PATOLOGIAS DAS NOVAS TECNOLOGIAS Francisco de Paula Antunes Lima Departamento de Engenharia de Produção - UFMG - CP 209 - CEP: 30.161-970 - Belo Horizonte/MG The new models of production organization, in their technological and managerial aspects, implies a new pattern of time disposal. This paper examines the every day damages of operators in the continuous process industry (IPC). In IPC, the contradictions between production and health did not disappear, they are just moved away to workers’ subjectivity. The contradiction between production ends and archaic forms of work organizations appear as a primordial cause of psychic suffering of the workers, that are impossible to be eliminated into the hierarchical division of labor. Palavras chaves: new technology, human error, psychic suffering 1. Delimitação do problema As atuais transformações da produção já estão relativamente bem caracterizadas, quer em seus aspectos técnicos (automação, robótica, informatização, inteligência artificial, etc.), quer organizacionais (produção enxuta, novas formas de organização do trabalho, desregulamentação das relações de trabalho, implicação dos trabalhadores, etc.). Todavia, a análise categorial dos “novos modelos de produção”, necessária para se estabelecer os conceitos e relações fundamentais, ainda está sendo desenvolvida através de estudos em várias disciplinas (sociologia do trabalho, economia política, psicologia do trabalho, ergonomia, etc.). A partir dos estudos realizados pode-se evidenciar pontos de convergência que comportam simultaneamente aspectos tecnológicos e organizacionais. A noção de “flexibilidade” é um dos pontos de convergência que tendem a se destacar, servindo para designar tanto os aspectos macrossociais (fala-se em “acumulação flexível” e até mesmo em “capitalismo flexível”, cf. Harvey, 1992), como a organização do chão-defábrica (da automação flexível ao trabalhador polivalente). A multiplicidade de aspectos abrangidos pela noção de flexibilidade a credencia como uma das características essenciais das atuais transformações técnico-organizacionais e sua utilização certamente deve se generalizar. Entretanto, a análise e a compreensão de todos os mecanismos que a constituem estão apenas engatinhando, sobretudo no que diz respeito às dimensões psicológicas da atividade dos trabalhadores que ainda permanecem no interior dos sistemas produtivos ditos flexíveis. Este texto traz precisamente uma contribuição para se entender em que consistem as exigências psicológicas da produção flexível, abordadas aqui através dos efeitos patológicos sobre os operadores na indústria de processos contínuos (IPC). As análises e conclusões a que chegamos, poderão, procedendo-se às devidas adaptações, se aplicar também às manufaturas flexíveis (que fazem ampla utilização de tecnologias de informação e da robótica, cf. Clot et al., 1990) e, em certos aspectos, mesmo ao setor de serviços (pensamos, em especial, aos serviços que se utilizam de sistemas on-line, como bancos, tele-atendimento, etc.). Uma das características essenciais da produção flexível é que ela introduz uma nova temporalidade, uma nova forma de gestão do tempo produtivo. Nosso intuito aqui, não é tanto caracterizar em que consiste esta gestão do tempo, mas sim como ela é vivida subjetivamente pelos trabalhadores. 2. Novas tecnologias e relação saúde/produção Boa parte dos ergonomistas, mesmo entre aqueles de orientação francofônica, acalentam o sonho de encontrar uma solução racional capaz de resolver praticamente as contradições sociais em matéria de saúde dos trabalhadores e de eficiência da produção, reconciliando-as no interior de uma intervenção de natureza social, na qual todos os pontos de vistas presentes dentro da empresa sejam expressados e reconhecidos. O reconhecimento das diferenças permitiria a sua reconciliação, harmonizando eficiência produtiva e saúde dos trabalhadores, antigo sonho de Taylor e de tantos outros cientistas do trabalho humano, pelo menos desde Lavoisier (cf. Lima, 1997). Os espíritos mais perspicazes percebem que não há uma lei geral quanto à relação saúde/produção, reconhecendo a contradição insolúvel quando se trata de um processo de trabalho de base manual. Neste caso, quanto mais intenso o ritmo de trabalho, maior será o desgaste do trabalhador. Vêem, entretanto, na automatização, com o declínio do trabalho manual, uma solução para a contradição, pois não há mais relação direta entre quantidade de produção e a carga de trabalho do operador que apenas vigia e controla o processo, comodamente assentado na sala de controle. Com efeito, o uso de um catalisador que diminui o tempo de uma reação química não acarreta forçosamente um aumento da carga de trabalho dos operadores na IPC. Ao contrário, quanto melhor e mais estável o processo, menor é a carga de trabalho dos operadores, que, às vezes, podem passar longas horas sem fazer intervenções importantes no sistema produtivo. Além disso, não há como negar que, sobretudo após a introdução dos modernos sistemas de monitoramento e controle informatizados, melhoraram em muito as condições de trabalho dos operadores, que dispõem de maior conforto e facilidades para controlar os processos. Tudo faz crer, portanto, que a automatização de processos levaria naturalmente à superação da contradição entre produção e saúde. Se isto não acontece, é porque os tomadores de decisão estariam mal informados ou porque seriam francamente irracionais, como acontece com a redução arbitrária dos efetivos, aumentando os incidentes e acidentes e, conseqüentemente, reduzindo a eficiência do processo. De fato, a automatização propicia condições objetivas para reconciliar saúde e produção, no interior de uma nova racionalidade produtiva, mas sistêmica e global. Todavia, a efetivação dessas possibilidades não decorre naturalmente da tecnologia, assim como não lhe é inerente sua utilização como instrumento de controle e de expropriação do saber. Criadas no interior de contradições sociais determinadas (em grande medida como forma capitalista de resolver estas mesmas contradições), as novas tecnologias, por ampliarem as possibilidades de controle dos homens sobre a natureza dos processos físicos, constituem um desenvolvimento extraordinário das forças produtivas. Porém, enquanto mecanismo de controle social do capital sobre o trabalho, leva ao paroxismo as novas formas de exploração da força de trabalho, que associam a intensificação do trabalho a uma intensa mobilização da subjetividade. Precisamente porque o capitalismo é uma forma contraditória de organizar e de gerir a produção material, não pode encontrar dentro de si mesmo uma solução satisfatória que permita conciliar saúde e produção. Se a sala de controle apresenta boas condições de higiene, se a carga de trabalho física já não esgota os operadores na IPC (ao contrário, algumas salas de controle já dispõem de equipamentos de ginástica, para compensar a falta de atividade física), é porque não é mais no corpo biológico onde se manifesta a contradição, mas no psiquismo do trabalhador, para lá mesmo onde se deslocaram as exigências cognitivas e afetivas relacionadas às novas funções desempenhadas pelo trabalho vivo. Para entender como operam essas contradições, é necessário investigar o que se passa na interioridade dos trabalhadores a fim de evidenciar as patologias das novas tecnologias. Para tanto, é necessário considerar a natureza dos conhecimentos e saberes implicados no controle de processos contínuos, uma vez que a carga psíquica (ou afetiva) de trabalho é indissociável do conteúdo e características cognitivas da atividade. 3. A atividade cognitiva em controle de processos: o saber em mosaico Daniellou & Boel (1985) chamam a atenção para a natureza específica dos conhecimentos adquiridos durante o trabalho, pelos operadores de salas de controle, que se apresentam na forma de representações operatórias. Estas representações, porque assumem uma orientação prática, não são necessariamente negativas, pois têm uma eficácia própria nos diagnósticos dos incidentes e no controle do sistema técnico. Lembrando resultados semelhantes de V. de Keyser (1980), para quem, os saberes operatórios podem conduzir a um saber “em mosaico”, pois “Acrescentar o conhecimento de um incidente ao conhecimento de um outro e de um terceiro, não permite chegar necessariamente a um conhecimento funcional do sistema” (Keyser, 1980. Apud Daniellou & Boel, 1985, p. 104. Sobre o saber em mosaico, ver também Montmollin, 1986; Lima, 1996), esses autores identificam os problemas ainda não resolvidos quanto à articulação de conhecimentos formais (ou analíticos) e saberes práticos: “ (...) um conhecimento apenas analítico poderá conduzir a erros, por desconhecimento de indícios recolhidos diretamente nas instalações, de valores do dia anterior (...). O problema que se coloca é então simultaneamente: - o de uma formação permanente que permita aos operadores agrupar seus conhecimentos operacionais através de um conhecimento dos mecanismos físico-químicos explicativos; - o das condições de diálogo entre os conhecimentos dos operadores da sala de controle e os conhecimentos de outras pessoas que intervêm sobre o processo.” (Daniellou & Boel, 1983:104) Os autores alertam, entretanto, que esses problemas não se resolvem sem um questionamento da organização do trabalho, quer na definição do efetivos, quer na forma de organização do tempo de trabalho e da divisão de tarefas (Ibid., pp. 212-3). Em especial, a pouca flexibilidade na divisão de tarefas coloca empecilhos à confrontação e transmissão mútua de conhecimentos entre os diferentes agentes de produção. Parece evidente que um problema não se resolve sem o outro: organizar o conhecimento, obtido em situações particulares, requer um certo tempo disponível, que só pode ser obtido através da reorganização temporal da atividades de controle e de diagnóstico dos incidentes, o que pressupõe, por sua vez, uma outra forma de divisão de tarefas entre os membros da equipe. Esta questão foi abordada mais recentemente por Zarifian (1990, 1993 e 1995), que propõe o conceito de “organização qualificante” para dar conta das necessidades próprias à nova racionalidade produtiva dos sistemas de produção automatizados. Um dos aspectos ressaltados diz respeito precisamente à forma de convocação e de interação dos diferentes conhecimentos e experiências dos agentes da produção, que se reuniriam em grupos de trabalho com diversos objetivos, quer de projeto, quer operacionais (melhoria de qualidade, otimização da funcionamento das instalações; diagnóstico de panes em programas de TPM Total Productive Maintenance, etc.). Para que essas novas formas de gestão e modelos organizacionais possam render frutos, seria necessário dotar a gestão de uma nova racionalidade de natureza comunicativa e não mais instrumental, o que, no entanto, se defronta com vários obstáculos. Para dar apenas um exemplo, o diagnóstico de uma pane em um sistema complexo, quando envolve circunstâncias que fogem ao conhecimento já formalizado, pressupõe a articulação de vários conhecimentos informais (produção, manutenção, qualidade, compras), cujas condições de possibilidade (trabalho cooperativo, implicação pessoal, diálogo, intercompreensão) ainda não são encontradas nas empresas, submetidas às formas capitalistas de controle e nas quais impera a organização hierárquica do trabalho. Não há racionalidade comunicativa numa situação em que um dos interlocutores está desde o início colocado em situação de subordinação social, isto é, submetido ao poder de outrem. Encontramos aqui uma das principais causas do sofrimento psíquico dos operadores dos processos contínuos. 4. Atividade de controle de processos: exigências temporais e afetivas Sabemos que o trabalho na IPC é intrínseca e potencialmente patogênico, em função das características próprias à indústria de processo, em particular devido aos riscos de explosões e de exposição a agentes químicos, cujos efeitos sobre a saúde ainda são desconhecidos. Estes talvez sejam os aspectos mais evidentes, revelados por pesquisas realizadas em centrais nucleares e indústrias químicas, às quais se acrescentam os relatos jornalísticos dos acidentes de dimensões catastróficas (Bhopal, Seveso, Three Mile Island, Chernobyl). Menos conhecido é o desgaste cotidiano provocado pelas exigências temporais relacionadas ao fluxo ininterrupto e às incertezas decorrentes da complexidade das instalações. Esta forma de desgaste (comumente atribuída ao estresse) dificilmente se manifesta como patologias ocupacionais específicas e já reconhecidas, mas antes de tudo como sofrimento psíquico. A seguir analisamos dois aspectos marcantes deste sofrimento, relacionados ao controle cotidiano do fluxo de produção: a vivência do tempo, diante da incerteza relativa dos acontecimentos (eventos), e a responsabilidade pelas decisões que devem ser tomadas pelos próprios operadores, diante da insuficiência das regras previstas. Divisão hierárquica do trabalho e formas de saber Há uma diferença fundamental entre o conhecimento dos engenheiros sobre os processos físico-químicos, de natureza mais analítica, e o saber operatório dos operadores. Ambas as formas de conhecimento seriam necessárias para manter as instalações em funcionamento, uma complementando a outra. Entretanto, a compatibilização dessas formas de conhecimento não acontece sem dificuldades, sendo inclusive fonte de sofrimento para os trabalhadores. Além de estarem colocados em permanência diante dos riscos de acidentes e de paradas de produção, os operadores devem proceder a “um registro contínuo da evolução de um grande número de parâmetros, que mantém de modo absoluto a predominância da responsabilidade investida no trabalho e de uma possível <<repressão>> em caso de erro. É possível que esta situação seja vivida de modo mais agudo em ocasiões onde a aplicação estrita e mínima das prescrições não é suficiente, e onde a distância se faça sentir ainda mais entre os operadores e os supervisores, quanto à compreensão que cada um tem do conteúdo real do trabalho.” (Daniellou & Boel, 1983:203) É importante reter esta sugestão quanto à experiência subjetiva dos operadores face à incerteza e à possibilidade de cometerem erros. Como a incerteza é, em última instância, um dado ontológico ineliminável da produção, para eliminar esta fonte de sofrimento é mister criar condições para se lidar com os eventos e os resultados imprevistos, o que requer, sobretudo, intervenções no âmbito da organização e da gestão. Dada a diferença entre conhecimentos e representações de engenheiros e de trabalhadores, uma das questões importantes é saber se a distância entre eles pode ser eliminada no interior de uma organização hierárquica do trabalho, isto é, com uma repartição diferenciada de tarefas, responsabilidade e conhecimentos; ou, em caso contrário, que condições são necessárias para se estabelecer um real diálogo entre agentes da produção e as formas de conhecimento que cada um deles detêm. Encontramo-nos, aqui, diante de uma questão bem mais geral - a relação entre conhecimentos formais e saberes práticos - que, no interior da produção, encontra-se corporificada numa organização hierárquica e numa repartição desigual de conhecimentos, de acesso a informações, de formação e de tempo para reflexão e formalização da experiência adquirida (Lima, 1995 e 1996). Assim como o conhecimento formal (teorias, métodos e técnicas) pode se instituir em forma superior e ditatorial sobre a experiência vivida na organização do trabalho, os representantes e detentores destas formas de conhecimento podem monopolizar as condições que favorecem sua aquisição (e reprodução), em detrimento dos que detêm as formas mais imediatas e operacionais de saber. A distribuição desigual do tempo livre para refletir sobre o processo constitui um dos principais empecilhos à instituição de uma nova racionalidade produtiva. Mobilização subjetiva, eficiência produtiva e poder disciplinar Uma das características marcantes dos novos sistemas automatizados é a distribuição desigual da carga de trabalho conforme os momentos e situações, o que Zarifian (1995) denomina de situações eventuais (eventualidade), que ocorrem de maneira não previsível. Esses momentos se caracterizam não apenas pelas situações de urgência (panes graves, paradas, etc.) mas também por situações em que vários pequenos problemas ou mesmo situações de rotina ocorrem simultaneamente (Daniellou e Boel, 1983; Daniellou, 1986). Visto o caráter oscilante da carga de trabalho e das solicitações do sistema, sempre ocorrerá, em certos momentos, o outro verso da medalha: situações de subcarga, nas quais os operadores estarão sendo menos solicitados em suas funções psicossensoriais. Nesses momentos, os operadores, ao contrário do que pode imaginar a hierarquia ou um visitante apressado, estão também trabalhando, vigiando ativamente determinados parâmetros e atento aos alarmes que porventura poderão soar indicando um evento inesperado. Não é, portanto, um tempo livre, útil, durante o qual o trabalhador poderia se dedicar a outras atividades, particularmente aquelas que requerem reflexão (por exemplo, pensar sobre as causas de um incidente recente ou como reagir a ele). A vigilância ativa em períodos calmos é condição para que o operador reaja prontamente às situações eventuais, mas é insuficiente para mantê-lo num estado de vigília apropriado para reagir aos incidentes. Os operadores encontram-se assim em uma situação de privação sensorial, o que é agravado quando estão num turno noturno (poucas pessoas presentes na sala de controle, sobretudo porque as equipes estão cada vez mais reduzidas. Na indústria analisada por nós - a do cimento -, tornou-se comum ter apenas um operador na sala de controle por turno de trabalho). Nesses momentos, o operador precisa realizar um trabalho orientado para si mesmo, a fim de manter um estado de alerta que propicie as reações necessárias, ou pelo menos as condições para perceber os alarmes. Para fazer face a este isolamento, os trabalhadores desenvolvem estratégias de compensação da subcarga psicossensorial, adotando certos meios que são quase sempre mal compreendidos pela hierarquia, pois se chocam ao seu poder disciplinar e à sua concepção normativa subjacente do comportamento do “bom trabalhador”. Dejours (1993) observou que operadores em uma sala de controle de uma indústria de processo jogam baralho durante o turno. Entretanto, o tipo de jogo escolhido (se joga em silêncio), mais do que uma “distração”, faz com que eles permaneçam alertas e sensíveis aos sinais do processo. Ao lembrar este caso, Y. Clot (1997) comenta: “O jogo torna-se, ao segundo grau, um instrumento de exploração do processo, ao mesmo tempo constituindose, em primeira mão, numa técnica de trabalho sobre si mesmo.” (Clot, 1997:120) Este autor relata outros casos de “distrações profissionais”, que servem para manter os operadores ativos nos postos de trabalho. São as “catacreses centrípetas”, ou orientadas para os próprios sujeitos e não diretamente para a transformação do instrumento de trabalho, que caracterizam uma atividade específica de “instrumentação psíquica da ação” (Id.). Zarifian também menciona como os operadores sempre encontram um meio de não ficarem sozinhos na sala de controle (1995:168). Um dos operadores nos deu um depoimento bastante significativo a este respeito: “Igual à noite, por exemplo, você fica ali dentro daquele painel sozinho. Você não vê uma viva alma ali dentro. Inclusive, nos meus finais de semana lá, eu chamava M., chamava o pessoal do Laboratório: <<Venham aqui ficar comigo aqui que eu já tô... aqui tá ruim>>. Então me dava um baixo astral... principalmente no final de semana. Nossa! Que tristeza! Você tá ali preso. Sem poder sair pra ir no banheiro. No banheiro que tá ali ao lado.” (operador sala de controle) Nesta empresa, os operadores instalaram um pequeno rádio na sala de controle, o que foi proibido pela chefia após uma mudança do controle acionário. A música na sala de controle era vista apenas como uma concessão, que foi eliminada assim que normas disciplinares mais rígidas passaram a vigorar. Ora, faz parte das regras psíquicas colocar-se e manter-se em condições de responder às variações do sistema produtivo. Nesse caso, os trabalhadores não têm necessariamente consciência da funcionalidade da música e de sua relação com a atividade de controle do processo. Apenas dizem que não atrapalha o seu trabalho, mas não podem argumentar contra a decisão da chefia (e seu poder disciplinar) dizendo como e porque a música é também operacional e parte integrante da atividade de controle do processo. Hierarquia, gestão da complexidade e responsabilidade Esta mesma distância hierárquica, que se configura em visões de mundo distintas, também determina formas diversas de gerir o processo de produção. Uma das contradições fundamentais manifesta-se quando se pretende definir o espaço de autonomia dos operadores. Formalmente, o espírito de iniciativa e a responsabilidade pessoal são valorizadas e expressamente incentivadas; na prática, verifica-se pouco espaço para que estas boas intenções se realizem. A relação patológica com o erro é reveladora do sofrimento psíquico que esta situação provoca, levando os trabalhadores a assumirem um relacionamento infantilizado com a gerência. Não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, para o livre desenvolvimento da personalidade dos trabalhadores, que deveria necessariamente ser acompanhado pela ampliação do escopo e poder de decisão. Em várias situações, os trabalhadores são obrigados a se submeterem ao poder hierárquico, sem estarem intimamente convencidos de que as ordens dadas pela chefia são fundamentadas. Devido às características peculiares ao processo de produção na IPC, os saberes necessários para controlar o processo são fortemente contextualizados. Uma intervenção no processo, a correção de uma variável, o diagnóstico subjacente, a forma de alterar os parâmetros constituem uma atividade que implica uma forma específica de se relacionar com as situações de trabalho, profundamente arraigada na experiência anterior dos operadores e na vivência aqui e agora do processo. Em cada jornada de trabalho, “colocar-se em situação” requer tempo e disponibilidade por parte do operador, como pode ser visto nos momentos de troca de turnos. Ocorre que, estando apenas esporadicamente em contato com o processo, os chefes dêem orientações (às vezes formalmente imperativas) de como controlar um ou outro incidente ou problema. Na maior parte das vezes, essas orientações ou ordens são desnecessárias, quer porque os trabalhadores já sabiam como se comportar naquela situação, quer porque são inadequadas. Algumas vezes, dependendo da insistência dos chefes, os operadores fazem o que eles pedem, sabendo que o problema não vai ser resolvido, o que, acaba acarretando-lhes uma carga de trabalho maior, porque o processo fica mais instável. O mais comum é que os trabalhadores ajam da forma como eles consideram mais acertada, assumindo assim um duplo risco: se dá certo foi mérito do chefe, se dá errado é culpa do operador porque desobedeceu as orientações. Em suas próprias palavras: “Se deu certo... Se eu... Suponhamos, você me passou uma instrução, eu fiz de outra maneira, deu certo, eu não fiz mais do que a minha obrigação. Ma se deu errado, [faz gesto com as mãos] ferro na boneca. Lá é assim. O certo ninguém enxerga não. Só enxerga o errado. Você pode trabalhar a vida inteiiiiirinha legal, você pisou na bola uma vez....” (operador sala de controle). Como a competência e o espaço de autonomia dos trabalhadores se desenvolvem em grande parte na clandestinidade, somente os erros ganham visibilidade, isto é, quando, tomam uma decisão contrária à orientação recebida e não conseguem controlar o processo. Quando nada de extraordinário acontece, tudo se passa como se o bom funcionamento tivesse sido assegurado pela obediência estrita às orientações de seus superiores, os quais são vistos como os responsáveis pelo bom funcionamento do processo. Opera-se assim uma clivagem na personalidade dos operadores, que se tornam responsáveis apenas pelos erros, jamais sendo reconhecidos pelas decisões acertadas. Vive-se, assim, uma ambigüidade radical, existente em toda relação hierárquica: não gostam de trabalhar com os chefes dando palpites, mas, quando estão sozinhos durante a noite, sentem a falta de seus superiores em momentos que devem tomar uma decisão importante, como parar uma unidade de produção. O paradoxal nesta situação é que também os engenheiros e a chefia imediata estão satisfeitos com o comportamento dos operadores, alegando que eles demonstram pouca iniciativa, recorrendo freqüentemente aos superiores para resolver “pequenos” problemas que eles próprios poderiam resolver. Além das lacunas de ordem cognitiva (saber em mosaico sobre o processo), parte dessas dificuldades está relacionada à divisão de responsabilidades e à forma como, numa instituição hierárquica, se lida com os “erros” - em termos de culpa. O aspecto infantilizante desta relação de subordinação é que, para se eximirem da responsabilidade atribuída de forma unilateral, os trabalhadores procuram se comportar da forma como o chefe quer, agindo como os filhos em relação aos pais ou como alunos diante de professores. Mesmo quando devem tomar uma decisão sozinhos, se perguntam qual seria a decisão que seria tomada pelo chefe ou que lhe agradaria. Nestas condições não há espaço para um desenvolvimento maduro da personalidade, pois os trabalhadores sentem medo de tomar decisões e assumir publicamente a responsabilidade pelos seus atos. Evidentemente tal atitude é impossível desde que se mantenham as relações de poder e que os eventuais erros sejam usados como forma de seleção dos trabalhadores, antes de servirem como material para reflexão e crescimento pessoal. Os próprios trabalhadores estão impregnados desta visão racionalizante do comportamento, permitindo-se julgamentos a posteriori sobre supostos “erros” cometidos por seus colegas. Em caso de incidentes importantes (que envolvem danos aos equipamentos ou paradas de unidades), alguns operadores são solicitados a darem sua opinião e, às vezes, julgam que o colega poderia ter evitado o incidente. Quando, entretanto, falam sobre seus próprios “erros”, os operadores desqualificam qualquer julgamento a posteriori, contextualizando seu comportamento e o processo de tomada de decisão, conforme as circunstâncias do momento em que o incidente ocorreu. O paradoxal é que se permitem julgar os colegas ao mesmo tempo que se sentem injustiçados quando eles próprios são julgados a posteriori por atos e escolhas que tiveram que fazer no calor dos acontecimentos. Os trabalhadores que desacatam com mais freqüência e de forma aberta às ordens recebidas, porque as julgam infundadas, portanto aqueles que mais dão provas de uma personalidade autônoma e de capacidade de iniciativa, são taxados de indisciplinados e os primeiros a serem demitidos quando há redução do efetivos. Na impossibilidade de se apoiarem em critérios de competência técnica, a hierarquia acaba se apegando aos sinais exteriores do comportamento, os quais, entretanto, induzem os operadores a adotarem um comportamento exatamente oposto ao que teoricamente é almejado: de dependência e não de autonomia. 5. Conclusão Estas últimas considerações mostram que na concepção de sistemas informatizados estão implicadas questões bem mais amplas do que a eficiência operacional do controle de processos contínuos: está em questão também o perfil do trabalhador adequado para se fazer face às exigências afetivas e cognitivas da IPC. Como estas exigências são evidentes para quem vive em contato diário com a produção, não poderiam deixar de ser percebidas, sendo conscientemente buscadas pela hierarquia e expressas em princípios da política de recursos humanos das empresas. Contudo, da conscientização quanto à importância desse novo trabalhador à criação de condições para que ele possa se desenvolver há uma grande distância, insuperável em qualquer forma de organização do trabalho baseada em princípios hierárquicos formais. Ainda falta espaço para que as competência reais (e com ela as personalidades autênticas) possam se desenvolver na IPC, ainda que, neste tipo de sistema produtivo, as condições objetivas exijam um novo trabalhador. BIBLIOGRAFIA CLOT, Y. (1997). “Le problème des catachrèses en psychologie du travail: un cadre d’analyse”. Le Travail Humain, 60 (2):113-129, 1997. DANIELLOU, F. & BOEL, M. (1983). L´activité des opérateurs de conduite dans une salle de controle de processus automatisé. 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