seu próprio tempo. A arte nos possibilita ir além do previsível, das respostas que já Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A arte nos possibilita ir além do previsível, das respostas que já são esperadas; está sempre aberta a novas leituras, novos significados Penso que a formação precisa ultrapassar a reflexão meramente técnica e pragmática da docência ○ ○ 121 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ são esperadas; está sempre aberta a novas leituras, novos significados. Permite fruir, criar, construir nosso próprio jeito de olhar para as coisas do mundo. Nesta perspectiva, acredito que seja uma boa aliada em nosso (re)encontro com a infância, com nossa poiesis, com nossa capacidade de sermos tocados, inquietados pelas “coisas” do mundo, encantando-nos com suas belezas e nos indignando com sua “feiura”: injustiça, miséria, exclusão, desigualdade, exploração... É preciso olhar mais devagar. Olhar brincalhão, curioso; mas nossos olhos não foram educados para isto, ao contrário, foram vendados. Neles foram depositadas muitas informações que foram se cristalizando e provocando cegueira. Ficamos doentes dos olhos. Não seria então a arte uma possibilidade de exercitar o nosso olhar? De tirar as vendas? Não poderia a formação continuada constituir-se em um espaço para apurarmos nosso olhar? Aprendemos a olhar, olhando e refletindo sobre o próprio olhar. Qual a forma ou “fôrma” de olhar que tem sido construída nos diferentes espaços de formação? Olhar prático? Distante? Amoroso? Indagador? Acomodado? Reprodutor? Transformador? Sonhador? De vida ou de morte? Curioso? Que homogeniza ou diferencia? Inclui ou exclui? Penso que a formação precisa ultrapassar a reflexão meramente técnica e pragmática da docência, Ano 14 - n0 26 – junho / 2005 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ considerando também nela suas dimensões estética e política, dimensões estas inseparáveis já que o desenvolvimento da criatividade está diretamente relacionado a nossa capacidade de sonhar, de imaginar: ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ com as forças reacionárias para quem a liberdade lhes pertence como direito exclusivo? (Freire, 1993, p. 70-71). Formação e poesia. Formação geradora de esperança e alegria. Formação poética. Formação que passa pelo saber da experiência. Saber este povoado de mistério, de realidade, de sonho, de paixão, de alegria, de dor, angústia, dúvida...de vida. Saber que implica em voltarse para si mesmo e para o mundo, buscando romper com rotinas mecânicas e repetitivas. Saber que solicita que “a subjetividade humana se torne visível e que as instituições estejam aí auxiliando na possibilidade de transformação deste ser-aí que comparece” (Martins, 1992, p. 91). Saber que possibilite o encontro, o diálogo entre adulto e criança. Saber que recupere a infância, nossa e a do mundo. Saber que implica em voltar-se para si mesmo e para o mundo É necessário que a professora ou o professor deixem voar criadoramente sua imaginação (...). A imaginação ajuda a curiosidade e a inventividade da mesma forma como aguça a aventura, sem o que não criamos (...). No uso dos movimentos do corpo, na dança, no ritmo, no desenho, na escrita (...). A imaginação que nos leva a sonhos possíveis ou impossíveis, é necessária sempre (...). Por que não enfatizar o direito a imaginar, sonhar e brigar pelo sonho? Por que a imaginação que se entrega ao sonho possível e necessário da liberdade tem de se enfrentar ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Referências bibliográficas AGAMBEN, G. Infância e história. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2001. ALVES, Rubem. Por uma educação romântica: brevíssimos exercícios de imortalidade. Portugal: Centro de Formação Castelo Branco, 2000. _____________. Estórias de quem gosta de ensinar: o fim dos vestibulares. 4. ed. BARROS, Manoel. Livro sobre nada. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. ______________. Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999. ______________. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. BAZÍLIO, Luiz C., KRAMER, Sonia. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2003. BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. (Novas buscas em educação; v. 17) CARVALHAL, Tânia F. Saramago na universidade. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 1999. 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