SUMÁRIO ARTIGOS ORIGINAIS Curandeirismo e Saúde da Família: conviver é possível?/ Charlatanism and Family Health: is coexistence possible? Izabela Matos, Rosangela Maria Greco Envelhecimento ativo e promoção da saúde: reflexão para as ações educativas com idosos/Active ageing and health promotion: consideration for health education with elderly Mônica de Assis A Inserção da Saúde Mental na Atenção Primária à Saúde em um Sistema de Referência e ContraReferência - O Caso da UBS Padre Roberto Spawen - SUS/Juiz de Fora/Mental Health Care In The Primary Health Care System In A System Of Reference And Counter-Reference – The Case Of The Padre Roberto Spawen Basic Health Unit – SUS/JUIZ DE FORA José Luís da Costa Poço, Arlete Maria Moreira do Amaral Percepção dos profissionais de Saúde da Família sobre a qualidade de vida no trabalho/ Perception of Family Health Professionals of the quality of life at work Marcia Januzzi Lara ARTIGO DE REVISÃO Educação popular e saúde: trajetória, expressões e desafios de um movimento social/Critical Pedagogy and Health: history, expressions and challenges of a Brazilian social movement. Eduardo Navarro Stotz, Helena Maria Scherlowski Leal David , Julio Alberto Wong Um ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO Medicina de Família e Comunidade: especialistas em integralidade/ Family and Community Medicine: specialists in wholeness Maria Inez Padula Anderson, Gustavo Gusso, Eno Dias de Castro Filho RELATO DE EXPERIÊNCIA A Inserção de uma Equipe do PSF na Campanha de Vacinação dos Idosos contra Gripe: Reestruturando Práticas Assistenciais em Busca de Eficiência e Humanização/The insertion of a Family Health Program group into flu vaccination campaign os the elderly: restructuring medical practice searching for efficiency and humanization Moacyr da Gama Corrêa Neto, Marina Vasconcellos Laprega da Gama, Milton Roberto Laprega Oficina do afeto - uma intervenção em atenção primária à saúde e a contribuição da teoria psicodramática/Affection Workshop – An Intervention In Primary Health Care And The Contribution To The Psycho-Dramatic Theory Juarez Silva Araujo REVISTA DE APS - ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE Uma publicação do Núcleo de Assessoria, Treinamento e Estudos em Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora- UFJF (NATES/UFJF), da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – SBMFC e da Rede de Educação Popular e Saúde - REDEPOP. Editor Geral: Neuza Marina Mauad – UFJF/NATES - Juiz de Fora – MG associada à ABEC Editores Associados: Aldo Ciancio – SMS São Paulo - SP Lúcia Maria Ozório - Experice (Centre de recherche en éducation habilité) das Universidades Paris 13 - Paris 8. Paris- França Hamilton Lima Wagner – Instituto in Família – Curitiba- Pr Maria Rizoneide Negreiros de Araújo - UFMG/Faculdade de Enfermagem – Belo Horizonte - MG Rosangela Maria Greco – UFJF/Faculdade de Enfermagem - Juiz de Fora - MG Sonia Acioli de Oliveira – UERJ/ Faculdade de Enfermagem – Rio de Janeiro- RJ Conselho Editorial: Alex Miranda Rodrigues – UFMT- Mato Grosso - MT Auta Stephan-Souza – UFJF/ Faculdade Serviço Social - Juiz de Fora- MG Betania Maria Fernandes – UFJF/ Faculdade de Enfermagem - Juiz de Fora- MG Carmen Fontes Teixeira – UFBA – Salvador- Ba Célia Caldas- UERJ- Rio de Janeiro- RJ Claudia de Souza Lopes – UERJ/IMS - Rio de Janeiro - RJ Cristina Pinheiro Mendonça – UFF- Niterói - RJ Eduardo Faerstein - IMS/UERJ - Rio de Janeiro – RJ Eduardo Navarro Stotz- FIOCRUZ/ENSP- Rio de Janeiro – RJ Elaine Reis Brandão - IMS/UERJ - Rio de Janeiro - RJ Eliane Portes Vargas –FIOCRUZ/ IOC - Rio de Janeiro- RJ Elizabeth de Andrade Romeiro – Rio de Janeiro- FIOCRUZ Eymard Mourão Vasconcelos – UFPB -João Pessoa - PB Gulnar Azevedo Mendonça - IMS/UERJ - Rio de Janeiro- RJ Helena Maria Scherlowski Leal David - UERJ/Faculdade de Enfermagem – Rio de Janeiro – RJ João Werner Falk – SBMFC - Porto Alegre - RS José Paranaguá – Brasília - DF Joyce Caldwell Panagides – Washington - USA Marcus Gomes Bastos - UFJF/Faculdade de Medicina - Juiz de Fora- MG Maria Waldenez de Oliveira - Universidade Federal de São Carlos – São Carlos- SP Mário Sérgio Ribeiro – UFJF/Faculdade de Medicina - Juiz de Fora - MG Ricardo Rocha Bastos - UFJF/Faculdade de Medicina - Juiz de Fora - MG Ronaldo Rocha Bastos – UFJF/ICE -Juiz de Fora - MG Roseni Rosangela de Sena – UFMG/Faculdade de Enfermagem - Belo Horizonte - MG Simone Souza Monteiro – IOC/FIOCRUZ - Rio de Janeiro - RJ Stella Cunha –UFJF/ ICHL - Juiz de Fora – MG Sueli Maria dos Reis Santos - UFJF/ Faculdade de Enfermagem - Juiz de Fora- MG Tadeu Coutinho – UFJF/Faculdade de Medicina - Juiz de Fora - MG Uriel Heckert – UFJF/Faculdade de Medicina - Juiz de Fora - MG Viviane Weil Afonso – UFJF/Faculdade de Medicina - Juiz de Fora - MG Wilza Villela – SESSP - São Paulo - SP. Diretor Executivo: Neuza Marina Mauad – CRM-MG 25812-1 T Normalização bibliográfica: Maria Piedade Fernandes Ribeiro CRB.6/601 Projeto Gráfico: Bianca lemos Diagramação: Templo Gráfica e Ditora Ltda. (32) 3217-0283 Revisão de Redação: Maria Cristina Weitzel Tavela Revisão de inglês: Kathy Mutz Endereço para correspondências e envio de artigos: NATES/UFJF / Revista de APS Rua Benjamin Constant, 790 CEP: 36015-400 Centro Juiz de Fora – Minas Gerais Ou via internet através do E-mail: [email protected] Fone (32) 3229-3830 e 32293831- FAX (32) 3229- 3832 E-mail [email protected] Site: www.nates.ufjf.br SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA E FAMÍLIA E COMUNIDADE SBMFC End. Rua Morales de Los Rios, 22 - Maracanã Rio de Janeiro - RJ - Cep: 20.540-010 Tel 21 2264.5117 / Fax. 21 2284.2130 Email: [email protected] / [email protected] Site: www.sbmfc.org.br REDE DE EDUCAÇÃO POPULAR E SAÚDE www.redepopsaude.com.br http://br.groups.yahoo.com/group/aneps/join. ISSN: 1516 –7704 Indexada na RAEM - Rede de Apoio à Educação Médica da Associação Brasileira de Educação Médica, Base de Dados EDUC. Cadastrada na ABEC- Associação Brasileira de Editores Científicos Disponível on line na BVS- MS: http://dtr2001.saude.gov.br/bvs/periodicos/outros.htm# Site NATES/UFJF : www.nates.ufjf.br Periodicidade: Semestral Tiragem: 1000 exemplares Volume 1, 1998 A partir do volume 8 (1), 2005, a publicação absorveu a Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, publicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Assinatura: Valor Anual Individual - R$ 25,00 - Institucional - R$ 30,00 Depósito bancário em nome de: FUNDER/NATES/REVISTA de APS Banco do Brasil - Conta nº 800.965-1 - Agência 2995-5 Envie o recibo do depósito e o endereço onde deseja receber a Revista de APS para a Secretaria da Revista. UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Reitora (2002/2006) - Maria Margarida Martins Salomão Vice Reitor – Paulo Ferreira Pinto Pró Reitoria de Formação Continuada – Rita de Cássia Padula Alves Vieira Pró Reitoria de Graduação Adjunta à Pró Reitoria de Formação - Valéria Trevizani Burla de Aguiar Pró Reitoria de Pós Graduação Adjunta à Pró Reitoria de Formação – Ronaldo Rocha Bastos Pró Reitoria de Pesquisa – Claudia Maria Ribeiro Viscardi Pró Reitoria de Finanças e Controle – Josélia Lima Pró Reitoria de Recursos Humanos – Edson Vieira da Fonseca Faria Pró Reitoria de Extensão – Édina Evelyn Casali Meireles de Souza Pró Reitoria de Infra-estrutura – Paulo Villela Pró Reitoria especial para implantação do CAS – Raimundo Nonato Bechara Coordenação NATES / UFJF - Maria Teresa Bustamante Teixeira Equipe Técnica do NATES/UFJF Beatriz Francisco Farah Celso Paoliello Pimenta Estela Márcia Saraiva Campos Neuza Marina Mauad Vânia Bucheni de Barros Laura de Castro Fonseca Lenir de Almeida Rodrigues e Elisângela dos Santos (secretárias). SBMFC - Diretoria (órgão executivo) Gestão 2004-2006 Presidente - Maria Inez Padula Anderson -Rio de Janeiro Vice-Presidente - Marcello Dala Bernardino Dalla -Espírito Santo Secretário Geral - José de Almeida Castro Filho - Rio de Janeiro Primeira Secretária - Joana Lourenço Lage - Minas Gerais Diretor Financeiro - Carlos Eduardo Aguilera Campos - Rio de Janeiro Diretor Cultural e de Divulgação- Gustavo Gusso - São Paulo Diretor de Telemedicina e Informática - Leonardo Cançado Savassi - Minas Gerais Diretor de Eventos e Integração - Marco Aurélio Cândido de Melo - Goiás Diretor Científico - Eno Dias de Castro Filho - Rio Grande do Sul Diretora de Formação e Capacitação - Irmã Monique Bourget - São Paulo Diretor de Titulação - João Werner Falk - Rio Grande do Sul Diretor de Exercício Profissional - Hamilton Lima Wagner - Paraná Diretor Residente - Roberto Nunes Umpierre - Rio Grande do Sul Diretor Residente Suplente - Patrícia Sampaio Chueiri - São Paulo REDEPOP Coordenadora: Helena Maria Scherlowski Leal David Editorial “A união faz a força” Começamos o oitavo ano de nossa publicação comemorando a parceria com a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade- SBMFC e a Rede de Educação Popular e Saúde- REDEPOP, duas organizações que têm objetivos e missões semelhantes ao NATES/UFJF e que, certamente, contribuirão para o fortalecimento da Revista de APS. A editoração científica no Brasil vem crescendo nos últimos anos e a busca de publicações científicas fortes, comprometidas com os avanços científicos nas diversas áreas do conhecimento e com sua divulgação torna-se mais factível com a união de entidades com objetivos afins. A ABEC – Associação Brasileira de Editores Científicos – completa, em 2005, 20 anos de atividades, contribuindo para a melhoria da qualidade das publicações científicas no Brasil. Com cursos, encontros e oficinas, cada ano alcança um maior número de editores científicos que, comprometidos com a qualidade das publicações, buscam aprimorar seus conhecimentos nas atividades oferecidas. Nós, editores da Revista de APS, temos participado dos eventos da ABEC e buscamos incorporar os conhecimentos adquiridos lá. Essa parceria é, portanto, mais um passo na busca da qualidade de nossa publicação. Esse número busca informar aos leitores quem são esses parceiros e, para tanto, publica dois artigos de revisão sobre Educação Popular e Saúde e Medicina de Família e Comunidade, além de uma entrevista com as três organizações que atualmente são responsáveis pela Revista de APS. As demais seções: artigos originais, de atualização e relato de experiência oferecem aos leitores reflexões e os inspiram ao uso de instrumentos de intervenção, contribuindo, certamente, com a melhor qualidade na prestação de serviço em APS. Divulgamos, ainda, eventos, endereços úteis, resumos de teses e outras publicações de interesse em APS. Buscando aumentar a visibilidade da Revista de APS, estamos disponibilizando a publicação completa dos artigos em pdf no site do NATES/UFJF www.nates.ufjf.br . Informamos com muita alegria a disponibilização on line também na Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde – BVS MS no endereço: http://dtr2001.saude.gov.br/bvs/periodicos/outros.htm Através de nossos esforços, acreditamos estarmos contribuindo, cada vez mais, na valorização, estímulo à pesquisa e aumento do conhecimento em Atenção Primária à Saúde! Neuza Marina Mauad- CRMMG 25812-1T Editor geral Curandeirismo e Saúde da Família: conviver é possível? Charlatanism and Family Health: is co-existence possible? Izabela Matos - Enfermeira, ex-aluna do Curso de Especialização em Saúde da Família Endereço: Avenida Dr. Tereziano Magalhães 489. Bairro Esplanada. Bocaiúva – MG Cep: 39390-000. Rosangela Maria Greco – Doutora, Enfermeira, Professora da Faculdade de Enfermagem da UFJF - Orientadora do trabalho. Endereço: Avenida dos Andradas, 379 apto 704. Centro Juiz de Fora – MG Cep: 36033000 RESUMO Esta pesquisa buscou analisar as relações dos profissionais de uma equipe de Saúde da Família com curandeiros do Município de Mercês, Zona da Mata mineira. As recomendações da Conferência Internacional de Alma – Ata, no que diz respeito à Atenção Primária à Saúde, nortearam este estudo que tem um caráter qualitativo e exploratório. Além de entrevistas semi-estruturadas, uma observação direta possibilitou a análise exaustiva dos dados e sua correlação com os pressupostos teóricos. Constatou-se que as práticas da medicina convencional e da medicina popular existem em uma mesma esfera de ação, porém são independentes e não se relacionam. Palavras-chave: Medicina de Família; Medicina Tradicional; Terapias Espirituais; Charlatanismo. ABSTRACT This study sought to analyze the relationships of the professionals in a Family Health team with the charlatans practicing in the Municipality of Mercês, in the Mata Zone of the State of Minas Gerais. The recommendations of the International Conference of Alma-Ata, with respect to Primary Health Care, guided this study, whose nature is qualitative and explorative. In addition to semi-structured interviews, direct observation made it possible to exhaustively analyze the data and their correlation with the theoretical presuppositions. We observed that the practice of conventional medicine and popular medicine exist in the same sphere of action, but are independent and do not interact with each other. Key words: Family Practice; Medicine, Traditional; Spiritual Therapies; Quackery. 1 Introdução As práticas de curandeirismo fazem parte da tradição cultural da Zona da Mata mineira. A partir do trabalho nesta região, as autoras observaram que os usuários das Unidades de Saúde da Família recorrem a essas práticas com freqüência. Tal constatação despertou o interesse em analisar as relações entre a medicina popular e a medicina científica. Após levantamento bibliográfico sobre o tema, optaram por focalizar os agentes 1 produtores das ações curativas e não os usuários dessas ações, como tem sido abordado em vários trabalhos sócio-antropológicos. Segundo Ferreira (1993, p.157), curandeiro é “o que cura por meio de rezas e feitiçarias”, e curandeirismo é “a atividade ou conjunto das práticas dos curandeiros.” Considerou-se curandeiro aquele que diz curar por meio de rezas e/ou benzeduras, feitiçarias, chás, raízes e garrafadas e curandeirismo todas essas práticas. Com relação a essas práticas, a Conferência Internacional sobre Cuidados de Primários de Saúde de Alma – Ata (1978) afirma que: Na maioria das sociedades, existem médicos e parteiras tradicionais. Sendo muitas vezes parte integrante da comunidade, da cultura e das tradições locais, em muitas localidades continuam a manter alta posição social, exercendo considerável influência sobre as práticas sanitárias locais. Com apoio do sistema formal de saúde, esses praticantes autóctones podem transformar-se em importantes aliados na organização de medidas para aprimorar a saúde da comunidade. Certas comunidades poderão escolhê-los como agentes de saúde da comunidade. Logo, vale a pena explorar as possibilidades de fazê- los participar dos cuidados primários de saúde e de lhes proporcionar treinamento apropriado (ALMA-ATA, 1978, p. 51) . No que diz respeito à relação entre o sistema formal e informal de cuidados da saúde, esta conferência propõe: Os cuidados primários de saúde serão mais eficazes se empregarem meios que, compreendidos e aceitos pela comunidade, sejam aplicados por pessoal de saúde da comunidade a um custo que esteja ao alcance da comunidade e do país. Esse pessoal de saúde da comunidade, entre os quais se incluem, onde pertinente, os praticantes da medicina tradicional, melhor se desempenharão se residirem na comunidade a que servem e se receberem treinamento social e tecnicamente adequado para atender as necessidades de saúde que a própria comunidade considera relevantes (ALMA-ATA, 1978, p.29). A Estratégia de Saúde da Família implantada em mais de 3.200 municípios brasileiros visa resolver, aproximadamente, 85% dos problemas de saúde de uma dada população. Sua equipe mínima é composta por um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e quatro a seis agentes comunitários de saúde e tem, como sua principal característica, estabelecer vínculos com os usuários dos serviços, desenvolvendo ações conjuntas com a comunidade de uma forma integral e igualitária. A presente pesquisa buscou entender o curandeirismo, tendo como objetivo analisar tanto o posicionamento dos profissionais de uma equipe de saúde da família sobre essas práticas como a visão dos próprios curandeiros sobre sua atividade e seu relacionamento com a medicina oficial. Esta abordagem possibilitou levantar questões 2 sobre a viabilidade das propostas de Alma - Ata e sobre os objetivos da Estratégia Saúde da Família, na prática cotidiana das ações de saúde, em Mercês, cidade da Zona da Mata Mineira. 2 “Saúde da Família” e Curandeiros em Mercês – MG Mercês tornou-se município em 01/06/1912 e pertence à microrregião de Ubá, na Zona da Mata de Minas Gerais. Possui uma área de 355 km², estando localizada a 235 km da capital do Estado. Limita-se ao norte com os municípios de Alto Rio Doce e Dores do Turvo; ao sul com Tabuleiro , Paiva e Aracitaba; ao leste com Silveirânia e Rio Pomba; ao oeste com Santa Bárbara do Tugúrio e Desterro do Melo. Sua população é de 10.055 (dez mil e cinqüenta e cinco) habitantes, distribuídos na zona urbana e rural. Antes da ocupação pelo homem branco, seu território era povoado pelos índios Goitacazes, cujas tribos viviam da pesca, da caça e da colheita. Merece destaque artístico - cultural a Igreja Matriz de Nossa Senhora das Mercês, construída em estilo gótico em 1882, por iniciativa do Padre Luís Carlos da Rocha e as pinturas da matriz feitas por Antônio Porfírio. As atividades econômicas do município estão ligadas diretamente à agropecuária, destacando a bovinocultura de leite e a suinocultura; e na agricultura, os cultivos de milho, feijão, arroz, pimenta-malagueta e o reflorestamento com o plantio de eucalipto. No setor secundário, destacam-se as indústrias de transformação, como Companhia Industrial Januária de Faria e Santa Amélia Indústria de Papéis, Laticínios Maria Clara, cerâmica Porto Real e Palitos Maria Clara. O setor terciário é constituído por 01 estabelecimento atacadista e vários comércios varejistas, tais como: açougues (13), armazéns (12), supermercados (05), papelarias (04), farmácias (03), padarias (05), postos de gasolina (03), comércios agropecuário (03), bares (42), confecções (03), exploração mineral (06), serrarias (03), hotéis (01), pousadas (02), transportes de passageiros (02), restaurantes (05). Das agências prestadoras de serviços, Mercês conta com o Hospital São Vicente de Paula, Laboraclin-Laboratório de Análises Clínicas, Laboratório Bom Pastor, 01 Agência de Correios, 01 Agência Bancária - Banco do Brasil, 01 Casa Lotérica, 01 Ótica, 01 Centro de Saúde Municipal, 01 Unidade Básica de Saúde e vários Postos de Saúde na 3 zona rural. Sua rede de telefonia tem aproximadamente 1.000 linhas telefônicas. O município possui rede de água tratada em toda sua área urbana. O município é habilitado na Gestão Plena de Saúde na Atenção Básica e participa do Consórcio Intermunicipal de Saúde da Microrregião de Ubá, composto pelos municípios de Ubá, Tabuleiro, Rodeiro, Rio Pomba, Silveirânia, Mercês, Tocantins, Brás Pires, Coimbra, Dores do Turvo, Divinésia, Ervália, Guidoval, Guiricema, Paula Cândido, Piraúba, Presidente Bernardes, São Geraldo, Senador Firmino, Visconde Rio Branco. A 1ª Equipe de Saúde da Família iniciou os seus trabalhos no ano 2.000, atendendo parte da população da zona rural e parte da zona urbana do município. Essa é uma característica marcante do 1ª Equipe de Saúde da Família mercesana. No ano de 2001, foi aprovada pelo Conselho Municipal de Saúde a implantação de mais duas equipes de Saúde da Família, passando o município a contar com três equipes formadas, cada uma, por: 1 enfermeiro; 1 médico; 1 técnico de enfermagem e 6 Agentes Comunitários de Saúde - ACS. Foi implementada, ainda, uma equipe de Saúde Bucal composta por 1 cirurgião dentista e 1 atendente de consultório odontológico para trabalhar na equipe da zona rural. As equipes de Saúde da Família da Zona Urbana fazem seu atendimento de enfermagem, médico e odontológico em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) que foi adaptada de um antigo Posto de Saúde construído em 1982, que há mais de cinco anos estava desativado, devido à construção de um Centro de Saúde. Com a implantação da 1ª equipe de Saúde da Família o Posto foi reativado, porém, sem qualquer adequação para o funcionamento da equipe de saúde da família. A equipe da zona rural tem como característica marcante o fato de não possuir uma Unidade Básica de Saúde (UBS) sede, com prédio próprio para atendimento. Para realizar seu atendimento, às vezes a equipe realiza suas ações nos Postos de Saúde, sendo que 4 (quatro) estão em funcionamento e 4 (quatro) desativados por falta de profissional habilitado para trabalhar. Nos demais locais os atendimentos são realizados nas escolas, onde é cedida uma sala. Na zona rural foram cadastradas 24 localidades. Em quatro delas só é realizado o atendimento domiciliar, devido ausência da infra-estrutura relatada e pelo fato da equipe não ter condições de atender em todas as localidades em todos os dias da 4 semana. Garante-se, contudo, aos usuários residentes na zona rural, o atendimento diário nos Postos de Saúde da zona urbana e no Centro de Saúde. As Equipes de Saúde da Família de Mercês atendem a uma população cadastrada que corresponde a 97,54% dos 10.055 habitantes do município, sendo que das 9.808 pessoas cadastradas, 3.608 residem na zona rural e 6.200 residem na zona urbana. 2.1 Os Curandeiros em Mercês Feiticeiros, benzedores, exorcistas, videntes, pais-de-santo, padres, sacerdotes, etc, sempre assistiram aos doentes ao longo da história. O abandono da população em termos de assistência de saúde fortaleceu as práticas alternativas que misturavam as pagelanças indígenas com a medicina popular dos práticos, jesuítas e fazendeiros gerando assim uma rica tradição popular, às vezes eficaz, outras vezes funcionando apenas como conforto aos enfermos e familiares ( SERRANO, 1985). As práticas de curandeirismo como medicina popular surgiram como parte de uma cultura originalmente rural, católica, dentro de uma esfera familiar. Nascidas das relações entre os homens, para satisfazerem suas necessidades, são práticas dinâmicas e atualizadas à medida que recriadas com o deslocamento das pessoas do campo para as cidades, nos processos migratórios - permanecendo resistentes às formas oficiais de cura. Dentre os motivos para a ocorrência desse fato constata-se que: Primeiro, a medicina popular é uma prática que resiste política e culturalmente à medicina acadêmica. Isto quer dizer que ela confronta seus conhecimentos, o seu arsenal de técnicas e a cultura da qual é a medicina praticada pelos médicos – a medicina erudita. A medicina popular é realizada em diferentes circunstâncias e espaços (em casa, em agências religiosas de cura) e por várias pessoas (pais, tios, avós), ou por profissionais populares de cura (benzedeiras, médiuns, raizeiros, ervateiros, parteiras, curandeiros, feiticeiros. (Oliveira, 1985, p . 22) . Mercês é um município, como os demais da região, que sofreu forte influência indígena, européia e africana e a herança destes povos, em termos de práticas de curas, próprias de uma medicina popular que compõem o acervo cultural da Zona da Mata, podem ser facilmente detectadas. Assim é que se registra a atuação de rezadeiras e benzedores católicos, de benzedores umbandistas, de médiuns espíritas, de pais-de-santo, de raizeiros, 5 de “garrafeiros” (pessoas que fazem garrafadas de ervas para curar as mais diversas doenças) e, ainda, de pastores pentecostais, que se dispõem a curar todos os males. Estes curadores populares podem ser encontrados, com facilidade, tanto na zona urbana como rural. Apesar do curandeirismo em Mercês ser uma prática que existe desde a povoação do município, não há uma fonte oficial, fidedigna, de dados sobre o número de curandeiros e nem sobre a diversidade das práticas que são usadas atualmente. Para efeito deste estudo, foram contatos apenas os dois curandeiros de maior popularidade na cidade. 3 Observando Profissionais e Curandeiros: a metodologia A possibilidade de realização de um trabalho conjunto com os profissionais das Equipes de Saúde da Família e curandeiros locais, nos moldes propostos pela Conferência de Alma - Ata serviu como fio condutor para este estudo. Para verificar essa viabilidade foi necessário observar como ambos os grupos se percebem. Para conseguir analisar as relações entre a medicina popular e a medicina científica e verificar as possibilidades das duas práticas conviverem juntas, empreendeu-se uma pesquisa qualitativa e exploratória. Optou-se por essa metodologia porque a pesquisa qualitativa se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado, trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações das pessoas e dos fenômenos que não podem ser reduzidos a operacionalização de variáveis (MINAYO, 1993, p. 21) Caracteriza-se como exploratória porque tem como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e idéias, tendo em vista a formulação de problemas mais preciosos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores (Gil, 1999). E, tendo em vista que no município não existem dados sobre o assunto abordado, os resultados obtidos poderão servir para delineamento de novas pesquisas. Os dados foram levantados a partir de entrevistas semi-estruturadas que, segundo Roesch (1999), se caracterizam como uma forma de interação social em que uma das partes busca coletar dados, enquanto a outra se apresenta como forma de informação. Permitindo observar todas as perspectivas dos entrevistados, obtendo informações inesperadas sobre como vivenciam as situações colocadas (ROESCH, 1999). 6 Triviños (1987) salienta também que a entrevista semi-estruturada valoriza a presença do investigador e oferece perspectivas maiores de enriquecimento de uma investigação. Junto com as entrevistas foram realizadas a observações direta, livre, com o objetivo de captar todas as manifestações dos entrevistados com relação ao tema abordado. Com relação aos profissionais da equipe de saúde, a amostra foi restrita a disponibilidade dos mesmos e quanto aos curandeiros foram escolhidos a partir da popularidade no município. Porém, registra-se que a pesquisa qualitativa não se prende a uma objetividade matemática, estatística. Como observa Roesch (1999), citando Marshall, uma amostra pequena é adequada para estudos qualitativos exploratórios, pois permite maior aprofundamento das informações colhidas. As entrevistas foram gravadas e foram inúmeras as observações anotadas no Diário de Campo. Após leitura exaustiva das entrevistas transcritas, os dados foram confrontados com o referencial teórico, comparando este com as entrevistas em suas semelhanças, diferenças e/ou divergências, o que segundo Roesch (1999) é um meio poderoso de controle e entendimento da realidade. Obteve-se uma autorização da Secretaria Municipal de Saúde para a pesquisa junto à Equipe de Saúde Família do município de Mercês, o que muito contribuiu para realização do trabalho. Pelo fato desta pesquisa não ter realizado nenhum experimento que envolvesse identificação pessoal e/ou envolvimento humano, não foi submetida ao Conselho de Ética para sua aprovação, conforme orientação do próprio Conselho, na época de realização deste estudo. A partir do seminário de monografia do curso de Especialização em Saúde da Família, conseguiu-se adequar o guia de entrevistas aos objetivos da pesquisa, já que não se realizou um pré-teste. Participaram do estudo quatro mulheres com idades compreendendo de 36 a 61 anos e 3 homens com idades entre 40 e 71 anos. Nesse grupo somente um entrevistado reside no município há menos de 2 anos, os demais são moradores antigos. Entre os profissionais, os mais antigos têm 3 anos de trabalho na equipe e o mais novo tem 6 meses 7 de atuação. Ao todo foram entrevistadas 8 pessoas: um médico, uma enfermeira, um técnico de enfermagem, dois agentes comunitários de saúde e dois curandeiros. 4 Medicina Oficial e Curandeirismo em Mercês: análise e interpretação dos dados A análise dos dados coletada, foi confrontada com estudos existentes a cerca da medicina popular e com as propostas da Conferência de Alma-Ata, com os cuidados primários de saúde. Foram abordados em separado na análise a interpretação dos profissionais e dos curandeiros, e em seguida apresentados dados sobre as possibilidades de interação entre os dois saberes. 4.1 A visão dos profissionais de saúde sobre o curandeirismo Entre os profissionais de saúde perceberam-se diferentes posicionamentos a respeito das práticas de curandeirismo. Entretanto, todos foram unânimes em afirmar que a população assistida recorre também às práticas de curandeirismo, como disse um agente comunitário de saúde: “Ah! Muitos participam, eu acho. Eu acredito. É porque eu vejo que procuram”. Para os profissionais, são diversos os motivos que levam as pessoas a recorrerem a essas práticas, mas todos concordaram que a vontade de ser curado mais rápido é o motivo mais importante: Eu acredito que é uma maneira de ficar livre dessa situação o mais rápido possível. Muita gente acha: esse ferimento não sara, ficar fazendo curativo todos os dias; parece que ainda tá cheio de coisa. É uma maneira de ficar livre mais rápido possível daquela enfermidade temida e acaba apelando para outros tipos de coisa tipo chás e benzeção. Outro motivo apontado é a crença de que as pessoas, além de confiarem nessas práticas, as procuram devido a alguma carência. Como afirmou a enfermeira: Porque às vezes as pessoas estão tão carentes, que vão em busca de uma cura imediata. Então por ir em busca dessa cura imediata ele pensa que o benzedeiro ou macumbeiro acha que aquilo ali vai fazer milagre maior que o profissional e às vezes por achar que aquele curativo que é feito ali todo o dia, de lavar aquilo ali; passar soro; passar remédio, que lá no curandeiro tem ervas, tem aquelas coisas da plantas, do natural, da raiz, ela acha que aquilo tem efeito melhor que o medicamento. 8 Atribuem também a fatores culturais e socais. Como falou o médico da equipe: “Eu coloco da seguinte maneira: Em 1° lugar, que eu acho, é um povo cheio de uma cultura muito baixa, normalmente. A maioria é uma cultura baixa. Esse tipo de prática de curandeirismo está muito na cabeça desse povo, porque vem de família. Vem de coisa da roça, antigo... os antepassados faziam chás, faziam essas coisas tipo benzeção. Benzeção então tem demais aqui! Eu acho que é um problema cultural. É um problema relacionado à cultura desse povo que vem desse meio rural. Anos atrás eu acredito que certas coisas aqui dentro de Mercês tenham acontecido porque não havia médico aqui. Acontecia que eles aproveitavam que não tinham como tratar e começava procurar esse tipo de tratamento através da benzeção, chás. E, de uma maneira ou outra, de repente isso melhorava, era uma coisa boba que melhorava por si só, às vezes independente do uso da benzedura ou do chá e aquilo ia passando de pai para filho. “Acho que procuram justamente ainda porque, não houve uma conscientização entre aspas, oficial, de que isso não vale de nada”. “Eu acho que teria de haver uma conscientização através dos profissionais de saúde. Fazer reuniões com essas pessoas, alguma coisa nesse sentido, pois uma hora eles vão se dar mal fazendo essas coisas”. A medicina acadêmica vê a atuação de medicina popular tendo como referência a atuação médica dominante — seja contrapondo-se a ela, seja tentando complementá-la. A medicina acadêmica, ao contrário, atua sempre "no lugar de" todas as outras práticas, isto é, desconhecendo-as ou desqualificando-as como supersticiosas e ignorantes (Alves, 1997, p. 112). Nunes (1989), citando Guillen e Peset (1972), salienta outro aspecto da elitização da assistência médica ao afirmar que desde a Idade Média, ficava a assistência aos pobres, em mãos de curandeiros e barbeiros, e os demais, quando as cidades os amparavam, podiam refugiar-se e morrer nos hospitais e hospícios organizados pela caridade municipal (Nunes, 1989, p.55). As práticas de curandeirismo foram vistas como uma opção merecendo, porém, alguns questionamentos, como o da enfermeira: “Depende, se a pessoa for aquela que aceita o atendimento desses profissionais de curandeirismo e benzedura, e também aceita o do profissional médico e enfermeiro, não influencia não, ele só acrescenta. Porque a fé que a pessoa tem naquilo ali vai ajudar seu tratamento. Porque isso tem muito a ver, o poder da pessoa querer melhorar e se ajudar no autocuidado. Se for levado paralelamente com atendimento médico e de enfermagem é uma coisa que acrescenta e até é válido. Agora se a pessoa partir pro ponto de que o atendimento médico e o atendimento de enfermagem tradicional vai ser ocupado pelo outro lado, isso aí atrapalha. 9 A fala da maioria dos profissionais em relação ao curandeirismo mostrou que desvalorizam as formas de cura diferente da medicina tradicional. Segundo Oliveira (1985), a medicina popular é uma prática de cura concreta que, ao realizar-se, mostra aos médicos, biólogos, enfermeiros (os profissionais da medicina erudita) que, no campo da saúde, não há um único modo de se fazer ciência (OLIVEIRA, 1985, p.9). E, Nunes, citando Koos (1954), afirma que as pessoas utilizam práticas não científicas, por possuírem uma percepção particular do processo saúde – doença e uma vivência pessoal de como determinarem a maneira como desejam tratar suas enfermidades: É o paciente quem dá a primeira definição do seu estado. Esta definição é feita mediante a interpretação de seus sintomas, orientado por sua própria noção de doença. Se sua concepção coincide com a explicação científica e ele julga seu estado insatisfatório, buscará a ajuda de quem está oficialmente autorizado pela sociedade, esta pessoa é o médico, e, em maneira definitiva. Em nossa sociedade, esta pessoa é o médico, e, em conseqüência disso, a relação médico - paciente concretiza-se (NUNES,1989, p.45). A fala dos profissionais técnicos divergiu da fala dos agentes comunitários de saúde, pois os últimos declararam que utilizam o curandeirismo e, às vezes, recomendam aos usuários da Unidade de Saúde da Família que recorram aos curandeiros. Chamou atenção o fato dessas condutas serem apresentadas de forma marginalizada, já que deixaram, transparecer que dentro das equipes tais assuntos não devem ser comentados. Como diz um agente comunitário de saúde: Eu recomendo, assim, procurar o médico primeiro. Depois se eu vejo que não resolveu eu mando procurar um benzedor. Ah, isso eu mando mesmo! (A entrevistada diz que manda as pessoas procurarem um curandeiro rindo como se fosse proibido recomendar tais práticas). È, às vezes nem tudo que o médico cura. Tem coisas que a medicina não explica, não sabe explicar! É claro que essas pessoas têm de ser pessoas como que eu falo : responsáveis, porque tem muitos aí que são pilantragens também. É em tudo quanto é área tem, né? A gente sabe. Também tem que ser pessoas responsáveis, já de idade, que a comunidade conhece e confia, não é? Não é assim também, eu faço remédio e ir fazendo não. É perigoso também. Evidenciou-se assim a visão popular do curandeirismo. Não basta estar dentro de um sistema organizado, como é a equipe de saúde da família, para concordar com tudo o que esse sistema lhe impõem como correto. O agente comunitário de saúde é um profissional que faz parte da comunidade e traz consigo uma gama de conhecimentos adquiridos ao longo de sua vida, que são o reflexo da sociedade em que vive. Compartilha 10 com ela características que definem crenças alicerçadas naquilo em que a comunidade acredita, principalmente, no que diz respeito aos cuidados com a saúde. Percebeu-se nas entrevistas que não basta o curandeiro se dizer curandeiro, ele tem de ser reconhecido na comunidade pela sua eficácia. Entre as práticas populares de curandeirismo existem os bons e maus curandeiros que são, ou não, bem aceitos pela comunidade. Como afirma Laplantine, o curandeiro raramente possui um conhecimento, mas sim um conjunto de habilidades que se enriquecem no decorrer de sua experiência. E, principalmente, exerce um poder fundamentado no reconhecimento de parte do grupo social (LAPLANTINE, 1989). Levi-Strauss (1970) disse sobre a eficácia da magia, que o processo da cura não acontece somente a partir do doente, mas sim da percepção coletiva de como ocorre a cura: A eficácia da magia implica na crença da magia, e que esta se apresenta sob três aspectos complementares: existe, inicialmente, a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; em seguida, a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva, que forma a cada instante uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se define e se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça (LEVI-STRAUSS ,1970, p.184). E, sobre o poder do feiticeiro, afirma, esse antropólogo que: o feiticeiro não se torna grande por curar seus doentes, mas sim só cura os doentes por ter se tornado um grande feiticeiro. O que mostra que a relação do indivíduo com o grupo e suas exigências é que o faz eficaz ou ineficaz como feiticeiro. Podendo desconstituir ou reconstituir de acordo com o consensus social (LEVI-STRAUSS, 1970, p. 198). Os profissionais não sentem a influência dos curandeiros nos seus atendimentos, mas ressaltaram que pode ocorrer, em determinadas situações, como declarou o médico: Comigo nunca aconteceu, nunca tive relato de pessoas que tivessem deixado de fazer um tratamento porque optaram por uma prática de curandeirismo. Comigo eu não lembro de ter acontecido e terem se dado mal. Pode até, eu sei, que a gente prescreve no consultório e eles vão fazer, às vezes até abandonam o tratamento que a gente passou e vão fazer lá, benzer espinhela caída, vai benzer o cobreiro e vai fazer outra coisa. Ou então, já vêm pra cá depois de terem benzido e não resolvido o problema. Então, eu acho que, em relação a determinado tipo de doença, influencia sempre para pior. Dependendo da patologia, vão curar uma bronquite que curou por si só e achou que foi a benzeção. 11 Para Maria Andrea R. Loyola a medicina erudita é soberana nos atendimentos, que o médico é considerado às vezes não como o detentor de saber legítimo mas como um simples provedor de medicamentos do qual se espera uma eficácia superior a dos outros meios terapêuticos já tentados (LOYOLA, 1984, p.23). Segundo essa autora as pessoas não abandonam a medicina tradicional e quando ocorrem de procurarem um profissional médico e em seguida um especialista espiritual, e novamente, outro médico, se os diagnósticos médicos são diferentes e o segundo contesta o primeiro, a melhora ou cura do paciente são atribuídas ao especialista espiritual, sendo que a eficácia da medicina não é contestada, os dois profissionais médicos são tidos como eficientes (LOYOLA, 1984, p.174). O técnico de enfermagem exemplificou como se efetiva, entre os usuários, as práticas de curandeirismo e o atendimento das equipes de saúde da família. Não, eu acredito que não. A gente faz o trabalho de um lado e o cliente ou paciente o doente acaba apelando para o outro lado. Tem um limite é claro, mas acaba a gente prevalecendo, né? Entre o curativo e a benzeção, acaba tendo mais crédito, né?! O curativo ou a injeção a medicação que a própria benzeção, porque a benzeção é uma maneira de pensar que pode antecipar e que conversa de um e de outro que deu certo. E vai pela conversa dos outros. Pode acontecer da pessoa falar, eu vou aceitar seu trabalho, curativo, mas eu estou indo na igreja, fazendo uso de chá. Sempre atende os dois; o curativo e vai benzer ou tomar um chá. 4.2 A visão dos curandeiros sobre as ações de saúde e suas práticas A origem familiar e o caráter religioso das práticas dos curandeiros ficaram evidentes. Narrou um curandeiro: Faz 40 anos. Aprendi com meu tio, na minha família eram cinco tios que benziam. Um dia, um deles encontrou com um padre na beira da estrada com o cavalo machucado. Meu tio encontrou com ele na estrada e pediu que o padre descesse do cavalo, quando o padre desceu ele benzeu o cavalo e o cavalo saiu andando. Passado um tempo o padre voltou e procurou meu tio e perguntou o que ele tinha feito para o cavalo voltar a andar. Então meu tio disse que havia benzido o cavalo , e o padre pediu que ele o ensinasse e continuasse a benzer em nome de Deus. Eu tenho a licença de um padre que não gostava de cabide para segurar sua capa. Antigamente precisava de autorização para benzer pois a palavra benzeção era pecado. Faço remédio e cobro um dia de trabalho, pois além de preparar o remédio tenho de ir no mato para colher as ervas certas, mas benzeção não. Eu não cobro não, porque não sou autorizado. Tudo que faço é porque eu e as pessoas temos fé[...] Eu não preciso de Deus, eu preciso é da fé que tenho nele. Confirmou-se assim estar à religiosidade popular impregnada nas práticas culturais dos rezadores, pois os mesmos invocam , em cada gesto ou oração, a presença de Deus e de 12 fenômenos relacionados ao sobrenatural, demonstrando que a vivência religiosa se faz presente no cotidiano de cada um (ALVES, 1997). Os curandeiros sabem que a população que socorre, utiliza o atendimento das equipes de saúde da família, porém, atribuem as curas de seus clientes aos seus cuidados e não as relacionam com o atendimento da medicina tradicional: Sim, são as mesmas pessoas que vão no posto e inclusive até nos hospital mesmo. Sai do hospital “tá” ruim, vem aqui e vão embora bom mesmo. Graças a Deus!! Graças a Deus!! Que Deus me dá uma ajuda. Consideraram como motivo para a dupla prática, o fato de que existem doenças que os médicos não conseguem curar: Entendo. O negócio é bravo. Se for espinhela caída ou coisa feita o médico não resolve só se for espírita aí ele sabe e fala para a pessoa que aquilo não é para ele. Senão, só o dia que Deus quiser tirar o sofrimento de um dia para o outro.” Alguns vão e outros saem da cama do hospital e vêm aqui. Quando vou visitar no hospital não posso falar que benzo, senão eles me mandam embora. Não posso benzer lá dentro. Um, dia fui no hospital e uma moça estava tão ruim que não percebeu eu perto dela. A vizinha pediu para eu benzer e eu disse não posso benzer aqui não, mas vou fazer por misericórdia. Amanhã eu volto entro aqui benzo de novo e saio. Quando voltei no outro dia ela já não estava mais lá no hospital. Pode trazer um homem com uma ferida que com uma benzeção eu resolvo ela. Alves (1997) citando Montero (1985), disse que os casos em que a medicina acadêmica não consegue resolver, a medicina popular se coloca como sendo uma prática complementar e/ou alternativa na solução dos problemas, enquanto a medicina acadêmica, não reconhece a existência de outra medicina que não ela própria. Loyola (1984), comenta que as doenças podem ser de caráter material e espiritual, o que faz com que os tratamentos sejam distintos e determine qual será o tipo de tratamento a ser procurado. As doenças materiais são aquelas que apresentam perturbações orgânicas cujas causas parecem evidentes e, principalmente, aquelas em que o doente apresenta sintomas considerados graves. Neste caso eles são enviados ao médico; em caso contrário, são tratados com a farmacopéia popular (Loyola, 1984, p. 63). Sob o ponto de vista das técnicas de cura, a doença espiritual é a que o médico desconhece e não compreende, e a que ele não cura (LOYOLA, 1984, p. 165). 13 Para outro curandeiro, as pessoas procuram as benzeções e o posto de saúde porque: Eu acho assim! Sabe qual é o motivo? É que às vezes tem uma coisa feia. Vão, suponhamos que você está com uma dor no corpo, às vezes aquela dor no corpo que você “tá” com ela, às vezes não é lá de um remédio nem nada, costuma até o remédio lhe fazer mal. Às vezes é um mau “oio” (olho) que a pessoa pôs nessa pessoa. Aí primeiro Deus depois a gente vai jogar uma brazinha e rezar. Não é difícil não. Que tudo é pedido de Deus; que a gente faz com Deus e que Deus abençoa a gente. Então a gente vai ali ( mostra um lugar perto do fogão de lenha) faz as “oração” da gente, reza um credo, reza para o anjo - de - guarda da gente. Depois joga umas brasas ali fala o nome da pessoa é Marisa é João Vitor, ele já está com aquela fé que vai melhorar ele sara. Que tudo nesse mundo é a fé. A fé remove montanha. Que um gole de água fria com fé cura. Sobre essa questão, Nunes (1989), em sua pesquisa concluiu, que as pessoas utilizam essas práticas por terem noções diversas do que é ou não saúde e de como lidar com a doença. Isto porque coexistem, no mesmo indivíduo, noções científicas e não científicas, que ele usa paralelamente para distintos tipos de doença, de tal modo que algumas caem no âmbito da terapia médica e outras no âmbito da terapia não médica. Por isso é que se vê o indivíduo recorrer, em alguns casos, ao médico e, em outros, a pessoas fora da profissão (NUNES, 1989, p.45). Entre os curandeiros, existem maneiras diferentes de se relacionarem com a medicina tradicional. Quando indagado se recomendava que as pessoas procurassem um médico, um curandeiro respondeu: Não. Não mando ir ao médico, pois lá ele trata como quer. Se a pessoa tiver de morrer no meio da benzeção você sabe. Você pode benzer 50 vezes e a benzeção pára no meio do caminho, a gente erra as rezas, aí a gente sabe mesmo, então fala com quem está junto. Outro, porém, ao contrário, respondeu que recomendava, e se justificou dizendo que às vezes ele mesmo precisava do atendimento médico tradicional: Ah, eu sim. Sempre que eles chegam aqui eu falo. Porque tendo a gente tem um sentido. A gente numa compaixão se a pessoa vem aqui, assim que eu benzer eles, só pelo jeito que ele “tá” eu sei se ele tá melhorando ou não. Quando ele não está melhorando eu falo: - Você tem que ir no médico. Inclusive até eu mesmo, quando eu preciso ir no médico eu corro no Dr. XX. Eu tento primeiro cá ai depois eu vou lá. Para Maria Andrea R. Loyola (1984), um curandeiro indicar o atendimento médico para um cliente é uma forma que tem de ver avaliada sua capacidade de diagnosticar. Um dos critérios fundamentais de avaliação dos especialistas religiosos e a 14 sua capacidade de diagnosticar o mal corretamente é, principalmente, de determinar se a doença é de sua competência ou da competência do médico e, neste caso, de encaminhar o doente a este especialista (LOYOLA, 1984, p.182). Indagados sobre as relações e influências da equipe de saúde da família em suas atividades, um curandeiro respondeu: Não interfere. Já mandei muito remédio para o XX (médico de uma das equipes de saúde da família do município) fazer pomada, ele não sabe mas o ZZ vem buscar e leva para ele. Benzeção não pode nem falar lá com os médicos não. Outro curandeiro considerou que, além de influenciar, serve para reafirmar a confiança que tem nas suas práticas e na sua fé: Influencia sim. É a fé. Até o médico Dr. XX vire e mexe ele manda gente para cá, vai lá na dona Maria. É um dom da gente é a mesma coisa do “cê”... “cê” vai fazendo arroz ele vai enrolando lá, depois então quando diz ele fica só enrolado e então ele fica soltinho é a mesma coisa. Porque, graças a Deus, te dá até mais força porque se firma mais em Deus entendeu? O atendimento ajuda, me dá mais força, eu fico tranqüila porque na “acompanhação. Graças a Deus! Às vezes a pessoa “tá” se tratando, aí me firma mais minha fé, porque minha fé fica mais forte com Deus e com Sagrado Coração que tudo que eu faço ele está no meio. Ele me dá mais força porque ai eu fico tranqüila porque numa comparação num “tá” melhorando lá, vem aqui fica bom eu falo, graças a Deus. Deus me ajudou e abençoou minhas palavras. É muito importante. Há pouco tempo ali tinha um moço no hospital e eles mandaram ele para Ubá, e antes de ir para Ubá ele veio aqui. Dona Maria! “Eu não agüento” disse. Duas vezes ele veio aqui em casa ele foi, ele morava lá no Ribeirão de Santo Antônio. Ele não pôde ir para casa não. Porque daqui de casa ele ficava no hospital. Mas eu vou falar pra você mesmo, esse ramo aqui (mostrou o ramo de folha da fortuna). Eu dei o moço ele levou ele, toma o chá dele pois no dia na quinta-feira que ele ia em Ubá ele ia chegou em Ubá e não tinha nada E eu tenho meus raminhos e faço meus chás de ramo. Como concluiu Lévi-Strauss (1970, p. 203), não é necessário que médico e doente estejam juntos, o fato é que o tratamento se dissolve numa fabulação onde só necessitará de uma linguagem que sirva para dar a tradução, socialmente autorizada, de fenômeno cuja natureza profunda ter-se-ia se tornado igualmente impenetrável para o grupo, para o doente e para o mago. Segundo Laplantine (1989, p. 50) a magia é um ato de fé em um princípio de harmonia: o equilíbrio do homem, da natureza e da cultura que se opõe à tendência de dissociação do homem, da natureza e da cultura, cujo corolário é a especialização. 15 4.3 A Interação dos Saberes As opiniões sobre a incorporação dos curandeiros pelos profissionais das Equipes do Saúde da Família, divergiram entre os profissionais. E, mesmo os que utilizam práticas dessa medicina popular no seu cotidiano, apresentam restrições quanto a uma interação. Perguntado se os curandeiros poderiam trabalhar junto da equipe, um ACS respondeu: Eu creio que sim, mas eu acho que essas coisas não são aceitas não. Ah, o que tem ser um benzedor capaz que as pessoas vão achar que eles vão interferir , né? Tipo assim o médico vai achar que ele vai interferir, porque entre os médicos, os médicos não vão acreditarem um chá, em uma benzeção; não vão acreditar em uma benzeção; não vão acreditar nisso; aí, eu acho que ia haver uma dificuldade. Eles não iam poder, eles não iam ter liberdade também de estar no meio do lugar onde estão os médicos, onde que está enfermeira onde tem tudo e fazer as coisas direito. Outro agente comunitário acha que o trabalho dos curandeiros junto da equipe vai muito além do que propõem a Conferência de Alma - Ata (1978) que sugere a participação desses líderes comunitários nos cuidados primários de saúde, conforme citado anteriormente. Ele acredita que os curandeiros trabalhariam, em conjunto com a equipe, de forma a unirem seus conhecimentos em prol do melhoramento da saúde das pessoas de sua comunidade. Eu acho. Porque ia juntar a ciência a medicina ali junto com a... a ... a..., como que eu vou te falar, você sabe do que estou falando, né, é assim tipo um auxílio, entendeu? Um auxiliando o outro, o conhecimento de um com outro. Ia assim auxiliar tanto o médico, o médico ia atender assim com ele e eles com o médico. Diferente do agente de saúde, o médico disse concordar se os curandeiros fossem treinados pelos profissionais da equipe. Não associou sua concordância à liderança dos curandeiros na comunidade e nem tão pouco admitiu uma troca de experiências nas formas de tratamento. Como afirmou: “Eu acho o seguinte, quem quer trabalhar direito dentro de um determinado padrão, eles teriam de ser treinados e teriam de trabalhar de acordo com a forma com que nós determinássemos. Até porque, quando se faz um concurso ou se contrata alguém para trabalhar, não se pergunta se ela é curandeira”. Ao contrário do que propõem a Conferência de Alma – Ata, - que atribui aos curandeiros maior credibilidade como agentes de mudança por estarem inseridos na 16 comunidade e serem respeitados por suas ações - o técnico de enfermagem acredita que as pessoas não dariam credibilidade ao trabalho dos curandeiros, caso sejam aproveitados como agentes comunitários de saúde: Não, eu acho que não. Eles não teriam crédito não. Se tiver uma informação tem de ser pessoas do posto. Senão, acaba não está tendo crédito ela não tendo crédito, acaba não ajudando os outros. A enfermeira, afirmou que essa situação seria inviável, porque, segundo ela, os curandeiros não se limitariam a trabalhar conforme as orientações da equipe: Não, isso aí não teria condição porque eles iriam ultrapassar o limite de trabalho deles. Porque na realidade essas pessoas que trabalham com isso, se acham como os solucionadores de todos os problemas, mas inclusive superior ao atendimento médico tradicional. Resultado idêntico Alves (1997) obteve na comunidade onde desenvolveu sua pesquisa: Apesar de estes agentes — atendente de enfermagem e agente comunitária de saúde — por conta de seus trabalhos (são funcionárias da Secretaria Municipal da Saúde de Feira de Santana) terem incorporado as normas da medicina e enfermagem acadêmica, difundindo as práticas oficiais aprendidas com os profissionais da medicina e enfermagem acadêmica (estudantes de enfermagem, enfermeiros, médicos e dentistas), através de treinamento de educação à saúde e de orientações informais, continuam eles atuando, predominantemente, através do seu conhecimento em medicina popular, como é demonstrado pela indicação de chás, banho, ungüentos e garrafadas de plantas (ALVES, 1997, p. 34). No contexto das relações entre a medicina científica e as práticas de curandeirismo, M. A. Loyola afirma que como as práticas de curandeirismo e a medicina tradicional sobrevivem no mesmo espaço, caracterizam -se tanto pela complementaridade quanto pela oposição (LOYOLA, 1984, p.194). A medicina tradicional dentro do seu poder de conhecimento esconde suas imperfeições ao compreender de forma equivocada as manifestações da medicina popular, que muitas vezes suprem as necessidades do indivíduo que ela não consegue atender. Como exemplificou um ACS4 que leva sua filha em curandeiros e se justificou dizendo que outros “vão e se curam, porque eu não posso também?” Entretanto, se a medicina dominante compreende mal este sistema de representações e de práticas populares em 17 matéria de doença e de cuidados com a saúde, é, provavelmente, por que se defende contra o que é, antes de tudo, um sistema de defesa contra si própria (LOYOLA, 1984, p.191). Condição percebida na afirmação de um dos agentes comunitário: É assim, é que eles (os médicos) acham que é só eles, os remédios, a medicina que cura. E a gente mesmo vê casos aí de pessoas que às vezes foi no médico, tratou, tratou, tratou, e foi curar às vezes com uma pessoa que faz remédio ou que benze. Werner e Bower (1984), colocam que os curandeiros profissionais podem se tornar agentes muito capazes e dedicados para a atenção primária. Acrescentam que ao trabalhar com agentes de saúde e /ou curandeiros os profissionais técnicos devem aproveitar as boas tradições, já que tanto os meios de cura popular, como os meios científicos têm vantagens e desvantagens. Para isso os profissionais deverão ajudar as pessoas a saberem identificar o que é benéfico e/ou maléfico para sua saúde, reedescobrindo dentro da suas tradições aquilo que realmente é aproveitável. 5 Considerações Finais Quando se fala, no seio de medicina científica, das práticas de curandeirismo como uma alternativa de cura, encontra-se forte traço de preconceito que esbarra em questões sociais e culturais. Por outro lado, percebe-se que a medicina acadêmica é também alvo da descrença da população, a partir do momento em que não consegue curar todas as enfermidades que acometem as pessoas. Observando as relações entre os curandeiros e os profissionais da equipe de saúde da família, constatou-se que ambos reconhecem a existência do trabalho um do outro, mas não se relacionam, trabalhando isoladamente. Os curandeiros se mostraram mais abertos aos conhecimentos dos profissionais da equipe de saúde da família. Estes, por não serem homogêneos, apresentaram níveis diferentes de aceitação das práticas de curandeirismo. A enfermeira as viu como benéficas desde que o cliente não abandone o tratamento da medicina acadêmica, já que acredita no poder da fé na melhora do paciente. Porém, considerou inviável se trabalhar com os curandeiros dentro da equipe. 4 Esse agente de saúde pediu que esta parte da entrevista não fosse gravada porque tinha receio que seus 18 O técnico de enfermagem acredita que essas práticas devem ser utilizadas, mas sempre associadas com o tratamento médico, e achou que a comunidade não daria credibilidade ao trabalho dos curandeiros na equipe de saúde da família. Este pensamento contraria todas a argumentação de Alma–Ata quanto a aproveitar a credibilidade dos curandeiros na comunidade. Neste sentido, as entrevistas parecem indicar que a credibilidade não se transfere de um campo de saber para outro. Já o médico da equipe acredita que a procura dessas práticas permeia questões sócio – culturais que fazem parte da história rural do município. Para ele, independente de trabalharem ou não dentro da equipe, os profissionais deveriam fazer um trabalho com curandeiros e benzedores, a fim de mostrar-lhes a “ineficácia” de suas práticas. Quanto aos curandeiros trabalharem na equipe considerou que, se forem devidamente treinados e aceitarem atuar nos moldes determinados pelo saber técnico-científico poderão ser incorporados. Os ACSs demonstraram um posicionamento semelhante. Porém, um deles achou que os curandeiros não se sentiriam bem e não teriam liberdade porque os médicos e enfermeiros não teriam confiança no seu trabalho e receariam sua interferência no tratamento convencional. Outro ACS, ampliando o que recomenda Alma–Ata, acredita que, se unissem os conhecimentos dos curandeiros e conhecimento científico, um ajudaria o outro e todos seriam beneficiados. Pensa que o fato dos profissionais de saúde valorizarem a medicina oficial em detrimento da medicina popular é o que dificulta esta proposta. Os curandeiros divergiram quanto a essa questão. Um acredita que seu trabalho é independente do trabalho realizado pela equipe e o que a equipe faz não lhe diz respeito. E vice-versa. Entende que falar de suas práticas com os profissionais de saúde não é possível, pois eles geralmente não acreditam na sua eficácia. Outro percebe a medicina convencional como sendo um alicerce para suas práticas pois, cada vez que resolve um problema, que ela não conseguiu resolver, fica mais forte na convicção da eficácia do seu atendimento. Vê também a medicina tradicional servindo de retaguarda para suas práticas pois, quando percebe que seu atendimento não será eficaz, recomenda a seus clientes procurem a Unidade de Saúde da Família. companheiros de equipe, principalmente o médico, ficassem sabendo que recorria a curandeiros. 19 Voltando à proposta da Alma–Ata, para se trabalhar nas ações de atenção primária de saúde utilizando agentes da medicina popular, o ideal seria que curandeiros e profissionais se dispusessem a discutir suas práticas de saúde e conseguissem trabalhar juntos sem que um anulasse a prática do outro. Os dois saberes, as duas medicinas – popular e científica – possuem pontos positivos e negativos. Com a ampliação do trabalho dos profissionais das equipes de saúde da família no país, seus técnicos estarão cada dia mais próximos das práticas de curanderismo e precisarão aprender a lidar com elas, sem contribuir para o desaparecimento dessa cultura. Para conquistar a confiança da comunidade é preciso conhecê-la culturalmente, entendendo e conhecendo suas crenças para valorizá-las como aliadas na promoção da saúde e bem-estar da população. O assunto é de grande profundidade e necessário se faz um tempo maior para desvendar os “mistérios” que existem na relação entre os curandeiros e os profissionais das equipes de saúde da família. Com esse estudo espera-se que suas considerações finais incentivem outras pesquisas sobre o tema. Referências ALVES, M. A. N. As práticas populares de cura no povoado de matinha dos pretos – Ba: eliminar, reduzir, ou convalidar?. 34f. 1997. Tese (Doutorado em Enfermagem) – Faculdade de Enfermagem – USP. São Paulo, 1997. (Resumo). Disponível em: <www.uesf.br/sientisbus.>. Acesso em: 01 ago. 2004. CANESQUI, A. M. (Org.). Ciências sociais e saúde. São Paulo: Hucitec, Abrasco,1997. 47 p. FERREIRA, A. B. H. Minidicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. 136p. GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999. 206 p. LAPLANTINE, F. ; RABEYRON P. Medicinas paralelas. 1989.118 p. São Paulo: Brasiliense. LEVI-STRAUSS, C. O feiticeiro e sua magia. In.: LEVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. cap.9, p.183-203. (Biblioteca Tempo Universitário, 7) 20 LEVI-STRAUSS, C. A eficácia simbólica. In.: LEVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. Cap. 10, p.204-223. (Biblioteca Tempo Universitário, 7) LOYOLA, M. A. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: DIFEL, 1984. 198 p. MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 2. ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, ABRASCO, 1993. 269 p. NUNES, E. D. Juan César García: pensamento social em saúde na América Latina. São Paulo: Cortez, 1989. 99p. (Coleção pensamento social e saúde; 5). OLIVEIRA, E. R. O que é medicina popular. São Paulo: Abril Cultural e Brasiliense, 1985. 91p. (Coleção Primeiros Passos, 31) CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, Alma Ata, URSS, 6-12 de Setembro de 1978. Relatório conjunto do Diretor Geral da Organização Mundial de saúde e do Diretor Executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância. Alma Ata, OMS, 1978. ROESCH, S. M. A Projetos de estágios em administração: guias para estágios, trabalhos de conclusão, dissertações e estudo de casos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1999. SERRANO, A. I. O que é medicina alternativa. São Paulo: Abril Cultural,Brasiliense, 1985. (Coleção Primeiros Passos, 19), 101p. TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987, 175p. WERNER, D. ; BOWER, B. Aprendendo e ensinando cuidar da saúde: manuais de métodos, ferramentas e idéias para um trabalho comunitário. São Paulo: Paulus, 1984. Submissão: agosto de 2004 Aprovação: março de 2005 21 ENVELHECIMENTO ATIVO E PROMOÇÃO DA SAÚDE: REFLEXÃO PARA AS AÇÕES EDUCATIVAS COM IDOSOS Aging Actively and Health promotion: a reflection on educational activities with the elderly Mônica de Assis * Resumo O artigo aborda duas temáticas emergentes e estratégicas da política de saúde em nível mundial: o envelhecimento saudável ou ativo e sua interface com o referencial conceitual contemporâneo da promoção da saúde. Com base nesse debate, suscitado no processo de avaliação de uma experiência desenvolvida em um serviço ambulatorial de saúde, apresenta uma reflexão para as ações educativas com idosos, à luz de princípios da Educação Popular em Saúde. A argumentação proposta é que a abordagem do autocuidado pode potencializar a participação política, na medida em que busque integrar dimensões objetivas e subjetivas da saúde, politizando seus determinantes sociais e partilhando com os idosos suas formas de compreensão e resistência, suas dificuldades e potencialidades no lidar com a saúde e cidadania no processo de envelhecimento. Palavras-chave: Envelhecimento da População; Promoção da Saúde; Educação em Saúde; Autocuidado; Qualidade de Vida. Abstract This article deals with two emerging strategic themes of health policies on a worldwide bases: health or active aging and its interface with the contemporary conceptual reference of health promotion. Based on this debate, raised during the evaluation of an ambulatory health service experience, the article reflects on educational activities with the elderly in light of the principles of Popular Health Education. The argumentation herein proposed is that the question of self-care can potentialize political participation, insofar as it seeks to integrate objective and subjective dimensions of health, politicizing the social determinants and sharing with the elderly forms of comprehension and resistance, their difficulties and potential for dealing with health and citizenship during the aging process. Key words: Demograpgic Aging; Health Promotion; Health Education; Self Care; Quality of Life. Introdução A atenção para as questões de saúde no envelhecimento tem crescido nas últimas décadas em virtude do aumento da longevidade da população mundial, sem precedente na história. Em todo mundo, e especialmente nos países periféricos marcados por acentuada pobreza e desigualdades, a busca de qualidade de vida dos idosos emerge como desafio por ser o horizonte Assistente social e sanitarista, doutora em Saúde Pública. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereço: Rua Camarista Méier 636 bloco 2 / ap.106 Engenho de Dentro, Rio de Janeiro / RJ Cep. 20730-230. Tels: (21) 38999524 E.mail: [email protected] 1 a partir do qual se poderá considerar os ganhos na expectativa de vida como valiosa conquista humana e social. A longevidade com qualidade de vida é um ideal convergente com premissas da promoção da saúde, uma idéia antiga na saúde pública que, nas últimas duas décadas, tem sido apontada como estratégia mais ampla e apropriada para enfrentar os problemas de saúde do mundo contemporâneo (TERRIS, 1996). O conceito emerge como paradigma para as políticas públicas no sentido de ampliar o foco de atenção para dimensões positivas da saúde, além do controle de doenças. A reflexão proposta neste artigo articula o debate conceitual sobre promoção da saúde do envelhecimento a uma perspectiva para as ações educativas com idosos, tendo por referência a experiência da autora no desenvolvimento e na avaliação do projeto de promoção da saúde, realizado há nove anos pela equipe interdisciplinar do ambulatório Núcleo de Atenção ao Idoso, unidade docente-assistencial do Hospital Universitário Pedro Ernesto, vinculada à Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI), da UERJ. O projeto consiste de duas linhas de ação integradas: o grupo Encontros com a Saúde, que reúne idosos ao longo de três meses para a discussão de temas relacionados à saúde no envelhecimento; e a Avaliação Multidimensional de Saúde e Qualidade de Vida, instrumento de pesquisa e de ação educativa em nível individual, aplicada paralelamente ao grupos. A estratégia é desenvolver modelos que possam ser implantados nos serviços de saúde e em outros espaços da sociedade, em resposta às demandas sociais geradas pelo envelhecimento populacional brasileiro. A ação educativa no projeto orienta-se por princípios da Educação Popular em Saúde e seu horizonte é ampliar espaços de debate que estimulem os idosos a pensar a relação corpo/vida e a atuar na direção de integrar o fazer individual e coletivo que envolve a saúde. Acredita-se que tal ótica possibilita operar com uma visão integradora da promoção da saúde, que articule a abordagem do auto-cuidado às necessidades sociais e ao fomento da participação popular na viabilização dos direitos de cidadania (ASSIS, 2004). Assumindo este pressuposto, o texto pretende oferecer uma contribuição acerca do sentido ético-político das ações educativas com idosos, cada vez mais oportunas no cenário nacional, especialmente no nível da atenção primária à saúde. 1. Saúde do idoso e envelhecimento ativo O envelhecimento humano é um processo universal, progressivo e gradual. Trata-se de uma experiência diversificada entre os indivíduos, para a qual concorre uma multiplicidade de fatores de ordem genética, biológica, social, ambiental, psicológica e cultural. Não há uma correspondência linear entre idade cronológica e idade biológica. A variabilidade individual e os 2 ritmos diferenciados de envelhecimento tendem a acentuar-se conforme as oportunidades e constrangimentos vigentes sob dadas condições sociais (FERRARI, 1999). Considerando velhice e envelhecimento como realidades heterogêneas, Néri e Cachioni (1999) afirmam as possíveis variações em sua concepção e vivência conforme tempos históricos, culturas, classes sociais, histórias pessoais, condições educacionais, estilos de vida, gêneros, profissões e etnias, dentre outros. Ressaltam a importância de compreender tais processos como acúmulo de fatos anteriores, em permanente interação com múltiplas dimensões do viver. A observação de padrões diferenciados de envelhecimento e a busca por compreender os determinantes da longevidade com qualidade de vida têm motivado estudos na linha de compreensão do que constituiria o bom envelhecer. Na revisão de Néri e Cachioni (1999) são apresentadas possíveis classificações acerca de padrões de velhice e admite-se que nenhuma é isenta de limitações e confusões. A primeira delas considera velhice normal como aquela caracterizada por perdas e alterações biológicas, psicológicas e sociais próprias à velhice, mas sem patologias; velhice ótima seria a possibilidade de sustentar um padrão comparável ao de indivíduos mais jovens; e velhice patológica corresponderia à presença de síndromes típicas da velhice ou do agravamento de doenças preexistentes (BALTES; BALTES, 1990, apud NÉRI; CACHIONI, 1999). Em outra ordenação, envelhecimento primário ou normal é identificado com as mudanças irreversíveis, progressivas e universais, porém não patológicas; envelhecimento secundário corresponderia às mudanças causadas por doenças relacionadas à idade por fatores intrínsecos e extrínsecos; e envelhecimento terciário equivaleria ao declínio terminal na velhice avançada. Dentre as questões que cercam o envelhecimento, a saúde aparece como elemento balizador pelo seu forte impacto sobre a qualidade de vida, constituindo-se como uma das principais fontes de estigmas e preconceitos em relação à velhice. A representação negativa, normalmente associada ao envelhecimento, tem como um de seus pilares o declínio biológico, ocasionalmente acompanhado de doenças e dificuldades funcionais com o avançar da idade. Conforme Scrutton (1992), no imaginário popular de saúde na idade avançada, reforçado pela própria medicina, velhice é associada com crescente mal-estar, doença e dependência, aceitas como características normais e inevitáveis desta fase. Em que pese o desgaste dos anos, o declínio fisiológico na velhice não determina inevitavelmente doença e incapacidade, pois o organismo trabalha com níveis de reserva e superávit (LAZAETA, 1994). Além disso, como afirma a autora, é possível controlar problemas de saúde comuns nessa etapa através de assistência adequada, possibilitando ao idoso conviver com eventuais limitações ou doenças, preservando uma perspectiva de vida pessoal e social. A distinção entre velhice e patologia e a possibilidade de reduzir incapacidades em idosos, através 3 da provisão de serviços de saúde e de bens essenciais à vida, foi afirmada no Brasil, nos anos 90, na Declaração de Brasília sobre Envelhecimento: O envelhecimento é um processo normal, dinâmico, e não uma doença. Enquanto o envelhecimento é um processo inevitável e irreversível, as condições crônicas e incapacitantes que freqüentemente acompanham o envelhecimento podem ser prevenidas ou retardadas, não só por intervenções médicas, mas também por intervenções sociais, econômicas e ambientais. (BRASIL, 1996, p.1) A prevenção e controle de processos patológicos são eixos fundamentais na velhice, mas relacionam-se organicamente a outras dimensões do viver que potencializem condições de satisfação das necessidades básicas e sentimento de realização. Nessa linha emergem as reflexões sobre o “bom envelhecimento”, como forma de reação à associação entre velhice e inatividade. Conforme Rowe e Kahn (1997), nos anos 90, o termo envelhecimento bem-sucedido se populariza, no campo gerontológico, no sentido de identificar estratégias que incrementem a proporção da população idosa que envelhece bem. Os autores propõem que envelhecimento bem-sucedido engloba três componentes principais: baixa probabilidade de doença e incapacidade, alta capacidade funcional física e cognitiva e engajamento ativo com a vida. Nesta definição, envelhecimento bem-sucedido é mais que ausência de doença e manutenção da capacidade funcional. Ambas são importantes, mas é a sua combinação com o engajamento ativo com a vida que melhor representaria o conceito. Como exemplificam os autores, capacidades cognitivas e físicas são potenciais para atividade, pois dizem o que uma pessoa pode fazer e não o que ela faz. A concepção proposta vai além do potencial e envolve atividade, seja no plano das relações interpessoais, que “envolve contatos e transações com outros, intercâmbio de informação, suporte emocional e assistência direta”, seja no âmbito de uma atividade produtiva, considerada de modo abrangente como aquela que cria valor societal, mesmo não reembolsada em termos econômicos (ROWE; KAHN, 1997, p.433). No lastro desta discussão emerge o conceito de envelhecimento ativo, adotado pela Organização Mundial de Saúde, nos anos 90. Envelhecimento ativo é definido como “o processo de otimizar oportunidades para saúde, participação e segurança de modo a realçar a qualidade de vida na medida em que as pessoas envelhecem” (WHO, 2002). O conceito pretende transmitir uma mensagem mais inclusiva do que o termo “envelhecimento saudável”, já que considera participação como engajamento continuado na vida, mesmo que eventualmente limitado ao espaço doméstico ou coexistente com algum nível de incapacidade. Não se restringe, portanto, à habilidade para manter-se fisicamente ativo ou inserido na força de trabalho. É reconhecida a influência de um conjunto de determinantes que interagem continuamente para o envelhecimento ativo (econômicos, comportamentais, pessoais, relacionados ao meio ambiente físico, social e 4 aos serviços sociais e de saúde), transversalmente influenciados por aspectos relativos a gênero e cultura. As políticas devem articular ações intersetoriais voltadas a esses determinantes. A manutenção da saúde e autonomia na velhice, identificada como boa qualidade de vida física, mental e social, é o horizonte desejável para se preservar o potencial de realização e desenvolvimento nesta fase da vida. É também a perspectiva necessária para reduzir o impacto social que cerca as questões extremamente complexas e delicadas relativas ao cuidado ao idoso dependente. Por essas e outras motivações demográficas e socioeconômicas, a promoção da saúde tem sido destacada no eixo das políticas contemporâneas na área do envelhecimento. Em anos recentes, a promoção do envelhecimento saudável foi assumida como propósito basilar da Política Nacional de Saúde do Idoso no Brasil (GORDILHO et al., 2000). O sentido da promoção da saúde neste documento é, contudo, principalmente comportamental e compreende: [...] o desenvolvimento de ações que orientem os idosos e os indivíduos em processo de envelhecimento quanto à importância da melhoria constante de suas habilidades funcionais, mediante a adoção precoce de hábitos saudáveis de vida e a eliminação de comportamentos nocivos à saúde. (GORDILHO et al. 2000, p.27). Os hábitos saudáveis incluem: alimentação balanceada, prática regular de exercícios físicos, convivência social estimulante, atividade ocupacional prazerosa e mecanismos de atenuação do estresse. Tabagismo, alcoolismo, auto-medicação são os hábitos nocivos a serem desestimulados. É ressaltada a importância de processos informativos e educativos continuados no SUS e campanhas para estimular comportamentos saudáveis. O enfoque comportamental é um ponto de inflexão que carreia boa parte das ambigüidades e polêmicas sobre o que é ou deve ser a promoção da saúde. Intenso debate tem internacionalmente caracterizado este campo que, segundo Rootman et al. (2001), está longe de ser monolítico e é cheio de tensões mal resolvidas. Delinear uma posição neste contexto é ponto de partida necessário ao desenvolvimento de ações educativas em saúde com idosos. 2 Pontuações históricas e conceituais da promoção da saúde O desenvolvimento conceitual contemporâneo da Promoção da Saúde tem como marco o Informe Lalonde, documento de reorientação da política de saúde do Canadá, lançado em 1974. Com base no conceito de campo da saúde (biologia humana, meio ambiente, estilo de vida e organização da atenção sanitária), o documento estabeleceu a discussão sobre os limites do investimento crescente com assistência médica para melhorar a saúde da população (TERRIS,1996). Nos anos 80, a OMS definiu a promoção da saúde “[...] como el proceso que permite a las personas adquirir mayor control sobre su propria salud y, al mismo tiempo, mejorar esa 5 salud.”, definição posteriormente consagrada na Carta de Otawa, resultante da 1ª Conferência Internacional de Promoção da Saúde, em 1986 (KICKBUSCH, 1996a, p.16). Na mesma linha de precursores do conceito, a Carta de Otawa consagra o sentido de saúde como bem-estar amplamente definido, para o qual são pré-requisitos: alimento, abrigo, paz, renda, ecossistema estável, uso ininterrupto de recursos, justiça social e eqüidade. A visão ampliada dos recursos fundamentais à saúde e sua aproximação à temática da qualidade de vida fomentou uma concepção mais abrangente de intervenção em saúde, para além das clássicas ações assistenciais e preventivas de cunho individual. Os campos da Promoção da Saúde são assim definidos como estratégias que englobariam todos os seus determinantes. Segundo Buss (2003, p.26), podem ser assim sintetizados: 1- Políticas públicas saudáveis: reconhecimento que decisões políticas têm influências favoráveis ou desfavoráveis sobre a saúde e que esta deve ser priorizada como critério de governo; importância das ações intersetoriais que apontem para maior eqüidade. 2- Criação de ambientes favoráveis à saúde: reconhecimento da complexidade de nossas sociedades e da interdependência entre diversos setores. Proteção do meio ambiente e acompanhamento dos impactos das mudanças sobre a saúde. Conquista de ambientes favoráveis à saúde (trabalho, lazer, escola, cidade, etc.). 3- Reforço da ação comunitária (incremento do poder técnico e político das comunidades): empowerment como resultado do acesso contínuo à informação e às oportunidades de aprendizagem sobre as questões de saúde por parte da população; possibilidade de atuação na definição de prioridades, tomada de decisões e implementação de estratégias para alcançar melhor nível de saúde. 4- Desenvolvimento de habilidades pessoais favoráveis à saúde em todas as fases da vida: resgate da Educação em Saúde como responsabilidade das diversas organizações. É também relacionado ao empowerment, no plano individual, como processo de capacitação e consciência política. 5- Reorientação dos serviços de saúde: avanço além da assistência; impõe a superação do modelo biomédico, centrado na doença como fenômeno individual e na assistência médicocurativa como foco essencial da intervenção. Implica transformações profundas na organização e financiamento dos sistemas, assim como nas práticas e na formação dos profissionais. O ponto sobre as políticas públicas saudáveis é considerado um diferencial em relação ao entendimento prévio de Promoção da Saúde, mais associado à correção de comportamentos. A categorização de Sutherland e Fulton, apresentada por Buss (2003), divide as conceituações de promoção da saúde entre aquelas mais voltadas ao comportamento individual (promoção de 6 hábitos saudáveis), e outras mais voltadas ao coletivo (políticas públicas e fortalecimento do poder político da população). No debate sobre que ações devem ser consideradas promoção da saúde, haveria certa hierarquização das iniciativas: as mais abrangentes corresponderiam à “promoção da saúde moderna” (ou “nova saúde pública”), em contraste com o enfoque da prevenção, orientado para mudanças comportamentais ou relativas ao estilo de vida. A tensão entre o acento na dimensão individual ou coletiva da intervenção em saúde tem relação com aspectos históricos na constituição do campo, o qual tem como uma de suas fontes impulsionadoras os limites do enfoque tradicional da Educação em Saúde. Para Kickbusch (1996a), a promoção da saúde surgiu da Educação para a Saúde, em um processo que evoluiu de acordo com a ênfase dada às ações ao longo da história da saúde pública. Segundo a autora, atualmente, a perspectiva baseia-se numa visão integrada e ecológica da saúde pública, na qual não há separação entre o indivíduo e o meio, considerados como um todo. Reforça-se a responsabilidade social da saúde e a necessidade de “marcar metas para la acción política y no solo para el comportamiento individual.” O objetivo seria a criação de um “clima favorável à saúde”, viabilizado através do restabelecimento dos laços existentes entre saúde e bem-estar social, entre a qualidade de vida coletiva e individual (KICHBUSCH, 1996a, p. 24). Em sentido semelhante, Terris (1986, p.43) sustenta que a Carta de Otawa se destaca por ser uma síntese dos enfoques em Promoção da Saúde. A visão de integração entre a responsabilidade coletiva e individual é presente ao afirmar que a promoção da saúde “transcende a idéia de formas de vida sãs” para incluir as condições e requisitos para a saúde, anteriormente citados. O autor destaca também a recusa do enfoque educativo tradicional, no qual a população é receptora passiva das mensagens, em contraposição à busca de sua participação ativa e do fortalecimento da ação comunitária. Além da limitada efetividade das estratégias educativas em saúde, Rootman et al. (2000 e 2001) apontam outras fontes do interesse pela Promoção da Saúde, tais como: reconhecimento da natureza holística da saúde (qualidade de vida social, mental e espiritual); influência dos movimentos de autocuidado e de mulheres, os quais requerem uma mudança na distribuição de poder para indivíduos e comunidades; emergência do conceito de consumidor de cuidados de saúde e políticas; iniciativas comunitárias de participação; reconhecimento de que diversos problemas de saúde são interrelacionados com estilos de vida e que “estes estilos de vida não ocorrem em um vácuo, mas têm, eles próprios, potentes determinantes sócio-econômicos e culturais.” (ROOTMAN et al., 2000, p.6); pressão para diminuir custos de programas sociais e de cuidados; evidência crescente da fraca relação entre cuidado de saúde e status de saúde, especialmente o pobre retorno dos crescentes custos investidos em assistência médica; pesquisa 7 social, educacional e comportamental sobre questões de saúde e evidência da influência de fatores sociais na pesquisa epidemiológica. A confluência de forças distintas e as contradições aí implicadas vem dando margem a um significativo debate sobre questões relativas às práticas e aos próprios fundamentos da Promoção da Saúde (BUNTON et al.,1999). Uma das críticas refere-se aos interesses econômicos subjacentes, seja pela redução de custos com o sistema de saúde, alinhada ao ideário neoliberal contemporâneo, seja pela expansiva apropriação mercadológica do produto “saúde”, muitas vezes produzindo novas dependências de serviços e reafirmando apreensões reducionistas da saúde, centradas no desempenho corporal. Dentre outros aspectos apontados destacam-se os limites do conhecimento científico que informa a Promoção da Saúde (problematização sobre o “risco”), a distância entre retórica e realidade (discurso global e ações pontuais), a imposição de valores culturais, a utopia da saúde perfeita e o neohigienismo (CASTIEL, 1999; NOGUEIRA, 2001; CARVALHO, 2004). Diante da densidade do debate, cuja apreciação mais profunda extrapola os limites deste trabalho, pode-se demarcar que a saúde não deve ser vista como um objetivo em si mesmo, mas base da vida cotidiana, instrumento para realização de aspirações e sentimento de satisfação no curso de vida. A utopia, longe de ser a “saúde perfeita” e o culto ao corpo encerrado em propósitos estéticos, individualistas e mercadológicos, é preservar a capacidade de lidar bem com a vida, mesmo na velhice e na presença de doenças e limitações. A possibilidade de imprimir, de fato, uma direção inovadora ao campo passa pelo compromisso dos agentes com uma prática libertadora, o que toca especialmente a forma como se apreende e se conduz as ações educativas em saúde. Na visão de Mello (2000, p.114): “A prática com promoção da saúde deve estar alinhada a uma pedagogia dialógica, crítica, reflexiva e problematizadora, bem como em acordo com os princípios da filosofia Freiriana.” É esta a perspectiva a seguir apontada. 3 Ações educativas em saúde com idosos na perspectiva da Educação Popular A idéia de uma ação mais ampla e crítica na abordagem da Educação em Saúde comprometida com eqüidade e justiça social tem sido a linha adotada no Brasil por profissionais que se identificam com a Educação Popular em Saúde. Os princípios teórico-metodológicos da área têm raízes nas concepções pedagógicas de Paulo Freire e podem ser elencados sinteticamente como: concepção de saúde como qualidade de vida; valorização da cultura popular e de sua interação com o saber técnico-científico; estímulo ao diálogo e a processos reflexivos; priorização de metodologias participativas; opção filosóficopolítica pela não-opressão; compromisso com justiça social e o fortalecimento dos movimentos 8 sociais; humanização, afetividade e prática voltada à afirmação dos sujeitos. Tais princípios questionam a Educação em Saúde tradicional, limitada ao repasse de informações técnicas, de maneira verticalizada e desvinculada das condições de vida da população (VASCONCELOS, 2001). Na linha expressa em trabalho anterior as ações educativas em promoção da saúde com idosos devem favorecer a reflexão sobre o envelhecimento em suas múltiplas determinações e estimular o investimento desejante e participativo na vida (ASSIS et al., 2002). A partir da construção de encontros, espaços que vinculem afetivamente as pessoas e valorizem suas trajetórias de vida e seus saberes, busca-se garantir o direito à informação e ao debate sobre temas que articulem saúde e cidadania. São eixos temáticos: a dimensão positiva da saúde, a prevenção e o controle de doenças e agravos comuns, os direitos sociais dos idosos. A pretensão é que tais eixos possam ser estratégicos na capacitação e na promoção da autonomia dos idosos para neles potencializar a condição de sujeito político na luta pela dignidade do envelhecer. Considerando que a dimensão educativa é transversal às relações assistenciais na saúde, a referência de atuação assumida pela Educação Popular volta-se não apenas para ações propriamente educativas ou coletivas, mas sugere uma redefinição da postura dos profissionais na relação com a população usuária. Seja na rotina de atendimentos ou de grupos com idosos, o sentido educativo sugerido como consonante ao ideário da promoção da saúde requer que as práticas possam lidar de forma problematizadora e cuidadosa com as informações e o autocuidado em saúde, buscando articulá-los ao coletivo e à participação. Em certa medida, isto pode ser o diferencial para que as práticas não se encerrem no que Carvalho (2004) apontou como empowerment psicológico, ou senso de controle sobre a própria vida encerrado na autoestima e em estratégias de solidariedade, mas que, incorporando esta experiência, avancem ao empowerment comunitário, ou qualificação da ação política dos indivíduos e coletivos para intervenção sobre a realidade, também em nível macroestrutural. Nessa vertente, cabem algumas reflexões sobre autocuidado e participação. a) Autocuidado em saúde: o sujeito além do risco No marco da promoção da saúde, autocuidado tem sido compreendido como dimensão individual não dissociada do contexto social e como medida de autonomia e menor dependência do sistema médico e de cuidados (DOWNIE et al., 1997). No trabalho de Kickbusch (1996b, p.238), autocuidado é entendido como “o conjunto de medidas que tomam as pessoas para melhorar sua própria saúde e bem-estar no seio de suas atividades cotidianas.” Para a autora, autocuidado deve ser visto como comportamento social ativo dentro de uma nova perspectiva de saúde pública. Refere-se à adição de competência e 9 habilidade do ser humano, como parte de um “projeto social” que tem como marco a investigação sobre estilos de vida baseada no contexto e no significado e não na responsabilização individual. Segundo Derntl (1996), o autocuidado é uma estratégia fundamental da promoção da saúde e deve ser visto como uma das formas de expressão da autonomia. A autora retoma o sentido ético de autonomia como capacidade de autogoverno do indivíduo e alerta para sua apropriação restrita na área gerontológica, como equivalente à manutenção da capacidade funcional. Na concepção da promoção da saúde, “[...] o idoso deve decidir livremente seu estilo de vida e este padrão não é, necessariamente, aquele concebido pelos profissionais de saúde” (DERNTL, 1996, p.198). O papel da equipe é informar, orientar, apresentar alternativas e assistir. No que tange à informação, cabe pontuar seu valor como princípio ético habitualmente negligenciado na cultura hegemônica dos serviços de saúde. Bem cuidada, a informação facilita o estabelecimento de vínculo de confiança a partir do qual as pessoas possam ampliar seus recursos para compreender e atuar nas questões de saúde. Isso é especialmente importante na velhice pelo maior requerimento do autocuidado na monitoração de doenças crônicas, tão necessária quanto comum nessa fase. Por outro lado, o trato da informação deve se pautar numa visão contextualizada do conhecimento científico, consciente de seus limites e historicidade. A acentuada polaridade na saúde entre saber técnico e saber popular, como se a verdade estivesse sempre no primeiro pólo e os erros, mitos e tabus no segundo, deve ser relativizada na busca de uma interação dialógica entre os diferentes saberes, em seus méritos e limitações. A experiência e os conhecimentos que informam a vida prática das pessoas são base para a abordagem educativa, cujo eixo metodológico deve ser criar contextos de intercomunicação favoráveis à expressão e à reflexão sobre como as pessoas lidam com a saúde/doença, as dificuldades que enfrentam e as estratégias correspondentes diante das adversidades do contexto social. Este reconhecimento do outro é ingrediente no processo de reforço da auto-estima das pessoas, dimensão desejada tanto para repercussões no nível individual (autocuidado em saúde), como coletivo (participação social e política). O cuidado de si depende, em alguma medida, da auto valorização de cada pessoa como ser singular e como cidadão. Aqui, igualmente, em se tratando de população idosa sobre a qual recaem estigmas e preconceitos socioculturais bem enraizados, o reforço da auto-estima configura-se como estratégia essencial do trabalho, potencialmente capaz de reagir a estes mesmos preconceitos e contribuir para alterar progressivamente o imaginário social de velhice. 10 Cabe destacar que o controle de patologias como um componente na promoção do envelhecimento ativo pode significar também, mas não se reduz, à adesão a tratamentos médicos e remédios. Autocuidado deve ser visto primordialmente em seu potencial de desmedicalização, de recriação das necessidades de saúde e de expansão das possibilidades de resposta a elas remetida à vida e não apenas aos serviços. Por essa razão, as temáticas abordadas nas ações educativas devem ir além das doenças e fatores de risco. Envelhecimento, sexualidade, lazer, relações familiares, direitos sociais dos idosos, assim como inúmeras outras que expressem necessidades e interesses da população com a qual se trabalha, são dimensões do viver que devem ser trazidas ao debate. A concepção mais ampla da saúde impõe também a consideração sobre valores que influenciam a forma como os idosos encaram a vida, a morte e o envelhecimento, crucial na maneira como podem e desejam se relacionar com prevenção e autocuidado. Nas reflexões de Ayres (2000, p.5), depreende-se que a abordagem da prevenção deve se ampliar na direção do cuidado e do exercício dialógico sobre “o que sonhamos para a vida, para o bem viver”. De forma similar se encaminha a contundente crítica que Buchanan (2000, p.135) faz da forte marca positivista que orienta a promoção da saúde e as práticas educativas no contexto dos Estados Unidos. Para ele, resumidamente, ações e pesquisa nessas áreas devem abarcar mais amplamente a noção de bem-estar, o qual não é resultante direto da eliminação de fatores de risco, mas de viver uma vida de integridade, definida como “processo de atualizar um modo integrado de perceber e agir”. Nessa direção, o autor defende a utilização de estratégias metodológicas alternativas que promovam o exercício da razão prática na sociedade civil, ou seja, que incorporem a reflexão sobre o bem e os propósitos das ações e não somente a busca da verdade, central na razão científica. Dúvidas do tipo “Por que viver mais se não há alguma coisa valorosa para viver? Por que deveria eu desistir dos meus pequenos prazeres agora?” (BUCHANAN, 2000, p.108) são exemplos de disposições pessoais em que podem esbarrar uma abordagem restrita à informação sobre riscos. Do exposto ressalta-se a oportunidade de se estabelecer bases mais fecundas à comunicação nas práticas de saúde e de se reconhecer nelas os sujeitos. Isto importa não apenas pela importância de valores e disposições internas no autocuidado em saúde, mas também para trazer ao debate questões sociais, políticas e econômicas que interpõem-se como barreiras ou dificuldades nesse processo. Este pode ser também um campo fértil para se chamar atenção para as necessidades sociais de saúde e a questão da participação. 11 b) Participação política: exercício e desafio A participação popular como estratégia para interferência sobre determinantes da saúde que escapam ao comportamento individual tem centralidade no discurso da promoção da saúde e é apontada como caminho na construção de políticas públicas e ambientes favoráveis à saúde. Tal como outros conceitos ambíguos em promoção da saúde, a participação popular pode ser apreendida sob diferentes perspectivas e significar somente aderência a programas institucionais e governamentais, sem assumir caráter transformador (VALLA, 1998). Na linha de uma ação política qualificada capaz de interferência concreta na realidade, constitui núcleo do conceito de “empowerment comunitário”, relacionado ao desenvolvimento crítico de indivíduos e grupos para maior controle sobre a vida em termos pessoais e coletivos (CARVALHO, 2004). Como apontam vários autores, o aumento da proporção de idosos no mundo suscita a questão de sua inserção em processos coletivos de defesa dos direitos de cidadania (QUEIRÓZ, 1999; DONATO; CANOAS, 1997; SPOZATI, 1999). Os idosos representam uma força proeminente na sociedade e devem ser vistos como cidadãos de pleno direito e não, sobretudo, como vulneráveis. Avanços nesta direção podem ser vislumbrados no nível do associativismo promovido nos espaços de sociabilidade destinados aos idosos. Na avaliação do projeto de promoção da saúde do NAI/UnATI, foi sugerido que ganhos em informação, autocuidado e apoio social, embora não tenham alcance imediato para interferir nas macro-estruturas, podem contribuir no fomento da participação popular e do controle social sobre as políticas públicas (ASSIS, 2004). O envolvimento dos idosos em grupos que estimulem a autoconfiança, os vínculos sociais e o investimento construtivo na vida é um passo necessário, ainda que não decisivo, na contramão do individualismo e descrença que marca o cenário político brasileiro. Argumentação similar é sustentada por ROCHA et al. (2002) ao analisarem a participação crescente de mulheres idosas em grupos de convivência. Os autores constatam que essa experiência ainda não se traduz como “caixa de ressonância para a criação de questões públicas”, capaz de produzir efeitos sobre a política, mas sustentam que: “[...] a ocupação crescente de espaços públicos por mulheres, na chamada terceira idade, é uma forma de ampliar a sua subjetividade e que a dimensão política emancipatória desse processo tem início exatamente a partir dessa premissa”. A inserção de idosos em atividades sociais tem sido reconhecida como valiosa para a qualidade de vida deste segmento, com repercussões positivas na saúde. Mas como os idosos percebem a necessidade de se organizarem politicamente? Além do movimento dos aposentados que alcançou repercussão no país, e da mobilização na revisão constitucional de 1988, que outras questões os mobilizam a participar de processos coletivos pela efetivação dos direitos sociais? 12 Quais suas disponibilidades, possibilidades e limites quanto à participação? Se, por um lado, a avaliação da experiência citada sugere que os idosos expressam um particular desencanto com a política e a vida pública, de outro mostra igualmente a indignação deles por tudo aquilo que deveria, mas não se viabiliza como direito para o conjunto da população (ASSIS, 2004). Mesmo admitindo dificuldades neste campo, é possível ponderar que podem ser facilitadores na inserção dos idosos em processos organizativos não só o tempo, em geral mais livre, como os ganhos em termos de transcendência que o exercício da solidariedade e da luta por um bem comum pode representar na história de vida de cada um, resignificando positivamente a vivência da velhice. Os desdobramentos nesta direção podem ser melhor conhecidos na medida em que experiências forem avaliadas. Independente dos resultados, vale destacar de antemão a relevância das ações educativas em saúde serem orientadas para promover o exercício da participação democrática, abrindo as instituições e o espaço assistencial ao debate público sobre saúde e qualidade de vida na ótica de uma visão problematizadora da realidade, comprometida com eqüidade e justiça social. Considerações finais O envelhecimento ativo é uma aspiração básica que potencializa o viver e depende, em grande parte, de condições sociais e políticas públicas que garantam direitos básicos de cidadania e possibilitem práticas tendencialmente saudáveis, como alimentação equilibrada, atividade física, uso prazeroso do corpo, inserção social e ocupacional dotadas de significado, lazer gratificante, além do acesso a serviços assistenciais e preventivos. Trata-se de metas complexas, em torno das quais são necessários movimentos individuais e coletivos que anunciem e apontem a construção de uma nova ordem societária. O marco referencial da promoção da saúde converge com este horizonte, mas pode, dentre os seus riscos, significar discurso amplo e práticas estreitas pelos interesses contraditórios aglutinados neste campo. As ações educativas em saúde orientadas pela Educação Popular contribuem para uma visão integradora da promoção da saúde ao trazerem para debate a relação do Estado e das políticas públicas com as questões que envolvem a prevenção e o controle de doenças no contexto da vida cotidiana. A promoção de práticas saudáveis, tradicionalmente objeto das ações educativas em saúde na linha de estímulo e capacitação para o autocuidado, podem ser mobilizadoras de participação na medida em que não se reduzam a um “dever ser” para o outro e sejam tomadas como provocações que mobilizem os idosos a pensar sobre a validade dessas proposições em suas vidas e agir sobre o que favorece ou não o seu exercício, em termos pessoais e sociais. A abordagem do autocuidado deve, portanto, basear-se no esforço de integrar dimensões objetivas 13 e subjetivas e abrir-se à expressão dos idosos, do seu universo de resistências, possibilitando aos profissionais reconhecer suas expressões culturais, seus ganhos e dificuldades no lidar com a saúde no processo de envelhecimento. A dimensão comportamental é parte do espectro de determinantes da promoção da saúde no envelhecimento e deve ser contemplada criticamente na prática dos profissionais de saúde, ao concebê-la em sua historicidade e articulação ao contexto socioeconômico, cultural, político e ideológico. A abordagem sobre as condições de vida dos idosos, especialmente quanto ao acesso aos direitos sociais assegurados na política nacional para este segmento (BRASIL, 1996), implica ganho mútuo na medida em que os profissionais também lidam com seu próprio envelhecimento e enfrentam, em níveis variados, barreiras ao investimento em saúde no dia-adia. Ao privilegiar a interação entre as perspectiva técnica e popular, a relação educativa abre oportunidades ricas de aprendizado e crescimento de todos os envolvidos, permitindo aos profissionais reverem conceitos e valores arraigados na cultura profissional. Na linha de argumentação proposta, a informação foi assumida em seu valor e limite, uma vez priorizadas a interação com outros saberes e a valorização dos sujeitos. Atualmente a mídia abarca a difusão de informações em saúde com recursos tecnológicos bem mais sofisticados do que aqueles disponíveis nos serviços, cabendo a estes diferenciarem-se na forma como tratam as informações em sua complexidade e, sobretudo, na maneira de dialogar com as pessoas à luz da realidade em que vivem. Esta esfera cognitiva não é, porém, o único eixo das ações educativas. Outros temas não priorizados neste artigo, como o envolvimento do corpo em dinâmicas de grupo, a criatividade, os vínculos e as redes sociais, e a percepção sobre a finitude de vida são extremamente relevantes no trabalho educativo com idosos e devem ser objeto de reflexões futuras. As ações educativas em saúde não determinam diretamente a interferência nos determinantes sociais do envelhecimento ativo, produzindo ambientes e políticas públicas favoráveis à saúde, mas podem oferecer contribuição significativa ao expressarem vivamente o compromisso social do sistema de cuidados e partilharem com os idosos os desafios nesta direção. Ao enfatizar a participação e oportunizar seu exercício, elas vislumbram um “abrir portas” ao pensamento criativo sobre a vida e ao desejo de atuar na construção de outras realidades possíveis, mais propícias à qualidade de vida no envelhecimento. REFERÊNCIAS ASSIS, M. Promoção da saúde e envelhecimento: avaliação de uma experiência no ambulatório do Núcleo de Atenção ao Idoso da UnATI/UERJ. 220f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública-ENSP/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2004. 14 ASSIS, M. (Org.) Promoção da saúde e envelhecimento: orientações para o desenvolvimento de saúde com idosos. Rio de Janeiro: UERJ/UnATI, 2002. (Série Livros Eletrônicos). Disponível em: <http:\\unati.uerj.Br>. Acesso em: 10 abr 2005. AYRES, J. R. C. M. Sujeito, intersubjetividade e prevenção: um ensaio filosófico. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA, 6., 2000, Salvador. São Paulo: ABRASCO, 2000. BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Plano de ação integrada para o desenvolvimento da política nacional do idoso. Brasília, 1996. DECLARAÇÃO de Brasília sobre envelhecimento. In: SEMINÁRIO MUNDIAL DO ENVELHECIMENTO: Uma Agenda para o Século XXI, 1 a 3 de julho de 1996, Brasília. Disponível em: <http://www.ufsm.br/antartica/Palestra%206.htm>. Acesso em: 05 jan. 2005. BUCHANAN, D.R. An ethic for health promotion. Oxford: Oxford University Press, 2000. BUNTON, R.; NETTLETON, S.; BURROWS, R. (Ed). The sociology of health promotion. Critical analyses of consuption, lifestyle and risk. London: Routledge, 1995. BUSS, P. M.. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: CZERESNIA, C.; FREITAS, C.M. (Org.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003. cap.1, p.15-38. CARVALHO, S. R. As contradições da promoção à saúde em relação à produção de sujeitos e a mudança social. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n.3, p.669-677, 2004, CASTIEL, L. D. A medida do possível: saúde, risco e tecnociências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1999. DERNTL, A. M. As muitas autonomias e o autocuidado. Gerontologia, São Paulo, v.6, n.4, p.197-199, 1998. DONATO, A. F.; CANÔAS, C. S. Idoso e cidadania: a lógica da exclusão. In: NETTO, M. P. (Org.) Gerontologia. São Paulo: Atheneu, 1997. p.452-457. DOWNIE, R. S.; TANNAHILL, C.; TANNAHILLL, A. Health promotion: models and values. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1997. 217p. FERRARI, M. A. C. O envelhecer no Brasil. O mundo da saúde, São Paulo, v.23, n.4, p.197203, 1999. GORDILHO, A. et al. Desafios a serem enfrentados no terceiro milênio pelo setor saúde na atenção integral ao idoso. Rio de Janeiro, UnATI / UERJ, 2000. KICKBUSCH, I. Promoción de la salud: una perspectiva mundial. In: OPS. Promoción de la salud: una antología. Washington: OPS, 1996a. p.15-24. (Publicación científica, 557). KICKBUSCH, I. El autocuidado en la promoción de la salud. In: OPS. Promoción de la Salud: una antología. Washington: OPS, 1996b. p. 235-245. (Publicación científica, 557) LAZAETA, C. B. Aspectos sociales del envejecimento. In: PÉREZ, E. A. et al (Ed). La atención de los ancianos: un desafío para los años noventa. Washington: OPS, 1994. p.57-66. 15 MELLO, D. A. Reflexões sobre a promoção da saúde no contexto do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.16, n.4, p.1149, 2000. NÉRI, A. L.; ACHIONI, M. Velhice bem-sucedida e educação. In: NÉRI, A. L. ; DEBERT, G. G. (Org.). Velhice e sociedade. São Paulo: Papirus, 1999. p.113-140. NOGUEIRA, R. P. Higiomania: obsessão com a saúde na sociedade contemporânea. In: VASCONCELOS, E. M. (Org.). A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. São Paulo: Hucitec, 2001. p.63-72. QUEIRÓZ, Z. P. V. Participação Popular na Velhice: possibilidade real ou mera utopia? Mundo da Saúde, São Paulo, v. 23, n.4, p.204-213, 1999. ROCHA, S. M.; GOMES, M. G. C. ; LIMA FILHO, J. B. O protagonismo social da pessoa idosa: emancipação e subjetividade no envelhecimento. In: FREITAS, E. V. et al. (Org.) Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. p.1030-1035. ROWE, J. W.; KAHN, R. L. Sucsseful ageing. Gerontologist, v.37, n.4, p.433-440, 1997. ROOTMAN, I.; POLAND, B. D.; GREEN, L. W. The settings approach to health promotion. In: ROOTMAN, I. et al (Ed) Settings for health promotion: linking theory and practice. London: Sage Publications, 2000. ROOTMAN, I. et al. A framework for health promotion evaluation. In: ROOTMAN, I. et al. (Ed.) Evaluation in Health Promotion: principles and perspectives. Denmark: WHO 2001. p.7-38. (WHO Regional publications. European Series) SCRUTTON, S. Ageing, healthy and in control: an alternative, approach to maintaining the health of older people. London: Chapman and Hall, 1992. SPOSATI, A. Organização e mobilização política da terceira idade. A Terceira Idade, São Paulo, v. 10, n.17, p.17-21, 1999. TERRIS, M. Conceptos de la promoción de la salud: dualidades de la teoría de la salud publica. In: OPS. Promoción de la salud: una antología. Washington: OPS. 1996. p.37-44. (Publicación científica, 557) VALLA, V. V. Sobre a participação popular: uma questão de perspectiva. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.14 (supl 2), p.7-18. 1998. VASCONCELOS, E. M. Sobre Educação Popular em saúde. Interface, São Paulo, v.5, n.8, p.121-126, 2001. WHO/NMH/NPH. Active ageing: a policy framework. Geneve: World Health Organization, 2002. 58 p. Submissão: jan. 2005 Aprovação: maio 2005 -1- A Inserção da Saúde Mental na Atenção Primária à Saúde em um Sistema de Referência e Contra-Referência - O Caso da UBS Padre Roberto Spawen - SUS/Juiz de Fora Mental Health Care In The Primary Health Care System In A System Of Reference And Counter-Reference – The Case Of The Padre Roberto Spawen Basic Health Unit – SUS/JUIZ DE FORA José Luís da Costa Poço1 Arlete Maria Moreira do Amaral2 1. Médico, funcionário da Prefeitura de Juiz de Fora e do Ministério da Saúde, especialista em Clínica Médica e pósgraduado em Saúde da Família. 2. Enfermeira, professora adjunta da Faculdade de Enfermagem da UFJF e Doutora em Enfermagem. Endereço do autor: Rua Irineu Marinho, 300/301 Bom Pastor – CEP 36021-580 – Juiz de Fora – MG. Tel: (32)32188310 e-mail: [email protected] Resumo O estudo tem por objetivo avaliar a atenção à saúde mental na Unidade Básica de Saúde Padre Roberto Spawen inserida, através de uma estrutura hierarquizada, no sistema de atenção à saúde mental de Juiz de Fora. Fez-se a análise descritiva dos dados referentes ao atendimento de 356 pacientes introduzidos no sistema de saúde mental entre setembro de 1997 e maio de 2001, incluindo perfil da clientela, diagnósticos, processo de referência e contra-referência, tratamentos adotados e localização dos pacientes no sistema. A concordância entre os diagnósticos dos generalistas da UBS e dos especialistas é aferida com a aplicação do teste kappa, constatando-se boa concordância diagnóstica apenas para psicoses e dependências químicas. Houve poucas altas e identificou-se elevado índice de abandono de tratamento (63,5%), sendo descritas as associações encontradas entre abandonos, diagnósticos e outras variáveis. A partir dos resultados, são feitas considerações sobre fatores relacionados ao abandono de tratamento. Palavras-chave: Cuidados Primários de Saúde; Saúde Mental/Diagnóstico; Transtornos Mentais/Diagnóstico; Transtornos Mentais/Terapia Abstract The objective of this study is to evaluate the mental health care at the Padre Roberto Spawen Community Health Center, a unit existing within the hierarchical structure of the public mental health care system of Juiz de Fora. It includes the descriptive analysis of data referring to the care provided to 356 patients who entered the mental health care system from September 1997 to May 2001: patient characteristics, diagnoses, the referral and counter-referral process, treatments adopted, and patients’ location in the system. The agreement between the diagnoses from the Community Health Center and those from the specialists is evaluated by the kappa statistic. We found good agreement for these diagnoses only for psychoses and chemical dependencies. Discharges from treatment were infrequent and the rate of treatment dropouts was high (63,5%); associations between dropouts, diagnoses and other variables are described. Based on the results, considerations are made about the factors related to dropout. Key words: Primary Health Care; Mental Health; Mental Disorders/Diagnóstics; Mental Disorders/Therapy. -2- INTRODUÇÃO O processo de desinstitucionalização psiquiátrica, implementado em nosso país a partir da década de 90, vem mudando o perfil da atenção à saúde mental. A ênfase no tratamento extra-hospitalar e a inclusão da saúde mental nas ações gerais de saúde induzem a estruturação de redes de serviços de atenção à saúde mental, integradas ao Sistema Único de Saúde (AMARANTE, 1992; BRASIL, 1996; BRASIL, 2001). Em Juiz de Fora, a inserção da assistência à saúde mental na Atenção Básica é um processo de início relativamente recente. Os últimos oito anos testemunharam a implantação no município de um modelo de Atenção Primária em Saúde Mental, regionalizado, hierarquizado e multiprofissional (RIBEIRO et al., 2003). No nível primário de assistência, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) deixaram de ser apenas encaminhadoras de pacientes, passando a funcionar como primeira instância de diagnóstico e tratamento. No nível secundário foram criados os Centros Regionais de Referência em Saúde Mental (CRRESAM), com equipes multiprofissionais, que recebem os pacientes selecionados pelas UBS e com elas interagem através de mecanismos de referência e contra-referência. São utilizados impressos padronizados e os prontuários acompanham os pacientes em seus deslocamentos entre os níveis primário e secundário de atenção (RIBEIRO, 2000). Segundo os protocolos do Sistema Municipal de Saúde Mental (SMSM), cabe às equipes das UBS's realizar o acolhimento dos pacientes com queixas relacionadas à saúde mental; diagnosticar e tratar os casos de sofrimento mental inespecífico, bem como investigar possíveis causas orgânicas para o transtorno apresentado. Conforme o diagnóstico formulado e o nível de gravidade, o tratamento inicial será instituído/mantido na própria UBS ou o paciente pode ser referenciado ao CRRESAM. Os CRRESAM’s recebem os pacientes encaminhados, estabelecem ou confirmam o diagnóstico e, em até sessenta dias, contra-referenciam os pacientes para a UBS de origem, com orientações quanto ao tratamento, ou os encaminham para tratamento em Programas Especiais de Saúde Mental (PROESAM), específicos para cada grupo de transtornos mentais. Os profissionais da UBS, além de atender à demanda espontânea, acompanham os pacientes que retornam a partir da contra-referência do CRRESAM, dos PROESAM ou de alguma internação ou atendimento de urgência. As UBS são visitadas mensalmente por membros da equipe do respectivo CRRESAM para reuniões de supervisão e consultoria. No que se refere à inserção das -3- ações de saúde mental no nível primário de atenção, todas as UBS's de Juiz de Fora já estão articuladas a CRRESAM's (onze no total), agrupadas segundo a proximidade das áreas de abrangência e na proporção de 4 a 5 UBS's por CRRESAM. Em síntese, em Juiz de Fora, ocorreu na prática uma transferência para a UBS da tarefa de captar/filtrar os usuários do SMSM, condicionando a possibilidade de um tratamento especializado à existência de um diagnóstico de doença. Ao CRRESAM ficou reservado, na maioria dos casos, o papel de segundo filtro. Os critérios de inclusão nos PROESAM representariam o terceiro filtro. Seguindo uma lógica de hierarquização, são mantidos na UBS os casos de menor gravidade, com atendimento de baixa complexidade, e apenas os usuários que passam pelas três instâncias diagnósticas, ou filtros, podem permanecer em tratamento no nível secundário. O atual Sistema Municipal de Saúde Mental representou um avanço em relação à situação anteriormente existente em Juiz de Fora nessa área (RIBEIRO, 2003). Entre os aspectos positivos podem ser citados a organização do sistema e a racionalização no uso dos recursos existentes para a atenção à saúde mental. O controle do fluxo de pacientes entre os serviços com mecanismo de referência e contra-referência também proporcionou uma sensível melhora na quantidade e qualidade de informações sobre a clientela, possibilitando o presente trabalho e facilitando outros estudos de avaliação. Adicionalmente, tornou-se possível, ainda que parcialmente, o atendimento em saúde mental, pela UBS, na área de moradia do paciente. A implantação, a partir de 1997, do SMSM em Juiz de Fora, entretanto, não se refletiu até a presente data em mudanças nos níveis de hospitalização psiquiátrica. As internações psiquiátricas ainda ocuparam, em 2004, o 2º lugar na lista de gastos hospitalares do SUS no município e o 4º lugar na relação de número de internações por especialidade, situação idêntica à que existia em 1996. Os dados disponíveis mais recentes, de julho de 2003, indicam a existência de 887 leitos psiquiátricos em Juiz de Fora, representando 39,3% da rede hospitalar do SUS no município, enquanto que, em 1996, os 1136 leitos psiquiátricos então existentes ocupavam 36,2% da rede hospitalar do SUS (BRASIL, 2005). O presente estudo relata o caso da UBS Padre Roberto Spawen, no bairro de São Pedro, que foi incluída no atual modelo de assistência à saúde mental desde o início do processo de reformulação, em setembro de 1997, quando o projeto piloto foi implantado na região oeste da cidade. A população da área de abrangência da UBS é de 15958 pessoas, segundo o Censo de 2000. Nesta unidade o atendimento médico é feito no modelo tradicional de organização das UBS, com três especialidades básicas: clínica médica (3 profissionais), pediatria (3) e ginecologia (2). A assistência é representada quase que exclusivamente por consultas médicas, não há reuniões de -4- grupos de pacientes ou familiares de portadores de transtornos mentais na UBS e as visitas domiciliares são excepcionais e realizadas, geralmente, pela assistente social ou pela enfermeira. A busca ativa dos pacientes faltosos também não faz parte da rotina. Os portadores de transtornos mentais identificados na UBS Padre Roberto Spawen, quando necessitados de avaliação especializada, são encaminhados ao CRRESAM OESTE. Este estava sediado, à época do estudo, no Instituto de Clínicas Especializadas, no centro da cidade. As reuniões de supervisão da equipe são realizadas uma vez ao mês, na UBS, com a presença de profissionais do CRRESAM, do gerente/assistente social, e de médicos da UBS. Nessas reuniões, são discutidos os casos que estão sendo contra-referenciados e os que abandonaram ou obtiveram alta no CRRESAM. METODOLOGIA Caracterização do Estudo No contexto de uma assistência psiquiátrica em transformação, o primeiro desafio é identificar critérios de avaliação aceitáveis e passíveis de aferição (SILVA FILHO et al., 1996). A monitorização da atenção à saúde mental depende do desenvolvimento de medidas de qualidade que possam avaliar o atendimento e dar apoio às atividades do serviço (HERMANN et al., 2000). VASCONCELOS (1995), ao fazer uma revisão de metodologias e estratégias de pesquisa para avaliação de serviços de atenção em saúde mental, conclui ser recomendável, sugerindo a utilização da combinação de métodos quantitativos e qualitativos, os estudos de caso ou estudos de casos comparados, como os mais apropriados, particularmente aqueles de corte longitudinal. TEIXEIRA (2000), ao avaliar a assistência ambulatorial em saúde mental de Juiz de Fora, em período anterior à implementação do atual SMSM, ressalta que "a possibilidade de um processo avaliativo encontra-se vinculada, de maneira indissociável, à forma de organização do sistema de saúde em questão". O presente trabalho, um estudo de caso, faz a avaliação da atuação de um serviço do nível primário na atenção à saúde mental e, simultaneamente, coloca em evidência o funcionamento do Sistema de Saúde Mental de Juiz de Fora, particularmente no que se refere à articulação entre os serviços através do mecanismo de referência e contra-referência. Buscando incluir na avaliação a totalidade dos pacientes inseridos pela UBS no SMSM e, ao mesmo tempo, utilizar um modelo que pudesse ser reproduzido em outras UBS's de Juiz de Fora, adotou-se como estratégia o estudo dos prontuários. A estruturação do SMSM, com a vinculação obrigatória dos pacientes à UBS de sua área de moradia, aliada ao fato de que todas as fichas de atendimento no SMSM ficarem anexadas aos seus prontuários, possibilita que -5- informações relativas à atuação da UBS e à evolução dos pacientes sejam obtidas a partir da análise desses prontuários, na própria UBS. Optou-se por coletar e analisar, através de métodos quantitativos, essa grande quantidade de informação que se encontrava disponível. A Coleta de Dados Foram revisados os prontuários dos pacientes maiores de 12 anos encaminhados ao CRRESAM pela UBS Padre Roberto Spawen, desde o início do funcionamento do novo sistema de atenção à saúde mental, em setembro de 1997 até 30 de maio de 2001. Estabeleceu-se a data de 30/11/2001 como a marca para a obtenção dos dados dos pacientes, de modo que houvesse um período mínimo de seis meses de inclusão no Sistema, a partir da data de referência, suficiente para que o paciente fosse avaliado pelo nível secundário e contra-referenciado ou encaminhado para tratamento específico. Os pacientes menores de 12 anos não foram incluídos por tratarem-se, em sua quase totalidade, de casos de dificuldades de aprendizado ou patologias neurológicas. O instrumento elaborado para a coleta de dados foi uma ficha específica, com 78 itens, em que foram transcritos os dados contidos nos prontuários. A coleta estendeu-se por 3 meses, de dezembro de 2001 a fevereiro de 2002. Os prontuários que se encontravam no CRRESAM e nos PROESAM, incluindo o NAPP-Núcleo de Apoio ao Paciente Psicótico/CAPSCentro de Atenção Psicossocial, também foram examinados. No total foram analisados 356 prontuários. A Análise dos Dados A consolidação do banco de dados, agrupamentos em categorias e o tratamento estatístico dos resultados, foram feitos com o auxílio do “software” EPI-INFO. Na ausência de um padrão-ouro para aferir a precisão do diagnóstico efetuado na UBS, a concordância clínica entre os diagnósticos da UBS e do CRRESAM foi avaliada utilizando-se o teste Kappa (JEKEL et al. 1999, p.110-112). O teste Kappa determina a extensão na qual a concordância entre dois observadores melhoraria a concordância obtida ao acaso e tem sido utilizado em estudos de confiabilidade de testes na área da saúde mental (BUSNELLO et al., 1999; TEIXEIRA, 2000). As variáveis analisadas em cada uma das categorias criadas - "referenciados", "contra-referenciados", "abandonos", "pacientes graves" - procuram refletir a atuação da UBS, sua inserção na dinâmica do SMSM e os resultados obtidos com o tratamento realizado. Os resultados da pesquisa são apresentados e discutidos seguindo a seqüência do trajeto dos pacientes no SMSM. -6- RESULTADOS Perfil Sócio-demográfico dos Pacientes Incluídos no Sistema Municipal de Saúde Mental pela UBS De setembro de 1997 até maio de 2001 um grupo de 356 pacientes foi inserido pela UBS no SMSM, conforme assinalado na tabela 1. Há uma tendência de declínio no número de inclusões entre 1998 e 2000. Tabela 1: Distribuição, por ano, dos pacientes incluídos pela UBS Padre Roberto Spawen no Sistema Municipal de Saúde Mental de Juiz de Fora (n = 356) ANO Usuários Percentual 49 13,8% 1997 * 109 30,6% 1998 96 27,0% 1999 68 19,1% 2000 34 9,6% 2001 ** 356 100,0% Total * a partir de setembro ** até maio Do total, 212 pacientes (59,55%) são do sexo feminino e 144 (40,44%) do sexo masculino. A predominância de mulheres, já observada em estudo da clientela de ambulatório de saúde mental em Juiz de Fora (Ribeiro, 1994), ocorre em todas as faixas etárias, com exceção do grupo de 12 a 20 anos, em que há pequena maioria de homens (52,5%). Em ambos os sexos a faixa etária de 30 a 50 anos concentra a maior parte dos pacientes (50,9% no sexo feminino e 52,7% no sexo masculino). A idade média do grupo feminino foi 40,3 anos e a do grupo masculino foi 36 anos. Tabela 2: Distribuição, por sexo e faixas etárias, dos pacientes incluídos pela UBS Padre Roberto Spawen no Sistema Municipal de Saúde Mental (n = 356) FAIXA ETÁRIA SEXO 12 a 19 20 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59 60 a 69 70 ou mais Total F 7,1% 16,5% 26,4% 23,1% 15,1% 7,5% 4,2% 100% M Total (15) (35) (56) (49) (32) (16) (9) (212) 11,8% 16,7% 35,4% 20,8% 11,1% 2,8% 1,4% 100% (17) (24) (51) (30) (16) (4) (2) (144) 9,0% 16,6% 30,1% 22,2% 13,5% 5,6% 3,1% 100% (32) (59) (107) (79) (48) (20) (11) (356) A faixa de renda familiar mais encontrada (45,9%) foi a de "mais de 1 a 3 salários mínimos" e a maior parte dos usuários (60,4%) não completou o Primeiro Grau. 62,9% (68,4% no sexo feminino e 54,9% no sexo masculino) declararam "depender economicamente de alguém". A -7- parcela de pacientes fora do mercado de trabalho (aposentados, licenciados, recebendo segurodesemprego e desempregados) - 38,48% do total- superou o percentual de empregados (25,56%). Diagnósticos A grande maioria dos pacientes referenciados (312 ou 87,6% do total) procurou a UBS com queixas específicas e/ou solicitando intervenções vinculadas à saúde mental, caracterizando a chamada "demanda específica", segundo os critérios do SMSM. História familiar de transtornos psiquiátricos foi confirmada por 214 pacientes (60,1% do total). Antecedentes de cuidados de saúde mental estavam presentes em 192 pacientes (53,9%) e ausentes em 157 (44,1%). Em ambos os grupos, no período de 1998 a 2000, nota-se tendência de diminuição no número de inclusões no Sistema, mais nítida nos pacientes com passado de tratamento psiquiátrico. Em 7 casos (2% do total) a informação quanto a estes antecedentes não foi obtida. Analisando a relação entre pacientes com antecedentes de cuidados de saúde mental e aqueles sem tratamento anterior (tabela 3), verifica-se a diminuição progressiva da participação de pacientes com tratamento anterior e, em contrapartida, um aumento da proporção de usuários ainda não identificados como pacientes psiquiátricos. Em 1997, 71,4% dos pacientes encaminhados tinham histórico de tratamento relacionado à saúde mental e 28,6% negavam esse antecedente. Esse padrão foi invertido ao longo dos anos: em 2000 e em 2001 a maioria dos casos encaminhados pela UBS ao CRRESAM (52,9%) era de pacientes sem passado de tratamento de saúde mental. Tabela 3: Freqüência de antecedentes de tratamento em saúde mental entre os pacientes incluídos pela UBS, a cada ano, no Sistema Municipal de Saúde Mental (n = 356) Sem tratamento anterior em Saúde Mental Com histórico de tratamento em Saúde Mental Não informado Total 1997 1998 1999 2000 2001 Total 28,6% 41,3% 45,8% 52,9% 52,9% 44,1% (14) (45) (44) (36) (18) (157) 71,4% 56,9% 51,0% 45,6% 44,1% 53,9% (35) - (62) (49) (31) (15) (192) 1,8% 3,1% 1,5% 2,9% 2,0% (2) (3) (1) (1) (7) 100% 100% 100% 100% 100% 100% (49) (109) (96) (68) (34) (356) No grupo de 192 pacientes com passado de cuidados de saúde mental, um subgrupo de 92 indivíduos tinha histórico de internação psiquiátrica e representaria, em princípio, o -8- contingente de casos mais graves. A redução gradual nos encaminhamentos, entre 1998 e 2000, também ocorreu nesse subgrupo. A freqüência dos diagnósticos formulados pela UBS está representada no gráfico 1. O "Transtorno de Ansiedade/Neurótico" foi o diagnóstico principal mais freqüente (37,1%), vindo em seguida: "Transtorno Afetivo (de Humor)" (26,7%), "Transtorno por Uso de Substâncias Psicoativas" (18,5%), "Transtorno Psicótico/Delirante" (11,8%), "Transtornos Mentais Orgânicos" (2%) e "Transtornos de Personalidade" (0,3%). O alcoolismo (52 pacientes) representou 78,8% dos casos de dependência química e 14,6% do total de pacientes. Treze casos (3,6%) foram encaminhados ao CRRESAM sem diagnóstico especificado. Um estudo da clientela do extinto ambulatório do Centro Regional de Saúde de Juiz de Fora (Ribeiro, 1994), relativo ao período de 1981 a 1985, revelou uma freqüência menor de alcoolismo (4,8%) e maior de psicoses (16,4%). Gráfico 1: Freqüência de diagnósticos psiquiátricos formulados pela UBS Padre Roberto Spawen – Juiz de Fora (n = 356) Verde = Diagnóstico Principal; Azul = Diagnóstico Secundário O gráfico 2 retrata os diagnósticos do subgrupo com antecedentes de cuidados de saúde mental e o gráfico 3 representa os pacientes com passado de internação psiquiátrica. -9- Gráfico 2: Freqüência de diagnósticos psiquiátricos formulados pela UBS no subgrupo de pacientes com antecedentes de cuidados de saúde mental (n = 192) Verde = Diagnóstico Principal; Azul = Diagnóstico Secundário Gráfico 3: Freqüência de diagnósticos psiquiátricos formulados pela UBS no subgrupo de pacientes com passado de internação psiquiátrica (n = 92) Verde = Diagnóstico Principal; Azul = Diagnóstico Secundário - 10 - A distribuição dos diagnósticos dos 309 pacientes atendidos no CRRESAM é semelhante àquela encontrada na avaliação da UBS. O transtorno mais freqüente foi o transtorno de ansiedade (37,5%), seguido pelo transtorno afetivo (22,3%), uso de substâncias psicoativas (15,2%), , transtorno psicótico (9,4%), transtornos orgânicos (2,9%) e transtornos de personalidade (1,9%). A única diferença significativa em relação aos diagnósticos da UBS ocorreu na parcela de pacientes sem diagnóstico especificado, bem maior no CRRESAM (10,7%). Entre os diagnósticos secundários, o transtorno de ansiedade também foi o mais encontrado. A concordância entre o diagnóstico principal do CRRESAM e da UBS ocorreu em 74,5% dos casos (grifados na tabela 4), excluídos aqueles em que a UBS ou o CRRESAM não especificaram diagnóstico. Tabela 4: Frequências dos diagnósticos psiquiátricos formulados pela UBS e pelo CRRESAM para o mesmo grupo de pacientes (n = 267) CRRESAM Afetivo/ Ansiedade Psicótico Subst. Transt Transt. Total Humor Neurótico Delirante Psicoativa Orgânico Personal. Afetivo/Humor 29 1 0 1 1 77 45 Ansiedade/Neurótico 18 80 0 1 1 0 100 2 2 24 0 3 2 33 3 1 0 46 0 0 50 Transt. Orgânico 0 0 1 0 4 1 6 Transt. Personal. 0 1 0 0 0 0 1 68 11 26 47 9 4 267 UBS Psicótico/Delirante Subst. Psicoativa Total Os valores obtidos no cálculo do coeficiente kappa para aferição da concordância clínica entre a UBS e o CRRESAM, para cada um dos diagnósticos previstos nos protocolos do SMSM, estão expostos na tabela 5. A interpretação dos índices segue os seguintes parâmetros: abaixo de 0,2 a concordância é pobre; entre 0,2 e 0,4 concordância mínima; de 0,4 a 0,6 ruim; de 0,6 a 0,8 boa; e acima de 0,8 é excelente (Jekel et al, 1999, p. 110-112). - 11 - Tabela 5: Valores do coeficiente kappa para a concordância clínica entre os diagnósticos psiquiátricos da UBS e do CRRESAM DIAGNÓSTICO TRANST. AFETIVO/DE HUMOR TRANST. DE ANSIEDADE/NEURÓTICO TRANST. PSICÓTICO/DELIRANTE TRANST. POR USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS TRANST. MENTAL ORGÂNICO TRANST. DE PERSONALIDADE KAPPA 0,48 0,587 0,791 0,937 0,52 - 0,006 p < 0,001 < 0,001 < 0,001 < 0,001 < 0,001 - IC 95% 0,361 – 0,6 0,468 – 0,706 0,672 – 0,91 0,817 – 1,0 0,403 – 0,638 - 0,102 – 0,09 Evidencia-se uma concordância boa para o diagnóstico de psicose e excelente para dependência química, concordância ruim para diagnósticos de ansiedade, distúrbio de humor e transtorno mental orgânico. No diagnóstico de transtorno de personalidade houve discordância (kappa negativo), mas o resultado não tem significância devido à baixa prevalência. A Referência e a Contra-Referência Do total de 356 usuários encaminhados ao CRRESAM, 54 (15,16%) deixaram de comparecer à primeira consulta agendada. Destes, apenas 7 foram avaliados pelo CRRESAM após novo encaminhamento; 47 pacientes, ou 13,2% dos referidos, não se apresentaram ao CRRESAM (os abandonos de tratamento serão detalhados mais adiante, em tópico específico). O intervalo entre a data de encaminhamento pela UBS e a data da consulta no CRRESAM também foi avaliado. O intervalo médio foi de 8,4 dias e aumentou nos últimos 3 anos (tabela 6), configurando uma maior dificuldade de marcação de consultas para essa instância. Tabela 6: Intervalo, em dias, entre a consulta na UBS e a consulta marcada no CRRESAM – distribuição por ano (n = 350)* Média Mediana Moda Desvio Mínimo Máximo 5,31 5,0 2,0 3,7 2 20 1997 (47 pacientes) 4,06 4,0 2,0 2,2 2 13 1998 (109 pacientes) 10,33 9,0 9,0 6,6 2 42 1999 (93 pacientes) 11,19 10,0 7,0 8,7 1 61 2000 (67 pacientes) 16,0 14,0 14,0 9,8 3 62 2001 (34 pacientes) 8,42 6,0 2,0 7,3 1 62 Total (350 pacientes) (*excluídos 6 pacientes cuja data da primeira consulta no CRRESAM não estava assinalada) - 12 - A evolução dos 309 usuários avaliados pelo CRRESAM é resumida no gráfico 4. Gráfico 4: Pacientes incluídos pela UBS Padre Roberto Spawen no SMSM - evolução do tratamento no CRRESAM (n = 309) 133 pacientes foram encaminhados aos PROESAM. A tabela 7 mostra a distribuição pelos programas (PTA = Programa de Transtornos de Ansiedade; PADQ = Programa de Atenção a Dependentes Químicos; PTD = Programa de Transtornos Depressivos; PTB = Programa de Transtornos Bipolares; NAPP = Núcleo de Atenção ao Paciente Psicótico; PSMC = Programa de Assistência à Saúde Mental da Criança): Tabela 7: Distribuição, por programa, dos pacientes oriundos da UBS Padre Roberto Spawen encaminhados aos PROESAM (n = 133) PROGRAMA Usuários Percentual 56 42,1% PTA 34 25,6% PADQ 23 17,3% PTD 16 12,0% NAPP 2 1,5% PSMC 2 1,5% PTB 133 100,0% Total - 13 - Entre os 133 pacientes encaminhados aos PROESAM (gráfico 5) observa-se um grande índice de abandonos de tratamento: 83 casos (62,4% do total) tiveram suas fichas devolvidas à UBS com essa rubrica e, destes, 54 (40,6%) não mais voltaram a procurar tratamento de saúde mental na UBS. 25 pacientes (18,8%) foram contra-referenciados para a UBS; 10 (7,5%) tiveram alta nos PROESAM; 12 (9,0%) ainda estavam em tratamento nos PROESAM à época do estudo e 3 usuários seguiram algum outro tipo de evolução - por exemplo, exclusão por não preencher critérios de admissão no programa, tratamento em outras instituições fora do SMSM, tratamentos não referentes à saúde mental e outros. Gráfico 5: Pacientes incluídos pela UBS Padre Roberto Spawen no SMSM - evolução do tratamento nos PROESAM (n = 133) Do grupo inicial de 356 pacientes referenciados, 100 foram contra-referenciados para a UBS: 75 a partir do CRRESAM e 25 a partir dos PROESAM. A tabela a seguir mostra a distribuição dos diagnósticos nos dois subgrupos. Tabela 8: Freqüência dos diagnósticos dos pacientes contra-referenciados à UBS pelo CRRESAM e pelos PROESAM (n = 100) DIAGNÓSTICO AFETIVO/ ANSIEDADE NÃO PSICÓTICO SUBST TRANST TRANST ORIGEM Total HUMOR NEURÓTICO ESPECIF DELIR. PSICOAT ORGAN PERSON 20 25 13 5 7 4 1 75 CRRESAM 6 13 1 3 2 0 0 25 PROESAM 26 38 14 8 9 4 1 100 TOTAL - 14 - Entre os PROESAM, o PTA, que recebeu a maior parcela de encaminhamentos (42,1%), foi o que mais participou na contra-referência (12 pacientes - 52%). Foram contra-referenciados para a UBS 100 pacientes, porém 23 faltaram à primeira consulta na unidade após a contra-referência e, destes, apenas 4 pacientes retomaram posteriormente acompanhamento em saúde mental; 19 (19%) abandonaram efetivamente o tratamento em saúde mental. Outros 4 pacientes foram contra-referenciados com indicação de outros tratamentos específicos ou sem necessidade de cuidados de saúde mental. Assim o grupo acompanhado na UBS após a contra-referência foi composto de 77 indivíduos. O Tratamento O tratamento medicamentoso foi a conduta mais freqüentemente indicada pelo CRRESAM e pelos PROESAM para a continuidade do tratamento na UBS, atingindo 81,3% e 64%, respectivamente, em ambos os grupos contra-referenciados. A psicoterapia foi recomendada para 13,3% dos pacientes devolvidos pelo CRRESAM e para 28% dos egressos dos PROESAM. A socioterapia, conceituada como qualquer intervenção no grupo familiar ou social com o objetivo de contribuir para a saúde mental, foi a modalidade menos recomendada (4% em ambos os grupos). As ações da UBS junto a estes pacientes se restringiram às consultas médicas (para todos pacientes) e, em menor escala (11,69%), consultas adicionais com outros profissionais (enfermeira ou assistente social). Apenas um paciente recebeu visita domiciliar. As intervenções da UBS no tratamento dos usuários contra-referenciados foram poucas. Entre os pacientes em uso de medicação, na maioria dos casos (71,43%) foi mantida a mesma dosagem prescrita pelos especialistas do nível secundário. Houve redução da medicação em 23,81% dos pacientes, mudança ou acréscimo de novos medicamentos em 4,76% e aumento da dosagem inicialmente prescrita em 1,59%. O grupo analisado sob este aspecto foi composto por 66 pacientes; 11 usuários foram excluídos por terem apenas uma consulta na UBS após a contrareferência (por abandono ou contra-referência recente). No grupo de pacientes contra-referenciados que foi atendido na UBS (77 usuários), ocorreram 22 abandonos, sendo que 14 destes não voltaram a procurar tratamento e dos 8 que retornaram, 5 configuraram abandonos efetivos posteriormente, totalizando 19 abandonos (24,6%) nessa etapa. 28 pacientes (36,3%) necessitaram de reavaliações não programadas no nível secundário. Nenhum paciente obteve alta na UBS após a contra-referência no período estudado. - 15 - Os Abandonos de Tratamento Foram considerados casos de abandono de tratamento aqueles assim definidos pelo CRRESAM ou PROESAM e também os pacientes em tratamento na UBS ausentes há mais de 3 meses sem justificativa. O termo "abandono efetivo" refere-se aos pacientes que abandonaram e não retomaram o tratamento até 30/11/2001 ou àqueles que retomaram e eram novamente considerados como abandono em 30/11/2001. Na população estudada, de 356 usuários, 73,3% (261 pacientes) abandonaram o tratamento em alguma ocasião. O gráfico 6 apresenta a distribuição desses abandonos em relação às etapas do fluxo no SMSM. Gráfico 6: Pacientes que abandonaram o tratamento - distribuição dos pontos de abandono, segundo as etapas da evolução no SMSM (n = 261) 1 = Faltou à 1ª cons. no CRRESAM; 2 = No CRRESAM; 3 = Faltou à 1ª cons. nos PROESAM 4 = Nos PROESAM; 5 = Contra-referenciado pelo CRRESAM, faltou à 1ª cons. na UBS; 6 = Contrareferenciado pelos PROESAM, faltou à 1ª cons. na UBS; 7 = Na UBS, após a contra-referência; 8 = Durante reavaliação no CRRESAM/PROESAM Entre os pacientes que abandonaram o tratamento, 90 posteriormente retornaram, mas, destes, 55 voltaram a interromper o acompanhamento e configuraram "abandonos efetivos". Somados aos 171 casos cujo primeiro abandono foi definitivo, chegou-se a um total de 226 abandonos efetivos, representando 63,5% do total de pacientes que entraram no SMSM. Entre os pacientes com passado de internação psiquiátrica, o índice de abandonos efetivos foi de 53,3%. - 16 - A tabela 9 mostra a freqüência de abandonos efetivos em relação aos diagnósticos. Nesta seção, foram utilizados os diagnósticos da UBS, que abrangem a totalidade do grupo, inclusive os que abandonaram antes da avaliação no CRRESAM. Tabela 9: Freqüência de abandonos efetivos entre os pacientes incluídos pela UBS Padre Roberto Spawen no SMSM - distribuição por diagnóstico (n = 356) DIAGNÓSTICO AFETIVO/DE HUMOR ABANDONO EFETIVO SIM NÃO 58,9% 41,1% ANSIEDADE/NEURÓTICO PSICÓTICO/DELIRANTE SUBST PSICOATIVA TRANST ORGÂNICOS TRANST PERSONALIDADE NÃO ESPECIFICADO TOTAL Total 100% (56) (39) (95) 66,7% 33,3% 100% (88) (44) (132) 38,1% 61,9% 100% (16) (26) (42) 83,3% 16,7% 100% (55) (11) (66) 57,1% 42,9% 100% (4) (3) (7) 100% 100% (1) (1) 53,8% 46,2% 100% (7) (6) (13) 63,5% 36,5% 100% (226) (130) (356) - A análise estatística da tabela 9 quanto às associações entre os diversos diagnósticos e a ocorrência de abandono de tratamento mostra valores significativos no teste do Qui-quadrado (X² = 24,69, p = 0,0002), mas é prejudicada por baixas contagens em alguns diagnósticos. Fez-se, então, a análise de cada um dos diagnósticos isoladamente, em confronto com o restante da população estudada. O diagnóstico "Transtorno por uso de Substância Psicoativa" esteve associado a uma maior taxa de abandono em relação ao restante dos pacientes. Por outro lado, o diagnóstico "Transtorno Psicótico/Delirante" associou-se a um índice de abandonos menor. Os diagnósticos: "Transtorno Afetivo/de Humor" e "Transtorno de Ansiedade" não se traduziram em diferenças nas taxas de abandono, em relação aos demais usuários. Para os transtornos mentais orgânicos e transtornos de personalidade os resultados não foram estatisticamente significativos. A tabela 10 relaciona os resultados dos testes estatísticos, em relação à ocorrência de abandono de tratamento, para cada um dos diagnósticos e outras variáveis. - 17 - Tabela 10: Pacientes incluídos pela UBS no SMSM - análise estatística das taxas de abandonos de tratamento associadas aos diagnósticos e outras variáveis VARIÁVEL X² p 12,7402 0,00035 TRANSTORNO P/ USO DE SUBST. PSICOATIVA 12,0270 0,00052 TRANSTORNO PSICÓTICO/DELIRANTE 0,8986 0,34316 TRANSTORNO AFETIVO/DE HUMOR 0,7119 0,39882 TRANSTORNO DE ANSIEDADE 0,0020 0,96447 TRANSTORNO MENTAL ORGÂNICO 0,0786 0,77914 TRANSTORNO DE PERSONALIDADE 0,0004 0,98492 GÊNERO 15,5494 0,00008 TRATAMENTO ANTERIOR EM SAÚDE MENTAL 0,0001 0,99349 PASSADO DE INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA 0,0035 0,95285 DEPENDÊNCIA ECONÔMICA 0,2556 0,61312 MORAR SÓ 2,3390 0,126169 HISTÓRIA FAMILIAR DE TRANST. MENTAL X² = Qui-quadrado corrigido (Yates); p = p bi-caudal No grupo analisado, a presença de antecedentes de tratamento em saúde mental esteve associada a um índice de abandonos de tratamento significativamente menor. Em relação à idade, notou-se uma tendência linear de diminuição da taxa de abandonos à medida que aumenta a faixa etária, caindo de 72,5% entre os 12 e 19 anos para 44,4% naqueles com 70 anos ou mais. A Localização dos Pacientes no Sistema ao Final do Período Estudado A localização dos pacientes em 30 de novembro de 2001 está resumida na tabela 11. Os 211 pacientes sem localização determinada (59,3% da população), incluem 205 que configuraram abandonos efetivos e outros 6 pacientes que foram encaminhados pelo CRRESAM ou PROESAM para tratamentos fora do SMSM. Outros 19 pacientes que haviam abandonado o tratamento no SMSM estavam em tratamento na UBS, mas sem demandas referentes à saúde mental. Dos quatro óbitos que foram comunicados à UBS, dois foram de pacientes que haviam abandonado o tratamento e dois de pacientes que mantinham acompanhamento na UBS. As internações, geralmente efetuadas através do Serviço de Urgência Psiquiátrica (SUP), não são comunicadas à UBS ou aos outros serviços do SMSM. Via de regra, a notícia da internação chega aos serviços ambulatoriais através de familiares, ou, mais freqüentemente, quando o paciente retorna ao acompanhamento trazendo um sumário de alta. As 19 altas no CRRESAM e PROESAM incluem 16 altas concedidas na primeira passagem pelos serviços e outras 3 ocorridas em reavaliações posteriores. Somadas à única alta concedida pela UBS levam a uma taxa de 5,6% de altas na população incluída pela UBS no SMSM. - 18 - Tabela 11: Localização em 30 de novembro de 2001 dos pacientes incluídos pela UBS Padre Roberto Spawen no SMSM (n = 356) LOCALIZAÇÃO Usuários Percentual 28 7,9% Em avaliação no CRRESAM 47 13,2% Em acompanhamento na UBS, com demanda referente à saúde mental 23 6,5% Em acompanhamento na UBS, sem demanda referente à saúde mental 22 6,2% Em tratamento no PROESAM/nível secundário 1 0,3% Obteve alta na UBS 19 5,3% Obteve alta No CRRESAM/PROESAM Internado 211 59,3% Não Localizado 4 1,1% Falecido 1 0,3% Mudou-se 356 100% Total A tabela 12 apresenta a localização do subgrupo de 92 pacientes com passado de internação psiquiátrica: 43 pacientes (46,7%) não foram localizados, 23 (25%) estavam em acompanhamento na UBS, 19 (20,6%) estavam em avaliação/tratamento no CRRESAM/PROESAM. Houve 5 altas e 2 óbitos nesse grupo. Tabela 12: Localização em 30 de novembro de 2001 dos usuários com passado de internação psiquiátrica incluídos pela UBS Padre Roberto Spawen no SMSM (n = 92) LOCALIZAÇÃO Usuários Percentual 12 13,0% Em avaliação no CRRESAM 16 17,4% Em acompanhamento na UBS, com demanda referente à saúde mental 7 7,6% Em acompanhamento na UBS, sem demanda referente à saúde mental 7 7,6% Em tratamento no PROESAM/nível secundário Obteve alta na UBS 5 5,4% Obteve alta no CRRESAM/PROESAM Internado 43 46,7% Não Localizado 2 2,2% Falecido Mudou-se 92 100% Total CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo foi o primeiro e, até a data atual, o único trabalho que analisou o funcionamento do SMSM de Juiz de Fora a partir do nível primário de atenção. Obviamente, sendo um relato de caso, que descreve o atendimento prestado à população da área de abrangência de uma UBS isolada, o estudo tem limitações, e seus resultados não podem ser generalizados. A comparação com estudos semelhantes também não é tarefa fácil: no nível local não há estudo - 19 - similar, e em outros centros, tanto no Brasil, como em outros países, os sistemas de atenção à saúde mental se estruturam de maneiras diversas, adaptadas às necessidades e recursos de cada região e às políticas locais de saúde. Alguns dos resultados encontrados, contudo, possibilitam trazer alguns aspectos à discussão. O diagnóstico psiquiátrico é fundamental em um sistema estruturado por programas dirigidos a grupos da população com transtornos mentais específicos, porém é tarefa freqüentemente complexa, envolvendo critérios predominantemente subjetivos. O diagnóstico efetuado pela UBS careceu de precisão, como fica evidente pela análise da concordância clínica UBS/CRRESAM, que atingiu níveis satisfatórios apenas para os casos de dependência química e psicose, geralmente de diagnóstico mais fácil. Os diagnósticos dos transtornos de ansiedade e transtornos afetivos/de humor, cuja soma representou 63,8% dos diagnósticos efetuados pela UBS e 59,8% dos diagnósticos dos especialistas do nível secundário, apresentaram uma concordância clínica ruim, ao redor de 50%. Cabe citar o estudo de Carr et al. (1997), que avaliou o impacto de um serviço de consultoria-ligação em psiquiatria em relação ao nível de conhecimento de psiquiatria clínica dos médicos generalistas, especificamente quanto aos transtornos de ansiedade e depressão, concluindo que o acesso a um serviço de consultoria-ligação não melhorou o conhecimento de psiquiatria entre os generalistas. Se, por um lado, a constatação de um aumento gradativo da participação de usuários sem antecedentes psiquiátricos na clientela incluída no SMSM pode refletir uma tendência de psiquiatrização da população, que ocorre nos modelos de inspiração preventivista (AMARANTE, 1992), por outro, a atenção ficou restrita aos pacientes que procuraram a UBS. As ações desenvolvidas ou recomendadas resumiram-se, quase sempre, a consultas médicas e tratamentos medicamentosos. As intervenções efetuadas pela UBS nos tratamentos recomendados pelos especialistas foram mínimas, assim como a taxa de altas na UBS foi insignificante. Apesar da participação crescente de pacientes sem antecedentes psiquiátricos, o número de altas no CRRESAM/PROESAM também foi baixo, configurando uma tendência à cronificação. O processo de referência e contra-referência e as reuniões de supervisão são, na estrutura do SMSM, a forma em que se traduz a consultoria-ligação (RIBEIRO, 2003). Seriam necessários estudos qualitativos para melhor avaliar essa interface. Sabe-se que, na atenção à saúde mental, esse modelo de articulação entre o setor primário e o secundário pode adotar diversos formatos, variando basicamente em função da intensidade do contato direto entre o profissional de saúde mental e o paciente (GASK; CROFT, 2000). - 20 - A existência de uma estrutura organizada de atendimento com baixa pressão de demanda por parte da população não significa, necessariamente, que os usuários estão sendo atendidos de modo eficiente ou que não necessitam de atendimento (WANG et al., 2000). No caso da UBS Padre Roberto Spawen ficou evidente que essa demanda se diluiu através de um processo de abandono de tratamento. A maior parte (63,5%) da população identificada pela equipe da UBS como necessitada de cuidados em saúde mental não se manteve em acompanhamento e as taxas de abandono foram elevadas em todos os subgrupos associados a cada uma das etapas do SMSM, não sendo possível identificar um ponto crítico específico. A comparação com outros estudos fica prejudicada, não só pelas diferentes características da clientela e dos serviços, mas também em função dos diferentes critérios utilizados para a definição de abandono: desde a falta a uma consulta até a ausência por período superior a um ano. Alguns exemplos pesquisados de taxas de abandono de tratamento ambulatorial em saúde mental servem para ilustrar: 68% em Porto Alegre (ISERHARD; FREITAS, 1993); 37% em Botucatu (TORRES; CERQUEIRA, 1992); 46% em Magenta, Itália (PERCUDANI et al., 2002); 17% em Verona, Itália (ROSSI et al., 2002); 16,9% em Ontario, Canadá, e 19,2% nos EUA (EDLUND et al., 2002). A identificação de prognosticadores de abandono de tratamento em saúde mental tem sido alvo de pesquisas que apontaram a importância de fatores como idade; diagnóstico; nível de conhecimento e consciência em relação aos transtornos mentais; atitude/confiança em relação ao tratamento; modalidade de tratamento adotada; habilidade dos profissionais para transmitir informações sobre os diagnósticos, tratamentos e efeitos colaterais; barreiras financeiras (WANG et al., 2000; EDLUND et al., 2002). Na população aqui estudada, a definição de fatores de risco para os abandonos constatados demandaria o uso de metodologias estatísticas específicas, com análises multivariadas, que fogem ao escopo do trabalho. As associações significativas constatadas entre maiores índices de abandono e o diagnóstico de transtorno por uso de substância psicoativa, e menores taxas de abandono com o diagnóstico de psicoses confirmam resultados de outros pesquisadores (ISERHARD; FREITAS, 1993; AMARAL, 1997; PERCUDANI et al., 2002). Sob a ótica da desinstitucionalização, em um sistema de atenção à saúde mental, seria de se esperar algumas ações específicas, de prevenção e tratamento, dirigidas aos usuários com passado de internação, que constituiriam, em princípio, o grupo com maior risco de hospitalização. Isso não ocorreu, e esses pacientes seguiram no Sistema o mesmo trajeto que o restante da população. O índice de abandono de tratamento nesse subgrupo (53,3%), foi pouco inferior ao da população total do estudo (63,5%) e bem superior ao que seria desejável para um grupo de risco. Pesquisa sobre o atendimento em unidades básicas de 150 egressos de internação hospitalar em - 21 - Campinas (AMARAL, 1997) mostrou uma taxa de abandonos semelhante num período de 4 meses (51,4%). O modelo de serviços hierarquizados segue princípios que remontam às formulações da psiquiatria preventivista norte-americana, com tendência à padronização, estrutura gerencial centralizada e pouca autonomia das unidades de base. (AMARANTE, 1992; VASCONCELOS, 1992) Alguns resultados aqui apresentados parecem refletir esse quadro, mas fazem-se necessários novos trabalhos, que possam avaliar a extensão em que a forma de organização do SMSM interferiu na continuidade e eficiência do tratamento, e o impacto obtido em relação ao modelo tradicional, centrado no hospital. Na busca de uma maior adesão e efetividade dos tratamentos em saúde mental, a “centralização no paciente” parece ser o caminho a trilhar (EDLUND et al., 2002). A implementação de programas de monitorização de qualidade dos serviços de saúde mental, mais efetivos na medida em que levem em conta a visão dos profissionais da linha de frente (VALENSTEIN et al., 2004), também pode trazer resultados positivos. "Pensar uma rede de atenção às pessoas que sofrem por transtornos mentais no âmbito do Sistema Único de Saúde, é um desafio que mexe com nossos desejos e utopias [...]" (PITTA, 2001). Os resultados encontrados nesta pesquisa apontam a necessidade de estudos comparativos e complementares, que possam avaliar, entre outros aspectos, o papel dos diferentes equipamentos de saúde que compõem o sistema, a qualidade da atenção e os motivos de abandono de tratamento, subsidiando futuros aperfeiçoamentos na atenção à saúde mental em Juiz de Fora. REFERÊNCIAS AMARAL, M. A. Atenção à saúde mental na rede básica: estudo sobre a eficácia do modelo assistencial. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 31, n.3, p.288-295, 1997. AMARANTE, P. D. C. A trajetória do pensamento crítico em saúde mental no Brasil: planejamento na desconstrução do aparato maniconial. In: KALIL, M. E. X.(Org.). Saúde mental e cidadania no contexto dos sistemas locais de saúde. São Paulo: Hucitec, 1992. p.103-119. BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação de Saúde Mental. Relatório final. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 2., 1994. Brasília. Brasília, 1994. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Assistência à Saúde. Portaria nº 189. Brasília, 19 de novembro de 1991. Disponível em: <http://www.saude.gov.br>. Acesso em: 02 out. 2001. - 22 - BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS). Disponível em < http://tabnet.datasus.gov.br/tabnet/tabnet.htm>. Acesso em 27 fev. 2005. BUSNELLO, E. D'A. et al. Confiabilidade diagnóstica dos transtornos mentais da versão para cuidados primários da Classificação Internacional das Doenças. Revista Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 33, n. 5, p.487-494, out. 1999. CARR, M. et al. Determining the effect that consultation-liaison psychiatry in primary care has on family physicians’ psychiatric knowledge and practice. Psychosomatics, Bethesda, v. 38, n.3, p. 217-229, 1997. EDLUND, J. et al. Dropping out of mental health treatment: patterns and predictors among epidemiological survey respondents in the United States and Ontario. American Journal of Psychiatry, Arlington(Va), v.159, p.845-851, 2002. HERMANN, R. C. et al. Quality measures for mental health care: results from a national inventory. Medical Care Research and Review, Thousand Oaks (CA), v. 57, supl. 2, p.136-154, 2000. ISERHARD, R. ; FREITAS, C. S. C. Freqüência do usuário e diagnóstico em um ambulatório de psiquiatria. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 42, n. 5, p.273-277, jun. 1993. GASK, L. ; CROFT, J. Methods of working with primary care. Advances in Psychiatric Treatment, USA, v. 6, p. 442-449, 2000. JEKEL, J. F.; ELMORE, J. G.; KATZ, D. L. Epidemiologia, Bioestatística e Medicina Preventiva. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999. 328 p. PERCUDANI, M. et al. Monitoring community psychiatric services in Italy: differences between patients who leave care and those who stay in treatment. British Journal of Psychiatry, London, v.180, p. 254-259, 2002. PITTA, A. M. F. Reorientação do modelo de atenção: eqüidade e justiça social na organização de serviços de saúde mental. In: BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Cadernos de Textos da III Conferência Nacional de Saúde. Brasília, 2001. - 23 - RIBEIRO, M. S. Cinco anos de um ambulatório público de saúde mental: o ambulatório do Centro Regional de Saúde de Juiz de Fora-MG- 1981/1985. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 43, n.3, p.163-169, mar. 1994. RIBEIRO, M. S. (Org). Protocolos de Conduta do Sistema Municipal de Saúde Mental. Juiz de Fora: SUS, 2000. 121p. RIBEIRO, M. S. et al. Reforma Psiquiátrica e Atenção Primária à Saúde: o processo de implantação do Sistema Municipal de Saúde Mental de Juiz de Fora. Revista APS, Juiz de Fora, v. 6, n.1, p.19-29, jan./jun. 2003. ROSSI, A. et al. Dropping out of care: inapropriate terminations of contact with community-based psychiatric services. British Journal of Psychiatry, London, v. 181, p.331-338, 2002. SILVA FILHO, J. F. et al. Avaliação da qualidade de serviços de saúde mental no município de Niterói - RJ - A satisfação dos usuários como critério avaliador. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 45, n.7, p.393-402, jul. 1996. TEIXEIRA, L. S. Saúde mental no município de Juiz de Fora - MG: um estudo da avaliação da satisfação de clientes e cuidadores com relação à assistência ambulatorial. 2000. (Dissertação de Mestrado Ciências da Saúde) - Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2000. TORRES, A. R. ; CERQUEIRA, A. T. A. R. Avaliação crítica de um programa do ambulatório de psiquiatria de um hospital universitário. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 41, n. 4, p.171-176, 1992. VALENSTEIN, M. et al. Quality indicators and monitoring of mental health services: what do frontline providers think? American Journal of Psychiatry, Arlington (VA), v. 161, n.1, p.146153, 2004. VASCONCELOS, E. M. Saúde e saúde mental: vicissitudes de um casamento instável. In: _____. Do Hospício à Comunidade: mudança sim; negligência não. Belo Horizonte : Segrac, 1992 - 24 - VASCONCELOS, E. M. Avaliação de serviços no contexto da desinstitucionalização psiquiátrica: revisão de metodologias e estratégias de pesquisa. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 44, n.4, p. 189-197, abr. 1995 Submissão: novembro de 2004 Aprovação: abril de 2004 Percepção dos profissionais de Saúde da Família sobre a qualidade de vida no trabalho Perception of Family Health Professionals of the quality of life at work Marcia Januzzi Lara* * Enfermeira da Estratégia de Saúde da Família Unidade Básica de Saúde Jóquei Club I, da Diretoria de Saúde, Saneamento e Desenvolvimento Ambiental da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora; Especialização em: Administração dos Serviços de Saúde Pública e Hospitalar, Universidade de Ribeirão Preto; Enfermagem em Saúde Mental, Universidade Federal de Juiz de Fora; Enfermagem na Saúde da Família e da Comunidade, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Gestão Estratégica Pública da Escola de Governo, Fundação João Pinheiro; Curso de Formação Pedagógica em Educação Profissional na Área de Saúde: Enfermagem em parceria entre o Ministério da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz e UFMG. Endereço: Rua José Apolônio dos Reis, 209. Bairro Aeroporto. Juiz de Fora MG. E-mail: [email protected] RESUMO O presente trabalho teve como foco a qualidade de vida dos profissionais que atuam na Estratégia de Saúde da Família da Diretoria de Saúde, Saneamento e Desenvolvimento Ambiental da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora. O objeto deste estudo foi, portanto, as equipes que compõem a Estratégia de Saúde da Família. Discutimos o processo saúde-doença, trabalho em equipe e as atribuições das equipes da Estratégia de Saúde da Família, segundo o Ministério da Saúde. A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa através de entrevistas semiestruturadas com profissionais de 5 equipes que atuam na ESF. A análise das entrevistas nos demonstra que os profissionais entrevistados possuem, em sua maioria, especialização ou capacitação para atuarem na ESF, acreditam no trabalho que realizam e investem para alcançar os objetivos dessa Estratégia. Destaca-se, também, que não existe participação interdisciplinar na atenção primária e menos ainda integração entre os demais setores da PMJF, ficando até mesmo o apoio dos administradores passível de questionamentos. Os entrevistados relatam ter um bom relacionamento e ressaltam a importância do trabalho em equipe. Constatou-se, ainda, a necessidade de educação continuada, para aprimorar a qualificação dos profissionais, com a finalidade de complementar e atualizar conhecimento, trocas de experiências e suporte técnico científico. A questão salarial é outro questionamento que fazem ressaltando a falta de vontade política de se resolver esta questão. São levantadas propostas para planejamento de reestruturação do espaço físico das UBS, formação de equipes de suporte para melhorar a qualidade de vida dos profissionais e, conseqüentemente, da população assistida pelos mesmos. Palavras-chave: Equipe de Assistência ao Paciente; Qualidade de Vida; Medicina de Família ABSTRACT This study focused on the quality of life for professionals who work in the Family Health Strategy of the Director of Health, Sanitation and Environmental Development of the Municipal Government of the city of Juiz de Fora. The objective of this study was, therefore, the teams that make up the Family Health Strategy. We discussed the health-disease process, teamwork and the attributions of the Family Health teams, according to the Ministry of Health. The methodology used was qualitative research via semi-structured interviews with professionals from the 5 teams that work in Family Health Strategy (FHS). An analysis of the interviews shows that the professionals interviewed have, for the most part, specialization which enables them to work in FHS, they believe in the work they do, and they invest to meet the objectives of this Strategy. We also want to point out that interdisciplinary participation in primary health care does not exist, nor is there yet integration with the other sectors of the Juiz de Fora Municipal Government, and even the support of the administrators could be called into question. The interviewees said they had a good relationship and emphasized the importance of teamwork. We also noted the need for continuing education, to improve the qualifications of the professionals, in order to complement and update their knowledge, exchanges of experience and scientific technical support. The salary question is another area where we found a lack of political will to resolve the problem. Proposals are given for restructuring the physical space of the Basic Health Units, the formation of support teams to improve the quality of life of the professionals, and consequently of the population they care for. Key words: Patient Care Team; Family Practice; Quality of Life INTRODUÇÃO: O foco central desta pesquisa é verificar, junto aos profissionais que atuam na Estratégia de Saúde da Família da Diretoria de Saúde, Saneamento e Desenvolvimento Ambiental da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, como está sua saúde, como está sua atuação no Programa e o que o levou a trabalhar na Estratégia de Saúde da Família. Desse modo, o objeto deste estudo foram as equipes que compõem a Estratégia de Saúde da Família em Juiz de Fora. A partir de então, tomou-se a equipe como referência e, nela, os profissionais que a compõem. Nesse sentido, buscou-se enfocar a habilitação desses profissionais para atuar com o indivíduo como ser integral, o seu lidar com as emoções dos indivíduos e das famílias as quais prestam atendimento à sua saúde, sua capacitação para atuar no novo modelo como agente de mudança, principalmente na melhoria da qualidade de saúde da população. A proposta da escolha deste tema se deu a partir do objetivo de se compreender como foram inseridos os profissionais na ESF e, ainda, discutir a relação entre estes profissionais. A motivação para o estudo deste assunto partiu do pressuposto de que a dificuldade em estar lidando com os problemas dos indivíduos e das famílias por alguns profissionais que integram as equipes da ESF levam estes a manifestarem uma sobrecarga emocional e depressões. Como afirma Mourão (2001, p.19), podem ocorrer outras manifestações de estresse, como hipertensão arterial, diabetes, doenças osteo-articulares e insônia. O que foi proposto neste trabalho, portanto, foi levantar as necessidades dos profissionais e solicitar ações que possibilitem a prevenção e ou a diminuição da situação de estresse que porventura venha a acontecer, para se diminuir o risco de adoecer. Na realidade, ninguém vive sem estresse, alguns autores afirmam que ele é parte inerente de todo ser humano e que tem seu ponto positivo, e o que é necessário é que se aprenda a lidar com este estresse e mantê-lo sob controle. Dantas (1996) define estresse como sendo uma reação biológica prolongada, caracterizada pela destruição do estado de equilíbrio interno do organismo (homeostase), em resposta a estímulos ambientais inusitados ou hostis (DANTAS, 1996. p. 80-81). Taylor (1922) também define estresse como sendo transtornos psicofisiológicos que têm uma causa emocional que afeta o sistema orgânico e envolve a inervação do sistema nervoso autônomo. Os indivíduos afetados apresentam uma doença física na qual existe evidência de alteração orgânica (TAYLOR, 1992, p.251). Dantas (1996) e Taylor (1992) afirmam que a definição de estresse é difícil, bem como seu reconhecimento e diagnóstico, levando as pessoas a tratamentos somáticos prolongados. Dantas (1996) afirma ainda que a persistência da reação prolongada ao estresse pode desencadear uma série de sinais e sintomas que estão associados ou são conseqüência desse estado, que são; no sistema nervoso: ansiedade, irritabilidade, nervosismo, incapa cidade de concentração, sensação de fadiga ou mal-estar e insônia, dor de cabeça e enxaqueca; no sistema cárdio-vascular: taquicardia, palpitações, dores no peito e falta de ar; no aparelho digestivo: azia, dor no estômago, gastrite, úlcera, diarréia, “prisão de ventre” e “colite crônica”; no sistema osteomuscular: aumento da tensão e dores nos músculos do pescoço e ombros; outros: uso excessivo do fumo, álcool e tranqüilizantes (DANTAS,1996, p. 81-82). Faz-se necessário, portanto, questionamentos sobre fatores que possam interferir na saúde dos profissionais que atuam nas Unidades Básicas de Saúde da Estratégia de Saúde da Família, pois, a partir do momento em que fatores internos ou externos começam a afetar a saúde destes profissionais, possivelmente o seu trabalho sofrerá intercorrências e prestar assistência de qualidade, quando o que se está em jogo é a própria saúde, pode tornar-se uma tarefa complexa. Conceituar “Qualidade de Vida” não é tão simples quanto parece; para alguns autores, equivale a “bem-estar”, “status de saúde”; outros autores dizem que é a busca de “satisfação do trabalhador”. Para Walton, citado em Goulart (1998, p.12), a expressão “Qualidade de vida” tem sido utilizada com crescente freqüência para descrever certos valores ambientais e humanos, negligenciados pelas sociedades industriais em favor do avanço tecnológico, da produtividade e do crescimento econômico. O mesmo autor define “Qualidade de Vida” no trabalho como sendo o nível de satisfação do trabalhador enquanto indivíduo associado e pode ser identificada através de oito categorias, que são: compensação justa e adequada ⎯ justa distribuição pela realização do trabalho; segurança e saúde ⎯ jornada de trabalho razoável e ambiente seguro e saudável; desenvolvimento das capacidades ⎯ autonomia, informações sobre o processo como um todo, utilização das qualidades múltiplas; crescimento e segurança ⎯ manutenção do emprego, possibilidade de crescimento pessoal e profissional com avanço salarial; integração social ⎯ ausência de preconceitos, favorecimento dos relacionamentos, senso comunitário; constitucionalismo na organização ⎯ privacidade pessoal, tratamento imparcial, direitos trabalhistas e de proteção, liberdade de expressão; o trabalho e o espaço total de vida ⎯ estabilidade de horários, papel balanceado do trabalho, poucas mudanças geográficas, tempo para lazer e família; relevância social no trabalho ⎯ valorização de sua participação no processo produtivo, bem como de sua imagem pessoal, responsabilidades e práticas (WALTON apud RODRIGUES, 1994 in GOULART, 1998, p.1213). Goulart (1998, p.13) observa que algumas vezes torna-se difícil a diferenciação entre Qualidade de Vida e Qualidade de Vida no Trabalho, pois o indivíduo, continua o autor, “não vive duas vidas simultâneas, ele é o mesmo homem, analisado sob a ótica do trabalho ou da vida cotidiana, isto é, em certos casos os interesses do trabalho chegam a dificultar a dissociação da vida privada, impedindo a concretude da plenitude da vida”. Albreech (1998) também revela que “toda organização possui sua própria ecologia humana distintiva (ou ambiente psicológico qualitativo) que influencia muitíssimo os processos emocional-cognitivos gerais das pessoas que nela trabalham” (ALBREECH, 1998, p.124, citado em GOULART, 1998, p.14). Retornando ao objeto de estudo deste trabalho, que são as equipes da Estratégia de Saúde da Família, pode-se inferir que um dos paradigmas da Estratégia da Saúde da Família é o trabalho interdisciplinar, que tem como fundamento a lógica do trabalho em equipe. O Programa de Saúde da Família, que foi implantado oficialmente pelo Ministério da Saúde em 1994, e que, a partir de 1998, passou a ser reconhecido pelo próprio Ministério como Estratégia de Saúde da Família, tem como lógica viabilizar a transformação do modelo de atenção à saúde, que era centrado na doença e no indivíduo. A ESF tem como diretrizes operacionais a adscrição da clientela, a integração dos vários níveis de atenção à saúde (primário, secundário e terciário), o planejamento, o trabalho em equipe, a ação intersetorial e o controle social (Brasil, 1996). O ponto central da ESF pode-se dizer que é o estabelecimento de vínculos da equipe com a comunidade e a coresponsabilidade entre os profissionais de saúde e a população, ou seja, esta (a população), passa a participar dos processos de combate às doenças e melhoria da qualidade de vida em um território definido. A 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986 deu subsídios para a Constituição de 1988 que, em seu artigo 196, define saúde em seu sentido mais amplo: “Saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 2001). A saúde, segundo a Constituição de 1988 (BRASIL, 2001), não está relacionada somente como bem-estar físico, social e mental, mas com as relações de trabalho, meio ambiente, lazer, entre outros. A partir de então, não só os profissionais de saúde têm a responsabilidade para com as ações de saúde, mas também outros setores públicos, privados e a própria comunidade, que passam a ser partes integrantes desse processo. São as denominadas parcerias, participações intersetoriais. Surgem, então, os conflitos entre os profissionais e os diversos setores envolvidos na lógica do trabalho, multi e interdisciplinar. Trabalho em equipe, trabalho multidisciplinar e equipes interdisciplinares têm sido usados com regularidade na ESF, porém têm sua fundamentação na Saúde Mental. Campos (1992, p.255) afirma que: nos serviços públicos não existem reais equipes de trabalho multidisciplinar e, sim, profissionais de diversas áreas de conhecimento, desenvolvendo suas atividades numa instituição, sem que haja, por parte desta, definição de uma proposta de trabalho voltada para um objeto comum. As ações desenvolvidas que têm como alvo o paciente, com freqüência carecem de articulações e se perdem ou se diluem por somarem, justaporem ou mesmo se contraporem. O trabalho multidisciplinar e interdisciplinar não deve ser estático; ele deve caminhar junto e não ser agrupamento de vários profissionais de áreas diferentes. Souza (1999, p.14) complementa que as “reflexões sobre interdisciplinariedade apontam para a necessidade de transformação do trabalho isolado em trabalho coletivo que, a nosso ver, é um momento de síntese da apreensão dos múltiplos conhecimentos e práticas determinando um novo modo de contribuir para a produção da saúde”. Campos infere, ainda, que “um grupo de profissionais só configura uma equipe quando opera de modo cooperativo, convergindo seus objetivos para uma dada situação, de forma a haver complementariedade e não soma de superposição”. (CAMPOS, 1992, p.255). A autora (Campos, 1992) continua afirmando que operar de modo cooperativo, por sua vez, não implica em trabalhar sem conflitos e que a presença destes é inevitável e universal. Japiassu, citado em Campos (1992, p.256), enfatiza que a “cooperação interdisciplinar exige, por definição, qualidades de tolerância mútua, de abnegação e, até mesmo, de apagamento dos indivíduos em proveito do grupo”. Reforça, também, a necessidade de ajustamento de papéis de uns para com os outros. As referências literárias quanto à equipe de saúde são raras, predominando, segundo Ciamponi et al, a “concepção de equipe como senso comum, onde a equipe é representada como um conjunto de profissionais em situação comum de trabalho” (CIAMPONI et al, 2000, p.144). As autoras destacam, ainda, que a “equipe” no processo de “trabalho” em saúde refere-se à obtenção de bens ou produtos para a atenção às necessidades humanas, “cabendo a responsabilidade pela obtenção de resultados que expressem a finalidade do trabalho que produz” (CIAMPONI, 2000, p.144). O trabalho em equipe, para Habermas (1989, 1994), citado em Ciamponi (2000, p.144), significa a relação recíproca entre duas dimensões complementares ⎯ trabalho e interação. O autor destaca que a comunicação entre os profissionais faz parte do exercício cotidiano do trabalho e considera duas dimensões inerentes ao trabalho em equipe: “a articulação das ações e a interação dos profissionais”. Por articulação, o autor refere-se à recomposição de processo de trabalhos distintos, respeitando as intervenções técnicas peculiares de cada área profissional com suas respectivas especificidades. Por integração da equipe, considera-se a preservação das técnicas e flexibilização das fronteiras entre as áreas profissionais. Souza (1999) preconiza também que no processo de trabalho coletivo, considerando a perspectiva interdisciplinar, a lógica da descoberta é elemento nuclear em que a predisposição a descobrir o novo, o ponto de interseção e de afastamento entre os conceitos, significa estar disponível para entender o discurso das outras disciplinas, assim como se despojar de conceitos, técnicas e procedimentos que reproduzem conhecimentos, atitudes e metodologias, quase sempre corporativas e refratárias a um tipo de convívio, no qual tem espaço a comunicação aberta e democrática. Somente deste modo é posbalho coletivo e a ampliação das condições para efetivar a política constitucional de acesso universal à saúde (SOUZA, 1999, p.10). Ao longo do trabalho, vem-se falando em equipe, em multidisciplinariedade e interdisciplinariedade, porém, resta especificar ao leitor qual a equipe que compõe a Saúde da Família e sua função neste modelo de assistência. As equipes da ESF, preconizadas pelo Ministério da Saúde e ditas como equipe mínima, são compostas de l (um) médico de família (ou generalista), l (um) enfermeiro, l (um) auxiliar de enfermagem e 4 a 6 agentes comunitários de saúde. Porém, nada impede que outros profissionais venham a integrar esta equipe, como dentistas, assistentes sociais, psicólogos, entre outros. As equipes da ESF, segundo o Ministério da Saúde (1997), têm como atribuições: conhecer a realidade das famílias pelas quais são responsáveis, com ênfase nas suas características sociais, demográficas e epidemiológicas; identificar os problemas de saúde prevalentes e situações de risco aos quais a população está exposta; elaborar, com a participação da comunidade, um plano local para enfrentamento dos determinantes do processo saúde/doença; prestar assistência integral, respondendo de forma contínua e racionalizada à demanda organizada ou espontânea, com ênfase nas ações de promoção à saúde; resolver, através de adequada utilização do sistema de referência e contra-referência, os principais problemas detec- tados;desenvolver processos educativos para a saúde, voltados à melhoria do auto-cuidado dos indivíduos; promover ações intersetoriais para o enfrentamento dos problemas identificados. Ao mesmo tempo, cada profissional da equipe tem suas atribuições de acordo com suas especificidades que são, segundo o Ministério da Saúde (1997): a) Atribuições do Médico: Prestar assistência integral aos indivíduos sob sua responsabilidade; valorizar a relação médico-paciente e médico-família como parte de um processo terapêutico e de confiança; oportunizar os contatos com indivíduos sadios ou doentes, visando abordar os aspectos preventivos e de educação sanitária; empenhar-se em manter seus clientes saudáveis, quer venham à consulta ou não; executar ações básicas de vigilância epidemiológica e sanitária; executar ações de assistência à criança, ao adolescente, à mulher, ao trabalhador, ao adulto e ao idoso; promover qualidade de vida; dentre outros. b) Atribuições do Enfermeiro: Executar, no nível de sua competência, ações de assistência básica de vigilância epidemiológica e sanitária nas áreas de atenção à criança, ao adolescente, à mulher, ao trabalhador e ao idoso; desenvolver ações de capacitação de ACS e auxiliares de enfermagem; oportunizar os contatos com indivíduos sadios ou doentes, visando promover a saúde; promover a qualidade de vida; dentre outros. c) Atribuições do Auxiliar de Enfermagem: Desenvolver, com os ACS, atividades de identificação das famílias de risco; realizar visitas domiciliares; executar os procedimentos de vigilância sanitária e epidemiológica nas áreas de atenção à criança, ao adolescente, à mulher, ao trabalhador e ao idoso; dentre outros. d) Atribuições do ACS: Realizar mapeamento na área de atuação; cadastrar e atualizar as famílias de sua área; identificar indivíduos e famílias expostas a situações de risco; realizar, através de visita domiciliar, acompanhamento mensal de todas as famílias sob sua responsabilidade; promover educação em saúde e mobilização comunitária; incentivar a formação de conselhos locais; dentre outros. Dentro deste quadro onde há tantas atribuições, tanto para o trabalho individual, como para o coletivo, faz-se necessário um estudo sobre: como as equipes que compõem a Estratégia da Saúde da Família em Juiz de Fora estão lidando com este novo modelo de assistência? Existe uma formação destas categorias para este tipo de trabalho? Retornando ao ponto central desta pesquisa, que é a Qualidade de Vida das equipes que compõem a Estratégia de Saúde da Família de Juiz de Fora, retorna-se a um dito popular na saúde, que preconizava que a idéia de saúde das pessoas diz respeito às próprias pessoas. Mas, ao se transportar para os profissionais que estão envolvidos com a saúde de toda uma comunidade, fica a pergunta: a saúde destes profissionais interessa somente a eles? Sabendo que cada profissional tem sua história, seu passado, seu presente, sua família e idealiza seu futuro, é necessário que haja um equilíbrio nos fatores que cercam seu cosmos. O desequilíbrio, interno ou externo, como foi dito anteriormente, pode interferir no seu processo de saúde e, conseqüentemente, no seu processo de trabalho. Para Dejours (1986, p.9), o trabalho é um elemento fundamental na vida do indivíduo, e ter saúde “não é só o perfeito estado de bem-estar físico, mental e social; pois, na realidade, este não existe”. Para o autor, o que existe é que a saúde é um fim, é a busca de um objetivo a ser atingido, e está relacionado à fisiologia (ao que tange ao funcionamento do organismo, às regras que asseguram seu equilíbrio e sobrevivência); o segundo ponto é a psicossomática (por exemplo, a angústia ⎯ é uma causa de sofrimento; saúde não consiste em não se ter angústia, mas em se tornar possível a luta contra ela, de tal modo que se resolva, que se acalme momentaneamente para ir em direção a outra angústia); e o terceiro ponto é a psicopatologia do trabalho; a falta de trabalho afeta a saúde do indivíduo, mas o oposto também é verdadeiro, ou seja, quando as condições de trabalho não são favoráveis, estas também afetam a saúde do indivíduo: por exemplo: a pressão, excesso de horas extras, o calor, o frio, a repetição de técnicas, entre outros (DEJOURS, 1986, p. 9-11). Pode-se dizer, então, segundo o mesmo autor, que a saúde é uma questão que não vem “somente” do exterior; é alguma coisa que muda o tempo todo, é uma sucessão de compromissos com a realidade. Pòin-Nordenfelt, citado em Dejours (1986), defende que a saúde não é a ausência objetiva de patologia e, sim, a inexistência de enfermidade. Observa-se, então, que a saúde no trabalho é influenciada por uma série de fatores que podem interferir ou não no emocional do profissional. Estas interferências podem estar relacionadas ao sistema hierárquico da empresa, à modalidade de liderança, à divisão de trabalho, ao excesso de responsabilidades, às relações interpessoais, ao conteúdo das tarefas e ao retorno insuficiente de dados ou reconhecimento por parte das chefias. Ao se transportar para a ESF, onde o enfoque são as equipes multidisciplinares, o lidar com o emocional dos indivíduos e suas famílias pode desencadear elementos da ordem dos afetos, das especificidades de cada profissional, podendo gerar estresse na equipe, que poderá ser positivo ou não; baseados em Vasconcelos, que afirma: a complexidade das situações enfrentadas requer dos serviços e de suas equipes enorme flexibilidade, um alargamento da abordagem, com alto custo adicional e fortes exigências para os profissionais, causando até mesmo sobrecarga emocional e depressões entre eles (VASCONCELOS, 2001, p.19). Necessário se faz, portanto, um estudo da saúde dos profissionais que atuam na Estratégia de Saúde da Família, sua qualidade de vida no trabalho, suas necessidades em relação à capacitação, ao acesso à especialização e outros a fatores que possam interferir e aprimorar sua qualificação para atuar na promoção, prevenção e recuperação da saúde da população que está sob sua responsabilidade. . Metodologia Para a elaboração deste estudo, realizou-se uma observação sistemática do funcionamento da Unidade Básica de Saúde, o trabalho dos membros que compõem a Estratégia de Saúde da Família e o relacionamento dos membros da equipe entre si e com as demais equipes. Posteriormente, foi realizada a entrevista semi-estruturada com os profissionais destas equipes. O ambiente da investigação foi, portanto, o mesmo de atuação dos profissionais da equipe que atuam na Estratégia de Saúde da Família da Diretoria de Saúde, Saneamento e Desenvolvimento Ambiental da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora.. Com relação à investigação qualitativa, Monteiro a define como aquelas cujas estratégias de pesquisa privilegiam a compreensão do sentido dos fenômenos sociais para além de sua explicação, em termos de relação causa-efeito”. O mesmo autor argumenta que a teoria da investigação qualitativa “não é para ser imposta ao fenômeno, como modelo explicativo, mas para alimentar a imaginação interpretativa do investigador e iluminar os ‘insights’ que venham a ter diante da intensidade de experiência vivida dos sujeitos de sua investigação. (MONTEIRO, 1998, p.11) Bogdan (1998, p.64) afirma que o “dever principal do observador é o de conduzir a investigação, e que os investigadores procedem com rigor no que diz respeito ao registro detalhado daquilo que descobrem”. Para esse autor, as características da investigação qualitativa são a parte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal; é descritiva, os dados recolhidos são em forma de palavras ou imagens e não de números. Os resultados escritos da investigação contém citações feitas com base nos dados para ilustrar e substanciar a apresentação; os investigadores qualitativos interessam-se mais por processos do que pelos resultados ou produtos; os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva; o significado é de importância vital na abordagem qualitativa. (BOGDAN, 1998, p.47-51). Vale ressaltar que a observação na investigação qualitativa é fundamental para o investigador, porém este deverá ter o cuidado de não se deixar envolver emocionalmente, ou seja, deverá eliminar sua influência sobre o que está vendo e ter o cuidado de registrar o observado. De acordo com Bogdan (1998, p.48), “o número de sujeitos a serem investigados não deve ser um imperativo prévio ao investigador”. Durante o trabalho de campo, à medida em que a coleta de dados qualitativos se desenvolve é o momento em que o pesquisador toma a decisão de encerrar ou prosseguir sua busca. Dependerá de uma exaustiva repetição de dados, o bastante para a redução a unidades de significados. Propôs-se, então, em princípio, investigar duas Unidades Básicas de Saúde da cidade de Juiz de Fora, considerando os critérios: uma, com três equipes, tendo sido uma das primeiras a ser implantada; outra, uma Unidade com duas equipes, que foi implantada no segundo momento. Ambas situam-se na região periférica da cidade. Para que essas equipes se sintam em liberdade para exporem seus problemas, foram designadas durante todo o trabalho, como equipe A1, A2 e A3 da Unidade A, e equipe B1 e B2 da Unidade B. Baseado em Monteiro, um aspecto importante na trajetória de uma pesquisa é ressaltar a importância do pesquisador em “procurar tornar-se familiarizado com as pessoas e seu comportamento, em seu contexto, a fim de compreender suas ações e os significados que estas lhe imprimem”. Também destaca o autor, “que a negociação que o pesquisador precisa fazer de modo a ser aceito socialmente pelas pessoas locais como participante de seu universo de relações” é um aspecto importante na trajetória de uma pesquisa (MONTEIRO, 1998, p.15). Outro aspecto que merece destaque na pesquisa qualitativa é com relação à questão ética. O uso do consentimento informado (trata de garantir que o sujeito da pesquisa conscientemente concorde em ser pesquisado) e a proteção do sujeito no caso de sua exposição a risco em decorrência da participação da pesquisa são as garantias que o pesquisador deve fornecer ao pesquisado, antes que se inicie todo o processo da pesquisa (BOGDAN e BIKLEN, citados em MONTEIRO, 1998, p.18). No anexo I, encontra-se o modelo do termo de consentimento assinado pelos componentes da equipe após explicação dos objetivos da pesquisa. Em relação ao método quantitativo, este tem relação com a objetividade, ou seja, segundo Minayo, “os dados relativos à realidade social seriam objetivos, se produzidos por instrumentos padronizados, visando a eliminar fontes de propensões de todos os tipos e a apresentar uma linguagem observacional neutra” (MINAYO, 2000, p.30). A autora afirma, ainda, que este instrumento não deixa de ter o seu valor, mas a crítica que é feita por vários autores e pesquisadores “está no fato de se restringir a realidade social ao que pode ser observado e quantificado apenas” (MINAYO, 2000, p.30). Optou-se, então, pela pesquisa qualitativa, pois o que se quer alcançar é um aprofundamento maior da compreensão da realidade onde estão inseridos os profissionais que atuam nas equipes da Estratégia de Saúde da Família, como está sua saúde, o que interfere no seu trabalho para comprometer sua “Qualidade de Vida”. Portanto, essa realidade, para ser colocada em evidência, não pode ficar restrita apenas a coleta de dados quantitativos. A coleta de dados se deu através de fonte primária, que tem as equipes das UBS como informantes. Iniciou-se dizendo que a entrevista semi-estruturada seria a base da coleta de dados através da investigação direta nas UBS, porque oferece maior oportunidade para que as pessoas coloquem seu pensamento e permite ao mesmo tempo ao pesquisador observar a postura, a fala e os gestos dos entrevistados. Um roteiro prévio para o pesquisador conduzir a entrevista foi elaborado (anexo II) . Como instrumento, foi utilizado um gravador e, terminada a entrevista, o pesquisador a transcreveu fazendo, posteriormente, a análise dos dados, que serão publicados a seguir. Relato das entrevistas Para a realização desta pesquisa, foram entrevistados três médicos de família, quatro enfermeiras, um auxiliar de enfermagem e duas técnicas de enfermagem, doze agentes comunitários de saúde, uma assistente social. Foram realizadas nove perguntas que foram respondidas de forma clara e objetiva. Percebemos, também, tranqüilidade e disponibilidade dos profissionais em participarem da pesquisa, apesar de tantos afazeres nas unidades de saúde. A seguir, faremos um relato destas entrevistas. Em relação ao tempo de atuação em Estratégia de Saúde da Família, os Agentes Comunitários de Saúde responderam de 10 meses a dois anos e cinco meses (caso da maioria), o que corresponde ao período em que se iniciou o trabalho desses profissionais nas UBS que possuem ESF. Dos quatro enfermeiros entrevistados, dois estão atuando desde a implantação da ESF; outro atua há 3 anos e cinco meses - e são funcionários efetivos, ou seja, prestaram concurso para a Prefeitura Municipal de Juiz de Fora; a quarta enfermeira não é funcionária de carreira, mas, somando os períodos de contratação, presta serviços na ESF há quatro anos. Dois médicos atuam desde a implantação do programa, há sete anos; o terceiro deles tem cinco anos de atuação Os auxiliares e técnicos também estão atuando na ESF desde a fase de implantação nas unidades, seis e sete anos respectivamente. Percebe-se que, dos entrevistados, somente a enfermeira contratada não possui nenhum tipo de capacitação para atuar na ESF, tendo participado somente do curso introdutório com sua equipe, em 2003. Os demais profissionais têm curso de especialização para atuar na ESF (médicos, enfermeiros e assistentes sociais), capacitação de auxiliares de enfermagem (auxiliares e técnicos) e capacitação para agentes comunitários de saúde. Na questão da saúde, o que mais tem afetado esses profissionais é: ⎯ Depressão: cinco profissionais relatam terem problemas de depressão, porém, só uma profissional relata ter iniciado tratamento, os demais alegam não terem “tempo” para cuidarem de si mesmos. Associam essa depressão a não terem como dar solução a todos os problemas que surgem na comunidade. ⎯ Problemas de coluna: cinco profissionais relatam sofrerem problemas de coluna e dores fortes nas pernas, devido ao estresse, a andar muito, subir muita escada. ⎯ Estresse: sete profissionais relatam estresse devido ao aumento da demanda, a pressão da comunidade que busca atendimento, sobrecarga de serviços, excesso de burocracia e por não terem condições de resolver todos os problemas. ⎯ Fadiga: três profissionais relatam fadiga também devido à pressão da demanda e por não poderem resolver todos os problemas. ⎯ Problemas de pele: três profissionais relatam já estarem acometidos por problemas de pele, por andarem muito no sol e por picada de inseto. ⎯ Gripe e sinusite: dois ACS associam esse fato ao sol e à poeira. ⎯ Ansiedade exacerbada: relatado por três profissionais e, dentre eles, dois expressam que este fato está interferindo em sua vida familiar. ⎯ Problema de estômago: relatado por um profissional, em tratamento. ⎯ Dor de cabeça constante: relatado por dois profissionais. ⎯ Três profissionais relatam não terem problemas de saúde. Quanto aos conflitos de equipe, todos expressam não terem conflito de grandes proporções; relatam existirem “divergências”, mas que isto não é prejudicial para as equipes. Com relação aos sentimentos e reações ao lidar com as famílias e com os problemas dessas famílias, os profissionais relatam sentir: ⎯ Impotência: “a gente se vê impotente com os problemas que eles têm; a gente quer resolver e não consegue”, e continuam, “nem sempre depende só de um profissional ou da equipe, mas de outros setores, como da própria Diretoria de Saúde e também de outros órgãos que pertencem à Prefeitura. Outros problemas são puramente sociais e não temos como resolvê-los”, relatam outros profissionais.A falta do suporte de outros especialistas para as equipes também gera esta impotência nos profissionais e nas equipes. ⎯ Incapacidade: apesar de possuírem especialização e capacitação, existem fatos que ultrapassam os limites dos profissionais que fazem parte das equipes. ⎯ Frustração: por não terem condições de dar continuidade para a resolução dos fatos que são levantados e que são fatores de risco para a saúde de um indivíduo ou de uma comunidade. ⎯ Angústia: pelos mesmos motivos. Na verdade, os profissionais relatam, de modo geral, terem este tipo de sentimentos e/ ou reações devido a estarem lidando com problemas que são mais sociais como os relacionados ao menor, ao alcoolismo, à droga, prostituição, violência, tornando-se necessário que outros profissionais sejam envolvidos, para estarem atuando junto a essas equipes. Como fatores positivos, foram destacados: ⎯ a aderência da população ao tipo de trabalho, ao trabalho de grupos, ao preventivo, à puericultura, ao aumento da cobertura vacinal e ao ingresso dos agentes comunitários nas equipes; ⎯ o trabalho em equipe; ⎯ a identificação das doenças mais freqüentes; ⎯ a prevenção, “por que deixa a comunidade a par do que ela pode fazer para evitar doenças”; ⎯ o acompanhamento; o convívio com as pessoas; “acompanha a família dela toda, você sabe quase tudo dela. A partir do momento em que você conhece como as famílias vivem, você tem a possibilidade de planejar alguma ação referente a essas dificuldades que as famílias , ou que a comunidade em geral tem, e direcionar mais as atividades”; ⎯ trabalhar a prevenção é bem melhor do que trabalhar a parte curativa; ⎯ o apoio emocional e o carinho que a gente dá é muito importante; ⎯ você conhece mais os problemas do bairro onde você trabalha; ⎯ as pessoas se sentem felizes em poder desabafar com a gente; ⎯ dá para desenvolver uma boa relação médico-paciente, fica mais fácil conhecer até alguma coisa que pode estar acontecendo com as pessoas, algum distúrbio, fica até mais fácil acompanhar e tratar; ⎯ levar a informação nas casas das pessoas; ⎯ as pessoas passam a acreditar que a vida pode mudar; ⎯ a comunidade tem mais liberdade, eles o recebem melhor nas casas; ⎯ conhecer a família e ver o “usuário” como um todo, dentro de sua família, do seu habitat, do seu bairro, é o ponto mais positivo talvez da ESF, pois você tem condições de fazer um diagnóstico mais adequado; ⎯ estar tentando melhorar a qualidade de vida da população. Os pontos negativos levantados foram: ⎯ a falta de trabalho educativo por falta de espaço físico, apesar de as equipes trabalharem com grupos de hipertensos, puericultura e pré-natal; ⎯ a falta de tempo para desenvolver outras atividades, devido à pressão da demanda; ⎯ falta de retorno da população em cima do trabalho que se está realizando; ⎯ o desconhecimento da população do que seja ESF; eles ainda têm idéia de que, para ter saúde, tem que ter médico; ⎯ falta de insumos para se realizar qualquer tipo de trabalho; ⎯ áreas sem cobertura, o que impede de se organizar o trabalho; ⎯ falta de profissionais para completar as equipes; ⎯ falta de respaldo da Diretoria de Saúde e de outros departamentos, o que impede que se possa dar continuidade para resolver determinadas situações que fogem da competência das equipes; ⎯ não conseguir o que se planeja, por falta de respaldo, levando à frustração; ⎯ sobrecarga de trabalho e emocional, pois você passa a ser referência das famílias e “ela sabe que, se precisar, você vai estar ali”; ⎯ o envolvimento muito grande passa a ser um ponto negativo, pois você não consegue resolver todos os problemas, gerando estresse e ansiedade; ⎯ algumas pessoas não reconhecem, ainda, o trabalho do Agente Comunitário de Saúde; ⎯ muita burocracia, sobrecarga de serviços, impedem de “estar atuando de maneira que a gente quer”. Na questão aberta, se você gostaria de complementar mais alguma coisa? Vários relatos foram feitos com relação à questão salarial, ressaltando a diferenciação entre os níveis e a falta de vontade política de que se solucione esta situação. Também foi ressaltada a importância da necessidade de haver participação de outros setores, de apoio com referência e contra-referência de outras especialidades. Melhoria das condições de trabalho, colaboração e participação mais efetiva dos dirigentes, respaldo da administração em relação às equipes e à ESF, e maior divulgação, pela PMJF, do que seja ESF e do trabalho dos ACS foram outros tópicos levantados pelas equipes. Além das entrevistas, foi realizada uma observação sistemática do funcionamento das Unidades de Saúde pesquisadas. O que se observou, é que existe um bom relacionamento entre os profissionais e destes com a clientela que se utiliza de seus serviços. Em relação à estrutura física e condições de trabalho, o que se observa são paredes e tetos mofados, sem reboco em alguns locais (umidade) e arquivos pesados, danificados, tendo seu uso sendo substituído por caixas de papelão sobrepostas sobre os mesmos arquivos, que foram deitados ao chão (Unidade B). Sabe-se, entretanto, que o mofo e a poeira são fatores de complicação para a saúde dos profissionais que ali atuam, pois podem levar a processos alérgicos e outros danos à saúde. E a questão dos arquivos pode levar até a lesões graves nos membros e na coluna. . Resultados A partir da análise dos dados coletados nas entrevistas, observou-se que os profissionais envolvidos na Estratégia de Saúde da Família, possuem, em sua maioria, especialização ou capacitação para estar atuando neste novo modelo de assistência. Todos os profissionais que participaram da pesquisa acreditam no trabalho que realizam e investem para alcançar os objetivos dessa Estratégia, ultrapassando a capacidade profissional e criando, até mesmo, laços afetivos com a comunidade com a qual trabalham. Constata-se, ainda, conforme afirma Dantas (1996, p. 81-82), que a reação prolongada ao estresse pode causar, entre outros, ansiedade, dor de cabeça, dor no estômago, dores musculares. Destaca-se, também, que não existe participação interdisciplinar na atenção primária, ou seja, comprovou-se que não há integração entre os níveis secundário e terciário da Diretoria de Saúde e, menos ainda, entre os outros setores da PMJF, ficando, até mesmo, o apoio dos administradores passível de questionamentos. Apesar das divergências de opiniões, os entrevistados relatam terem um bom relacionamento em equipe e alguns chegam a ressaltar ser o “trabalho em equipe um ponto importante na ESF”. Ao se trabalhar a interdisciplinariedade, surgem, ainda, pontos importantes a serem destacados, como: as equipes são formadas, em sua maioria por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agente comunitário de saúde; em Juiz de Fora, algumas equipes contam com a participação do serviço social; é constatada a necessidade de participação de outros profissionais de outras especialidades, para dar suporte a essas equipes como, por exemplo, psicólogos, fisioterapeutas, neurologistas, cardiologistas, educação física e outros. As atribuições das equipes, já citadas na introdução desse artigo, são ressaltadas pelos profissionais ao destacarem os pontos positivos do programa, porque facilitam a integração do profissional com a comunidade e, conseqüentemente, o trabalho de prevenção. Constatou-se, ainda, a necessidade de educação continuada, para aprimorar a qualificação dos profissionais, com a finalidade de complementar e atualizar conhecimento, trocas de experiências e suporte técnico-científico. A questão salarial é outro questionamento que fazem, ressaltando os desníveis salariais. É necessário que haja vontade política da PMJF em se resolver esta questão o mais rápido possível, para que o desestímulo não leve os profissionais a estarem se demitindo, ou a desis- tirem de continuar mantendo o padrão de atuação, de buscar melhorias na qualidade de vida da população. Outro ponto a ser levantado é a necessidade urgente de se melhorar as condições físicas e estruturais das UBS, diminuindo o risco dos profissionais de adoecerem. Em relação à pressão da demanda, fazem-se necessários estudos da Diretoria de Saúde para avaliação da necessidade de criação de novas UBS em áreas descobertas ou, até mesmo, nova territorialização, para se readequar as atuais UBS que sofrem esta questão. Conclusão Ao concluir este trabalho, gostaríamos de ressaltar as propostas já levantadas anteriormente: que nossos administradores possam planejar melhorias, que os profissionais diminuam os riscos de adoecer e que a população melhore sua qualidade de vida. Para a melhoria das condições de trabalho nas UBS é necessário: • melhoria das condições físicas das UBS; refeitório; salas arejadas; salão para reuniões; • propaganda veiculada em rádio, televisão e jornal, com divulgação correta do que é a ESF e o trabalho do ACS, não centrando a divulgação somente na figura do médico, mas de toda a equipe; • revisão da questão salarial para todos os profissionais que atuam na ESF; • suporte psicoterapêutico para as equipes, com a finalidade de se trabalhar a saúde mental desses profissionais e diminuir o estresse e outros agravos que, porventura, estejam surgindo; • estímulo da Diretoria de Saúde e PMJF à participação de outros setores na atenção primária, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população. Contamos, portanto, com o apoio da Diretoria de Saúde, para que este projeto seja implementado o mais rápido possível, pois torna-se de suma importância que as equipes sejam assessoradas em seu local de atuação para aprenderem a lidar com as divergências que existem e discutirem as dificuldades que são encontradas no seu processo de trabalho. REFERÊNCIAS BARRETO, M. L.; CARMO, E. H. Situação de saúde da população brasileira: tendências históricas, determinantes e implicações para as políticas de saúde. Informe Epidemiológico do SUS, Brasília, v.3, n. 3/4, p.14-15, jul./ dez., 1994. BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Características da investigação qualitativa.. In: BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação. Portugal: Porto, 1998, p. 47-108. BRASIL. Constituição Da República. Art. 196, p. 118, 27ª edição, Brasília: Saraiva, 2001. BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 20 set. 1990. BRASIL. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre participação da comunidade na gestão do SUS.. Diário Oficial da União, 28 dez. 1990. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1886, de 18 de dezembro de 1997. Diário Oficial da União, Brasília, n. 247-E, 22 de dez. de 1997, seção I, p. 11. BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde da família: uma estratégia de modelo assistencial. Brasília, 1997. BRASIL. Resolução nº 196/96 de 10 de outubro de 1996. Brasília: Conselho Nacional de Saúde,1996. CAMPOS, M. A. O trabalho em equipe multiprofissional: uma reflexão crítica. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Ribeirão Preto, v. 41, n.6, p. 255-257, 1992. CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. CIAMPONI, M. H. T.; PEDUZZI, M. Trabalho em equipe e trabalho em grupo no Programa de Saúde da Família. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 53, n. esp., p.143-146, dez. 2000. DANTAS, J. Coração e fatores de risco: qualidade total na promoção da saúde. Belo Horizonte: Health, 1996. DEJOURS, C. Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v.14, n. 54, Abr./maio/jun., 1986. DRAIBE, S. M. As políticas sociais brasileiras: diagnósticos e perspectivas para a década de 90. In: IPEA/IPLAN. Prioridades e perspectivas de políticas públicas. Brasília, 1990. Cap. 1, p. 1-11. DRAIBE, S. M. Repensando a política social dos anos 80 ao início dos anos 90. In: SOLA, L.; PAULANI, L. M. Lições da década de 80. São Paulo: EDUSP, 1993. p. 201-21. GOULART, I. B.; SAMPAIO, J. R. Psicologia do trabalho e Gestão de Recursos Humanos: estudos contemporâneos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. In: ROCHA, A. F. Apostila Curso Especialização em Gestão Estratégica Pública. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro. Escola de Governo, 2001. p.1-14. LUZ, M. T. Notas sobre as políticas de saúde no Brasil de “Transição Democrática”- anos 80. PHISIS - Revista de Saúde Coletiva, v. 1, n. 1, p.201-216, 1991. MENDES, E. V. (Org.). Distrito Sanitário, o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. 3. ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, ABRASCO, 1995. MENDES, E. V. A organização da saúde no nível local. São Paulo: Hucitec, 1998. MENDES, E. V. Uma agenda para a saúde, 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7. ed., São Paulo, Rio de Janeiro: Abrasco, Hucitec, 2000. MONTEIRO, R. A. A pesquisa em educação, alguns desafios da abordagem qualitativa. In: MONTEIRO, R. A. Fazendo e aprendendo pesquisa qualitativa em educação. Juiz de Fora: UFJF, 1998. p. 7-23. SANTOS, W. G. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campos, 1979. SOUZA, H. M. Programa de Saúde da Família. Entrevista. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 53, n.esp., p.7-16, dez. 2000. TAYLOR, C. M. Fundamentos da enfermagem psiquiátrica, 13. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. ANEXOS I Escola de Governo Curso de Gestão Estratégica Pública Título da pesquisa: “Qualidade de Vida dos Profissionais de Saúde que atuam na Estratégia de Saúde da Família” O presente documento tem por objetivo convidá-lo a participar de uma pesquisa sobre Qualidade de Vida dos Profissionais de Saúde que atuam na Estratégia de Saúde da Família. O principal objetivo desta pesquisa é verificar o nível de satisfação dos profissionais que atuam na Estratégia de Saúde da Família em Juiz de Fora. O estudo será realizado através da aplicação de um questionário. Todas as informações têm caráter confidencial, serão de uso exclusivo para a pesquisa. Sua participação é voluntária, mas é de extrema importância sua informação para o desenvolvimento do trabalho. Fica também assegurada sua identidade, uma vez que, no questionário, é necessária apenas a identificação da unidade e da categoria profissional a que pertence. Qualquer publicação dos dados não o identificará. Colocamo-nos à sua disposição para maiores esclarecimentos quanto ao assunto em questão. Ao assinar este formulário de consentimento, você estará autorizando o pesquisador a utilizar as informações prestadas na entrevista, em sua pesquisa. Eu _____________________________________________________________, fui informado sob a pesquisa acima referida e compreendi seus objetivos. Este formulário está sendo assinado voluntariamente por mim, o que indica meu consentimento para participar neste estudo, até que eu decida ao contrário. ___________________________________ Assinatura do Entrevistado Juiz de Fora, / / II Qualidade de Vida do Profissional da Saúde que atua na Estratégia de Saúde da Família da Diretoria de Saúde, Saneamento e Desenvolvimento Ambiental da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora QUESTIONÁRIO 1- Qual a sua categoria profissional? 2- Há quanto tempo está atuando na Estratégia de Saúde da Família? 3- Você teve alguma capacitação para atuar nesse modelo? 4- Em relação à sua saúde, quais os problemas de saúde que mais tem lhe afetado? 5- Existe algum conflito em sua equipe? Qual ou quais? 6- Fale-me sobre seus sentimentos e reações ao lidar com as famílias e com os blemas dessas famílias. 7- Quais os fatores positivos desse tipo de trabalho? 8- Quais os fatores negativos desse tipo de trabalho? 9- Você gostaria de complementar mais alguma coisa? pro- Submissão: dezembro de 2004 Aprovação: abril de 2005 EDUCAÇÃO POPULAR E SAUDE – TRAJETÓRIA, EXPRESSÕES E DESAFIOS DE UM MOVIMENTO SOCIAL Critical Pedagogy and Health: history, expressions and challenges of a Brazilian social movement. Eduardo Navarro Stotz* Helena Maria Scherlowski Leal David** Julio Alberto Wong Un*** Resumo O presente artigo tem por objetivo apresentar uma visão de conjunto da Educação Popular e Saúde, perspectiva que anima um amplo movimento de profissionais, técnicos e pesquisadores e de militantes e ativistas atuantes na área da saúde desde 1991. Discute a caracterização do movimento social assim conformado por estes atores, procurando entender o processo histórico de seu surgimento. Descreve as expressões deste movimento nos congressos de Saúde Coletiva, nas propostas dos núcleos universitários, nas políticas municipais de saúde e nas reflexões científicas de cunho acadêmico. Identifica a influência difusa exercida no sistema de saúde e levanta a questão sobre quais as razões de um movimento social tão amplo e com razoável acumulação de experiências tem encontrado tanta dificuldade em generalizá-las politicamente. Palavras-chave: Saúde Pública; Educação em Saúde; SUS(BR); Sociologia Abstract This revision paper aims to present a global vision of the Critical Pedagogy on Health approach - known as "Popular Health Education " in Brazil, which inspires a extensive * Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, pesquisador, doutor em Ciências da Saúde. Endereço: Praia de Botafogo, 114/503 CEP 22250-040 Rio de Janeiro - R.J. ** Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professora adjunta, doutora em Ciências da Saúde. *** Coordenação de Prevenção e Vigilância/Instituto Nacional do Câncer, pesquisador, doutor em Ciências da Saúde. movement of researchers, professionals, health workers and activists working in the Brazilian health sector since 1991. It discusses the characterization and definition of the social movement shaped by the aforementioned actors, in order to understand its historical process of birth and development. It describes this movement's expressions in the Collective Health Congresses and Meetings, inside Brazilian universities, in the municipal health policies and in scientific and academic thought and production. It identifies the diffuse influence on the Healthcare System and discusses why such an important social movement, with a significant accumulation of experiences and practices has encountered so many obstacles to expand politically. Key Words: Public Health.; Health Education; SUS(BR); Sociology Introdução A caracterização da Educação Popular e Saúde como proposta de um movimento social foi cunhada por Eymard Vasconcelos numa intervenção pública no Congresso de Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) realizado em Salvador, em julho-agosto de 2000, retomada depois em publicações (VASCONCELOS, 2001a, 2001b). Sistematizar os passos dados tem sido, aliás, traço marcante do movimento composto, em sua maioria, de profissionais, técnicos e professores/pesquisadores da área da saúde, com a participação de ativistas e militantes de movimentos sociais e organizações não-governamentais. A recusa em teorizar fora do contexto da ação é fonte de aproximação da vida social, em especial daqueles grupos sociais mais oprimidos. Como sabemos, também acarreta limitações e impõe desafios quando almeja generalizar-se. Esta é a inquietação que explicitamos ao leitor para que, após percorrer conosco a apresentação deste movimento e de suas contribuições, possamos retomá-la em nossas considerações finais. De que movimento social estamos falando? Esse jeito de pensar e de fazer saúde pautado na experiência favorece uma forma de expansão e de crescimento que exerce grande fascínio sobre quem se depara, como é o caso dos profissionais de saúde, com as limitações do tecnicismo da formação e da orientação normativa da ação face à complexidade da vida. Esta rigidez é tanto mais sentida quando se 2 considera a contradição entre a experiência do sofrimento e a falta de resolubilidade dos serviços de saúde. Tal situação gera um permanente descontentamento capaz de mobilizar os profissionais no sentido de tentar outros caminhos e buscar outras soluções. Esta é, sem dúvida, uma das razões mais fortes para a emergência do movimento da Educação Popular e Saúde, de sua ampliação e de seu fortalecimento como um movimento social (RIOS, 1987). VASCONCELOS (2001b, p.16) assim formulou este processo: Pode-se afirmar que grande parte das experiências de Educação Popular em Saúde estão voltadas para a superação do fosso cultural existente entre os serviços de saúde, as organizações não-governamentais, o saber médico e mesmo as entidades representativas dos movimentos sociais, de um lado e, de outro lado, a dinâmica de adoecimento e de cura do mundo popular. A capacidade de movimentos sociais como a EP&S em superar contradições desta natureza é uma questão discutida mais adiante. Por ora podemos endossar o ponto de vista de que, para promover mudanças, no todo ou em parte, em certas instituições sociais, os movimentos sociais precisam dar conta de proposições ou de ‘normas’ adequadas ao sistema de valores de que são porta-vozes (BOUDON ; BOURRICAUD, 1993, p.376-77). Isto coloca em pauta tanto a forma de organização e o grau de coesão interno, como traz à tona o problema, geralmente relativizado ou mesmo ignorado, das características e das alianças subjacentes à base social dos movimentos. Pode-se afirmar que a existência de um fosso cultural entre os serviços de saúde e a população foi percebida nas primeiras iniciativas de educação popular em saúde, tal como se organizaram nas periferias das metrópoles e das cidades do interior, entre os anos 1975 e 1985. Essas experiências foram sistematizadas em encontros populares e vieram a compor o ideário do que se convencionou chamar de movimento da Reforma Sanitária. (STOTZ, 2005). Contudo, em que pese o acolhimento dessas contribuições na VIII Conferência Nacional de Saúde ocorrida em 1986, o modelo biomédico que está na base do processo de separação cultural entre serviços de saúde e população continuou intocado, pois a política de saúde desde então implementada manteve este modelo como pressuposto da atenção da saúde. No campo da Saúde Coletiva, o tema é tratado como um dos aspectos do modelo de atenção da saúde da população. O papel da política de saúde na manutenção e reprodução da biomedicina poderia ser visto como uma conseqüência da ênfase dada aos problemas de 3 financiamento e de gestão em detrimento da mudança do modelo de atenção do Sistema Único de Saúde. Entretanto, com a implantação do Programa Saúde da Família teriam ocorrido os avanços quanto ao modelo assistencial, principalmente com o chamado modelo técnico-assistencial da vida (acolhimento, vínculo, contrato) incorporado à proposta mais abrangente da Vigilância da Saúde (TEIXEIRA, 2005). Apesar destes avanços, não se observa na literatura uma retomada da crítica à hegemonia da biomedicina feita por Maria Andréa Loyola, em 1984, que destacava o comprometimento da medicina científica ou biomedicina com a ordem social fundada no capitalismo: Imbuído de uma ideologia que tem por função mascarar as relações de classe que ela encobre, o médico atua no sentido de preservar o monopólio de seu saber e autoridade indiscutida que a sociedade lhe outorga para dispor da doença, até mesmo do corpo e das sensações de seu cliente. E sua atitude é tão mais autoritária quanto mais baixa é a classe social do doente que, pela distância sócio-linguística e dos hábitos mentais que o separa do médico, encontra-se incapacitado de contraargumentar com ele, isto é, de impor seu próprio discurso ao discurso ‘forte’ e definitivo do médico (LOYOLA, 1984, p.228). Na leitura que Maria Andréa Loyola faz da obra de Luc Boltanski, Les Usages Sociaux du Corps, publicada em Paris em 1970 (BOLTANSKI, 1989), verifica-se que a “medicina científica” produz constantemente o distanciamento e a ruptura com o saber comum e o saber das outras medicinas que lhe fazem concorrência, disputando o monopólio legítimo do cuidado médico. Alguns trabalhos (SILVA JUNIOR, 1998; FAVORETO; CAMARGO JUNIOR, 2002) e a linha de pesquisa sobre racionalidades médicas desenvolvida sob coordenação de Madel Therezinha Luz, no Instituto de Medicina Social da UERJ, constituem uma exceção. A relativização e posterior abandono, pela maioria dos pesquisadores, dos pressupostos críticos da Saúde Coletiva, tal como indicada acima, têm razões políticas. A nossa Reforma Sanitária, diferentemente da italiana, não se organizou a partir das classes trabalhadoras, ainda que fosse proposta em seu nome. Os articuladores do movimento sanitarista priorizaram de modo absoluto a ‘ocupação’ dos assim chamados espaços públicos, separando-se do movimento popular que estava na origem de todo o processo (ESCOREL, 1995). As razões deste processo são políticas, estão vinculadas aos compromissos firmados a partir da aceitação da eleição indireta para o primeiro governo civil (1985), expressão da democratização “pactuada pelo alto” entre os militares que então deixavam o poder e os políticos que até aquele momento haviam, em sua maioria absoluta, sustentado esse poder. 4 Uma vez escolhido este caminho, as tentativas de avançar a reforma setorial acabaram se dobrando às imposições das alianças políticas que sustentavam as instituições estatais, principalmente o Ministério da Saúde. Não apenas a urgência de enfrentar o problema do financiamento e da gestão para viabilizar a construção e consolidação do Sistema Único de Saúde tornou-se permanente, mas toda lógica do sistema passou a orientar-se pela oferta de serviços que reafirmou o primado da ‘medicina científica’. As dificuldades em implementar o SUS num contexto político neoliberal tornaram ainda mais difícil a crítica à identidade de pressupostos entre a política de saúde e a biomedicina. Gerou-se uma atitude coletiva em defesa do SUS que acabou por engendrar uma sorte de ‘susismo’, do qual não ficou imune sequer o ambiente da pesquisa científica, pois a própria agenda de pesquisa acabou por incorporar as prioridades da política pública de saúde. É nesta conjuntura histórica que emerge o movimento social denominado Educação Popular e Saúde (EP&S). O movimento organizou-se na Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde, criada em 1991 no I Encontro Nacional de Educação Popular em Saúde, realizado em São Paulo. Durante quase uma década funcionou como uma frágil mas persistente relação direta e informal entre profissionais de saúde, pesquisadores e algumas lideranças de movimentos sociais para a troca de idéias e apoio. Em 1998, a Articulação passa a denominar-se Rede de Educação Popular e Saúde. Dela participam aqueles “que acreditam na centralidade da Educação Popular como estratégia de construção de uma sociedade mais saudável e participativa, bem como de um sistema de saúde mais democrático e adequado às condições de vida da população”. (REDE DE EDUCAÇÃO POPULAR E SAÚDE, 2005). A unidade de propósitos dos participantes do movimento consiste em trazer, para a campo da saúde, a contribuição do pensamento freiriano, expressa numa pedagogia e concepção de mundo centrada no diálogo, na problematização e na ação comum entre profissionais e população. É importante ressaltar, na identidade do pensamento de Paulo Freire e a dos participantes do movimento de educação popular e saúde, a convergência de ideologias aparentemente díspares, quais sejam, o cristianismo, o humanismo e socialismo. A trajetória do movimento de EP&S não esteve isenta de conflitos e de dificuldades de relacionamento com os movimentos sociais que, a exemplo do Movimento Popular de 5 Saúde (MOPS), reivindicam para si também a herança da educação popular em saúde. É importante assinalar, neste sentido, a experiência originária nos movimentos sociais durante a época da luta contra o regime militar que entre 1979 e 1981, logrou organizar Encontros Nacionais de Experiências em Medicina Comunitária. É desta experiência, aliás, que nasceu e se desenvolveu o MOPS que jamais conseguiu reunir em torno de si as vertentes da educação popular em saúde (STOTZ, 2005). Apenas com a abertura do governo Lula, principalmente no Ministério da Saúde, à participação dos movimentos sociais se conseguiu construir uma proposta de atuação comum. Isto aconteceu na criação da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS) em 5 e 6 de dezembro de 2003.1 A ANEPS aponta, pela primeira vez desde a tentativa dos ENEMECS, a possibilidade de que movimentos e práticas locais possam adquirir voz e reconhecimento públicos, que venham a ser apoiados como elementos fundamentais para a própria renovação da política de saúde e das práticas do SUS (STOTZ, 2004). A estrutura e métodos da Rede de Educação Popular e Saúde A estrutura da Rede é extremamente simples: uma coordenação escolhida entre os pares reunidos em oficinas realizadas no âmbito de congressos e outros eventos científicos e técnicos da área da saúde, operando por meio da comunicação eletrônica (lista de discussão) e comunicando-se com o público mais amplo por meio de boletins e da página na internet. Contudo é mais do que uma rede virtual, uma vez que se apóia sobre redes sociais estruturadas em núcleos universitários, centros de pesquisa ou setores técnicos de secretarias de saúde progressistas. O sucesso da rede depende em parte dessas redes subjacentes, em parte da liderança desses núcleos, do carisma de alguns de seus nomes mais proeminentes e da convicção da originalidade radical da proposta da educação popular. Lembre-se aqui a advertência de Boudon e Bourricaud (1993) a respeito das interpretações unilaterais: a análise de um movimento deve considerar as diversas motivações dos seus participantes, sejam mais idealistas, utilitaristas ou românticos. Relações em rede na educação popular em saúde 6 As dinâmicas da Rede de Educação Popular em Saúde e, parcialmente, as da ANEPS, correspondem ao que tem sido descrito como a “Sociedade em Rede”, onde os fluxos de informação e os contatos “fluídos” são características marcantes. Estas “novas formas” de convívio social e de organização e articulação coletiva devem ser entendidas como produto de desenvolvimentos e mudanças recentes. Nos anos 70 e 80 surgiram os denominados “novos movimentos sociais” (mulher, índio, moradia, saúde) que ampliaram as agendas e estratégias de luta pelo bem-estar, incorporando o cotidiano, a cultura, o subjetivo e as emoções – embora de forma variada e desigual. A “sociedade em rede” aproxima-se, no plano das idéias, das transformações identificadas na estrutura do sistema social abrangente. Embora não seja do escopo do presente artigo, importa assinalar a crise do “capitalismo organizado” que deu sustentação ao Estado de Bem-estar Social e a superação (negação, conservação) numa nova configuração da sociedade civil subordinada à empresa capitalista e aos mecanismos de mercado (SAMAJA, 2000). Não se pode deixar de perceber que as classes subalternas também reagiram ao enfraquecimento e limitação dos arranjos de proteção social. Não por acaso, nos anos da década de 1990, os movimentos sociais foram se articulando no que veio a se chamar “redes de movimentos”. A idéia de redes de movimentos convergiu com as discussões, vindas da teoria dos sistemas e das ciências da complexidade, sobre as relações sociais “em rede” (CASTELS, 1999, 2003; BAUMAN, 2001, 2003; SANTOS, 2000, 2003) que se caracterizam pela mobilidade, fragilidade, velocidade e mutabilidade. Uma rede, então, é definida pelas relações e não pelos nós – sejam pessoas, grupos ou conjuntos de movimentos. Os nós mudam, surgem e apagam-se, participam (plenamente, na política, na estética, no diálogo, na produção e/ou no uso dos produtos culturais da rede). As relações em rede são difíceis de classificar e delimitar. A reflexão acima esboçada é pertinente para a compreensão dos processos criativos da Rede de Educação Popular em Saúde. Desde sua fundação a Rede tem demonstrado uma capacidade surpreendente de articulação, produção, geração de relações profissionais, pessoais e afetivas profundas, mesmo que fragmentárias, temporárias, e não lineares – e talvez por isso, mais livres e prazerosas. 7 Vida dentro (e além) do ciberespaço Bom exemplo das dinâmicas que acontecem na rede é a produção cotidiana de “vozes” e “trocas” dentro dos “grupos de interesse” (ou listas de discussão) na Internet ligados à rede. A lista <[email protected]> foi fundada em março de 1999 e em 2004 atingiu uma média mensal de 250 a 300 mensagens, número considerado alto para uma lista de cunho acadêmico-político, na medida em que é próprio de grandes listas com mais de 1000 participantes. A lista conta atualmente com 560 participantes. A participação na lista propicia a criação coletiva de “espaços reais” de troca, conhecimento e reconhecimento, a exemplo de oficinas, congressos e projetos de pesquisa. Poiesis das relações em rede: criação, amizade, militância e identidade Dentro da Rede há éticas amorosas de relação que foram se construindo através das trocas e diálogos, dos aportes das pessoas – depoimentos, crônicas, relatos de viagens, poemas, conversas, desentendimentos, acordos, indignações compartilhadas. Uma vez que o espaço da “virtualidade” configura-se como um “íntimo público”, vai se criando uma forma de “grito ao pé do ouvido”, ou “cochicho coletivo”. Pela própria natureza das relações em rede, éticas amorosas de relação se reformulam cotidianamente. Este nível aprofundado de relação é possível dado o engajamento múltiplo dos membros com experiências locais, e movimentos sociais, incorporando vários níveis da experiência e do fazer humano: ativismo político, trabalho organizativo, atuação dentro dos serviços de saúde e criação de identidades compartilhadas com os grupos populares e movimentos sociais. Nas propostas de vida (quem sabe projetos) há um componente de “busca ativa” de “amorosidade” e “espiritualidade”, artes de fazer o convívio social e o Self. Ao mesmo tempo em que o ideário da Educação Popular em Saúde propõe esta atitude “diferente”, esta postura de diálogo, interesse pela escuta, preocupação por “viver” radicalmente o olhar e a experiência dos outros populares, é possível pensar também numa cultura em formação. Uma cultura de relações militantes, amorosas e estéticas, onde se cria 8 “uma casa comum para o aconchego e não um lugar de briga”.2 Amorosidade e respeito ao outro diferente, lugar privilegiado das diversidades e da troca entre visões, saberes e sabedorias. Eis a poiesis da Rede, os caminhos da criação, da experiência poética coletiva, dentro e fora da internet. Práticas e concepções educativas Na medida em que estamos falando de um movimento que envolve um grande número de profissionais de saúde, importa reconhecer a importância da ampliação da cobertura do Sistema Único de Saúde ao longo dos anos da década de 1990. A implantação das estratégias do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do Programa de Saúde da Família (PSF) vem levantando debates importantes sobre os vários aspectos envolvidos na reorganização de serviços e práticas, entre os quais a importância do papel da educação nas ações de saúde. Grosso modo, dois tipos de profissionais engajaram-se nas propostas do PACS/PSF: o primeiro grupo refere-se àqueles que já estavam engajados com os pressupostos da Atenção Primária à Saúde (APS) que, desde os anos da década de 1970, ofereceu uma alternativa para romper com uma prática tecnicista e distanciada da população; esses profissionais já vinham debatendo questões relacionadas ao campo da Educação Popular e Saúde (VASCONCELOS, 2001b). O outro grupo agregou profissionais oriundos de serviços organizados de modo tradicional, e cuja relação com a população era caracterizada pelo distanciamento considerado “normal”, ou ainda recém-formados, na sua maioria formados em currículos tradicionais, em busca de um mercado de trabalho em expansão. Na lista virtual de discussão da Rede [email protected] - fonte de relatos que serviram de base a estas considerações – podemos encontrar profissionais dos dois grupos. Em relação às concepções educativas, para o primeiro grupo, este momento inicial de implantação do PACS/PSF representou a possibilidade de continuidade do projeto da APS, de concretização de novas relações e processo de trabalho. Muitos profissionais e acadêmicos envolvidos com o campo da Educação Popular e Saúde estiveram inseridos nestas estratégias. Entre aqueles que vieram de práticas tradicionais de trabalho ou formação, a mudança nos processos de trabalho dentro do PACS e do PSF evidenciou 9 algumas questões relacionadas à mediação educativa: competências construídas a partir de currículos inadequados e acríticos, despreparo dos profissionais para o enfrentamento compartilhado dos problemas na comunidade, dificuldade em estabelecer diálogos e parcerias e a descoberta da importância dos referenciais teóricos e metodológicos para o estabelecimento de processos pedagógicos de fato efetivos. Um certo “ressurgir” da Educação Popular, desde então, pode ser atribuído ao reconhecimento, a partir da vivência no trabalho na comunidade, de que a educação está presente não apenas como um componente das práticas, mas como eixo estruturante de uma proposta de mudança de modelo de atenção. Daí também, um certo entendimento corrente de que Educação Popular e PACS/PSF estão naturalmente atrelados ou até mesmo de que Educação Popular é questão exclusiva do nível da Atenção Básica, e do trabalho em comunidade do PACS/PSF (não sendo, portanto, de interesse ou importância para os níveis de maior complexidade de atenção). A acentuada expansão de cobertura do PSF após a segunda metade dos anos 1990, acompanha-se de mudanças no enfoque e nas formas de organização dos serviços e processo de trabalho, diluindo o componente ideológico e político da transformação de modelo, numa crescente visão do PSF como desafogo da média e alta complexidade, e como mercado de oportunidades de trabalho. À pluralidade de enfoques, práticas e processos educativos soma-se a contratação precária e alta rotatividade de profissionais, fazendo-nos lembrar o comentário jocoso de um profissional vinculado a uma coordenação estadual de PSF, sobre as “enfermeiras voadoras” que ficam rodando de um município para outro, em vínculos precários e provisórios, quando não chegam ao absurdo de manter um vínculo num município, de manhã, e noutro, à tarde. Esta avaliação aponta para o diagnóstico, anteriormente referido, do processo em que se deu a Reforma Sanitária e a implantação do SUS. A persistência do modelo de financiamento do INAMPS, de faturamento de procedimentos curativos individuais, apesar da convivência com outras formas – Piso de Atenção Básica (PAB), Programação Pactuada da Epidemiologia e Controle de Doenças (PPI-ECD) e incentivos à implantação do PACS/PSF – deixa patente, quer pelo volume de recursos maior, quer pela segmentação do sistema de saúde, as dificuldades da mudança do 10 modelo de atenção à saúde da população brasileira. Trata-se de um forte desafio à proposta da concretização de um modelo baseado na saúde e não na doença. Embora não seja imediatamente visível, o desenvolvimento de práticas transformadoras de educação acaba por sofrer a influência deste modelo de financiamento, já que a pressão pela produtividade em cima dos profissionais termina por atropelar o tempo necessário e por impor um ritmo de trabalho incompatível com o tempo necessário ao estabelecimento de vínculos e parcerias entre profissionais e população. Em relação às práticas educativas, as concepções e jeitos de fazer que marcam a atuação dos profissionais envolvidos em PACS/PSF evidenciam, a partir das mensagens trocadas na lista de discussão da Rede, além de muitas queixas diante da contratação precária e da manipulação político-partidária de governos locais, algumas questões para o debate sobre o papel da Educação Popular nas práticas de saúde. A primeira delas é a marca da individualidade: a explicitação da busca de um “agir educativo” transformador fica restrita, na sua maioria, a práticas e processos individuais, voluntaristas, não organizados coletivamente, muito menos institucionalmente. Em um estudo realizado entre enfermeiros do PSF, verificou-se que as práticas de informação/comunicação mostravam importante mudança nas ações individuais, mas não possuíam expressão coletiva ou de envolvimento da comunidade ou de grupos (MOURA; RODRIGUES, 2003). Com todas as dificuldades relacionadas ao vínculo de trabalho e de formação de equipes coesas, não é de admirar uma certa opção por “trabalhar sozinho”. O profissional prefere depender dele mesmo, raramente se sentindo apoiado numa equipe que compartilha a mesma visão sobre a importância do papel da educação. Aquele que já vinha, ao longo dos anos, militando em outros espaços. Na crítica à própria formação, verifica-se a valorização da prática cotidiana como espaço de reflexão e avaliação contínua da própria prática educativa. Relatos eventuais, alguns oriundos de profissionais que trabalham em áreas isoladas e distantes, dão conta de um “fazer educativo” calcado na vivência diária do sofrimento e das dificuldades das comunidades. Esta reflexão, se é capaz de se reverter em uma práxis nova, fortemente calcada na realidade local, não avança, no entanto, como movimento social capaz de levar mudanças às práticas de saúde do sistema de modo mais ampliado, ficando restritas e estas experiências individuais. 11 Não se trata de contrapor o desenvolvimento de ações individuais às coletivas: mesmo as práticas de educação que “juntam pessoas” acabam por reproduzir modelos prescritivos de educar, baseado nas “palestras” do doutor ou do enfermeiro para a população. Vale ressaltar que, no âmbito do PSF, palestras voltadas para grupos específicos – como hipertensos e diabéticos – recebem incentivo financeiro como atividades educativas, muitas vezes apenas contrapartida do direito dos usuários a receber o medicamento gratuitamente. A coerência da orientação biomédica das consultas e a prática dominante de educação e saúde prescritiva de hábitos e condutas para responsabilizar os indivíduos pelo controle das doenças e dos fatores de risco é identificada na pesquisa de ALVES (2004) realizada junto a equipes do PSF na Bahia. Não é por acaso, portanto, o reduzido apoio recebido pelas equipes do PACS/PSF à realização das ações educativas na perspectiva da educação popular, desde equipamentos, até recursos e espaço para realizar as ações (ALBUQUERQUE ; STOTZ, 2004) Não se valoriza a mediação educativa como possibilidade de instaurar novas relações e processos nas práticas de saúde. A desvalorização fica mais evidente quando se considera que a reflexão metodológica é tratada como algo desnecessário, “como se o saber clínico e a formação acadêmica fossem suficiente para a implementação dessa prática” (ALBUQUERQUE; STOTZ, 2004, p.265). Embora seja importante considerar toda e qualquer prática dos profissionais como uma prática educativa, refletir sobre esta prática implica colocar em evidência concepções educativas implícitas e, portanto, certas visões sobre a relação entre profissionais e população. Por isso mesmo, os participantes da lista da Rede manifestaram uma preocupação crescente com a profissionalização do Agente Comunitário de Saúde (ACS) e a definição de diretrizes curriculares e competências para sua prática, agora legalmente definida como vinculada ao gestor municipal. Durante o ano de 2004, foi inclusive proposta a estruturação de uma lista de discussão específica sobre a formação de ACS, discussão essa que não foi adiante. Para além do natural “movimento de maré” das discussões em listas virtuais, chama a atenção para a – ainda – reduzida capacidade de transformar debates críticos e consistentes em ação organizada de intervenção e mudança. Há consenso em que a 12 formação do ACS precisa ser rediscutida, em novas bases, mas se avança pouco no “como”, no “quando” ou no “onde”. Identificamos uma certa perplexidade diante do imobilismo da população quando da ocorrência de demissões involuntárias ou interferência política nos PACS/PSF. Este é um fato bastante freqüente nas gestões municipais, e sobretudo no caso dos ACS, possui desdobramentos dramáticos, já que, diferentemente de médicos e enfermeiros, este profissional, uma vez demitido, não pode simplesmente buscar outra oportunidade de trabalho em outro município. Cabe perguntar se esta perplexidade não estaria expressando, além de desânimo, indignação e decepção diante do trabalho ‘levado por água abaixo’, a persistência de uma visão ingênua e redentora do papel mediador da educação em saúde. Alternando decepções e ânimo renovado nas poucas situações em que houve um enfrentamento mais coletivo da situação pela população, os profissionais seguem enfrentando a rotatividade de vínculos, salários díspares, política clientelista local, a não existência de espaços sistemáticos de debate e crescimento intelectual, a pressão da lógica da produtividade nos serviços. Atividades acadêmicas e EP&S Professores universitários, pesquisadores e alunos de graduação e pós graduação participam da lista da Rede veiculando em suas mensagens o olhar e as práticas do mundo acadêmico no fazer educativo em saúde. A atividade acadêmica mais citada é a extensionista com ações educativas envolvendo alunos de graduação em comunidades. A visão mais presente é a de que a extensão universitária pode ser um elemento importante para a ruptura da distância entre a universidade e a sociedade, e, em relação à Educação Popular, que pode se constituir em importante espaço de formação dos futuros profissionais. Os relatos não trazem o detalhamento das concepções que perpassam os projetos, embora refiram-se à vivência comunitária dos estudantes. Não foi localizada menção à integração da extensão com movimentos sociais populares, apenas com o movimento estudantil, e deste, pelas executivas nacionais, com a ANEPS. Vale lembrar que, nas mensagens, predomina a ótica do professor, e não do aluno, 13 quanto à atividade de extensão, embora seja demanda do movimento estudantil o debate sobre a EP&S, incluindo eventos onde a participação discente seja mais ampliada. As atividades de pesquisa, quando relatadas, também o são na ótica do pesquisadorprofessor, não dos alunos ou dos sujeitos das pesquisas (comunidades). Em relação aos aspectos teóricos, diversos referenciais são explicitados, com ênfase na pedagogia libertária de Paulo Freire; na discussão sobre a experiência brasileira, com menções a Eymard Vasconcelos, Victor Valla, Eduardo Stotz, entre outros; autores latino-americanos como Oscar Jará e Juan Díaz Bordenave; sociólogos como Boaventura dos Santos. As metodologias de pesquisa mencionadas referem-se a abordagens qualitativas: pesquisaação, observação-participante, análises de conteúdo, com procedimentos metodológicos de realização de entrevistas e grupos focais. Outras práticas e a EP&S Muitos dos envolvidos na Rede, que mandam mensagens para a lista de discussão, contam experiências e vivências no uso de práticas alternativas e/ou populares de saúde, mais ou menos conformadas em racionalidades e filosofias médicas específicas (medicina antroposófica, medicina tradicional chinesa, medicina ayurvédica) ou não: práticas populares de fitoterapia, técnicas de relaxamento e meditação. Muitas destas estão voltadas para grupos populacionais vulneráveis, específicos, como mulheres, populações indígenas, comunidades periféricas, apoio a ocupações urbanas, comunidades do campo. As expressões artísticas são vivenciadas como aspecto mediador importante com a cultura popular, sobretudo entre grupos e em regiões onde a cultura popular se encontra mais preservada. Danças regionais e locais, produção de textos, poesia, artesanato popular, são as expressões mais citadas e valorizadas na lista de discussão. Mais importante é constatar que a expressão artística confere um tom próprio aos encontros presenciais de movimentos e práticas de educação popular e saúde, diferenciando-os dos encontros puramente acadêmicos. Além da dimensão comunicativa, a arte desempenha, por meio da “mística” das aberturas e da dinâmica de interação pessoal, um importante papel na definição das identidades dos movimentos e práticas de EP&S. 14 Movimentos e práticas mais visíveis: o Catálogo da ANEPS O impulso dado pelo apoio financeiro, por parte do Ministério da Saúde, à estruturação da ANEPS permitiu a realização de uma pesquisa sobre o perfil dos movimentos e práticas. Os resultados da pesquisa realizada pela Rede de Educação Popular e Saúde durante os encontros estaduais e nacional realizados em 2003 foram consolidados no Catálogo de Movimentos e Práticas de EP&S em 2004, dando visibilidade a uma série de características dos movimentos, organizações e entidades que informaram o modo de fazer educação popular e saúde no Brasil. A pesquisa confirma alguns elementos metodológicos das práticas, aqui citados anteriormente: o resgate, sistematização e disseminação de alternativas populares, aparece com 57% das respostas dos 783 movimentos e entidades pesquisados, seguindo-se a comunicação popular (53,7%), o intercâmbio de experiências e capacitação (51,2%). A pesquisa revelou que a maioria das entidades e organizações está vinculada às classes populares. Grande parcela das organizações (72, 6%) de algum modo está ligada ou recebe o apoio das instâncias governamentais da rede pública de saúde dos níveis municipal, estadual ou federal. 54, 3% das organizações mantêm parcerias com universidades.Tal informação entra em contradição com a queixa corrente dos profissionais em relação ao pouco apoio às ações educativas e levanta questionamentos. Quais as explicações possíveis? Estarão as secretarias “terceirizando” as ações educativas, pelo suporte ou vinculação a movimentos, ONGs e outras organizações, e, ao mesmo tempo, não conseguindo enxergar o potencial destas mesmas práticas dentro dos próprios processos de trabalho? As concepções e opções pedagógicas envolvidas nas práticas não foram objeto desta primeira pesquisa. Na continuidade dos seminários e oficinas, cada vez mais espalhados e capilarizados Brasil afora, surgem e ressurgem elementos – metodológicos, explicativos, fortalecedores – que passam a ser incorporados, oriundos das condições concretas de vida, sofrimento e lutas dos grupos populares. Neste sentido, a região nordeste do país tem sido um exemplo de criatividade e pluralidade de propostas, com a inclusão de práticas já conhecidas (com destaque para a arte popular: teatro de mamulengo, danças, mídias literárias locais) e outras menos, a exemplo do escambo vivenciado pela ANEPS do Ceará 15 – vivência coletiva, riquíssima em signos e significados, de troca de saberes e recursos cognitivos. Os que pouco possuem, dividem o muito que sabem. A reflexão acadêmica Os textos fundadores do campo da educação popular em saúde na sua configuração atual foram publicados inicialmente nos anos da década de 1980 sob a forma de livros e artigos científicos, não só em publicações de saúde coletiva, mas também da área da educação. Ao longo dos anos seguintes surgiram trabalhos acadêmicos, livros e artigos; múltiplas experiências de extensão universitária e projetos comunitários; e tentativas de construção de metodologias de trabalho junto à população. Núcleos de educação popular e saúde se estruturaram na Escola Nacional de Saúde Pública, no Departamento de Promoção da Saúde da Universidade Federal da Paraíba, no Laboratório de Comunicação e Educação em Saúde (LACES) da Universidade Estadual de Campinas, no Grupo de Educação em Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição de Porto Alegre. As reflexões sempre foram acompanhadas de vivência e engajamento dos autorespesquisadores em processos locais, regionais e nacionais de luta social pela concretização do controle social e a participação popular. Mas também, seguindo as propostas ampliadas e integradas da Educação Popular em Saúde, houve a busca de vínculos pessoais – amizade, militância compartilhada – afetivos e dialógicos. Levantamos um conjunto de vinte e oito (28) trabalhos acadêmicos – dissertações de mestrado e teses de doutorado – que abordam direta ou indiretamente a educação popular em saúde e seus conceitos e valores sustentadores. O método de busca pela internet envolveu pesquisa no portal Scielo, nas páginas da Rede de Educação Popular em Saúde e da Lista da Rede e convocatória aberta para envio de resumos nas duas listas principais <edpopsaude> e <aneps>. A tabela completa contendo os resumos destes trabalhos pode ser encontrada em: http://wongun.sites.uol.com.br/teses.html Nas produções e sistematizações coletadas encontramos grande variedade temática e de abordagens, aproximando-se e problematizando boa parte do espectro de possibilidades das práticas sociais em saúde – da população, dos profissionais da saúde e dos processos de gestão do Sistema Único de Saúde. Não é objetivo deste artigo explorar todas as 16 possibilidades que estas pesquisas levantam, nem as múltiplas pontes que se estabelecem entre elas, ou as perspectivas de desenvolvimento de linhas de pesquisa e formulação de políticas públicas de educação, cuidado e atenção à saúde. Mencionaremos apenas alguns avanços reflexivos à luz das teses e dissertações revisadas. Um primeiro grande tema é o da preocupação com a construção – compartilhada, dialógica – de novas compreensões sobre a saúde: uma saúde ampliada, diversa, múltipla, contraditória até em suas múltiplas vertentes, tolerante e inclusiva. Neste sentido alguns trabalhos colocam outras racionalidades médicas como possibilidades de interseção e debate entre as propostas da educação popular e a saúde. Especificamente, a Homeopatia é colocada como espaço de reflexão e diálogo. De outro lado, a reflexão sobre as redes sociais e sua importância para a saúde dos coletivos num tempo de exclusão social globalizada é discutida, assim como a reflexão sobre o apoio social – e seu valor intrínseco no bem-estar das pessoas. Nesta mesma perspectiva insere-se o novo campo de estudos sobre religiosidade popular e saúde. O questionamento do “senso comum” dos profissionais – caracterizado dominantemente por uma sobrevalorização e naturalização do próprio saber, a ponto de estabelecer, no cotidiano dos serviços e das pesquisas – é considerado indispensável para uma educação capaz de se abrir à experiência e saber dos outros, pessoas comuns, ao diálogo, o respeito e a construção de saberes, sabedorias e práticas compartilhadas. Temas como o conceito de comunidade, o saber popular, a intuição e as emoções, as práticas sociais, as culturas populares, as medicinas “outras” (racionalidades médicas, naturais, alternativas, complementares, paralelas). Foram desenvolvidas pesquisas teóricas, estudos de caso, propostas metodológicas, avaliações. Outros temas abordados aproximam a educação popular em saúde da discussão contemporânea sobre o cuidado em saúde, a integralidade e a humanização. Ao trabalhar as formas de relação entre profissionais e trabalhadores de saúde e população, estudando impasses, problemas e possibilidades de diálogo, algumas das produções acadêmicas encontradas abordam temas como: a escuta atenta; o respeito pelo outro no encontro terapêutico; a espiritualidade como dimensão intrínseca do cuidado; as relações entre cuidado e condições sociais, organizacionais e políticas; a interação entre as equipes de Saúde da Família e a população; os desafios para aprofundar e sustentar as propostas e 17 visões de educação popular dentro das ações comunitárias dos serviços e ONGs; caminhos para a comunicação em saúde através de fotonovelas, rádios comunitárias, projetos de gênero e comunicação em saúde; dentre outros. Também há reflexões críticas sobre a estratégia de Promoção da Saúde e possíveis encontros e desencontros com as propostas de origem freireana da educação popular em saúde. A reflexão sobre os Agentes Populares de Cura, incluindo neste grupo Agentes Comunitários de Saúde, hoje inseridos nos Serviços Públicos de Saúde, Agentes Comunitários ligados a Organizações Não Governamentais, Agentes de Pastoral da Saúde, e vários atores sociais de cura popular e tradicional (como pais-de-santo, rezadeiras, parteiras, pajés) está presente. Há também estudos sobre os grupos profissionais – enfermeiras, odontologistas – e sobre a formação, vislumbrando-se possíveis pontes de debate com a Educação Permanente em Saúde. Outra agrupação temática diz respeito aos Movimentos Sociais. Encontramos estudos sobre os aspectos de saúde do Movimento Sem Terra, de iniciativas locais e de extensão universitária. Da mesma forma começa a abordar-se o estudo de redes sociais solidárias. Esta diversidade temática dos “objetos de estudo” aqui apresentando em grandes traços vai configurando, portanto, um campo de identidade intelectual comum marcado pela pluralidade e diversidade das abordagens, pela assunção de “múltiplas identidades” e “identificações teóricas e metodológicas mistas”. Nos estudos encontramos a utilização criativa de várias vertentes teóricas presentes na saúde coletiva hoje: o pensamento marxiano, com a crítica ao capitalismo e a necessidade de sua superação; o pensamento deleuziano, com a análise institucional e a esquizoanálise; o pensamento de filósofos como Spinoza, Bérgson, Serres, Guattari e Benjamin; a pedagogia crítica freireiana; a espiritualidade explorada por Vasconcelos; o estudo sobre religiosidade popular e saúde, uma das linhas de pesquisa de Victor Valla; as ciências da complexidade de Morin; a antropologia interpretativa de Geertz; a idéia de “invenção do cotidiano” (táticas/estratégias) de Michel de Certeau; o estudo crítico sobre corpo e classes sociais (Boltanski) e sobre a relação entre normal e patológico (Canguilhem); chegando até reflexões à luz do pensamento epistemológico do budismo e da poesia, dentre os principais. 18 Quem sabe possamos pensar que o eixo comum da Educação popular e Saúde é um projeto subjetivo (porque interiorizado e reconhecido como prioritário e próprio) e intersubjetivo (partilhado nas iniciativas em redes), no qual conhecimento não se separa na postura diante das ordens política, ética e estética. No aspecto político, vemos uma postura crítica à injustiça, à desigualdade, ao neoliberalismo e ao capitalismo; no ético uma solidariedade com os excluídos e marginalizados, um interesse em “saber” com a razão e o coração e de unir reflexão e pesquisa à prática social e militância; e finalmente, no estético, a consciência da “boniteza”, ao dizer de Paulo Freire, como condição fundamental para uma experiência humana plena, transcendente e verdadeira. Considerações finais A trajetória deste movimento social singular aqui descrita em grandes linhas e breves palavras, ultrapassa, em densidade humana e riqueza intelectual, a nossa capacidade de apreensão e análise. Todo esse cabedal será, com certeza, objeto de estudos mais cuidadosos, num futuro próximo. Isto não nos impede de apontar, desde já, o desafio posto pelos próprios passos, no caminho já trilhado. Hoje vale ainda mais a afirmação de Vasconcelos (2001b, p. 18-19) de que, apesar da razoável experiência sobre os caminhos de participação popular com base na metodologia da Educação Popular, continua o desafio de generalizar esta experiência. A proposta do autor – que aqui endossamos – de que tal generalização passe principalmente pela formação de recursos humanos sob o método da educação popular, capaz de escutar suas angústias, sua experiência prévia e sua vontade de superação das dificuldades, constitui talvez o desafio posto à forma de organização do próprio movimento, isto é, da fluidez das relações diretas e informais da rede. Esta é uma dificuldade parcial, na medida em que o ‘espontaneísmo’ se contrapõe à exigência de uma prática mais organizada, sistemática, baseada numa comunicação de significados compartilhados tacitamente. As motivações diversificadas e a pluralidade das profissões, experiências, concepções que compõem a rede certamente requerem processos coletivos novos, capazes de dar respostas às complexas questões da “generalização da experiência”. Também se deve considerar, como apontado no texto, as ‘filiações’ diversas dos profissionais de saúde, aspecto importante quando se considera que está nas mãos deles 19 o acesso à experiência com a população organizada e não organizada. O tecnicismo da formação e o caráter normativo das ações de saúde igualmente atuam de modo negativo, gerando uma atitude suspeita em relação à teorização, quase sempre dissociada, infelizmente, da prática. Até o momento, as experiências de educação popular e mesmo as reflexões acadêmicas constituem um patrimônio intelectual disperso e alternativo. Assumir a tarefa de passar à formulação de propostas de política implica superar, no sentido de negar conservando, a informalidade originária do movimento social, a saber, criar espaços para uma discussão mais aprofundada e sistemática sem perder o ethos característico da rede, a sua poiesis. Mas sempre se propondo a um saber-fazer associado à prática inovadora: por isso, indispensável assinalar a necessidade de fortalecer os vínculos com os movimentos e práticas de saúde da ANEPS. A invenção de novas formas organizativas e novos métodos de trabalho é, como vimos, uma exigência do próprio desenvolvimento da EP&S como movimento social no período recente. Os processos adequados à generalização das experiências e reflexões aqui relatadas, transformando-as em proposições de políticas públicas, estão, a nosso ver, já em curso. Numa primeira vertente estão aqueles relacionados aos encontros dos movimentos e práticas de saúde que, em cada município, tomam forma na ANEPS. Por aí fluem as possibilidades de uma teorização vinculada à prática dos serviços e dos movimentos sociais. Noutra vertente, surge o Grupo de Trabalho de Educação Popular e Saúde da ABRASCO enquanto dinâmica de interface entre a Rede e o ambiente da pós-graduação. Registre-se aqui a decisão do GT de apoiar e assessorar cursos de especialização e de atualização, preocupando-se com os processos de formação de pessoal para o SUS vinculados à vivência dos profissionais de saúde.3 Em síntese: a EP&S precisa tomar para si o desafio da institucionalização – quem sabe sob a forma de um grupo academicamente mais sólido em contato com a pulsão da vida social nos meios populares. Os contornos do movimento chamando de EP&S poderão então adquirir novas formas, modeladas por novas artes, numa trajetória de horizontes abertos. Referências 20 ALVES, V.S. Educação em Saúde e constituição de sujeitos: desafios ao cuidado no Programa de Saúde da Família. 2004. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004. ALBUQUERQUE, P.C. ; STOTZ, E.N. A educação popular na atenção básica à saúde no município: em busca da integralidade. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v.8, n.15, p.259-74, 2004. ANEPS – Articulação Nacional de movimento e Práticas de Educação Popular e Saúde. Catálogo de movimento e Práticas de educação Popular e Saúde, 2004. Disponível em: <http://www.redepopsaude.com.br>.Acesso em: 15 fev. 2005. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 BAUMAN, Z. Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989. BOUDON, R.; BOURICAUD, F. Dicionário crítico de Sociologia. São Paulo: Ática, 1993. CASTELS, M. O poder da identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1999. CASTELS, M. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. v. 1. ESCOREL, S. Projeto Montes Claros – palco e bandeira de luta, experiência acumulada do movimento sanitário. In: FLEURY, S. Projeto Montes Claros – utopia revisitada. Rio de Janeiro: ABRASCO, 1995. FAVORETO, C. A. O.; CAMARGO JUNIOR, K. R. de. Alguns desafios conceituais e técnico-operacionais para o desenvolvimento do Programa Saúde da Família como uma proposta transformadora do modelo assistencial. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.12, n. 1, p.59-75, 2002. HALL, S. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 21 LOYOLA, M. A. Medicina popular. In: GUIMARÃES, R. (Org.) Saúde e medicina no Brasil: contribuição para um debate. 4. ed. Rio de Janeiro; Graal, 1984. MOURA, E. R. F.; RODRIGUES, M. S. P. Comunicação e informação em saúde no prénatal. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v.7, n.13, p.109-18, 2003. REDE DE EDUCAÇÃO POPULAR E SAÚDE. Apresentação da Rede de Educação Popular e Saúde. <http://www.redepopsaude.com.br> Acesso em 15 abr. 2005. RIOS, J. A. Movimentos sociais. BENEDICTO SILVA (coord. geral) Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1987. SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde: elementos metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000. SANTOS, B. de S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Rio de Janeiro, Cortez Editora. 2000. SANTOS, B. de S. (org.). Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 2003. SILVA JUNIOR, A. G. da. Modelos tecnoassistenciais em saúde: o debate no campo da Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, 1988. STOTZ, E.N. Encontro de movimentos e práticas de Educação Popular e Saúde. Interface – Comunicação, Educação, Saúde, Botucatu, v. 8, n.14, 179-82, 2004. STOTZ, E. N. A educação popular nos movimentos sociais da saúde: uma análise de experiências nas décadas de 1970 e 1980. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, 2005. TEIXEIRA, C. F. A mudança do modelo de atenção à saúde no SUS: desatando nós, criando laços. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 257-277, 2003. VASCONCELOS, E. M. 2001a. Redefinindo as práticas de saúde a partir da educação popular nos serviços de saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 5, n. 8, p.121-131, 2001a. 22 VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as práticas de saúde a partir da educação popular nos serviços de saúde. In: VASCONCELOS, E. M.(Org.) A saúde nas palavras e nos gestos. São Paulo, Hucitec, 2001b. 1 A ANEPS é uma iniciativa conjunta da Rede de Educação Popular e Saúde, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento de Reintegração dos Atingidos por Hanseníase (MORHAN), Federação das Executivas dos estudantes da Saúde, Mulheres Camponesas (MMC), Projeto Saúde e Alegria (GTA), Movimento Popular de Saúde (MOPS). 2 Mensagem eletrônica enviada por Eymard Vasconcelos à lista de discussão <edpopsaude> Submissão: Jan. 2005 Aprovação: maio 2005 23 Medicina de Família e Comunidade: especialistas em integralidade Family and Community Medicine: specialists in wholeness Maria Inez Padula Anderson1, Gustavo Gusso2, Eno Dias de Castro Filho3, “Não precisamos saber apenas que doença a pessoa tem, mas que pessoa tem essa doença”. (Oliver Sacks) Resumo Este artigo aborda a Medicina de Família e Comunidade enquanto especialidade médica, apresentando breve histórico, conceitos e princípios que regem o exercício dessa especialidade bem como seus principais objetivos e campos de atuação. A partir dessa abordagem, pretende tornar mais evidente as contribuições potenciais da especialidade para a constituição de sistemas de saúde mais efetivos e eficazes, condizentes com as necessidades e demandas de saúde da população. Relaciona e contextualiza aspectos quanto à formação e capacitação pós-graduada na área, à importância da sua inserção na graduação, bem como à sua relevância na constituição dos sistemas de saúde. Neste aspecto, focaliza a Medicina de Família e Comunidade no Brasil no contexto do processo de implementação do Programa de Saúde da Família. Traz também alguma informação sobre a organização científica dos médicos do família no Brasil e no mundo. Palavras chave: Medicina de Família; Medicina Comunitária; Cuidados Primários de Saúde; Sistema de Saúde; Educação Médica. Abstract This article deals with Family and Community Medicine as a medical specialty, presenting a brief background, concepts and principles that govern the exercise of this specialty, as well as its principle objectives and areas of activity. Based on this approach, we intend to demonstrate the potential contributions of this specialty for creating more effective and efficient health systems, in tune with the health needs and demands of the population. It relates and puts into context aspects concerning the training and post-graduate preparation in the area, the importance of its insertion into undergraduate studies, as well as its relevance to the constitution of health care systems. In this aspect, it focalizes on Family and Community Medicine in Brazil in the context of the process of implementation of the Family Health Program. It also offers some information concerning the scientific organization of family doctors in Brazil and the rest of the world. Key words: Family Practice; Primary Health Care; Community Medicine; Health System; Education, Medicine. INTRODUÇÃO Como definir a Medicina de Família e Comunidade? Dada a organização ainda hegemônica, tanto dos sistemas de saúde quanto da subespecialização na área médica – ambas centradas na doença e com base hospitalocêntrica - sua definição ainda não se consolidou no senso comum, mas algumas versões inspiradas no chamado bom senso têm se destacado: “o 1 Médica de Família e Comunidade, Doutora em Saúde Coletiva, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Presidente SBMFC 2004/2006, contato: [email protected]; 2 Médico de Família e Comunidade, Preceptor da Residência Médica em MFC da Universidade de São Paulo, Diretor de Comunicação SBMFC 2004/2006, contato: [email protected]; 1 médico de família e comunidade é aquele clínico geral antigo que ia na casa das pessoas” ou “o médico de família e comunidade é aquele que não se especializou em nada” ou ainda “é uma nova especialidade no Brasil”. Essas explicações, no entanto, são cercadas de ambigüidades e incorreções com as quais temos procurado interagir para reconstruí-las, buscando uma reflexão no rumo da experiência bem sucedida de Medicina de Família e Comunidade em várias regiões do Brasil e em várias nações. O século passado foi marcado pelo avanço da ciência positivista e do crescimento de especialidades focais na prática médica. As análises que buscam explicar a crise da medicina e dos sistemas de saúde evidenciam que este crescimento exponencial da especialização focal não trouxe os benefícios esperados, apontando para a necessidade de redirecionar este modelo. A histórica Conferência de Alma Ata realizada pela OMS em 1978, é um marco em tal processo. A conferência definiu a Atenção Primária à Saúde – APS como estratégia para se atingir a eqüidade e a universalidade no âmbito dos sistemas de saúde. A APS e sua conceituação, ainda que suscitem discussões, trazem consigo quatro princípios fundamentais: primeiro contato/acesso, longitudinalidade, integralidade e coordenação. A medicina de família e comunidade – MFC – é a especialidade médica da integralidade com foco centrado na APS. Por isso, é uma especialidade estratégica na conformação dos sistemas de saúde. Cabe à MFC, partindo de um primeiro e fácil acesso, cuidar de forma longitudinal, integral e coordenada da saúde das pessoas, considerando seu contexto familiar e comunitário. Portanto, a medicina de família e comunidade é um componente primordial da atenção primária à saúde Diversos estudos asseguram que o manejo adequado de 50 diagnósticos resolve a maioria (85% em geral) dos problemas de saúde apresentados pela população de uma determinada região. Embora freqüentes, os problemas de saúde expressos nesses diagnósticos nem sempre são de fácil manejo. Muitas vezes têm alto grau de complexidade e exigem considerável suporte diagnóstico e terapêutico, ainda que com menor densidade de tecnologia dura do que em outros níveis do sistema. O médico de família e comunidade encaminha o paciente, quando necessário, a centros de referência focal. Segue cabendo a ele, no entanto, a coordenação da atenção médica à pessoa em todos os níveis. 3 Médico de Família e Comunidade do Grupo Hospitalar Conceição, Mestre em Educação, Diretor Científico SBMFC 2004/2006, contato: [email protected]. 2 O canadense Mc. Whinney (1995), considerado um dos maiores estudiosos da medicina de família e comunidade, definiu quatro competências próprias dessa especialidade: 1) solução de problemas que se apresentam indiferenciados; 2) competências preventivas; 3) competências terapêuticas (de problemas freqüentes de saúde); 4) competência de gestão de recursos. Países como o Brasil, que não têm ainda uma atenção primária bem organizada, acabam desperdiçando preciosos recursos. Isto inevitavelmente leva à iniqüidade e à corrosão do sistema. Por isto, muitas nações desenvolvidas vêm investindo cada vez mais na Atenção Primária à Saúde. Países como Portugal, Canadá, Inglaterra, Cuba e Holanda consideram e adotam o especialista em medicina de família e comunidade (com diferentes denominações) como o profissional de primeiro contato com excelentes resultados. Na Inglaterra, 51% de todos os médicos do país são especialistas da integralidade (“General Practitioners”); no Canadá, representam 55%; em Cuba, cerca de 65% e na Holanda eles já somam 33%. No Brasil, apesar de existir desde 1976 e ter sido uma das primeiras especialidades oficializadas pela Comissão Nacional de Residência Médica – CNRM (em 1981) e pelo Conselho Federal de Medicina (em 1986) com o nome de Medicina Geral Comunitária (mudando para o atual em 2001), ela ficou muito tempo em posição marginal, só ganhando maior visibilidade após a expansão do Programa Saúde da Família. A Medicina de Família e Comunidade também tem contribuído para a reestruturação científica da própria medicina. Adquiriu relevância na constituição dos novos paradigmas na área da saúde e, conseqüentemente, nos campos da formação de recursos humanos e da pesquisa. Isto porque seus princípios e práticas são centrados na pessoa (e não na doença), na relação médico-paciente, na interlocução com o indivíduo contextualizado. Entende que o processo saúde-adoecimento é um fenômeno complexo, relacionado à inter-ação de fatores de ordem biológica, psicológica e sócio-ambiental. A Medicina de Família e Comunidade, portanto, não é uma novidade no Brasil ou no mundo. Também não significa o simples retorno do “médico de família” antigo, desprovido de uma disciplina específica ou mesmo dos avanços modernos da ciência. Essa especialidade possui uma epistemologia bem definida. Ela não é onisciente ou se define em torno de problemas banais ou de fácil resolução. As competências e habilidades específicas são nítidas, bem como os limites que essa definição implica. O aumento do conhecimento sobre esta especialidade, o incremento e o investimento na formação de excelência de especialistas na área, bem como a necessária qualificação dos 3 profissionais que atuam como “médicos gerais” - sem se especializarem em integralidade - são questões estratégicas. Devidamente consideradas, contribuirão para a consolidação de um sistema de saúde mais eficaz e resolutivo, isto é, um sistema de saúde sintonizado com os processo de mudança que a construção de uma sociedade justa exige. OBJETIVOS DA MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE Identificada com princípios, conceitos e recomendações internacionais formalizadas pela Organização Mundial dos Médicos de Família (WONCA, 2002), assim como com a trajetória da reforma sanitária brasileira, a Medicina de Família e Comunidade tem por objetivos proporcionar cuidados integrais personalizados, continuados e contextualizados à saúde: - Atuar, prioritariamente, no âmbito da Atenção Primaria à Saúde, a partir de uma abordagem biopsicossocial do processo saúde-adoecimento. - Desenvolver ações integradas de promoção, proteção, recuperação da saúde no nível individual e coletivo. - Priorizar a prática médica centrada na pessoa, na relação médico-paciente, com foco na família e orientada para comunidade, privilegiando o primeiro contato, o vínculo, a continuidade e a integralidade do cuidado na atenção à saúde. - Coordenar os cuidados de saúde prestados a determinado indivíduo, família e comunidade, referenciando, sempre que necessário, para outros especialistas ou outros níveis e setores do sistema, mas sem perda do vínculo. - Atender, com elevado grau de qualidade e resolutividade, no âmbito da Atenção Primária à Saúde, cerca de 85% dos problemas de saúde relativos a uma população específica, sem diferenciação de sexo ou faixa etária. - Desenvolver, planejar, executar e avaliar, integrada à equipe de saúde, programas integrais de atenção, objetivando dar respostas adequadas às necessidades de saúde de uma população adscrita, tendo por base metodologias apropriadas de investigação, com ênfase na utilização do método epidemiológico. - Estimular a resiliência, a participação e a autonomia dos indivíduos, das famílias e da comunidade. - Desenvolver novas tecnologias em atenção primária à saúde. - Desenvolver habilidades no campo da metodologia pedagógica e a capacidade de auto aprendizagem. 4 MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE, SISTEMAS DE SAÚDE E ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DA ESPECIALIDADE 1) Medicina de Família e Comunidade é uma especialidade médica integrando o conjunto de serviços prestados pelos Sistemas de Saúde, em especial no nível da Atenção Primária à Saúde. 2) Sua visibilidade aumenta em contraste à subespecialização focal e à tecnificação instrumental da prática médica, com utilização inadequada e desproporcional da tecnologia dura, habitualmente acompanhadas da desvalorização (quando não substituição) da relação médico-paciente. 3) Sua inserção nos sistemas de saúde se dá com presença internacional, seja em países desenvolvidos como os Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, Canadá, até países em desenvolvimento como Cuba, Costa Rica, Venezuela e México. 4) Em todos os países onde é adotada, tem contribuído fortemente para a melhoria dos indicadores de saúde. A Organização Mundial de Saúde- OMS e a WONCA, no documento intitulado: Como tornar a prática e a educação médicas mais adequadas às necessidades de saúde da população: a contribuição do médico de família de 1994, (http://www.globalfamilydocotor/publications/) recomendam que: “O médico de família /generalista deve desempenhar um papel central na obtenção de qualidade, eqüidade e custo-efetividade nos sistemas de saúde.” “A maior parte dos médicos de um país deverão ser médicos de família. ...é necessário estabelecer políticas nacionais no sentido de atingir este objetivo tão cedo quanto possível”. 5) A implementação da MFC não se dá em detrimento de outras especialidades médicas, ao contrário, deve ser exercida de forma co-laborativa; nesta condição, não é superior nem inferior a qualquer outra especialidade, devendo ser considerada um recurso permanente pelos especialistas focais, inclusive quanto ao seu escopo de atuação, de formação e de prática profissional. 6) A WONCA é a entidade internacional que congrega as sociedades da especialidade (e os especialistas) no mundo, inclusive a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), elaborando e recomendando a adoção de parâmetros técnico- 5 científicos em nível da formação e atuação profissional. Em parceria com a Organização Mundial de Saúde, promove Congressos Internacionais e Sub-Regionais envolvendo os países de acordo com a sua distribuição geográfica. Além disso, publica regularmente documentos de caráter consultivo, informativo e normatizador que visam aprimorar a especialidade, promovendo uma atuação mais uniforme nos diferentes países do mundo. 7) A SBMFC é a sociedade nacional filiada tanto à WONCA quanto à Confederação Iberoamericana de Medicina Familiar – CIMF. MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE E A GRADUAÇAO EM MEDICINA O potencial transformador identificado na Medicina de Família e Comunidade pode ser evidenciado pela inserção desta especialidade da integralidade na estrutura de destacadas escolas médicas de países centrais. Para tanto, a grande maioria delas constituiu Departamentos de Medicina de Família e Comunidade (ou denominação equivalente da especialidade), muitas com incentivo financeiro estatal, como foi o caso do governo estadunidense ainda na década de 70 (RODGERS, 2002). No Brasil, não tem sido assim, apesar da defesa intransigente da ABEM que há décadas vem cerrando fileiras em defesa de uma formação médica de espectro generalista. Não foi por acaso que a criação da SBMFC se deu no Congresso Anual de 1981 promovido pela entidade no município fluminense de Petrópolis. Na atualidade, os ventos sopram a favor de mudanças mais consistentes do ensino médico no Brasil e a Medicina de Família e Comunidade tem importantes contribuições a dar. Seus princípios se entrelaçam às recomendações expressas nas novas Diretrizes para o Ensino de Graduação em Medicina. Resta ao MEC e ao MS implementarem políticas efetivas de apoio ao desenvolvimento da Medicina de Família e Comunidade no âmago da universidade. Políticas que possibilitem o fortalecimento das iniciativas que há muito desenvolvem atividades docenteassistenciais pautadas em um conceito ampliado de saúde e visam a formação de um profissional com perfil humanista, técnica e eticamente comprometido com o cuidado integral à saúde do indivíduo, da família e comunidade. Certos fundamentos, técnicas e práticas da Medicina de Família e Comunidade constituem elementos importantes na formação médica geral, envolvendo o aluno (e futuro médico) em uma perspectiva ampliada do cuidado em saúde, independentemente da especialidade que irá exercer. 6 Tendo como objeto a pessoa, a família e seu contexto, a medicina de família e comunidade busca integrar os aspectos socioambientais, psicológicos e biológicos, na compreensão do processo saúde-adoecimento e no cuidado a ser ofertado, originando uma forma específica e resolutiva de responder às necessidades de atenção individual e coletiva. Os conteúdos programáticos desta especialidade, recomendados para a graduação médica, incluem: Conceituação e reconhecimento da importância da Atenção Primária, da Medicina de Família e da Comunidade e da prática ambulatorial nos Sistemas de Saúde. Compreensão e incorporação dos princípios da complementaridade e da integralidade das ações médicas e de saúde. Atuação onde sejam desenvolvidas práticas de atenção à Saúde da Família. Reconhecimento do papel e da influência da família no estado de saúde de seus componentes. Comunicação e Relação Médico –Paciente-Família-Comunidade. Reconhecimento e diagnóstico das condições de saúde socioambiental de uma família e de uma comunidade. Conhecimento do cadastro familiar e comunitário como instrumento facilitador do diagnóstico e abordagem médica. Identificação de ações prioritárias a serem focalizadas pela equipe de saúde na abordagem familiar e comunitária. Conhecimento e desenvolvimento de práticas de promoção, proteção e educação em saúde com desenvolvimento de ações orientadas pelas necessidades e demandas das famílias e a comunidade. Estudo e reflexão epidemiológica. A RESIDÊNCIA EM MEDICINA de FAMÍLIA E COMUNIDADE Os Programas de RESIDÊNCIA MÉDICA EM MEDICINA de FAMÍLIA E COMUNIDADE – RMMFC - são desenvolvidos no Brasil há mais de 25 anos (até 2002, sob o nome de Medicina Geral Comunitária). Ao contrário do que se passa nos países centrais, esses programas, durante muitos anos, não receberam apoio nem incentivos pelos gestores da saúde no Brasil. Com a implementação do PSF, este quadro vem sofrendo alterações, verificando-se um incremento no número de programas na área. Entretanto, há alguns anos vêm sendo criados programas de formação multiprofissional em Saúde da Família, na modalidade de residência. 7 Estes programas nem sempre se alinham a um padrão curricular. A orientação da SBMFC e do Ministério da Saúde é que o núcleo médico de tais programas seja revisto, adequando-se à Resolução da CNRM que rege a matéria e se credenciando junto a ela, sem prejuízo da matriz multiprofissional. A Residência de MFC não tem como objetivo suprir insuficiências do curso de graduação. Seu objetivo é possibilitar a especialização em atenção integral à saúde. Espera-se que o egresso da RMMFC converta-se em agente de mudança no campo da saúde, recusando-se a assumir o papel de mero prestador de serviços, subserviente aos interesses do mercado ou de projetos reducionistas e pacotes restritivos de medicina pobre para pobre, que funcionam mais como uma espécie de regra três da medicina biotécnica. Espera-se que o egresso domine em alto grau a clínica baseada em evidências científicas, mas seja capaz de entender e lidar de forma contextualizada e competente com a saúde das pessoas, com a saúde da família e da sociedade, a partir do paradigma do cuidado integral. Saiba valorizar e manejar com excelência a relação médico-paciente, seja competente no trabalho em equipe e fomente a participação individual e comunitária nas questões de saúde e da cidadania. E, além disso, que saiba estimular a resiliência, considerada aqui como a capacidade de desenvolver respostas mais adequadas e saudáveis aos diferentes e diversos tipos de stress que são vivenciadas pelos indivíduos ao longo da vida e que, não raro, são também fatores envolvidos no processo de adoecimento. Atualmente existem em curso cerca de 50 programas de MFC em atividade e/ou em processo de credenciamento junto à CNRM. A SBMFC estimula e se coloca disponível para colaborar com as instituições que quiserem criar seus programas, como também, para colaborar com aquelas que desenvolvem as Residências Multiprofissionais em Saúde da Família OUTRAS FORMAS DE CAPACITAÇAO E FORMAÇÃO PÓS-GRADUADA EM MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE Nos países que implementam a Atenção Primária de qualidade, a formação de recursos humanos é uma questão estratégica. Entretanto, nem sempre, existem profissionais qualificados em quantidade suficiente para acompanhar a construção da APS. Países que vivenciaram esta situação - à semelhança do Brasil nos dias de hoje - passaram por uma fase de transição, em que os programas de residência médica foram sendo incrementados 8 e, no curto prazo, outras formas de capacitação foram paralelamente desenvolvidas. Cursos de especialização e programas de educação continuada são necessários para profissionais já envolvidos nos serviços. E agora que o CFM padronizou como obrigatória a revalidação quinqüenal do título de especialista, estão na ordem do dia para os que fizeram residência médica na área também. Essas atividades, de mais curta duração, são pertinentes na atual fase de implantação da APS no Brasil. A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade - SBMFC trabalha para estabelecer um currículo mínimo que os guie, em especial , em relação à parte clínica. Há evidente necessidade de formação de preceptores, seja para graduação ou pósgraduação na área, e os egressos dos programas de residência em medicina de família e comunidade representam recursos indispensáveis a este processo. TÍTULO DE ESPECIALISTA EM MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE Além do título de especialista fornecido pela CNRM através da Residência Médica em MFC, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, em atuação conjunta com a Associação Médica Brasileira – AMB - aos moldes a exemplo do que acontece para as especialidades focais - está certificando especialistas, através de concursos. O primeiro ocorreu por ocasião do VI Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, em abril de 2004, no Rio de Janeiro. O próximo será realizado em maio de 2005, por ocasião do VII Congresso, em Belo Horizonte. A Residência em MFC é um dos pré-requisitos, mas não uma condição exclusiva. Aliás, os egressos dos programas de residência também são incentivados a obter este título, visto que é diferente daquele outorgado pela residência. A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE E A ATENÇÃO PRIMÁRIA NO BRASIL A exemplo do que ocorreu em outros países, a APS no Brasil demorou a deslanchar. Durante muitos anos, resistiu sob a forma de serviços pontuais de saúde comunitária. A partir de 1994, com a implantação do Programa Saúde da Família – PSF, inicia-se um processo mais estrutural e sistematizado de incorporação da APS ao sistema de saúde. 9 Desde que foi instituído, o PSF experimentou um crescimento exponencial. Entre seus maiores êxitos, conta a extensão de pontos de cuidado à saúde a uma grande parcela da população pobre deste país. E isto fez grande diferença. Entretanto, a celeridade da implantação do Programa acarretou a incorporação de pessoal com formação ou perfil nem sempre adequados para compor as equipes, o que tem comprometido a legitimidade do Programa e sua extensão substitutiva de modelos tradicionais. Há uma alta rotatividade de profissionais médicos que, em grande parte, acorrem ao programa pela perspectiva de emprego imediato com remuneração acima da média. Muitas vezes, entretanto, este profissional é surpreendido: entusiasma-se e acaba aderindo ao projeto por trás do Programa, procurando capacitação e desenvolvimento pessoal. A inexistência e/ou precariedade de sistemas de referência, bem como dos serviços de apoio ao diagnóstico e tratamento, em muitas regiões, constituem um problema grave para as equipes de saúde da família, que não raro são deixadas à própria sorte. Por outro lado, muitas equipes têm sido sobrecarregadas com a responsabilidade de prestar cuidados a um número exagerado de famílias, comprometendo a qualidade e a diversidade das ações que deveriam desenvolver. Estes aspectos acima, considerados no seu conjunto, acabam por comprometer a eficácia do programa, gerando uma imagem negativa que também atinge a formação de recursos humanos e o status do trabalho em atenção primária. Cabe destacar que há serviços e instituições que, a duras penas, tentam reverter este quadro e modificar esta visão. A larga experiência internacional e a própria experiência nacional, desenvolvida sobretudo em torno de serviços e projetos de APS baseados na Medicina Comunitária, não têm sido devidamente valorizadas. Inclusive no tocante à formação e capacitação de pessoal médico especificamente voltado para a APS, através dos Programas de Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade. Para caminhar de forma consistente e qualificada para a consolidação da Atenção Primária no Brasil, é necessário incrementar e valorizar a formação de recursos humanos, com ênfase para o Médico de Família e Comunidade; disponibilizar recursos diagnósticos e terapêuticos adequados à prática resolutiva da APS; adequar a infra-estrutura físico-funcional das unidades; estabelecer mecanismos eficientes de referência e contra-referência e investir na 10 educação permanente. O Projeto de Expansão e Consolidação do Saúde da Família - PROESF4 tende a contribuir neste rumo, mas algumas vezes tem sido um biombo para renomear práticas tradicionais baseadas nos especialistas focais. Do mesmo modo, a nova regulamentação dos Hospitais de Ensino poderia ser uma ferramenta poderosa nesse sentido, mas sua versão final pode mais afastar do que integrar os grandes hospitais em relação aos programas de formação em atenção primária. Será o investimento concreto, persistente, simultâneo e eficiente em todos componentes desta equação que permitirá conhecer e explorar todo o potencial da Atenção Primária em nosso país e constatar os resultados positivos que se farão notar na saúde e na qualidade de vida da população brasileira. Convidamos a todos a co-laborar conosco neste processo, entrando em contato, trazendo sugestões, participando da nossa lista de discussão, filiando-se à Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (www.sbmfc.org.br). NOTA 4- O PROESF é uma iniciativa do Ministério da Saúde, apoiada pelo Banco Mundial - BIRD, voltada para a organização e o fortalecimento da Atenção Básica à Saúde. Visa contribuir para a implantação e consolidação da Estratégia de Saúde da Família em municípios brasileiros, em especial para aqueles com mais de 100.000 habitantes. Inclui iniciativas direcionadas para a elevação da qualificação do processo de trabalho e desempenho dos serviços, otimizando e assegurando respostas efetivas para a população. (Ministério da Saúde, Informe da Atenção Básica n. 18, 2003). REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Ensino Superior-SESU. Comissão Nacional de Residência Médica. Resoluções 07/1981 e 05/2002. Brasília, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde.SAS/DAB. Avaliação Normativa do Programa Saúde da Família no Brasil: monitoramento da implantação e funcionamento das equipes de saúde da família. Brasília, 2000. FALK, J. W. A medicina de família e comunidade sua entidade nacional: histórico e perspectivas. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Curitiba, v.1, p.5-10, abr. 2004. 11 McWHINNEY, I. R. Medicina de família. Barcelona: Doyma Libros, 1995. OMS.WONCA. Como tornar a prática e a educação médicas mais adequadas às necessidades de saúde da população: a contribuição do médico de família, 1994. Disponível em: <http://www.globalfamilydocotor/publications/>. Acesso em: out. 2004. ORTÚN, V. ; GÉRVAS, J. Fundamentos y eficiencia de la atención médica primaria. Medicina Clínica, Barcelona, n.6, p.97-102, 1996. Rodgers, D. V. Some thoughts on culture, family medicine and academic health centers Family Medicine. v. 34, n.4, p.237-239, 2002. STARFIELD, B. Is primary care essential The Lancet, vol. 344, p. 1129-1133, out/1994. STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília:Ministério da Saúde/UNESCO, 2004. RAKEL, R. E. The family physician. In: RAKEL, R. E. (Org) Textbook of family practice. 6a ed. Philadelphia: B Saunders, 2002. cap.1, p. 03 –18. WONCA. Improving health systems, the contribution of family medicine - a guide book. Singapura: Bestprint Printing, 2002 Submissão: janeiro de 2005 Aprovação: abril de 2005 12 1 A INSERÇÃO DE UMA EQUIPE DO PSF NA CAMPANHA DE VACINAÇÃO DOS IDOSOS CONTRA GRIPE: REESTRUTURANDO PRÁTICAS ASSISTENCIAIS EM BUSCA DE EFICIÊNCIA E HUMANIZAÇÃO THE INSERTION OF A FAMILY HEALTH PROGRAM GROUP INTO A FLU VACCINATION CAMPAIGN FOR THE ELDERLY: RESTRUCTURING MEDICAL PRACTICE TO ACHIEVE EFFICIENCY AND HUMANIZATION Moacyr da Gama Corrêa Neto 1 Marina Vasconcellos Laprega da Gama 2 Milton Roberto Laprega 3 RESUMO O Programa Saúde da Família é uma estratégia rica em recursos e possibilidades que o permite diferenciar as práticas assistenciais à saúde dimensionando-as em novas perspectivas de cuidado e atenção. Buscando integrar estes recursos e perspectivas ao cotidiano, experimentou-se uma reorganização da campanha de vacinação contra a gripe através da inserção de uma equipe do PSF. Com o objetivo de maximizar os resultados desta campanha não somente sob a perspectiva de ampliar a cobertura vacinal, mas sobremodo com o escopo de buscar compreensões para humanizála, a equipe operacionalizou formas de abordagem através da busca ativa e do inquérito domiciliar, conciliando a busca de informações à oferta do cuidado. Por estas práticas, pudemos não só atingir uma significativa melhora da cobertura vacinal, como também compreender melhor os significados da vacinação para nossa população, contribuindo para o aprimoramento de abordagens futuras. PALAVRAS-CHAVE: Programa Saúde da Família; Saúde do Idoso; Influenza; Vacinação ABSTRACT The Family Health Program is a strategy rich in resources and possibilities that allows for differentiated medical health practices giving us new perspectives for health care and attention. In an attempt to integrate these resources into everyday life and optimize the quality of attention offered, a reorganization of the flu vaccination campaign was tried on an FHP group. Since the intent was not only to extend the vaccination coverage, but also to humanize it, the staff developed new approaches through active search and home polls, seeking information and offering care simultaneously. Through this experience we were able to reach a significant coverage extension and also better understand the importance of vaccination for our population, which certainly contributes to the improvement of future approaches. KEY WORDS: Family Health Program; Aging Health; Influenza; Vaccination INTRODUÇÃO Dentre as ações de prevenção primária à saúde as formas de imunização através de vacinas são os exemplos por excelência, constituindo-se em modo de prevenção notória e 1 Médico de Família pelo HCFMRP-USP; Prof. de Saúde Coletiva do Centro Universitário Barão de Mauá.. Psicóloga pela UFU; Coordenadora do PACS/PSF na Direção Regional de Saúde de Ribeirão Preto / SP. 3 Prof. Dr. do Departamento de Medicina Social da FMRP-USP. Endereço: R. Nioac, 287 – Monte Alegre. Ribeirão Preto / SP – Cep: 14052-250. Fone: (16) 633-6216. E-mail: [email protected] ou [email protected] 2 2 amplamente estabelecido e aceito tanto cientificamente como pelas populações. No que diz respeito à vacinação contra a gripe das pessoas acima de 60 anos no Brasil, isto é parcialmente verdade, uma vez que a aceitação pelos usuários e mesmo por alguns profissionais de saúde ainda está muito aquém do ideal, não obstante benefícios na redução da morbidade relacionada às complicações das infecções respiratórias tenham sido bem definidos, justificando o empenho em transformar esta prática em algo abrangente e aquiescido. Para podermos atingir esta meta, faz-se mister a veiculação de informações adequadas, orientações e um amplo trabalho de conscientização, esclarecimento e educação em saúde, que somente se concretizará na medida em que compreendermos as dúvidas, as incertezas e os motivos de resistência a tal prática. Tais motivos estarão indubitavelmente relacionados à cultura, ao grau de instrução e às condições sócio-econômicas das pessoas da localidade em questão, bem como à organização da assistência à saúde praticada aí, às ações desenvolvidas anteriormente e aos cuidados prestados à comunidade. Destarte, evidencia-se o quão significativo pode ser a estrutura e organização dos serviços de saúde, enquanto determinantes do processo de saúde e adoecimento dos indivíduos e das populações, e a importância de um diagnóstico de saúde da comunidade que fundamente o conhecimento, a compreensão e o planejamento de atividades que almejem interferir positivamente nestes determinantes. As equipes do Programa de Saúde da Família, quando capacitadas ao exercício deste novo olhar considerando concepções mais abrangentes, tanto do significado da saúde quanto das ferramentas para o trabalho interdisciplinar organizado em equipe, são capazes de garantir uma resposta mais adequada a estas necessidades, pois possuem características que lhes facilitam o desenvolvimento dos recursos necessários para tal. A adscrição da população, permitindo uma base territorial definida e um número limitado de usuários; o processo de cadastramento para acompanhamento longitudinal destes através de práticas de vigilância à saúde; o estabelecimento de vínculos entre a equipe e esta população, o que permite um melhor conhecimento das realidades individuais e coletivas e gera uma maior responsabilização profissional; a estruturação do trabalho interdisciplinar, integrando conhecimentos diversos na busca da ampliação tanto das compreensões quanto da capacidade de responder às necessidades assomadas da população; uma reorientação do enfoque da doença para a saúde, entendida como recurso positivo para a vida diária, e da fragmentação dos indivíduos para uma atenção voltada à pessoa integral, entendida como sujeito de um processo que se contextualiza no seio familiar e em suas interfaces sociais; a orientação do trabalho engendrada sobre o diagnóstico do status de saúde desta população e o planejamento in loco, são algumas das características que deveriam ser identificadas nas formas de serviços oferecidos pelas equipes e que lhes permitem redimensionar e reestruturar a organização da atenção 3 à saúde de forma efetiva e eficiente, com respostas adequadas e satisfatórias à comunidade. Foi estruturando a forma de cuidado com a saúde através desta orientação que, a partir da identificação da necessidade de desenvolvermos uma estratégia diferenciada para abordar a questão da vacinação dos idosos, desenvolvemos em uma unidade do Programa Saúde da Família esta experiência, evidenciando a exeqüibilidade de se organizar um serviço de saúde de forma concomitantemente mais humanitária e eficiente. Humanitária na medida em que buscamos a compreensão da funcionalidade dos indivíduos, suas famílias e da comunidade adscrita, objetivando estruturar respostas que considerem os aspectos subjetivos das relações de cuidado à saúde e seus impactos; na medida em que resgatamos valores que retifiquem o coisificar dos indivíduos e minimizamos as iniqüidades, garantindo assistência mesmo frente às diversas desvantagens em que se encontram certos subgrupos. E eficiência, na medida em que operacionalizamos modos de atuação que maximizem os resultados tanto quantitativa quanto qualitativamente, através de um planejamento adequado e pertinente, e sobremaneira pelo empenho, compromisso e responsabilização erigidos sobre os vínculos que se estabelecem entre a equipe e a comunidade. Assim, procuramos integrar práticas promotoras de saúde e preventivas à capacidade de acompanhamento e planejamento das ações, com o escopo de maximizar os resultados alcançados e também de identificar os significados de tal campanha para a comunidade. Acreditamos que não possa haver “fórmulas prontas” a serem seguidas, algo que enrijaria e destituiria de significados todo o processo, mas construções que possam ser fomentadas através da experimentação, do intercâmbio de conhecimentos e da vontade de realizar algo melhor. E é este um dos fins desta experiência: além de modificar a abordagem e os resultados finais da campanha de vacinação dos idosos na comunidade adscrita à unidade do PSF em questão, prestar-se como exemplo de que muitos e bons resultados podem ser obtidos com recursos que se operacionalizam de modo simples, ainda que fundamentados por um processo de criatividade que necessariamente reoriente algo de muito mais profundo na compreensão do que é trabalhar com e para a saúde de outrem. Desta forma, fomos capazes de modificar a campanha realizada em nossa comunidade, elevando a cobertura vacinal, garantindo cuidado digno, humanizado e efetivamente universal, superando dificuldades e obstáculos, adquirindo conhecimento da realidade local, fortalecendo os vínculos e re-significando todo o processo de trabalho da equipe. OBJETIVOS • Ampliar e facilitar o acesso à vacinação. • Melhorar a cobertura vacinal e reduzir a morbidade associada à gripe. 4 • Identificar os fatores de resistência e pouca adesão à campanha. • Avaliar as formas de divulgação da campanha. • Compreender o entendimento da população local a respeito da vacinação. • Estabelecer uma assistência pautada no vínculo com o usuário como “humanizador” das relações interpessoais envolvidas na maximização da saúde da comunidade. METODOLOGIA A experiência em questão foi vivenciada em uma equipe do PSF situada no município de Cravinhos / SP, município de cerca de 30 mil habitantes. A equipe é a primeira do PSF no município e trabalhava há cerca de 45 dias à época da campanha, no início do processo de cadastramento. O primeiro passo, sem dúvida, foi a articulação do trabalho em equipe, uma vez que ainda não haviam se estabelecido os vínculos e compreensões necessárias para que os membros desta pudessem se reconhecer mutuamente enquanto profissionais integrados por objetivos comuns. Objetivos que só podem ser almejados quando as riquezas de suas particularidades se somam e interagem, assim engendrando uma síntese que resulta em uma capacidade diferenciada de resposta às necessidades da população. Portanto, a integração de todos na elaboração e operacionalização de um projeto comum era deveras oportuno, quiçá essencial para a consolidação do grupo. Partindo, então, da identificação da necessidade de maior enfoque na campanha, em vista da informação de que o índice de vacinação no primeiro dia desta havia sido baixo, deflagramos um processo de discussão interdisciplinar, buscando o entendimento desta necessidade e de sua importância, resignificando o processo de cadastramento e atribuindo sentido às informações coletadas e ao trabalho dos Agentes Comunitários, que assim puderam compreender a importância de sua função. Destarte, ao final da primeira semana da campanha, iniciamos um processo de diagnóstico comunitário do seu impacto sobre a população acima de 60 anos de idade cadastrada até o momento. Derivamos do cadastramento um banco de dados com informações sobre os idosos cadastrados e construímos um mapa os localizando. Elaboramos um questionário para inquérito domiciliar, objetivando a busca ativa destas pessoas e a compreensão do significado da vacina para as mesmas. Simultaneamente, capacitávamo-nos para fazer desta busca ativa momento concomitante de educação em saúde, treinando os agentes comunitários para orientar sobre a importância da vacinação, desmistificando as dúvidas e temores mais comuns. Realizamos assim visitas domiciliares aplicando o inquérito elaborado, orientando e convidando as pessoas a se vacinarem. Estabelecemos, também, a partir de então, uma monitoração da sala de vacinas para observarmos o impacto desta primeira intervenção. 5 Após análise das informações obtidas neste primeiro momento, como veremos nos resultados, observamos a necessidade de estendermos nossas ações para efetivamente atingirmos um nível satisfatório de cobertura com qualidade e humanização, definitivamente tornando equânime e acessível a vacina a todos. Para tanto, ao final da segunda semana, realizamos novas visitas domiciliares naqueles idosos que ainda não haviam se vacinado, agora também disponibilizando a vacinação no domicílio. Com estas práticas, estruturadas de maneira bastante simples, sendo perfeitamente factíveis em qualquer unidade do PSF, buscamos reorientar nossas práticas assistenciais para não só um nível diferenciado de eficiência, no caso ampliando a cobertura vacinal, mas, sobremodo, humanizando-as realmente, pela simples preocupação de oferecermos com carinho e respeito aquilo que realmente a nossa população necessita, buscando compreendê-la e adequar nosso trabalho cotidiano à sua realidade. RESULTADOS Este trabalho diz respeito aos impactos da intervenção da equipe no total de idosos cadastrados à época da campanha, que representavam 6 % da população total cadastrada. Foram identificados 82 idosos cadastrados na comunidade adscrita à unidade do PSF do município de Cravinhos / SP. A unidade, neste momento, possuía 30,5 % de toda a sua população cadastrada, pois trabalhava há apenas 45 dias. População esta, no entanto, de todo um bairro. Realizou-se visita a 100% dos identificados. Destes, 68 foram encontrados e entrevistados, 4 haviam se mudado, 5 não possuíam mais de 60 anos e 5 não foram encontrados. A população idosa cadastrada após as correções, então, correspondia a 73 pessoas, conseguindo a equipe entrevistar 93,1% desta. Destes idosos entrevistados obtivemos os seguintes resultados: 6 GRÁFICO 1: SITUAÇÃO VACINAL DOS IDOSOS CADASTRADOS AO FINAL DA PRIMEIRA SEMANA DA CAMPANHA DE VACINAÇÃO (N = 73) Desconhecida 7% Não Vacinados 45% Vacinados no 1º dia 12% Vacinados em Outro dia 36% Como se pode observar, realmente há um baixo percentual de vacinação no 1° dia da campanha (Gráfico 1). Muito da não adesão ao primeiro dia, segundo os idosos, diz respeito ao receio de que os postos estejam lotados e haja demora no atendimento. Isto pode indicar que os esforços dos serviços de saúde não devem ser todos orientados para este momento, mas articulados de forma que possa ser oferecido ao longo das semanas da campanha um atendimento de qualidade. Este percentual cresce ao longo da primeira semana, mas não atinge níveis satisfatórios, permanecendo abaixo dos 50 %. Apesar da grande maioria referir conhecimento da existência da campanha (Tabela 1), observamos que a incompreensão do significado e importância desta era significativa na população de idosos que não haviam se vacinado. Sem dúvida, a televisão é hoje o veículo com maior capacidade de atingir um grande contingente populacional, e foi o meio mais referido pelo qual os idosos souberam da campanha. No entanto, talvez as formas de veiculação da informação não estejam sendo suficientemente adequadas a toda a população. Ao menos nesta comunidade, não se mostrou o meio mais efetivo para garantir adesão à campanha, uma vez que, curiosamente, exatamente o grupo de pessoas que não haviam se vacinado a cita mais como principal fonte de informação. Outro dado curioso é o fato de que a família não se mostrou como meio convincente em relação à adesão; enquanto aqueles idosos que haviam se vacinado sequer citam os familiares como fonte de conhecimento da 7 campanha, para os que não se vacinaram este foi o segundo modo de conhecimento mais referido. Mas, para a equipe, a informação mais significativa foi perceber que no grupo populacional onde foi maior a orientação por parte dos profissionais de saúde foi maior a adesão. Sem dúvida isto reflete a importância destes profissionais no estabelecimento de adequada compreensão do significado e na aceitação das práticas de saúde propostas, não obstante os outros modos de informação. TABELA 1: VALORES PERCENTUAIS DOS MODOS PELOS QUAIS OS IDOSOS ENTREVISTADOS REFERIRAM HAVER RECEBIDO INFORMAÇÃO SOBRE A CAMPANHA (N = 68) Forma de Informação TV Rádio Cartazes Amigos Familiares Profissionais de Saúde Outro Não Sabiam Total Idosos Vacinados na 1ª Semana da Campanha 52 12 7 2 0 25 2 0 100 % Idosos Não Vacinados até o Final da 1ª Semana 65 5 2,5 5 7,5 5 0 10 100 % Total dos Idosos Entrevistados 58,5 8,5 5 3,5 3,5 14,5 1,5 5 100 % Um de nossos principais objetivos era tentar compreender que motivos levavam a não aceitação da vacinação, com isto engendrando a possibilidade de traçar futuramente estratégias que pudessem minimizar esta recusa por parte de alguns. Os resultados muito nos surpreenderam, inclusive levando-nos a uma modificação imediata de nossas estratégias. Críamos que o medo pela suposta ocorrência de efeitos adversos ou a desinformação quanto à eficácia da vacina fossem os motivos principais. No entanto, foi possível identificar que o principal fator limitante à adesão à campanha na nossa comunidade era a dificuldade de locomoção até a unidade por diversos motivos. 8 GRÁFICO 2: MOTIVOS REFERIDOS QUE LEVARAM OS IDOSOS ENTREVISTADOS QUE NÃO HAVIAM SE VACINADO AO FINAL DA PRIMEIRA SEMANA DA CAMPANHA A NÃO SE VACINAREM (N = 33) Não Deseja ser Vacinado Outro Descrença no Benefício Falta de Informações Desinteresse Dificuldade Locomoção Medo 0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% Esta informação evidencia a fragilidade da acessibilidade no sistema de saúde. Não basta simplesmente erguermos postos, é preciso práticas diferenciadas para minimizar as desvantagens destes subgrupos. Ponto este onde o Programa Saúde da Família se diferencia, servindo como ampliador deste acesso na medida em que é capaz de identificar estas necessidades e articular uma resposta satisfatória através da atenção domiciliar. Deste modo, não nos bastava mais apenas visitar para orientar a respeito dos benefícios da campanha: se desejássemos realmente garantir o acesso à vacina, agora se tornara fundamental que a disponibilizássemos também àqueles que não pudessem ir até a unidade. A identificação desta demanda e a articulação imediata de uma resposta foi ponto essencial de consolidação do significado do tipo de atenção que nossa equipe poderia desenvolver a esta população, principalmente para os Agentes Comunitários de Saúde que, membros da comunidade, puderam perceber claramente a diferença na prestação de assistência oferecida. 9 GRÁFICO 3: SITUAÇÃO VACINAL DOS IDOSOS CADASTRADOS A CADA ETAPA DA CAMPANHA (N = 73) 80% 70% 60% 50% 40% 30% Vacinados 20% Não Vacinados 10% Não Desejam Vacinar 0% Desconhecidos Cobertura Vacinal na 1ª Semana Cobertura Vacinal na 2ª Semana Cobertura Vacinal Após Vacinação Domiciliar A experiência foi promissora. Ulteriormente, analisando a cobertura vacinal em três momentos distintos – ao final da primeira semana, após a primeira intervenção e após a vacinação domiciliar – foi possível demonstrar o impacto da inserção da equipe do PSF na campanha de vacinação. Como pode ser observado no gráfico 3, ao final da primeira semana o percentual de idosos cadastrados vacinados era de apenas 48 %, com uma grande resistência daqueles que não haviam se vacinado ainda a receber a vacina. Apenas com a realização de visitas domiciliares informativas, quando esclarecemos uma série de dúvidas desta população, fomos capazes de elevar este percentual para 57 %, mantendo-se recusa irredutível à vacina em apenas 8% dos pacientes. Ainda, após a vacinação domiciliar daqueles que não podiam se deslocar à unidade, esse percentual de cobertura atingiu 74%, algo bastante significativo em comparação com os resultados da primeira semana. Estes percentuais de cobertura não consideram 18% dos idosos que, nesta segunda avaliação, não foram encontrados no domicílio, sendo considerados como com situação vacinal desconhecida. Logo, a cobertura real pode ainda ser algo maior, mas não inferior a este percentual. CONSIDERAÇÕES FINAIS Indubitavelmente, o Programa Saúde da Família é uma estratégia rica em recursos e possibilidades que o permite diferenciar as práticas assistenciais à saúde dimensionando-as em novas perspectivas de cuidado e atenção. Estas perspectivas podem, e devem, ser implementadas a partir de processos que mobilizem não somente a equipe como um todo, mas a população de um modo geral, enquanto sujeitos ativos do processo determinante da saúde da comunidade. A 10 organização adequada dos serviços, gerenciada a partir da compreensão de novos significados destes processos e práticas, ainda que através de operacionalizações simplificadas e modificações sutis no atendimento cotidiano, trarão impactos significativos ao longo do tempo na reconstrução da qualidade de vida local. Ainda, através do envolvimento de todos cooperativamente neste processo, da sensibilização e democratização do conhecimento, bem como através do cultivo de vínculos longitudinais com os usuários , nos aproximamos de concepções mais humanizadas para nosso sistema de saúde, corroborando os princípios de universalidade, eqüidade e integralidade do Sistema Único de Saúde na medida em que almejamos efetivamente praticá-los. Foram estes os resultados alcançados: mais que ampliar a cobertura vacinal de um subgrupo populacional, os idosos, através da atuação na campanha nacional de vacinação do idoso, desenvolvemos formas de cuidado humanizadas, que buscam a compreensão e adequação à realidade local não somente de forma técnica, mas afetiva, assumindo nossa responsabilidade enquanto determinante do status de saúde desses indivíduos, buscando formas não somente assistencialistas, mas que trabalhem para a transformação da comunidade na busca da melhoria de sua qualidade de vida. COLABORADORES: Maria de Lourdes A. Rezende, Selma W. Rodrigues, Sirleu J. Junior, Thalita L Ezarchi: Alunos do 5° ano do curso de Medicina do Centro Universitário Barão de Mauá. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Coordenação de Saúde da Comunidade. Saúde da família uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial. Brasília: Ministério da Saúde, 1998. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Programa Saúde da Família - PSF. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia prático do Programa Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. BRASIL. Ministério da Saúde. Grupo Hospitalar Conceição. Manual de assistência domiciliar na Atenção Primária à Saúde. Porto Alegre: Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição, 2003. MAZZA, M. M. P. R. A Visita Domiciliária como Instrumento de Assistência de Saúde. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano. Faculdade de Saúde Pública [on line]. Disponível em: <http:www.fsp.usp.br/MAZZA.htm>. Acesso em: 05 dez. 2004. MENDES, E. V. A Atenção Primária à Saúde no SUS. Fortaleza: Escola de Saúde Pública do Ceará, 2002. RICHARDSON, R. J. et al. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1999. 11 SILVESTRE, J. A.; NETO, M. M. C. Abordagem do idoso em programas de saúde da família. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 839-847, maio/jun. 2003. STARFIELD, B. Atenção Primária, equilíbrio entre necessidades de saúde, serviçostecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002. Submissão: janeiro de 2005 Aprovação: maio de 2005 OFICINA DO AFETO - UMA INTERVENÇÃO EM ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE E A CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA PSICODRAMÁTICA AFFECTION WORKSHOP – AN INTERVENTION IN PRIMARY HEALTH CARE AND THE CONTRIBUTION TO THE PSYCHO-DRAMATIC THEORY Juarez Silva Araujo Preceptor da residência em Saúde da Família da Universidade Federal de Juiz de Fora/ SUS Juiz de Fora; médico de família do SUS/ Juiz de Fora- MG. Endereço: R. Paulo Afonso Tristão, Qd. B lt. 8 Vivendas da Serra – Juiz de Fora/MG – CEP 36047-230. E-mail:[email protected] RESUMO O presente trabalho é o relato de experiência da equipe de saúde da família (ESF) do bairro Jardim de Alá, em Juiz de Fora/MG (1), iniciado em fevereiro de 2001, compreendendo micro-áreas e grupos populacionais de maior risco social. O trabalho é conduzido pelos agentes comunitários de saúde (ACS), sob a supervisão do médico e enfermeira da equipe, se constituindo em reuniões mensais com crianças de 03 a 14 anos, destinadas ao brincar livre e lanche; além de reuniões mensais com adultos acima de 40 anos, destinadas à realização de bingo e lanche. O objetivo é a construção de um recurso social de suporte a esses grupos populacionais, submetidos a maior risco social, além de buscar aprimoramento do vínculo equipe/família. Os resultados encontrados são o aprimoramento do vínculo ESF/famílias e uma percepção, pela ESF, de maior adesão dos usuários às ações de cunho preventivo. Buscando um suporte teórico, encontramos na teoria de J. L. Moreno, mais precisamente na teoria dos clusters, o respaldo à proposta e aos resultados encontrados. Concluímos: 1º) que as ações lúdicas, aplicadas pelos ACS’s são importantes ferramentas de trabalho para aprimorar o vínculo ESF e famílias submetidas a maior risco social; 2º) além das proposições teóricas, a vivência da ESF de Jardim de Alá, evidenciou a necessidade de se estudar as ações lúdicas enquanto ferramentas facilitadoras, indiretas, das ações preventivas em saúde e também como suporte psico-social. Palavras-chaves: Cuidados Primários de Saúde; Agente Comunitário de Saúde; Psicodrama; Afeto; Promoção da Saúde; Equipe de Assistência ao Paciente. ABSTRACT This study relates the experience of the Family Health Team (FHT) of the Jardim de Alá neighborhood in the city of Juiz de Fora, MG (1), beginning in February 2001, which covered micro-areas and population groups of higher social risk. The study was conducted by the Community Health Agents (CHA), under the supervision of the team’s doctor and nurse, and was carried out using monthly meetings with children from the ages of 3 to 14, involving bingo games and snacks. The objective was to build a social support resource for these population groups that are submitted to greater social risk, in addition to improving the team/family link. The findings were an improvement in the link between the FHT and the families, and the perception, on the part of the FHT, that the users of the health services improved their utilization of preventive health activities. When we looked for theoretical support, we found reinforcement in J.L. Moreno’s cluster theory for the proposal and the findings. We thus concluded: 1) games and play activities, applied by the CHAs are important tools to improve the link between the FHT and families under greater social risk; and 2) in addition to the theoretical propositions, the experience of the FHT at the Jardim de Alá demonstrated the need to study games as indirect facilitating tools of preventive health activities and also as psycho-social support. Key words: Primary Health Care; Community Health Agent; Psychodrame; Affect; Helath Promotion 2 INTRODUÇÃO A atenção primária à saúde (APS) é uma prática antiga, porém relativamente nova no campo teórico e vem, nos dias atuais, sendo largamente discutida nos meios público e privado. A APS se propõe, enquanto porta de entrada do sistema de saúde, capaz de tratar e resolver de 80 a 85% das demandas em saúde, fazer promoção e prevenção em saúde e, principalmente, estabelecer propostas de intervenção adequadas e criativas, respeitando as diferenças sócio-culturais de cada meio. A Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1978, na antiga União Soviética, lançou os princípios da APS, na conferência de Alma-Ata, como forma de fazer frente às dificuldades em saúde no plano mundial: alta mortalidade infantil, desnutrição,alta prevalência de doenças infecto-contagiosas etc., ou seja, situações para as quais, os avanços tecnológicos, de cunho assistencial, do séc. XX não se mostravam plenamente capazes de superar. Havia, portanto, a necessidade de uma abordagem ampliada do processo saúdedoença, envolvendo aspectos culturais, econômicos e sociais, para melhor compreender este processo e propor ações de saúde mais eficazes. No Brasil, na segunda metade da década de 1970, deu-se início ao movimento de profissionais da saúde que, diante de um sistema de saúde hospitalocêntrico, visava fortalecer as ações de saúde de base comunitária e de caráter preventivo. Esse movimento, chamado reforma sanitária, realizou importantes discussões na esferas acadêmica e de governo, mas notadamente nas conferências nacionais de saúde, resultando na criação do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição de1988, o qual estabelece os princípios nacionais da atenção em saúde. Mas é com a Lei 8.080, de 1990, que fica claro o modo de atenção em saúde proposto pelo SUS, no artigo 5º, inciso III: “a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada [grifo meu] das ações assistenciais e das atividades preventivas”. Nesse contexto, a APS surge no cenário nacional como um campo de trabalho bastante complexo, por ter de abordar as demandas em saúde, com toda a sua face biopsicossocial, mas cujas intervenções podem ser tão simples como prescrever um soro fisiológico nasal ou brincar com uma criança. Todas técnica e teoricamente respaldadas de preferência. Objetivando implementar essa proposta, o governo federal instituiu estratégias político-institucionais como, por exemplo, o Programa Saúde da Família (PSF), que estabelece uma equipe mínima de profissionais de saúde e de agentes comunitários de saúde 3 (ACS), responsáveis pelas ações assistenciais básicas, promoção e prevenção primária em saúde de uma área geográfica e numericamente determinada. O intuito do PSF é estabelecer diagnósticos mais realistas do processo saúde-doença da população e assim fazer propostas mais criativas e tecnicamente adequadas às necessidades dos usuários. Como diz Vasconcellos: “esta capacidade de buscar descobrir os vários fatores e as várias forças que estão por trás de cada problema é muito mais importante do que saber uma série de técnicas de trabalho comunitário e de educação” (VASCONCELOS, 1997, p. 26). 1 UMA NOVA ABORDAGEM NO PROCESSO SAÚDE/DOENÇA A área da equipe de Jd. de Alá se situa na região sul de Juiz de Fora, sendo de característica urbana e uma área de ocupação antiga. A população gira em torno de 3.100 pessoas, com 7% até os 4 anos e 13% acima dos 60 anos. O grau de alfabetização acima de 15 anos é de 94%, as condições sanitárias são bem satisfatórias e 22% da população tem plano privado de saúde. No entanto, quando olhamos por microárea (MA), constatamos diferenças importantes: as MA’s 3 e 4 apresentam 10% da população até 2 anos, a utilização de plano privado de saúde é inferior a 10%, conta com 30% das gestantes cadastradas abaixo de 20 anos e as condições de alfabetização estão abaixo do restante da área. É uma população, cujo padrão de morbimortalidade apresenta alta incidência de doenças infecto-contagiosas associada a uma alta prevalência de doenças crônico-degenerativas. Nas reuniões de equipe, os agentes comunitários das MA’s 3 e 4falavam da dificuldade de estabelecer um vínculo melhor com famílias em situação de muito risco biopsicossocial, dado o desinteresse das mesmas pelas ações de saúde, tais como puericultura e pré-natal e também pelo forte problema da permanência das crianças destas famílias em idade escolar e pré-escolar na rua, expostas aos mais variados fatores de estresse, seja familiar ou social. Nas demais MA’s, é comum os casos com indivíduos idosos, acamados, com dificuldade de acesso aos recursos assistenciais e sociais, isolamento familiar e social. Estes demandaram constantes visitas domiciliares dos profissionais de saúde, os quais se depararam com situações de quase abandono, cuidadores estressados e idosos bem assistidos e acompanhados. Mas curiosamente são os primeiros, que mais demandam atenção. Ao profissional médico, geralmente, vem a seguinte pergunta: “é preciso que eu (re)conheça aspectos sociológicos, psicológicos, culturais e comportamentais da população atendida para ‘tratar’ os problemas de saúde?” Acreditamos que a pergunta é que está errada, devemos nos perguntar aonde se insere o saber do profissional de saúde no contexto psico- 4 sócio-cultural que apresenta cada paciente e grupo social ao emergirem seus problemas de saúde. Esta é uma atitude que muda a compreensão do processo saúde/doença, como também da aplicação dos recursos preventivo/assistenciais diante de cada situação em particular, além de utilizar o princípio das APS de adequação à realidade territorial, populacional e interrelacional (DUNCAN, 2004, p. 81). Estudos científicos demonstram a forte relação entre fatores estressantes e o risco de adoecimento físico, por exemplo, em um estudo prospectivo envolvendo pouco mais de 1.000 crianças em idade pré-escolar, acompanhadas por quatro anos, foi evidenciado “que os eventos familiares estressantes estavam fortemente relacionados com as visitas subseqüentes ao médico e com a hospitalização por várias condições” (BEAUTRAIS et all, 1982, In: RAKEL et all, 1997, p. 32). O estudo acima foi baseado na aplicação da escala de eventos de Holmen e Rakel. Também o sociólogo James House é citado por Rakel ao concluir ser o fator social estressante um fator de risco tão importante quanto o tabagismo na saúde humana (RAKEL, 1997, p. 33). Já no campo biológico se sabe que fatores estressantes afetam os sistemas endócrino e imune, alterando a homeostasia fisiológica, levando à supressão na atividade de linfócitos T (imunidade celular), pois “estudos mostram que a ansiedade é o mediador emocional primário de alterações do sistema neuroendocrinológico e neuroimunológico que afetam o resultado para a saúde” (RAKEL, 1997, p. 42). Certamente que não devemos considerar a ansiedade como algo patológico, pois assim como a febre está para a infecção, é apenas o sinal de uma reação que busca recursos para a resolução dos problemas estressantes. Estes recursos acima podem ser endógenos, ou seja, ligados à condição intrínseca (psique) do indivíduo e exógenas ou sociais, também chamados psicossociais, que se dividem em culturais, religiosos, educacionais econômicos, ambientais e aqueles ligados ao sistema de saúde. As formas de apoio social podem variar de acordo com idade, sexo, nível sócioeconômico e cultura, mas de qualquer forma são importantes recursos para a saúde do indivíduo. Segundo Ruberman “...pacientes socialmente isolados e com alto grau de fatores de estresse possuíam risco de morte quatro vezes maior do que aqueles com bom apoio social” (RAKEL, 1997, p. 47). 2 OFICINA DO AFETO – A CONSTRUÇÃO DE UMA PROPOSTA DE TRABALHO A partir dessa discussão e usando um princípio popular “que prato quente se toma pelas bordas”, decidimos iniciar, em fev/2001, uma ação de trabalho com as crianças das 5 MA’s 3 e 4 que permitisse outra forma de relação entre equipe do PSF e comunidade, não apenas baseados em ações pré-estabelecidas, mas buscando, de início, aproximação e reconhecimento mútuo. A proposta foi de brincar com as crianças uma vez por mês, às sextasfeiras, de manhã e à tarde, na faixa etária até 14 anos, utilizando brincadeiras de roda de cunho integrativo em um primeiro momento, seguidas por pintura e colagem e um lanche final, tudo com duração de, mais ou menos, 2 horas e 30 minutos. Nosso intuito inicial de trabalhar com o brincar era de inserir, em momento oportuno durante o trabalho, elementos educativos e sanitários e chegar até aos pais dessas crianças; mas, com pouco tempo, ficou claro ser o espaço do brincar livre algo que deva existir por si, a partir de um contrato firmado entre a equipe e as crianças, ou seja, qualquer trabalho de cunho pedagógico ou sanitário deveria ocorrer em outro espaço e momento. As nossas dúvidas sobre o real valor de gastar nosso tempo, apenas uma vez por mês, para acompanhar crianças a brincar e depois lhes dar um lanche, foram se dissipando na medida em que as próprias crianças demonstravam profundo respeito com aquele “compromisso” e vivo entusiasmo, impedindo que o desânimo que regularmente nos abatia, por razões outras, interrompesse o trabalho. Nas reuniões com a comunidade era também questionado o valor de se reunirem crianças para receber lanche uma vez por mês e, nesse contexto, foi fundamental a figura do profissional médico ou enfermeiro, enquanto força social, defendendo o trabalho. Posteriormente, em maio de 2003, a equipe decidiu investir seu tempo no 2º grupo identificado, que era formado pelos idosos e adultos acima de 40 anos, isolados em seus domicílios e comunidade. Foi proposta uma atividade lúdica, simples, de aplicação regular (uma vez por mês) que se constituiu em um bingo, onde os próprios freqüentadores traziam as prendas (prêmios) e o lanche final. Coube aos ACS’s organizar data, hora, local, avisar aos interessados, dar suporte formal de operacionalização e, no local, organizar o lanche, acolher as crianças e adultos e ... trocar afeto. Certamente que uma proposta com forte carga afetiva e acolhedora como esta, ou seja, sem um anteparo intelectual ou moralizante, mobiliza muitos conteúdos da psique dos usuários e dos profissionais. Isto foi outra dificuldade quando se enxergava nitidamente nos desenhos, pinturas ou atitudes dos indivíduos um forte conflito psíquico. Nestes casos, mantivemos o contrato da Oficina do Afeto, não nos autorizando a propor intervenções a partir destes “achados”. Baseado em que tomamos esta decisão? Certamente contávamos já com um recurso técnico assistencial na unidade básica de saúde e também “sentíamos” que o 6 trabalho, por si só, tinha uma ação terapêutica e não devíamos quebrar o acordo firmado. Mas nos faltava, ainda, o argumento intelectual ou teórico. 3 TEORIA PSICODRAMÁTICA – UM ENCONTRO TEÓRICO VIVENCIAL O Psicodrama é um conjunto teórico baseado nas questões relacionadas do ser humano, desde o nascimento nas relações com mãe, pai, irmãos, local de nascimento, animais, objetos, etc., passando pela vida onde outras relações se estabeleceram (professores, colegas de sala, namorados, patrão, empregado(a), esposo, filhos). Há uma atenção, portanto, nos papéis que assumimos durante nossa existência e nos problemas de ordem relacional que podemos apresentar ao assumir este ou aquele papel. Bustos se propõe em um de seus livros a tentar “transmitir ao leitor alguns parâmetros que permitam compreender o ser humano sob uma perspectiva descentralizada do patológico com todas aquelas dinâmicas que se encontram nas zonas obscuras, não caracterizáveis entre os quadros clássicos, mas que reflitam os ângulos do sofrimento humano. Isto é, que nos centremos nesse equilíbrio instável chamado normalidade” (BUSTOS, 2001, p. 108). Esse estudo vai do esforço que se faz ao nascer, passando pela aquisição dos papéis psicossomáticos que refletem condições biológicas como ingerir alimentos, urinar e defecar; chegando aos papéis denominados psicodramáticos que dizem respeito ao aprendizado das várias possibilidades de funcionamento social. É bom aqui citar um aspecto fundamental da teoria moreniana, que é a espontaneidade, tida como uma função vital e central do ser humano que é, por sua vez, submetida às regras sociais apreendidas, tal qual um filho. “Sem este filtro que contém as regras consideradas desejáveis de uma sociedade a espontaneidade seria apenas espontaneísmo” (BUSTOS, 2001, p. 114). A angústia que vivemos nessa instância é que nos permite a aquisição de valores, idéias e a capacidade criativa. Portanto, o psicodrama fala da construção da personalidade humana no âmbito relacional, tendo a espontaneidade um papel central que, submetido à filtragem das regras sociais, irá constituir “a função egoica de adequação a qual Moreno se refere como uma qualidade de espontaneidade” (BUSTOS, 2001, p. 114). Por definição, esse conjunto de pessoas, locais, objetos e etc, onde fazemos todo esse processo, é denominado lócus nascenti, é nele que desenvolvemos a base de nossa personalidade, como em uma placenta social ou matriz de identidade, responsável pelas 7 primeiras formas de aprendizagem da criança. A inter-relação da criança com os vários elementos dessa matriz fará, no âmbito da identidade, a adoção infantil de papéis em duas funções: dador (dar papéis) e recebedor. Há todo um aquecimento e cadeia de eventos no indivíduo que “desenvolvem um certo grau de coerência interna” (MORENO, 1975, p. 112) e “... gradualmente, uma certa e recíproca expectativa de papéis nos parceiros dos processos. Essa expectativa de papéis cria as bases para todo o intercâmbio futuro de papéis entre a criança e os egos auxiliares” (MORENO, 1975, p. 113), estes últimos representados pelos pais, irmãos, demais parentes e professores. Moreno atribui a essa ação conjunta a base do desenvolvimento emocional da criança e, na medida em que há o amadurecimento da criança ainda dentro da matriz de identidade, haverá uma menor dependência dessa em relação ao ego auxiliar, que por sua vez “assiste à criança na formação de seus próprios papéis” (MORENO, 1975, p. 114). Rojas-Bermudes nos diz que quanto mais rico em papéis for a matriz de identidade, mais tempo ela levará para se dissolver (ROJAS-BERMUDES, 1970, p. 112). Bustos, autor psicodramatista, nos fala que os papéis relacionados ao ser criança/cuidada, ou seja, depender do outro, é fundamental no desenvolvimento da vida adulta de acordo com a ternura e do como se faz a ação. Diz o autor que “... a capacidade de sentir e aceitar carinho é essencial para a construção das relações de intimidade” (BUSTOS, 2001, p. 118). Refinando mais nosso conhecimento sobre a aquisição ou aprendizados de papéis, sabemos que estes se agrupam respeitando um movimento próprio de cada momento de vida. Esse agrupamento ou ramificações, também chamado “clusters” são denominados: “cluster” um ou materno, “cluster” dois ou paterno e “cluster” três ou fraterno. O cluster materno responde pela condição de vulnerabilidade e aprender a depender. A este cluster está condicionada a auto-estima. Cluster paterno é aonde aprendemos quais são os nossos limites e necessidades, é o momento de buscar a auto-afirmação. O terceiro cluster, também chamado de fraterno, é dos três o único que se caracteriza por relações simétricas e é onde se desenvolve a grande parte dos papéis da idade adulta. Importante salientar que as denominações materno, paterno e fraterno não necessariamente correspondem aos genitores e irmãos de sangue, e sim aos que desempenham essas funções O trabalho proposto de forma lúdica, por si só configura, em parte, uma relação assimétrica entre os profissionais e os usuários, que são guiados nas brincadeiras e alimentados, o que acreditamos correlacionar-se com os clusters materno e paterno que se desenvolvem nas fases iniciais da matriz de identidade, aonde o bebê se encontra dependente 8 da mãe e pai ou de quem faça esses papéis. Bustos nos fala ser a ternura a confluência dos sentimentos primariamente ligados às sensações dessa fase de extrema vulnerabilidade. Afirma o mesmo autor que “substituir a ternura pela eficiência dos cuidados deixa marcas indeléveis, essa pessoa tenderá a automatizar as relações afetivas” (BUSTOS, 2001, p. 118), além do que é a fase em que desenvolvemos nossa auto-estima. Na construção do cluster materno se insere o princípio do prazer em relação à alimentação e aos cuidados básicos e, segundo Bustos, “permanecerá como uma tela de fundo... presente nos diferentes aspectos da vida, desde fazer amor até realizar um trabalho ou cumprir com uma obrigação” (BUSTOS, 2001, p. 119). Um importante e saudável aprendizado dessa fase é a admiração e a gratidão aonde o reconhecimento do bem que se recebe e de seus aspectos positivos ou, como diria Bustos, “reconhecer a fonte de amor, conhecimento etc., permite-me dar-lhe minha reprodução sem sentir que destruo a fonte de meu crescimento” (BUSTOS, 2001, p. 130). Mesmo havendo uma relação de dependência, que não se confunda com super proteção, o cluster materno é onde construímos as nossas relações de prazer com a vida, ternura, intimidade, gratidão e reconhecimento. No cluster paterno a criança que começa a engatinhar, andar e pegar objetos, caminha no sentido da sua autonomia e de suas escolhas, porém, sendo acompanhada pelos pais ou quem exerça esse papel, que dita limites e normas direcionadoras das ações. Enquanto no cluster materno as necessidades se referem a uma única pessoa, no segundo cluster existe a possibilidade da escolha de um outro indivíduo, que a criança “elege para algo específico”. Isto possibilitará à criança identificar, dar nomes e administrar suas necessidades; fazendo sua passagem para a aquisição de sua auto-confiança, porém amparada pelo ego-auxiliar chamado pai. Assim como no cluster materno, o paterno se caracteriza por uma relação assimétrica entre pai/mãe e o filho. É a assimetria protetora (BUSTOS, 2001). O terceiro cluster, ou fraterno, fala das relações entre “iguais” ou simétricas, ou seja, se ao dar um tapa em seu pai a criança é repreendida e educada de forma mais cuidadosa, neste grupo de papéis as relações se caracterizam por um “toma-lá-da-cá”, isto é, ao dar um tapa a criança receberá outro tapa em troca. Aqui a criança aprenderá a compartilhar, desde que abra mão da fantasia de que “tudo é meu”, e siga no sentido de doar aquilo que tem para o bem comum (BUSTOS, 2001). Na Oficina do Afeto, acreditamos que esses aspectos se encontram nas trocas dos usuários entre si, ou seja, durante as brincadeiras, acordos firmados, desacordos ocorridos, preparação do bingo; ou seja, nas relações entre iguais. 9 CONCLUSÃO Ao longo desse curto trajeto vieram dúvidas e questionamentos sobre os resultados práticos desse trabalho, mas em momento nenhum se perdeu a forte emoção e o encantamento advindo dele. Para tanto, colocamos os relatos de ACS’s: o primeiro, cujo acesso a um grupo de famílias residentes em um terreno único, e submetidas a importante risco biopsicossocial, não se conseguia há quase um ano. Ocorreu durante uma tarde, em que começava a chover e a agente de saúde foi chamada pelo seu nome por uma criança, convidando-a a se proteger da chuva. A impressão da agente foi um misto de felicidade e insegurança: “...quando entrei no barraco de teto baixo e escurecido pelas janelas fechadas, as crianças me receberam com muita alegria, enquanto os adultos me olhavam desconfiados”. Foi só a partir desse momento que a equipe de saúde da família teve seu acesso franqueado a este grupo de famílias, prestando atenção em puericultura, pré-natal e visitas domiciliares. O segundo fala do encontro de três senhoras no bingo que ali passaram a se conhecer, apesar de viverem, cada uma, há vários anos, na mesma rua. Relata a ACS: “...é muito engraçado ver as três de braços dados, juntinhas, não se soltando nem para passar pela porta”. Acreditamos nos princípios populares e na sabedoria popular sendo visitados pelo meio acadêmico, no intuito de estabelecer uma comunicação tão clara quanto possível. Cabe a nós, profissionais de saúde em APS, buscarmos no “mundo acadêmico” as bases e conhecimentos teórico-práticos que melhor traduzam nossas impressões, como também as melhores ferramentas para construir/criar os instrumentos mais adequados às intervenções no nível da APS. A teoria psicodramática, por nós levantada, vem da vivência de Moreno, um médico, que dentre outras ações, atuou com grupos marginalizados no nível básico de saúde em seus primeiros anos de profissão (refugiados de guerra do Tirol e prostitutas), trazendo em si um fundamento básico da APS: a adequação da atenção diante do conflito, ou seja, a prática recriando a teoria e nossas relações. Acredito ser o psicodrama, uma das ferramentas possíveis para sustentar o potencial criativo da APS, e dar uma estrutura teórica às nossas ações e, inclusive, à proposta da Oficina do Afeto discutida nesse trabalho. Haja visto que uma das dificuldades do profissional de atenção primária é o pequeno arcabouço teórico, próprio à APS, frente à complexidade do meio social em que atuamos. Entendemos que o espaço da Oficina do Afeto recria o lócus nascenti, onde encontramos a matriz de identidade, permitindo ao usuário, através da fantasia, rematrizar suas relações e papéis apreendidos. Acreditamos também ser o ato de cuidar, amparar, alimentar, trocar, jogar e compartilhar promovido pelos agentes comunitários de saúde em 10 reuniões periódicas, feita em uma proposta não intervencionista, mas centrada nos aspectos lúdicos, uma forma ou recurso a ser oferecido ao usuário e utilizado pelo indivíduo no desenvolvimento saudável dos aspectos de dependência, prazer, segurança, auto-determinação e fraternidade, oferecendo, em última análise, uma oportunidade destes serem reatualizados. Certamente que falo daqueles indivíduos “normopatas”, ou seja, ainda não incluídos em uma categoria diagnóstica psicopatológica, pois estes últimos, ainda que se beneficiem, demandam um processo psicofarmacoterapêutico específico. Finalmente, concluímos que esta forma de abordagem, sendo utilizada pelos agentes comunitários de saúde, terá a característica de fortalecer o vínculo da equipe do PSF e a comunidade, importante e, se não, principal fator no trabalho em APS, pois não é por acaso que o trabalho foi batizado de Oficina do Afeto. NOTA Este trabalho é fruto da indignação, interesse, dedicação e afeto dos agentes comunitários de saúde da equipe de saúde da família de Jd. Alá/Juiz de Fora/MG, que sustentam a prática de forma seqüenciada e responsável. Infelizmente, lhes falta o aprendizado teórico suficiente para traduzir a sua prática em uma linguagem acadêmica. A mim coube essa tarefa e espero ter sido, no mínimo, um bom “tradutor”, para estar a altura de ARINDA A. DOS SANTOS ROSA, MARIA CRISTINA TAVARES CARVALHO, MARIA STELA APARECIDA TEODORO, MARINA A. TAVARES DA SILVEIRA, REINALDO SILVEIRA SANTIAGO e VALERIA CRISTINA TEODORO. Agradeço também à enfermeira WILMA LÚCIA P. R. B. REZENDE, que mesmo chegando “depois”, colocou seu coração e sua cara neste trabalho, demonstrando sensibilidade e respeito humano incomparáveis. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 20 set. 1990. BUSTOS, D. M. Perigo amor a vista: drama e psicodrama dos casais. 2. ed. São Paulo: Alesh, 2001. DUNCAN, B. B. Medicina ambulatorial. Porto Alegre: Artmed, 2004. MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1975. RAKEL, R. E. Tratado de medicina de família. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1997. 11 ROJAS-BERMUDEZ, J. G. Introdução ao psicodrama. São Paulo: Mestre Jou, 1970. SANTOS, S. M. P. Brinquedoteca: o lúdico em diferentes contextos. Petrópolis: Vozes, 1998. VASCONCELLOS, E. M. Educação popular nos serviços de saúde. São Paulo: Hucitec, 1997. Submissão: novembro de 2004 Aprovação: março de 2005 Com a palavra os parceiros da Revista APS Entrevista com a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – SBMFC, com a Rede de Educação Popular em Saúde – REDEPOP e com o Núcleo de Assessoria, Treinamento e Estudos em Saúde, da Universidade Federal de Juiz de Fora NATES/UFJF. A entrevistada da SBMFC é Maria Inez Padula Anderson, médica de família, presidente da SBMFC, professora da UERJ. A entrevistada da REDEPOP é Helena Maria Scherlowski Leal David, professora adjunta da Faculdade de Enfermagem da UERJ. Desde 2004 na coordenação da REDEPOP, é enfermeira e sanitarista, doutora em Saúde Pública pela ENSP/FIOCRUZ. Trabalhou com movimentos populares e com formação de Agentes Comunitários de Saúde em Petrópolis, entre 1979 e 2001, e com ensino, pesquisa e extensão voltados para o campo da Educação Popular e Saúde. Contou com a colaboração de alguns membros da REDEPOP: Eduardo Navarro Stotz, Julio Alberto Wong-Um, e Maria Waldenez de Oliveira. As entrevistadas do NATES são: a) Estela Márcia Saraiva Campos, enfermeira mestre e doutoranda em Saúde Coletiva. Atualmente, membro da equipe técnica do Núcleo de Assessoria, Treinamento e Estudos em Saúde – NATES, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Sua experiência profissional acompanha o processo de construção do SUS, através da participação na organização e desenvolvimento de iniciativas loco-regional, com vistas a sua implementação. De início, sua atuação esteve direcionada para o serviço, trabalhando em setores da gestão municipal e regional, através do antigo INAMPS. A partir da década de 90, passou a participar da elaboração e execução de estudos e projetos de apoio ao processo de descentralização e de formação de recursos humanos para o SUS, apoiado na integração ensino-serviço; b) Maria Teresa Bustamante Teixeira, é médica, doutora em Saúde Coletiva –IMS/UERJ, coordenadora do Núcleo de Assessoria, Treinamento e Estudos em Saúde – NATES, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e professora adjunta do Departamento de Saúde Coletiva nesta Universidade. 1) Em linhas gerais, fale sobre sua organização. SBMFC - A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade é uma entidade de cunho eminentemente científico, comprometida com o desenvolvimento da Medicina de Família e Comunidade (MFC) enquanto especialidade médica, cujo foco primordial é a Atenção Primária à Saúde (APS). Sua fundação foi em 1981, quando a embrionária Medicina de Família e Comunidade no Brasil ainda se chamava Medicina Geral Comunitária, e já prenunciava uma história de mudanças no âmbito da saúde no Brasil, no sentido da reorientação do modelo assistencial, cujo marco inicial foi a implantação de programas pioneiros de Residência em Medicina Geral Comunitária ou de Medicina Integral como eram então reconhecidos. Programas estes que inspiraram projetos outros de medicina comunitária que, bem ou mal, resistiram e andaram na contramão das políticas de saúde adotadas por tanto tempo neste país e que resultaram finalmente na constituição de um modelo de atenção caótico, infelizmente, bastante conhecido de todos nós. Mas não tem sido fácil nossa caminhada. Até bem pouco tempo, poucos tiveram coragem e discernimento suficientes para apoiar as iniciativas da SBMFC. Felizmente este quadro vem se revertendo a olhos vistos. Depois de anos de luta, a SBMFC tornou-se filiada à Associação Médica Brasileira (AMB). Além disso, constitui a entidade representativa da especialidade junto à Confederação IberoAmericana de Medicina Familiar (CIMF) e à Organização Internacional dos Médicos de Família (WONCA). Por outro lado, o quadro social está em franco crescimento e com estabelecimento de parcerias públicas e privadas. Particularmente, com o apoio da atual gestão do MS tem sido possível realizar eventos de grande porte, como os Congressos Brasileiros de Medicina de Família e Comunidade e, em conjunto com a AMB, a realização de Provas para obtenção de título de especialistas, que representam uma oportunidade, sobretudo para os colegas que ingressaram no “Saúde da Família”, ainda sem formação específica na área. REDEPOP - A Rede de Educação Popular e Saúde – REDEPOP – como tem sido chamada, é um espaço que articula pessoas da área acadêmica, de movimentos sociais, profissionais de saúde, estudantes, entre outros, interessados em compartilhar reflexões, experiências, trocar e debater idéias, na perspectiva de fortalecer as práticas de Educação Popular e Saúde no SUS e nos espaços diversos do cuidar e do enfrentamento dos problemas de saúde. Não é uma organização com características institucionais. É antes um espaço fluido, de vivências afetivas, de provocação à reflexão. Uma rede, cujo pensar e fazer acontecem em três eixos: o político, na luta pela transformação das relações de desigualdade e opressão; o ético, pelo cuidado e o respeito aos modos de viver e pensar de pessoas e grupos; e o estético, pela valorização das expressões da arte e da cultura popular, da recriação da beleza e da emoção na produção de saberes e relação entre as pessoas, pelo reconhecimento das expressões de espiritualidade e religiosidade popular. A Rede existe há vários anos, tendo se originado dos espaços de confluência de movimentos como o MOPS (Movimento Popular de Saúde) e de profissionais da área da atenção e dos espaços acadêmicos, ainda nos anos 80. Desde então vem se fortalecendo aos poucos e ganhando visibilidade tanto no mundo da produção acadêmica quanto nos diversos movimentos de luta por um projeto democrático e público de saúde. A Oficina ocorrida no Rio de Janeiro, em 1998, foi um dos marcos para a conformação do atual rosto da Rede. Mais recentemente, as possibilidades de troca entre pessoas vivendo em lugares tão distantes entre si ampliou-se pela mediação da Internet e pela nossa lista de discussão, que existe desde 1999, e que no momento conta com 580 participantes. Temos um site (www.redepopsaude.com.br) onde é possível encontrar informações e textos sobre a rede e sobre a temática da Educação Popular e Saúde. Editamos, também, um Boletim - “Nós da Rede” - , impresso, mas que pode ser consultado também no site da Rede. Em 2001, publicamos um livro escrito a várias mãos pelos membros da Rede: “A saúde nas palavras e nos gestos”, organizado pelo Eymard Vaconceloas, editado pela HUCITEC/ABRASCO. Além disso, há uma crescente produção de conhecimento neste campo, por meio de trabalhos acadêmicos – teses, dissertações, publicações, monografias, boletins. Nestes anos, realizamos dois encontros nacionais, além de reuniões e oficinas presenciais regionais ou nacionais, articuladas com eventos da área da saúde coletiva e outros. Hoje fazemos parte do GT de Educação Popular da Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva – ABRASCO, com atividades pautadas nos seus eventos científicos. Mais recentemente, a Rede apoiou a estruturação da ANEPS – Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde, com núcleos estaduais e uma executiva nacional, criada com o suporte da Coordenação de Ações de Educação Popular e Saúde da DEGES/SGTES/MS, sendo José Ivo Pedrosa, também oriundo da Rede, o responsável por esta Coordenação. A ANEPS conta, em nível nacional, com a participação dos seguintes grupos: MST, MMC, MORHAN, CONTAG, MOPS, Executivas dos Estudantes da Saúde, Projeto Saúde e Alegria/GTA e Rede de Educação Popular e Saúde. A ANEPS é uma proposta de fortalecimento dos movimentos que fazem Educação Popular, em nível estadual e local, na perspectiva de que os conceitos e pressupostos de ação com que trabalhamos possam estar cada vez mais sendo debatidos e servindo de ferramenta para a participação popular em saúde, dentro dos espaços do SUS e de controle social e em outros mais. A Rede é, assim, uma espécie de “mãe” da ANEPS. NATES/UFJF - O NATES é um núcleo acadêmico da UFJF que trabalha com assessoria, treinamento e estudos em saúde, sendo o campo da saúde coletiva o eixo ordenador de seu processo de trabalho, pautado no multiprofissional e na interdisciplinaridade. Sua fundação, em 1997, se deu a partir de um grande projeto voltado para uma micro-região de saúde da Zona da Mata em Minas Gerais, que incluiu construção e equipamento de sete Unidades Básicas de Saúde em municípios que não contavam com essa estrutura, estudos e treinamentos de profissionais de saúde, tendo como eixo a APS. O núcleo agrega professores, profissionais de saúde e alunos de graduação dos cursos da saúde, sendo um espaço de integração das profissões e instituições acadêmicas e de serviços de saúde. 2) Fale sobre a missão e os objetivos de sua organização. SBMFC - A SBMFC vem procurando intensificar a visibilidade e ressaltar a importância da APS e da MFC, sobretudo em face do atual processo de reorientação do modelo assistencial no Brasil. E sabe que para a implementação de uma reforma consistente é necessário apoiar os profissionais envolvidos diretamente com a prestação de serviços, cooperar no campo da elaboração e implementação de políticas e auxiliar, no que couber, os gestores, mormente, no âmbito dos sistemas locais de saúde. Tendo em vista o amplo espectro de sua missão, a SBMFC tem procurado privilegiar os seguintes objetivos: (a) participação em fóruns nacionais e internacionais de discussão do interesse da APS/MFC; (b) participação, apoio e promoção de eventos científicos a exemplo de Jornadas, Seminários e Congressos envolvendo a especialidade; (c) estabelecimento de canais de comunicação e intercâmbio com entidades congêneres; (d) representação da especialidade junto à AMB, Conselho Federal de Medicina (CFM), Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), Secretarias de Estado e Municipais de Saúde, Ministério da Saúde, Federação Nacional dos Médicos (FENAM), Direção Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM) e outros órgãos; (e) divulgação da especialidade através da mídia; (f) manutenção de lista de discussão e estímulo à troca de experiências na especialidade; (g) divulgação de informações técnicas e científicas; e (h) publicação de artigos técnicos e da Revista Brasileira de MFC. REDEPOP - A Rede não possui uma missão elaborada nos moldes institucionais tradicionais, mas, ao longo dos anos, foi estruturando formas de pensar e jeitos de fazer, que nos colocam a missão de fortalecer os espaços de participação popular e de vocalização de demandas e necessidades da população, de estabelecer um compromisso dos profissionais com as lutas populares pela saúde e de respeitar valores e saberes das culturas dos diversos grupos populacionais deste imenso Brasil. Nossos objetivos, hoje, se referem à ampliação dos espaços de prática de Educação Popular no SUS, à divulgação dos saberes elaborados pelos que participam da Rede, via publicação em moldes acadêmicos e outras formas de produção de conhecimento, incluindo a produção artística, e ao fortalecimento das relações entre técnicos e população com base no respeito mútuo e na construção compartilhada do conhecimento sobre saúde. NATES - O NATES tem como objetivo o desenvolvimento de recursos humanos e de pesquisas na área da saúde, principalmente para o SUS, tendo como eixo de abordagem a Saúde Coletiva e a Atenção Primária à Saúde. Destacamos como missão: a) apoiar o processo de consolidação do SUS; b) apoiar a organização de Sistemas Locais de Saúde, em especial a estratégia de Saúde da Família; c) consolidar a integração ensino-serviço-comunidade; d) apoiar e desenvolver programas de educação continuada e permanente para os profissionais de saúde, principalmente no nível da atenção primária à saúde; e) formação na pós-graduação latu-sensu, especialmente de Saúde da Família e Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde; formação na pós-graduação stricto sensu, apoiando o Programa de pósgraduação em Saúde Coletiva da UFJF, na titulação de docentes visando implantar o Mestrado em Saúde Coletiva; f) desenvolvimento de metodologias de acompanhamento e avaliação de serviço. Além disso, abriga projetos inovadores que fortalecem a APS. 3) Sabemos que existem concepções diferentes sobre a APS. Com qual concepção de APS sua organização se identifica? SBMFC – Há, de fato, muitas concepções de APS. Algumas, sintonizadas com estratégias de natureza neoliberal e inspiradas em protocolos e recomendações de agências do porte do Banco Mundial, são adotadas com o propósito de reduzir gastos governamentais. Constituem verdadeiros pacotes assistenciais restritivos, oferecendo uma cesta básica de cuidados pobres, cujo foco são os extratos carentes de países e regiões, sobretudo aqueles mais pobres. Nesta lógica, há versões que apregoam a falsa idéia que é simples promover, proteger e recuperar a saúde individual e coletiva no nível da Atenção Primária, bastando aplicar medidas igualmente simples para resolver as questões atinentes à saúde. Os casos considerados “complexos” seriam encaminhados para os centros de referência, onde os especialistas, valendo-se do uso intensivo de “tecnologias complexas”, tratariam com competência os doentes. Mormente nos hospitais. Todos sabemos até onde este conceito nos leva. A SBMFC não compactua com tais proposições. Identifica-se com uma concepção muito diferente que, inspirada na experiência e em modernas ciências da complexidade, entende que não é simples ou fácil promover, proteger e recuperar a saúde. Numerosas variáveis interagem no processo saúde-doença, por isso mesmo não basta fazer o diagnóstico de uma doença para cuidar de um paciente, assim como não basta identificar o padrão epidemiológico para cuidar da saúde de uma comunidade. Para tanto, é necessário trabalhar com a lógica da integralidade, com o paradigma biopsicossocial, com a individualidade dos processos. E isto não admite improvisações, exige qualificação. Tal complexidade exige, enfim, prática e saber. Poderíamos dizer, então, que Atenção Primária à Saúde é o nível do sistema que, desenvolvido com qualidade, tem alto grau de resolutividade para atender às demandas e necessidades de saúde de cerca de 85% de uma população. Para cumprir tais objetivos, a APS, tal como a entendemos, baseia-se nos princípios da integralidade do cuidado, no estabelecimento do vínculo, na abordagem da pessoa, sem discriminação de sexo ou faixa etária e independentemente dos problemas de saúde que apresenta. Deve, neste contexto, responsabilizar-se pelo desenvolvimento de práticas eficazes de promoção, proteção, tratamento e recuperação da saúde, seja no nível individual, seja no coletivo, visando o desenvolvimento pleno da vida e da qualidade de vida da população a qual assiste. O foco da atenção e das ações em saúde é o indivíduo e sua família e a comunidade na qual estão inseridos. Neste sentido, ainda que determinado paciente necessite de acompanhamento em outros níveis do sistema, a APS continua com a função precípua de coordenar o cuidado em saúde, visando manter a integralidade da atenção. REDEPOP - A Rede tem se identificado com o fazer educativo que se baseia no diálogo e na troca, rompendo com os modelos prescritivos de educação, que tornam a população objeto, e não sujeito do processo pedagógico. Partimos do pressuposto de que não há um saber único e verdadeiro sobre a saúde, e de que as pessoas da população também produzem um conhecimento e uma explicação sobre os processos de saúde e doença que precisam ser valorizados para a construção de um projeto democrático de saúde. Para isso, é preciso lançar mão de uma qualificação deste fazer educativo, pelo uso e divulgação de metodologias participativas que estimulam a criatividade e o crescimento pessoal e coletivo. A educação é vista não como um fim, mas como uma mediação importante para a transformação das relações sociais de opressão e subalternização de determinados grupos. A concepção pedagógica libertária de Paulo Freire é o exemplo mais próximo dos jeitos de fazer educação presentes na Rede, e destacamos, também, a contribuição teórica e metodológica de pensadores como Oscar Jará, Juan Bordenave, Victor Valla e Eymard Vasconcelos. Acreditamos que a Educação Popular, como concepção educativa em saúde, pode se constituir em um eixo condutor para ações de Atenção Primária à Saúde, em espaços diversos, como nas equipes de Saúde da Família, Unidades Básicas de Saúde, no trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde integrados ao saber produzidos nos movimentos e ações dos grupos da Sociedade Civil. NATES - Ao trabalhar a APS como eixo ordenador de nossas atividades, a entendemos a partir de uma visão sistêmica, ao representar o nível primário da rede de serviços de saúde, o que implica a articulação da APS dentro de um sistema integrado de serviços de saúde. Funciona como a porta de entrada do sistema, propondo um modo de organização e funcionamento baseado nas necessidades da população, buscando a resolutividade dos problemas mais comuns de saúde. Vemos como princípios norteadores da APS: a Universalidade; os serviços de saúde o mais próximo possível da população; o uso de tecnologia adequada e cientificamente comprovada; o trabalho em equipe; a criação de vínculo com a família e a comunidade, oportunizando o diálogo para a definição das necessidades de saúde; a utilização dos recursos da comunidade e a co-responsabilização no cuidado de saúde. Trabalhar com a concepção positiva da saúde exige a prática das parcerias e articulações entre os setores/agentes/organizações da população e/ou públicas, objetivando a saúde que, ao nosso ver, é a concretização da falada intersetorialidade. 4) O que levou sua organização a fazer a parceria com o NATES/UFJF para a edição da Revista APS? SBMFC - Em primeiro lugar, esta parceria representa um reconhecimento da importância e da qualidade da Revista APS que, de fato, veicula artigos e aborda questões do maior interesse para a Medicina de Família e Comunidade, contribuindo para a atualização dos especialistas e familiarização dos demais médicos envolvidos com o Saúde da Família que se dispersam na imensidão deste Brasil desigual. Além disso, representa um caminho de mão dupla, permitindo a abertura de um amplo canal de comunicação entre a Medicina de Família e o conjunto das especialidades e disciplinas da área da saúde com interesse na APS. Representa, portanto, uma oportunidade a mais para a intensificação do diálogo entre os atores deste nível de prestação de cuidados de saúde, também reforçados com a presença, nesta parceria, da Rede de Educação Popular em Saúde. Para além desta parceria, é intenção e meta da SBMFC incrementar sua produção científica, continuando o investimento em outras publicações de interesse da especialidade, como é o caso da Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. REDEPOP - Para nós, esta parceria representa a possibilidade de construir novos espaços de diálogo e de troca com entidades que também vêm pensando um projeto público de saúde, ampliando a divulgação do conhecimento sobre educação popular e saúde. Acreditamos que é preciso socializar mais o debate sobre educação como mediação para a transformação das relações entre profissionais e população, em todos os níveis do Sistema Único de Saúde e, em especial, na Atenção Básica, e acreditamos que a Revista será um espaço importante para isso. NATES – O fortalecimento de nossa publicação, em seu oitavo ano, nos fez desejar trabalhar junto com outros grupos que acreditam que a APS é uma estratégia importante para a plena implementação do SUS e para uma atenção à saúde de qualidade e se concretizou nesse primeiro número da parceria. A construção de parcerias tem como propósito potencializar o desenvolvimento de estudos, reflexões e discussões na área da Atenção Primária à Saúde, consolidando a produção científica através da Revista APS. 5) Você gostaria de complementar alguma informação ou enviar alguma mensagem para os leitores da Revista APS, finalizando essa entrevista? SBMFC - A mensagem é de esperança, entendendo que esta iniciativa pode representar mais uma oportunidade de diálogo, ensino e aprendizagem. Vale ressaltar, também, a importância de ser um veículo de registro e troca de experiências, aberto a todos os profissionais envolvidos com a prática da APS, incentivando, desta forma, a produção científica de quem faz a Atenção Primária à Saúde em nosso país. REDEPOP - A Rede é um espaço com as portas permanentemente abertas. A forma que mais tem contribuído para a chegada das pessoas à Rede é a nossa lista de discussão, pela capacidade da Internet de romper as barreiras das distâncias físicas. O e-mail para inscrever-se é http://br.groups.yahoo.com/group/edpopsaude/join. Gostaria aqui de deixar um convite a todos para acessarem nossa homepage, que também é um espaço de divulgação de textos sobre Educação Popular e Saúde (www.redepopsaude.com.br), e também para estar conosco, sendo mais um dos muitos de nós da Rede. Outras listas de discussão foram se formando pela confluência de pessoas que vêm refletindo sobre temas específicos. Um deles é o da espiritualidade e saúde (para assinar a lista: http://br.groups.yahoo.com/group/esp-sau-ed/). A ANEPS também possui um site (http://br.groups.yahoo.com/group/aneps/) e uma lista de discussão e, para associar-se, acessar http://br.groups.yahoo.com/group/aneps/join. Lá todos poderão saber sobre as ações das ANEPS nos seus núcleos estaduais e acessar o Catálogo, a partir do primeiro levantamento sobre movimentos e práticas de Educação Popular e Saúde no Brasil, elaborado a partir da pesquisa feita pelos núcleos estaduais da ANEPS-http://www.redepopsaude.com.br/catalogo/index.htm . NATES/UFJF: A Revista de APS é um convite a todos profissionais, pesquisadores, instituições e núcleos de pesquisa para uma permanente reflexão e aprofundamento científico da APS. Deve ser vista como um instrumento de educação continuada e permanente no aprimoramento da organização dos serviços e dos processos de trabalho das equipes de APS, potencializando a eficácia dos serviços para a resposta às necessidades individuais e coletivas de uma população. INSTRUÇÕES PARA COLABORADORES A Revista de Atenção Primária à Saúde (APS) é uma publicação semestral do Núcleo de Assessoria, Treinamento e Estudos em Saúde (NATES) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e da Rede de Educação Popular em Saúde, que tem por finalidades: sensibilizar profissionais e autoridades da área de saúde em APS; estimular e divulgar temas e pesquisas em APS; possibilitar o intercâmbio entre academia, serviço e movimentos sociais organizados; promover a divulgação da abordagem interdisciplinar e servir como veículo de educação continuada e permanente no campo da Saúde Coletiva, tendo como eixo temático a APS. 1. A revista está estruturada com as seguintes seções: Artigos Originais; Artigos de Revisão; Artigos de Atualização; Relato de Casos e Experiências; Entrevista; Tribuna; Atualização Bibliográfica; Serviço; Notícias e Cartas. A seção “Artigos Originais” é composta por artigos resultantes de pesquisa científica, apresentando dados originais de descobertas com relação a aspectos experimentais ou observacionais, voltados para investigações qualitativas ou quantitativas em áreas de interesse da APS. “Artigos originais” são trabalhos que desenvolvem critica e criação sobre a ciência, tecnologia e arte das ciências da saúde que contribuam para a evolução do conhecimento humano sobre o homem e a natureza e sua inserção social e cultural. (Devem ter até 25 páginas com o texto na seguinte estrutura: introdução; material ou casuística e métodos, resultados, discussão e conclusão). A seção “Artigos de Revisão” é composta por artigos nas áreas de “Gerência, Clínica, Educação em Saúde”. Os “artigos de revisão” são trabalhos que apresentam síntese atualizada do conhecimento disponível sobre matérias das ciências da saúde buscando esclarecer, organizar, normatizar, simplificar abordagens dos vários problemas que afetam o conhecimento humano sobre o homem e a natureza e sua inserção social e cultural. Têm por objetivo resumir, analisar, avaliar ou sintetizar trabalhos de investigação já publicados em revistas científicas. (Devem ter até 20 páginas com texto estruturado em introdução, desenvolvimento e conclusão). A seção de “Artigos de Atualização” é composta por artigos que relatam informações atuais ou novas técnicas das áreas cobertas pela publicação. (Devem ter até 15 páginas com texto estruturado em introdução, desenvolvimento e conclusão). A seção de “Relato de Casos e Experiência” é composta de artigos que relatam casos ou experiências explorando um método ou problema através do exemplo. Os relatos de caso apresentam as características do indivíduo estudado, com indicação de sexo, idade e pode ser realizado em humano ou animal, ressaltam sua importância na atuação prática e mostram caminhos, condutas e comportamento para sua solução. (Devem ter até 8 páginas com a seguinte estrutura: introdução, desenvolvimento, conclusão). As demais seções são de responsabilidade dos Editores para definição do tema e convidados: Entrevista - envolvendo atores da APS; Tribuna – debate sobre tema polêmico na APS, com opinião de especialistas (2 páginas); Atualização bibliográfica seção onde são divulgados lançamentos de publicações, resenhas (1 página) e resumos de dissertações ou teses (2 páginas), de interesse na APS; Serviço contempla a divulgação de eventos e endereços úteis; Notícias - eventos ocorridos, portarias ministeriais, relatórios de grupos de trabalho, leis de interesse na APS; Cartas - opiniões de leitores e sugestões sobre a revista são bem recebidas. 3. Os trabalhos devem ser encaminhados em disquete, acompanhado de 2 cópias impressas ou pela internet, programa “Word for Windows”, versão 6.0 ou superior, letra “Times New Roman” tamanho 12, espaço entre linhas um e meio, com o limite de páginas descrito entre parênteses em cada seção acima citada. Devem vir acompanhados de ofício de encaminhamento contendo nome dos autores e endereço para correspondência, e-mail, telefone, fax e serem endereçados à revista. Os trabalhos que envolverem pesquisas com seres humanos deverão vir acompanhados da devida autorização do Comitê de Ética da Instituição. 4. Os trabalhos devem obedecer à seguinte seqüência de apresentação: a) título em português e inglês; b) nome completo (nomes seguido(s) do(s) sobrenome(s) do(s) autor(es) e, no rodapé a indicação da Instituição a qual está vinculado, cargo e titulação; c) resumo do trabalho em português em que fiquem claros a síntese dos propósitos, os métodos empregados e as principais conclusões do trabalho; d) palavras-chave – mínimo de 3 e máximo de 5 palavras-chave ou descritores do conteúdo do trabalho, apresentadas em português de acordo com o DeCS – Descritores em Ciências da Saúde da BIREME- Centro Latino Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde – URL: www.bireme.br e) abstract – versão do resumo em inglês; f) key words – palavras chave em inglês, de acordo com DeCS; g) artigo propriamente dito, de acordo com a seguinte estrutura recomendada para cada tipo de artigo, citados no item 2; h) figuras (gráficos, desenhos, tabelas) devem ser enviadas em separado, com indicação na margem do local de inserção no texto; as fotografias em preto e branco devem ser apresentadas em papel brilhante; i) referências: Em conformidade com a última versão da NB 6023 da ABNT, disponível em: www.ufjf.edu.br/biblioteca (Normalização - ABNT) Citações no texto: no corpo do texto citar apenas o sobrenome do autor e ano de publicação: Ex: 1 autor: Vasconcelos (2000), fazendo parte do texto - ou (VASCONCELOS, 2000) no final da frase ou parágrafo; 2 autores: Bruschini e Holanda (1998) ou (BRUSCHINI; HOLANDA, 1998). No caso de citações de documentos elaborados por 3 ou mais autores só deverá ser citado o primeiro autor seguido da expressão et al. Ex.: Sampaio et al. (1998) ou (SAMPAIO et al., 1998). Em citações na íntegra, colocar também o número da página. Ex.: A educação em saúde é o campo de prática e conhecimento do setor saúde que se tem ocupado mais diretamente com a criação de vínculos entre a ação médica e o pensar cotidiano da população. (VASCONCELOS, 2000, p.25). Todas as referências citadas no texto, incluindo as de quadros, tabelas e gráficos deverão fazer parte das referências, apresentadas em ordem alfabética, no final do artigo. A seguir são apresentados alguns exemplos de referências bibliográficas: Livro Autoria própria BIRMAN, J. Pensamento freudiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 204p. Sem autoria ANÁLISE do desempenho hospitalar: III Trimestre. Rio de Janeiro: CEPESC, 1987. 295p. Capítulo de Livro VASCONCELOS, E.M. Atividades coletivas dentro do Centro de Saúde. In: ________. Educação popular nos serviços de saúde. 3. ed. São Paulo: HUCITEC, 1997. cap.9, p.65-69. Dissertação CALDAS, C.P. Memória dos velhos trabalhadores. 1993. 245f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993. Tese TEIXEIRA, M.T.B. Sobrevida de pacientes com câncer de estômago em Campinas, SP. 2000. 114f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. Trabalhos de Congressos, Seminários, Simpósios, etc. MAUAD, N.M.; CAMPOS, E.M. Avaliação da implantação das ações de assistência integral à saúde da mulher no PIES/UFJF. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA, 6, 2000, Salvador. Resumos... Salvador: Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva, 2000. p.328, ref.1101. Artigo de Periódico Com um autor: VALLA, V. V. Educação popular e saúde diante das formas de se lidar com a saúde. Revista APS, Juiz de Fora, n. 5, p. 46-53, 2000. Com dois autores: WALKER, Z.; TOWNSEBD, J. Promoting adolescent mental health in primary care: a review of literature. Jornal of Adolescence, v. 21, n. 5, p.621-634, 1998. Com três ou mais autores:. LEVAV, I. et al. A reestruturação da atenção psiquiátrica na América Latina: uma nova política para os serviços de saúde mental. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 43, n. 2, p. 63-69, fev. 1994. Artigo de Jornal SÁ, F. Praias resistem ao esgoto: correntes dispersam sujeiras mas campanha de informação a turistas começa domingo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 abr. 1999. Primeiro Caderno, Cidade, p.25. Referência de documentos de acesso exclusivo em meio eletrônico A. Banco de Dados ÁCAROS no Estado de São Paulo (Enseios concordis): banco de dados preparado por Carlos H.W. Flechtman. In: FUNDAÇÃO TROPICAL DE PESQUISAS E TECNOLOGIA “ANDRÉ TOSELLO”. Base de Dados Tropical: no ar desde 1985. Disponível em: <http://www.bdt.org/bdt/acarosp>. Acesso em: 28 nov. 1998. B. Lista de discussão BIOLINE Discussion List. List maintained by the Bases de Dados Tropical, BDT in Brasil. Disponível em: <[email protected]>. Acesso em: 25 nov. 1998. C. Homepage Institucional CIVITAS. Coordenação de Simão Pedro P. Marinho. Desenvolvido pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1995-1998. Apresenta textos sobre urbanismo e desenvolvimento de cidades. Disponível em: <http//www.gcsnet.com.br/oamis/civitas>. Acesso em: 27 nov. 1998. D. Arquivo em disquete UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Biblioteca Central. Normas.doc. normas para apresentação de trabalhos. Curitiba, 7 mar. 1998. 5 disquetes, 3 1/2 pol. Word for Windows 7.0. E. Base de Dados UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Biblioteca de Ciências e Tecnologia. Mapas. Curitiba, 1997. Base de Dados em Microlsis, versão 3.7. F. Software Educativo CD- ROM PAU no gato! Por quê? Rio de Janeiro: Sony Music Book Case Multimídia Educacional, [1990]. 1 CD-ROM. Windows 3.1. 5. Os artigos são de total e exclusiva responsabilidade dos autores. 6. Em trabalhos que envolvam financiamentos estes devem ser citados após a informação do endereço. 7. Avaliação por pares: os artigos recebidos são protocolados na secretaria da revista e encaminhados ao Editor Geral e aos Editores Associados para a triagem, avaliação preliminar e posterior distribuição ao Conselho Editorial em conformidade com as áreas de atuação e especialização dos membros e o assunto tratado no artigo. Todos os artigos são submetidos à avaliação de dois consultores, de instituição diferente do(s) autor (es) em um processo duplo cego, que os analisam em relação aos seguintes aspectos: adequação do título ao conteúdo; estrutura da publicação; clareza e pertinência dos objetivos; metodologia; clareza das informações; citações e referências adequadas às normas técnicas adotadas pela revista e pertinência a linha editorial da revista. Os consultores preenchem o “formulário de parecer”, aceitando, recusando ou recomendando correções e/ou adequações necessárias. Nesses casos, os artigos serão devolvidos ao(s) autor(es) para os ajustes e re-envio; e aos consultores para nova avaliação. O resultado da avaliação é comunicado ao(s) autor(es) e os artigos aprovados ficam disponíveis para publicação em ordem de protocolo. Não serão admitidos acréscimos ou modificações após a aprovação. 8. Os artigos devem ser enviados para: Núcleo de Assessoria Treinamento e Estudos em Saúde (NATES) Revista de APS Rua Benjamin Constant, 790 CEP: 36015-400 Centro Juiz de Fora – Minas Gerais Ou via internet através do E-mail: [email protected]. SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA E FAMÍLIA E COMUNIDADE - SBMFC End. Rua Morales de Los Rios, 22 - Maracanã Rio de Janeiro - RJ - Cep: 20.540-010 Revista APS on line Site do NATES/UFJF www.nates.ufjf.br Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde – BVS MS no endereço: http://dtr2001.saude.gov.br/bvs/periodicos/revistaAPS_v7n2.pdf