III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 EIXO TEMÁTICO: ( ) Ambiente e Sustentabilidade ( ) Crítica, Documentação e Reflexão ( ) Habitação e Direito à Cidade ( ) Infraestrutura e Mobilidade (X) Patrimônio, Cultura e Identidade ( ) Espaço Público e Cidadania ( ) Novos processos e novas tecnologias Emblemas da morte na cidade colonial Marechal Deodoro, Alagoas: das igrejas aos cemitérios Emblems of death in colonial city Marechal Deodoro, Alagoas: from churches to cemeteries Emblemas de la muerte en ciudad colonial Marechal Deodoro, Alagoas: de las iglesias a los cementerios MAGALHÃES, Ana Cláudia (1) (1) Doutoranda, Doutorado Cidades, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Alagoas, UFAL, Maceió, AL, Brasil; email: [email protected]. 1 III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 Emblemas da morte na cidade colonial Marechal Deodoro, Alagoas: das igrejas aos cemitérios Emblems of death in colonial city Marechal Deodoro, Alagoas: from churches to cemeteries Emblemas de la muerte en ciudad colonial Marechal Deodoro, Alagoas: de las iglesias a los cementerios RESUMO Este artigo pretende apresentar e discutir uma paisagem urbana de origem colonial, que têm entre seus pontos de referência mais significativos os espaços de sepultamento. Em sua origem, tais espaços eram constituídos pelas capelas e igrejas. A partir do século XIX, mudanças políticas e alterações nos costumes reverberam nas práticas funerárias, subtraindo das edificações religiosas essa função, que passa a ser exercida pelos cemitérios. Com isso, desenha-se uma nova configuração cultural que impõe marcas ao ambiente urbano e arquitetônico da cidade de Marechal Deodoro, Alagoas. PALAVRAS-CHAVE: cidade, cultura, morte, igrejas, cemitério ABSTRACT This article aims to present and discuss an urban landscape of colonial origin, and among its most significant points of reference, the burials. In origin, these spaces were composed of chapels and churches. From the nineteenth century, political changes and changes in customs reverberate in the funerary practices of religious buildings, subtracting this function, which shall be exercised by cemeteries. It, conforms to a new configuration that requires brands to the urban environment and architectural city Marechal Deodoro, Alagoas. KEY-WORDS: city, culture, death, churches, graveyard RESUMEN El objetivo de este articulo es presentar y discutir un paisaje urbano de origen colonial, que tiene entre sus puntos de referencia más importantes los espacios de enterramiento. En su origen, estos espacios se constituyeron per las capillas e iglesias. Desde el siglo XIX, los cambios políticos y de las costumbres repercuten en prácticas funerarias, restando de los edificios religiosos esta función, que passa a ser ejercida por los cementerios. Con esto, ella se ajusta a una nueva configuración cultural que impone las marcas para el ambiente urbano y arquitectónico de la ciudade de Marechal Deodoro, Alagoas. PALABRAS-CLAVE: ciudad, la culture, la muerte, las iglesias, cementerio 2 III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 1 IGREJAS COMO EMBLEMAS DA MORTE A cidade de Marechal Deodoro, em Alagoas, desde suas origens no século XVII, quando era a povoação de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul, foi dominada por pontos de convergência representados pelas edificações religiosas que, ao longo do tempo foram marcando e qualificando o lugar, ao se imporem esteticamente, graças à volumetria vigorosa em relação a um casario de proporções singelas, pela implantação diferenciada no lote e, ao atenderem a práticas tradicionais dos seus moradores, no que se refere à religiosidade. No processo de apropriação e exploração das férteis terras litorâneas empreendido pela empresa colonial portuguesa, a povoação ao sul da Capitania de Pernambuco evidenciou-se desde o século XVII, através das atividades agrícolas e pastoris, conforme os registros historiográficos noticiam: À margem da formosa Manguaba florescia o povoado com sua casaria geralmente tosca, destacando-se, porém, aqui e alli, algumas construções que já não tinham o caracter de acampamento. Eram elos que já 1 prendiam o homem ao solo feraz cultivado fartamente e povoado de gado. Seu potencial produtivo era favorecido pela proximidade com o Oceano Atlântico e o assentamento urbano às margens da Lagoa Manguaba. Esses caminhos líquidos permitiam o escoamento da produção agrícola em direção a outros portos, além de facilitar a comunicação com as demais localidades. A Igreja Católica, ao tempo do Brasil Colônia, participou da produção do espaço construído, constituindo-se em um dos agentes mais atuantes dentro da estrutura do governo português, no processo colonizador e organizador da sociedade. Os recintos sagrados concentravam a força dessa poderosa instituição. A assistência religiosa e o acesso aos sacramentos eram necessidades fundamentais, o que garantiu que a população não poupasse esforços na construção, embelezamento e manutenção de igrejas e capelas. Em Santa Maria Madalena o perfil religioso não foi diferente e não fugiu das velhas tradições herdadas de Portugal. Nas primeiras décadas do século XVII já possuía uma Igreja Matriz dedicada a Nossa Senhora da Conceição. O incêndio provocado pelo holandeses em 1633,2 movimentou a população local em torno da sua reconstrução, já que o atendimento às demandas religiosas era imperativo em um meio marcado por uma interface muito forte entre religião e sociedade. Neste mesmo contexto histórico e cultural, atendendo a um pedido da população, a partir de 1660, se instalaram na vila os frades de São Francisco que, à custa de doações e esmolas, iniciaram as obras do seu convento. Em 1793 estava concluído o complexo arquitetônico franciscano, formado por igreja da Ordem Primeira – formada pelos frades, capela da Ordem Terceira – formada pelos leigos, e moradia dos religiosos – convento. (Fig. 1) Em 1715, mais uma vez, a população anuncia a carência de assistência espiritual e o desejo de ampliação dos espaços religiosos do lugar, pois solicita à Ordem Carmelita que envie frades e inicie a construção de um convento. (Carta da camara [sic] das Alagoas ao governador de Pernambuco Manoel de Souza Tavares, prestando informações exigidas acerca dos carmelitas, 1 COSTA, 1983:32. 2 Os holandeses passaram pela vila de Santa Maria Madalena por ocasião dos conflitos gerados pela sua presença na Capitania de Pernambuco, quando incendiaram casas e engenhos, destruindo também a Igreja Matriz. A invasão holandesa, que começou pela Bahia, onde permaneceu entre os anos de 1624 a 1625, se manteve em Pernambuco de 1630 a 1654. 3 III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 1718. 1879:27). Com o término da obra, são disponibilizadas à vila mais uma Igreja e uma capela. (Fig. 2). Figuras 1 e 2 . Convento Franciscano e Convento Carmelita Fontes: Ana Cláudia Magalhães/2012 - Érica Aprígio/2007. É importante acentuar que um dos traços mais peculiares da cultura religiosa que caracterizava o ambiente colonial, era a ligação do homem com a Morte. O fenômeno, bem como os rituais a ele associados, alcançavam grande repercussão junto ao imaginário coletivo. Por isso, o investimento nos espaços de culto, capelas e igrejas, onde, além das cerimônias litúrgicas cotidianas, era disponibilizado à população um campo santo para enterrar seus mortos, o que permitia e alimentava um contato diário entre os vivos e os mortos, sem qualquer tipo de constrangimento físico ou emocional, estabelecendo, também, uma relação de “familiaridade”, conforme descreveu Philippe Ariés. (1981:35). A capacidade expressiva dos ambientes internos destas edificações re-afirmava, cotidianamente, a perspectiva da mortalidade inerente ao ser humano. Segundo Umberto Eco, a pregação verbal (sermões, cantos, leituras) e a iconografia (imagens de santos, pinturas, altares) tinham como objetivo a rememoração da inevitabilidade do fato. Nesse sentido, ele reconhece na Morte um “personagem fixo (...) no teatro da vida” (ECO, 2007:62), já que ela estava presente no cotidiano dos cristãos. Eram vários os mecanismos que asseguravam a manutenção das tradições e a proteção de uma ordem secularmente estabelecida. Os apelos visuais eram os mais variados, incluindo-se aí as próprias sepulturas distribuídas nos pisos das igrejas. A celebração da liturgia católica era realizada diretamente sobre as campas 3, promovendo a continuidade das relações afetivas estabelecidas em vida: “Os mortos continuando junto dos vivos. Os avós junto dos netos. Os mortos como quase uma espécie de santos ancestrais. Inspiradores dos vivos. Como que melhores que os vivos (...)”. (FREYRE, 1979:14) A Igreja Católica defendia a eficácia dessa convivência entre vivos e mortos, e isso era estimulado pela propaganda eclesiástica e regulamentado pela legislação canônica representada nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, publicadas em 1719: É costume pio, antigo, e louvável na Igreja Catholica, enterrarem-se os corpos dos fieis Christãos defuntos nas igrejas e cemitérios dellas: porque como são lugares, a que todos os fieis concorrem para ouvir, e assistir ás Missas e officios divinos, e Orações, tendo á vista as sepulturas, se lembrarão de encommendar a Deos nosso Senhor as almas dos ditos defuntos, especialmente dos seus, para que mais cedo sejão livres das penas do Purgatório, e se não esquecerão da morte, antes lhes será aos vivos mui proveitoso ter memória della nas sepulturas. Por tanto ordenamos, e mandamos, que todos os fieis que neste nosso 3 “Campa – peça superior das sepulturas rasas, de pedra, tábuas ou outro material. frequentemente forma parte do piso das igrejas antigas, onde se faziam os sepultamentos.” (ÁVILA et al, 1980:30). 4 III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 arcebispado fallecerem, sejão enterrados nas Igrejas, ou Cemiterios, e não em lugares não sagrados (...). (VIDE, 2007:295) Considerando que, em atendimento à legislação acima, a única opção aceita para os enterramentos cristãos eram os chãos sagrados de capelas e igrejas (Fig. 3 e 4) e, quando necessário, espaços externos contíguos, a exemplo dos adros 4, certamente, a antiga vila de Santa Maria Madalena não poupou esforços e fez uso de todos os instrumentos possíveis para multiplica-las. Figuras 3 e 4 – Inscrições e numerações na marcação em pedra de sepulturas da nave da igreja e claustro do Convento Franciscano. Fonte: Ana Cláudia Magalhães/2010. Em uma sociedade altamente hierarquizada, a lógica que regia as estruturas sociais, também se aplicava às práticas funerárias; desse modo, cada grupo social providenciava os meios de acesso às cerimônias e aos túmulos. Esse era um aspecto fundamental ao qual a cristandade colonial, como um todo, estava submetida, exceção feita a judeus, ateus, suicidas e hereges, entre outros. A estes, a Igreja Católica não abria suas portas, sendo, terminantemente, proibido seu sepultamento nos templos. Nesse sentido, as várias confrarias existentes foram essenciais ao proporcionarem aos menos favorecidos, social e economicamente, as condições de inserção nessa ordenação, através da construção de igrejas para atender aos seus associados.5 “Ser filiado a alguma, ou a várias irmandades, era garantia não somente de acesso aos ritos imprescindíveis, quando do fim da vida, mas também a um lugar de sepultamento”. (BATISTA: 2009:20). A importância do papel dessas associações religiosas leigas no universo colonial (Ordens Terceiras, Irmandades, 4 Os adros à frente das igrejas eram suas extensões externas e podiam servir a enterramentos de pessoas mais pobres, não filiadas a nenhuma associação religiosa leiga e, portanto, sem acesso à assistência funerária e túmulo. 5 CYMBALISTA (2006:269) informa que as confrarias eram associações religiosas leigas, cujos membros eram ligados a uma devoção comum, tinham compromissos de sociabilidade e solidariedade mútua. Tinham como sede uma igreja ou capela e a admissão dos associados estava condicionada a quesitos como: “cor, a posição social ou o ofício exercido”. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16131/tde-16112010-141818/pt-br.php. Acessado em janeiro de 2014. 5 III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 Misericórdias) é indiscutível em todos os sentidos, mas, especialmente, quando se refere aos aspectos relacionados ao sepultamento, já que permitia aos mais pobres, especialmente, negros e pardos, o enterro adequado, sem o qual a salvação da alma seria inalcançável. No início do século XVIII a cultura do açúcar tinha favorecido Marechal Deodoro, que se desenvolveu e se expandiu.6 Em 1715 contava com quatro freguesias e vinte e três engenhos de açúcar, e sua população era estratificada entre brancos – pobres e ricos, e negros. (Carta da camara das Alagoas ao governador de Pernambuco Manoel de Souza Tavares, prestando informações exigidas acerca dos carmelitas, 1718. 1879:27-28). Portanto, apresentava uma população funerária diversificada socialmente, à qual cabia organizar-se e providenciar os meios para garantir acesso aos espaços de sepultamento. As características da sociedade escravocrata não admitiam mistura entre brancos e negros, pobres e ricos. E o urbanismo e a arquitetura, como produtos das estruturas sociais, se adequavam a elas, reproduzindo e reafirmando suas classificações. Durante algum tempo o lugar não possuía uma igreja específica para negros e pardos. A historiografia informa que a Confraria de Nossa Senhora do Amparo dos Homens Pardos, sociedade de enterro mútuo fundada em 1683, antes de construir igreja própria, possuía um túmulo na Igreja Matriz (CABRAL, 1879:4), assegurando o sepultamento cristão aos seus membros. (Fig. 5 e 7). Com o lançamento da pedra fundamental da sua igreja, em 1757, pode atuar de forma mais ampla, prestando assistência: A mãi cujo filhinho apodrecêra á espera da sepultura esmolada, o filho que na via dolorosa não encontrara respeito ás murchas cans de seu progenitor, a esposa que vira em abandono seu amor fanado, por esquife a lage, por cyrios os instrumentos do coveiro, todas essas affeições se ergueram procurando na confraternidade consolo ás suas magoas. (CABRAL, 1879:6) A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (Fig. 6) aparece nos registros historiográficos, até então, identificados, somente partir de 1777. Associações religiosas leigas como a dos pretos e dos pardos, voltadas para segmentos mais desfavorecidos da população, eram indispensáveis no ambiente colonial uma vez que prestavam todo tipo de assistência aos seus membros, na saúde e na doença, na vida e na morte. As confrarias tiveram sua origem na Idade Média e atendiam à população em geral, tanto pobres quanto ricos. No que se refere aos mais abonados, elas tinham participação ativa nos rituais de sepultamento, garantindo ao morto todas as cerimônias e pompas da época. Entretanto, no que se refere aos pobres, os benefícios começavam a ser prestados ainda em vida, através de auxílio material, e, na hora da morte, através da realização do ritual de sepultamento, incluindo cerimônias e cortejos, rezas, celebrações de missas e demais manifestações da religiosidade 7. Portanto, essa necessidade fundamental no universo seiscentista e setecentista, que se estende por parte do século XIX, contribui de modo significativo para a conformação de um tecido urbano marcado por igrejas e capelas, espaços de sepultamento por excelência, onde um indispensável traço da cultura religiosa era exercido. 6 A antiga vila tornou-se freguesia em 1656 e sede de comarca em 1711. Em 1823 é elevada ao status de cidade concentrando os poderes políticos e administrativos da Província até 1839, quando perde a condição de capital para Maceió. Cf. BARROS, 1981:107. 7 Cf. Cymbalista, 2006:269:276. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16131/tde16112010-141818/pt-br.php. Acessado em janeiro de 2014. 6 III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 O ambiente urbano de Mal Deodoro foi fortemente marcado por esse repertório arquitetônico representado pelos imponentes edifícios católicos que, atraíram o casario, já que avizinhar-se a eles era sinal de status; estimularam o surgimento de ruas em sua direção, para facilitar cortejos e procissões 8; e possibilitaram a criação dos adros, amplos pátios abertos que permitiram um equilíbrio na relação entre espaços vazios e construídos e, na ausência de praças, ofereceram um lugar para a sociabilidade e o encontro, ainda que atrelado à religião. Figuras 5, 6 e 7 . Igrejas Matriz, de N. S. do Rosário e de N. S. do Amparo Fonte: Érica Aprígio/2007 / Ana C. Magalhães/2011 - http://www.marechaldeodoro.al.gov.br/patrimonio-historico/ Tais edifícios foram, por séculos, alimentados pelas atividades religiosas, destacando-se aquelas ligadas aos sepultamentos. As igrejas constituíam uma referência para o lugar, atraindo pessoas das redondezas para suas cerimônias e, especialmente, abrigando as práticas funerárias, tão caras a uma população que tinha nos desdobramentos do pós-morte a maior das suas preocupações. No recinto das igrejas estava detido o que Jacques Le Goff (2007:94) chama de controle do “processo de salvação ou danação”. Figura 8 . Vista aérea da cidade com localização das igrejas antigas no sítio histórico. Convento Carmelita Igreja Matriz Igreja de Nossa Senhora do Rosário Igreja de Nossa Senhora do Amparo Rua dos Mortos Convento Franciscano Fonte: Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem/2012. 8 Havia na cidade de Marechal Deodoro uma rua que era conhecida como Rua dos Mortos, possivelmente numa alusão ao uso que, mais frequentemente, se fazia dela. Margeando a Lagoa Manguaba, ela se dirigia diretamente para o Convento Franciscano (Fig. 8). 7 III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 Nesse sentido, as igrejas despontaram no cenário urbano como emblemas desse destino imponderável, às quais, todos convergiam porque nelas estavam contidos os únicos meios de alcançar perdão para os pecados e acesso ao paraíso prometido. 2 NOVOS EMBLEMAS: CEMITÉRIOS Entretanto, essa estrutura secular foi abalada a partir da segunda metade do oitocentos, quando um acontecimento local provoca alterações que já se desenhavam há algum tempo no panorama nacional e reverberaram diretamente, não apenas nas antigas práticas funerárias, mas, especialmente, na forma como o homem convivia com a Morte. Em 1855, praticamente toda a Província das Alagoas foi tomada pelo vibrião do Cólera Morbis. A intensidade com que as mortes se sucediam aterrorizava as populações de cidades e vilas. Marechal Deodoro também sofreu as consequências da doença, cujos dados alarmantes foram registrados em carta dirigida à presidência da Província das Alagoas, no ano de 1856: “Os cadáveres já vão consumindo as sepulturas abertas de antemão”. (ALMEIDA, 1996:97). Não se tem notícias de como as suas igrejas, distribuídas ao longo da parte mais antiga da cidade (Fig. 8) absorveram tamanha quantidade de corpos. Presume-se que tenha havido uma super-utilização dos túmulos, a ponto de exceder sua capacidade. É possível que ambientes externos tenham sido usados para os enterramentos, como adros e demais espaços não edificados contíguos às edificações. Dispunha Medidas públicas emergenciais foram tomadas, a exemplo da criação de um cemitério localizado na parte mais alta da cidade, ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Ó, no antigo Convento Carmelita. Essa improvisação se repetiu em praticamente todas as vilas e cidades alagoanas onde a epidemia se instalou. Em todos os lugares eles [os cemitérios] eram improvisados, havia urgência em se fazer roças de cruzes. E as covas dos coléricos ou dos que haviam sido tomados pelo vibrião eram diferenciados, com mais profundidade para que não somente o defunto estivesse sepultado, mas para que o próprio mal nele incorporado não se tornasse. (ALMEIDA, 1996:109) Por essa época, já vinha se anunciando uma nova postura urbana frente às questões de saúde pública. O progresso da medicina e as medidas higienistas no ambiente citadino acentuavam a crítica aos enterramentos no recinto das igrejas, aludindo à necessidade de criação de cemitérios públicos em locais mais adequados para esse fim. A orientação era: Fazer grandes, e espaçosos cemiterios fora das povoações, quanto for possível, em sitios, que possão ser bem lavados dos ventos, e humedecidos pelas chuvas, cujo terreno seja barrento , ou misturado com alguma arêa , ou terra calcarea; e fazer as sepulturas fundas ao menos de 7 palmos; eis aqui outro meio já bem usado na Europa. (TELLES, 1800:23) Acompanhando um movimento que ocorria em caráter nacional 9, em 1872 a cidade de Marechal Deodoro foi contemplada com um cemitério público (SANTANA, 1970:26), construído exatamente na área vizinha ao antigo convento carmelita, onde o sepultamento dos coléricos se deu, inicialmente, em caráter temporário. O local se mostrava compatível com as recomendações relacionadas à higiene. O antigo convento carmelita, já desabitado e sem 9 No Rio de Janeiro, o primeiro cemitério foi construído em 1839. Em Recife, 1850; Salvador, 1855; São Paulo, 1858. Segundo Veríssimo (2011;203) “todos praticamente associados a epidemias, que geram grande número de cadáveres, impossível de ser absorvido pela forma até então tradicional”. 8 III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 frades, se localizava em local topograficamente elevado e com pouca vizinhança, podendo, portanto, abrigar a nova função cemiterial sem maiores conflitos com as premissas higienistas. Reformulações no campo científico, político e filosófico resvalaram para o domínio da religiosidade, ajudando a alterar padrões culturais consolidados ao longo do tempo. Como consequência, tem-se a laicização de um Estado fortemente influenciado pela instância religiosa e o enfraquecimento de códigos de conduta determinados pela Igreja Católica. Presume-se que esse novo cenário cultural tenha contribuído significativamente para a decadência dos espaços religiosos, notadamente, do convento franciscano. A inserção urbana e o modelo arquitetônico dos espaços cemiteriais interferem, também, na forma como se lidava com a Morte. O novo lugar dos mortos é afastado do convívio dos vivos. Com isso, capelas, igrejas e conventos são destituídos de uma das suas condições mais emblemáticas, sustentada no entrelaçamento entre o “bem viver’ e o “bem morrer”. Sem dúvida, esse deslocamento de função secularmente estabelecida faz com que os espaços religiosos percam forças e se fragilizem quanto ao simbolismo exercido junto à população, como abrigo de pacífica vizinhança entre vivos e mortos. Não eram apenas os aspectos mais subjetivos evocados pela presença das sepulturas – afeição, saudade, re-encontro, que fortaleciam as relações entre a cidade e as igrejas. A estrutura física, adjetivada pelo desenho das campas, conformava um espaço cenográfico e contribuía para a sublimação da sua posição junto ao povo. O convívio com as sepulturas passa agora a ser rejeitado. Sinal disso são as intervenções feitas nas campas das igrejas mais antigas de Marechal Deodoro, que foram recobertas por novos pisos, apagando desenhos que contavam histórias 10. A cidade sofreu as consequências dos novos tempos. A Rua dos Mortos não mais existe (Fig. 8). Embora não tendo sido identificada a data da alteração do nome nem a justificativa oficial para tal, é possível que a associação da rua com a Morte tenha passado a causar algum estranhamento nos moradores. Por outro lado, se antes caminhos eram criados em função dos locais de enterramento, agora, ao contrário, se distanciam deles. Apesar do crescimento da cidade ter demandado novas áreas de ocupação urbana, a região onde foi instalado o Cemitério Público de Marechal Deodoro é pouco habitada, sinalizando para o desconforto provocado pela vizinhança com o espaço cemiterial. (Fig. 9). 10 Apenas as campas da igreja e claustro do Convento Franciscano se mantêm porque todo a estrutura física do complexo arquitetônico passou, recentemente, por um processo de restauração que revelou, subjacente ao piso novo, as antigas sepulturas. Nas demais igrejas, é possível encontrar algumas poucas lápides mais recentes, em mármore. 9 III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014 Figura 9 . Vista aérea da localização do cemitério na cidade junto ao antigo Convento Carmelita. Antigo Convento Carmelita Atual Cemitério Público Fonte: https://www.google.com.br/maps/@-9.7216757,-35.8983868,685a,35y,90h/data=!3m1!1e3. Acessado em abril de 2014. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta discussão parece apontar para um interessante aspecto relacionado aos valores da sociedade contemporânea: embora se constitua na “outra face” da vida, hoje se percebe uma tendência ao apagamento da Morte, relegada agora aos bastidores da cena urbana e afastada das experiências cotidianas dos vivos. Com isso, as relações humanas se projetam apenas no tempo presente, tendo como referência o corpo físico. Por séculos, igrejas e capelas foram vistas como emblemas da Morte, até que os cemitérios assumissem este papel. Entretanto, com eles se estabelece uma nítida ruptura das pessoas com a função ali exercida, já que os espaços cemiteriais trazem incorporados à sua imagem um acento fortemente negativo; deles se quer o afastamento, a vizinhança é evitada, sua presença é constrangedora e desconfortável. Com a afirmação física e cultural do Cemitério Público da cidade de Marechal Deodoro, o espaço ocupado pelos mortos foi redimensionado e, consequentemente, a experiência do lugar se alterou profundamente. Os antigos e o novo espaço da Morte, reverberam diferentemente no ambiente urbano e na emoção dos seus moradores. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Luiz Sávio de. Alagoas nos tempos do Cólera. São Paulo: Escritura Editora, 1996. ARIÉS, Philippe. O homem diante da morte. Vol. II, Trad. Luíza Ribeiro, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. ÁVILA, Afonso et al. Barroco mineiro – glossário de arquitetura e ornamentação. São Paulo: Cia. Melhoramentos de São Paulo, 1980. BARROS, Theodyr Augusto de. Contribuição à história da antiga capital das Alagoas. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, vol. 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CYMBALISTA, Renato. Sangue, Ossos e Terra – os mortos e a ocupação do território luso-brasileiro, séculos XVI e XVII. Tese de doutorado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16131/tde-16112010-141818/pt-br.php. Acessada em janeiro de 2014. COSTA, Craveiro. História das Alagoas: resumo didático. Maceió: Sergasa, 1983 . ECO, Umberto. História da Feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2007. FREYRE, Gilberto. Oh de casa! Recife: Editora Arte Nova, 1979. LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade média. Trad. De Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2007. SANTANA, Moacir Medeiros de. O Patrimônio Cultural de Uma Velha Cidade (Marechal Deodoro), Maceió, 1970. TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva. 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