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EDUCAÇÃO, SAÚDE E RE-PRODUÇÃO DE DIFERENÇAS DE GÊNERO:
PROBLEMATIZANDO REPRESENTAÇÕES DE MULHERES E MÃES EM
POLÍTICAS SOCIAIS
Dagmar Estermann Meyer
O trabalho sintetiza e discute alguns dos resultados de um conjunto de
investigações com as quais vimos problematizando as posições do sujeito mulher
e, mais especialmente, as do sujeito mãe, nos discursos que atravessam políticas
e programas públicos de educação e saúde contemporâneos. Utilizando a
abordagem da análise cultural, tal como esta vem sendo desenvolvida pelos
Estudos Culturais e de Gênero, tais políticas e programas são concebidos como
instâncias pedagógicas que produzem, ressignificam e veiculam determinados
modos de conhecer, viver e valorar formas de ser mulher e mãe. A ‘pedagogia’
engendrada pela teia de discursos e de poderes que institui tais programas
(res)significa e atualiza o feminino e a maternidade, inscrevendo o corpo feminino
em um poderoso regime de vigilância e regulação, de tal forma que se ‘colam’
nele/a atributos relacionados com a resolução de uma vasta gama de problemas
que as sociedades globalizadas produzem e não conseguem resolver. Argumento,
assim, que na contemporaneidade parece estar ocorrendo, com renovado vigor,
uma politização do feminino e da maternidade, na qual programas de educação e
de saúde estão bastante implicados.
Palavras chave: Estudos culturais e de gênero – educação e saúde –
representações de maternidade
Notícias que compõem a vida cotidiana – uma introdução
“...estudo publicado na última edição do British Medical Journal (...) mostrou que
mulheres que mudaram de parceiro entre o nascimento de dois filhos tinham duas
vezes mais chances de dar à luz prematuramente e de ter bebês com baixo peso.
O risco de mortalidade infantil também foi aumentado. As diferenças apareceram
mesmo considerando-se fatores como idade da mãe, nível de educação e o tempo
entre as duas gestações” (Caderno vida, Zero Hora, nov/2003, s/r).
“A psiquiatria estabeleceu alguns fatores de risco que podem contribuir para que
um indivíduo se torne sociopata na vida adulta. Confira: uso de álcool ou drogas
pela mãe durante a gravidez (ambiente fetal inóspito); lesões cerebrais no
nascimento; traumatismo craniano na infância; ambiente social ou familiar violento;
maus-tratos na infância (sofridos ou vivenciados); pais sociopatas ou com histórico
de abuso de álcool e/ou drogas” (Caderno Vida, Zero Hora, 17/01/2004: 8).
2
“Os riscos de nascer pobre. O relatório Unicef projetou o que pode acontecer com
as crianças que nascem em local ou grupo social de risco. São os chamados
impactos. 1) O impacto de ser filho de mãe com baixa escolaridade (analfabeta ou
menos de quatro anos de estudo): sete vezes mais possibilidades de ser pobre; 11
vezes mais possibilidade de não freqüentar a escola; 16 vezes mais possibilidades
de morar em casa sem água encanada....” (Zero Hora, 12/12/2003: 64).
“....No caso específico das meninas, porém, quanto mais estudo, maiores são as
chances de virem a ter crianças saudáveis e de garantir sua presença em sala de
aula.” (Editorial de Zero Hora, 12/12/2003: 32).
Os excertos das notícias com que inicio este texto reúnem alguns dos
enunciados que instituem a centralidade de determinados atributos ou modos de
viver e exercer a maternidade e, com menor ênfase, também a paternidade, que
circulam, cotidiana e recorrentemente, em múltiplas instâncias e artefatos de
nossa cultura. Apresentados como se fossem traços intrínsecos e atemporais, os
atributos, valores e riscos que tais enunciados instituem e fazem circular já estão
tão naturalizados que passaram a fazer parte do senso comum 1. Além disso, ou
exatamente por isso, eles também norteiam muitos dos processos educativos no
interior dos quais nos tornamos mulheres e homens e/ou mães e pais de
determinados tipos e sua força reside, justamente, nas múltiplas, sutis e sempre
renovadas possibilidades de sua repetição. Educação e Saúde são dois dos
campos de conhecimentos e práticas que produzem, atualizam e repetem,
incessantemente, o que a mulher e, sobretudo, a mãe é ou deve ser e sua
“autoridade científica” constitui uma importante estratégia de naturalização e
universalização de tais definições.
No que se refere especificamente às mulheres e mães, vários estudos têm
enfatizado que elas seguem sendo as maiores freqüentadoras e /ou usuárias da
rede
de
assistência
à
saúde.
Elas
continuam
sendo
interpeladas
e
responsabilizadas, também de forma central, pelos programas de promoção da
saúde e de prevenção de doenças, ou daqueles que se guiam por imperativos
3
sociais tais como o “toda criança na escola”. Isso se pode ver, de modo exemplar,
nos desdobramentos mais recentes dos programas de Incentivo ao Aleitamento
Materno, prevenção do HIV/AIDS bem como em todos os programas que
compuseram a chamada “rede de apoio social” do governo FHC (o Bolsa Escola,
Família na Escola, Bolsa Alimentação, etc.) e que integram o Bolsa Família do
atual governo.
Apesar dos inegáveis avanços referentes à condição de saúde de mulheres e
crianças e aos níveis de escolarização básica, promovidos por esses programas
educativos e de atenção à saúde materno-infantil, através da atuação de várias
instituições governamentais e da sociedade civil, estudos como os que vimos
desenvolvendo, recentemente, no GEERGE, no PPG - EDU da UFRGS, dentre
outros produzidos nacional e internacionalmente, permitem argumentar que a
redução da noção de mulher às noções de mãe e de cuidadora qualificada dos
componentes do núcleo familiar, a sobreposição da noção de saúde da mulher à
dimensão de saúde do aparelho reprodutor feminino e a dissociação entre as
noções de homem e de pai, são processos que vêm ganhando novas “roupagens”
e dimensões em alguns desses programas 2.
Nessas investigações vimos descrevendo e analisando, dentre outros
aspectos, representações de mulher e de mãe, de homem e de pai, produzidas e
veiculadas no âmbito de políticas, fundamentalmente educativas, voltadas à
promoção da escolarização de crianças, ou para a promoção da saúde e a
prevenção de doenças de segmentos priorizados em termos de políticas públicas
de saúde voltadas, principalmente, para crianças e mulheres em momentos
específicos de suas vidas, entendendo essas políticas (e os programas delas
decorrentes) como instâncias de produção de corpos e identidades sociais e
culturais. Utilizando a abordagem da análise cultural, tal como esta vem sendo
desenvolvida pelos Estudos Culturais e de Gênero, que se aproximam do PósEstruturalismo, temos analisado essas políticas e programas educacionais e de
saúde para, com e a partir dessa análise, defender o argumento de que, na
contemporaneidade, vem-se engendrando uma ‘nova politização da maternidade’,
expressão que pretendo explicar e defender melhor ao longo dessa apresentação.
4
Feminismos e maternidade – pontos para um debate em saúde e educação
No âmbito dos movimentos feministas, a politização da maternidade pode ser
localizada no contexto de uma problematização mais ampla desencadeada no
bojo da chamada ‘segunda onda do feminismo’, um movimento teórico, social e
político que teve um profundo impacto sobre os modos pelos quais o sujeito e a
identidade foram (são) conceptualizados na modernidade. Questionando a
clássica distinção entre o ‘privado’ e o ‘público’ o feminismo, com o slogan de que
‘o pessoal é político’, colocou em debate, nas arenas acadêmica e política, temas
relacionados com a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão sexual
do trabalho, o cuidado com as crianças como capacidade inata da mulher, que
antes não eram, ai, considerados. Com a (hoje) antológica frase de Simone de
Beauvoir 3 de que não nascemos mulheres, mas nos tornamos mulheres, o
feminismo também começou a colocar em xeque o pressuposto biologicista que
permitia inscrever o feminino no sexo anatômico e passou a prestar atenção nos
modos pelos quais, no âmbito do social e da cultura, somos produzidos e
formados como sujeitos de gênero. Um dos elementos centrais dessas
problematizações foi, justamente, o determinismo biológico com o qual se traduzia
a maternidade como sendo tanto um instinto quanto o destino natural da mulher.
A maternidade passava, a partir de então, a ser compreendida e discutida
como sendo uma dimensão profundamente implicada com os processos de
dominação/subordinação que regiam as relações entre os sexos, nas sociedades
ocidentais. As discussões realizadas em torno da relação entre maternidade e
feminismo têm sido sintetizadas três vertentes: uma primeira, em que a recusa da
maternidade foi apresentada, (por feministas radicais como Sulamita Firestone)
como o principal instrumento para subverter a dominação masculina; uma
segunda, em que a maternidade passaria a ser teorizada como um poder
insubstituível das mulheres (que caracteriza, por exemplo, o chamado feminismo
da diferença de Luce Irigaray); e uma terceira, que poderia ser chamada de
feminismo pós-estruturalista, no qual se tomam como focos de análise,
5
exatamente, os mecanismos e as estratégias de poder/saber que, nas culturas
ocidentais modernas, permitem definir e apresentar a maternidade como se esta
fosse uma essência, monolítica e ahistórica, inscrita na anatomia, fisiologia e/ou
psique da mulher 4.
Continuamos convivendo, ainda hoje, no campo dos Estudos Feministas, com
estas e várias outras possibilidades de abordar a maternidade e os nosso
trabalhos se ‘localizam’ exatamente nessa terceira vertente, que se organizou em
torno do conceito de gênero, com o qual estudiosas anglo-saxãs passariam a
focalizar, desde os anos 70, o caráter fundamentalmente social e lingüístico das
distinções percebidas entre homens e mulheres 5
Importantes mudanças epistemológicas decorrem da adoção do conceito de
gênero, na perspectiva em que este passaria a ser utilizado a partir de então e eu
vou citar, de forma muito breve, apenas algumas delas, para não enveredar por
uma discussão conceitual que não cabe neste momento. Considerando-se o que
aqui nos interessa,o conceito de gênero permitiria: a) argumentar que diferenças e
desigualdades entre mulheres e homens são social, cultural e discursivamente
construídas e não biologicamente determinadas; b) deslocar o foco de atenção da
‘mulher dominada, em si’ para a relação de poder em que tais diferenças e
desigualdades são produzidas e legitimadas, o que significa explorar o caráter
relacional do conceito, o que significa que as análises e intervenções
empreendidas neste campo de estudos devem considerar ou, pelo menos, tomar
como referência, as relações – de poder - e as muitas formas sociais e culturais
que, de forma interdependente e inter-relacionada, educam homens e mulheres
como “sujeitos de gênero”; c) ‘rachar’ a homogeneidade, a essencialização e a
universalidade contidas nos termos mulher, homem, dominação masculina e
subordinação feminina, dentre outros e, com isso, tornar visíveis os mecanismos e
estratégias de poder que instituem e legitimam estas noções; d) explorar a
pluralidade e a conflitualidade dos processos que de-limitam possibilidades de se
definir e viver o gênero em cada sociedade, nos seus diferentes segmentos
culturais e sociais.
6
É com este enfoque que o conceito, em sua confluência com os Estudos
Culturais 6, é utilizado como suporte para compreender e problematizar processos
de produção de diferenças e desigualdades sociais que são colocados em ação
na relação entre educação e saúde, sobretudo porque podemos perceber como
esses processos funcionam, posicionando mulheres, mães, homens e pais em
torno de eixos como saudável/doente ou normal/patológico ou, ainda, norma/risco,
com base nos conhecimentos que dão sustentação às políticas e programas de
educação e de saúde que sustentam as práticas educativas implementadas
nesses campos.
Os nossos estudos vêm permitindo delinear, nas representações de mulher e
de mãe que esses programas educacionais e de saúde produzem ou veiculam,
elementos importantes de representações produzidas nos séculos XVIII e XIX, nas
culturas européias ocidentais. Ao mesmo tempo, essas representações parecem
incorporar e inscrever, no corpo feminino e na maternidade, ‘novos’ e conflitantes
‘atributos’ derivados tanto das lutas de movimentos sociais como o feminismo e os
movimentos em prol dos direitos humanos, quanto da influência de um leque cada
vez maior de conhecimentos, cientificamente autorizados a definir e prescrever
modos mais adequados de cuidar e se relacionar com a infância, dentre os quais
se destacam a Medicina, a Psicanálise, a Psicologia, o Direito e a Pedagogia.
Repercutem também, nesses sistemas de representação, efeitos das profundas e
abrangentes transformações sociais, econômicas e culturais desencadeadas pelo
neoliberalismo e pela globalização.
Como enfatizam vários autores/as, a racionalidade neo-liberal caracteriza-se,
dentre outras coisas, por conceber a vida e o indivíduo como empreendimentos
infinitamente ‘aperfeiçoáveis’ e pressupor que todos os indivíduos têm o direito e,
sobretudo, o dever de manter, gerir e potencializar o seu próprio bem-estar. Este
indivíduo é concebido como um sujeito autônomo, capaz de se autogovernar mais
e melhor na medida em que se capacita (ou é capacitado) para fazer escolhas e
responsabilizar-se por elas. E tais escolhas estão, hoje, conectadas ao acesso e
ao domínio de um amplo leque de informações, ‘desdobráveis’ em conjuntos cada
vez mais complexos, abrangentes e diversos de necessidades e possibilidades de
7
viver de forma competente e saudável. Ou seja, o pressuposto de que o indivíduo
pode e deve aperfeiçoar cada vez mais sua forma de viver, seu corpo ou sua
saúde implica, também, em colocar, na esfera da pessoa, a responsabilidade pela
alocação dos meios e recursos necessários para a consecução desse ‘projeto’ de
vida e saúde.
A globalização - em especial a econômica - centrada como está no ideal do
livre mercado, na informação e na tecnologia, encontra-se profundamente
imbricada com esta racionalidade da modernidade tardia e seus reflexos, embora
sentidos com maior ou menor intensidade em todos os países, se traduzem como
benefícios diretos para pouco mais de um terço da população mundial. Os dois
terços
restantes,
localizáveis
em
todos
os
continentes,
são
afetados
negativamente por esse processo.
Quando se buscam, então, delimitar efeitos desses discursos e processos
nas representações de mulher e de maternidade produzidas e veiculadas nas
políticas e programas públicas que vimos examinando, chama atenção a
ampliação e complexificação do leque de condutas, modos de cuidar e modos de
sentir que dizem respeito a uma relação mãe-filho ‘normal’ e ‘natural’, as quais são
apresentadas como sendo indispensáveis para o processo de desenvolvimento
físico e, principalmente, emocional de crianças que devem tornar-se adultos
produtivos, equilibrados e ‘saudáveis’. Chama atenção, ainda, a incorporação de
uma “linguagem do risco” 7 com e através da qual determinados grupos de
mulheres são classificados e valorados, crescentemente, como “mães de risco” e,
por conseqüência, transformados em sujeitos-alvo de práticas assistenciais,
educativas e de controle mais sistemáticas e estandartizadas. As notícias de jornal
com que iniciei minha exposição apresentam exemplos emblemáticos desse
processo.
O exame de tais representações, considerando-se, exatamente, esse
contexto das sociedades neoliberais globalizadas, vem nos permitindo perceber
que a noção de indivíduo mulher-mãe, ainda supõe, ou supõe com força
renovada, a existência de um ser que incorpora e se desfaz em múltiplos – a mãe
como parceira do estado, a mãe como agente de promoção de inclusão social, a
8
mãe como esteio de sua família e, mais especificamente, a mãe como
responsável única e direta de seus filhos. Nesse contexto, gerar e criar filhos
‘equilibrados e saudáveis’ passa a ser social e culturalmente definido, também,
como um ‘projeto’ de vida, responsabilidade individual de cada mulher que se
torna mãe, independentemente das condições sociais em que essa mulher vive e
dos problemas que ela enfrenta – um projeto que deve começar a ser preparado,
em todos os sentidos, desde muito cedo, na vida da mulher (não beber, não
fumar, exercitar-se, comer as coisas adequadas, escolarizar-se, ter equilíbrio
emocional, condições financeiras, escolher bem o parceiro, fazer exames
regularmente etc...); é a isso que eu, particularmente, venho me referindo como
sendo uma nova politização da maternidade; nova não no sentido de inovadora,
mas no sentido de uma exacerbação e multiplicação de investimentos educativoassistenciais que têm como foco as mulheres, especialmente aquelas de
segmentos mais pobres da população.
A atualidade e a pertinência da problematização da maternidade se colocou
para mim, quando comecei a me deparar, de forma sistemática, em minha prática
docente no campo da educação em saúde, com um conjunto disperso, porém
recorrente de enunciados que atribuem o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo
e social saudável do feto e da criança – tomados como futuros adultos - a
sentimentos, comportamentos, formas de cuidar e se relacionar com o feto/criança
que, apesar das inovações tecnológicas e das conquistas dos movimentos
feministas, transformaram o exercício da maternidade, na contemporaneidade, em
uma tarefa extremamente difícil e abrangente. Uma das notícias de jornal faz
referência ao risco vinculado a “ambientes fetais inóspitos”, os quais incluem
desde o risco de transmissão de doenças e distúrbios hereditários que hoje podem
ser mapeados e calculados antecipamente, quanto o tabagismo, o consumo de
álcool e drogas ou, ainda, os sentimentos de repulsa, negação e rejeição que as
mulheres experimentam em situações de gravidez não desejada os quais seriam
vivenciados pelo feto, no útero.
A prática do aleitamento materno, tal como esta é concebida e recomendada
hoje -regime de livre demanda e fonte exclusiva de alimentação do bebê até os
9
seis meses de vida, quando a licença maternidade é de três a quatro meses pode ser tomada como um exemplo emblemático desse processo. Uma leitura
atenta do programa e dos materiais educativos vinculados a ele, permite
evidenciar o quanto se tornaram complexas, multivariadas e quase que irrefutáveis
as vantagens dessa prática que é apresentada como sendo a mais importante
prova do amor e da competência maternas. Na perspectiva em que é
apresentada, ela garante a saúde física, emocional e até mesmo cognitiva do
bebê e seus efeitos serão sentidos ao longo de toda a sua vida. Nesse contexto
de vantagens irrefutáveis, a amamentação e a representação de maternidade a
que ela dá sustentação é produzida e passa a funcionar como uma unanimidade
capaz de congregar governos, regimes políticos, instituições de ensino e pesquisa,
empreendimentos empresariais e econômicos e movimentos sociais que
conflituam ou divergem frontalmente nas demais posições que assumem e
defendem, de uma tal forma que passa a ser quase impossível criticá-la ou
questioná-la 8.
O modo como a mãe é posicionada no âmbito do Programa Nacional Bolsa
Escola, bem como a miríade de ações que se vinculam ao exercício dessa
maternidade, permite delimitar alguns dos mesmos mecanismos e estratégias 9. O
Programa Bolsa Escola compromete-se com a construção de uma sociedade mais
justa, a ser moldada através de um conjunto amplo de ações que faziam parte dos
programas integrantes da chamada Rede de Proteção Social, onde se incluem,
ainda, entre os mais divulgados, o Programa Bolsa-Alimentação, o Auxílio-Gás e
os Programas de Geração de Renda, instituída no governo Fernando Henrique
Cardoso. Tais programas, hoje integrados sob a denominação de Bolsa Família,
tinham como foco principal o combate à pobreza e à exclusão social, e a
educação é neles posicionada como um meio central para alcançar tais objetivos.
Os projetos sociais articulados no interior dessa ‘rede’ têm como foco ações
dirigidas à escola e à família. Do modo como são apresentadas, as propostas
desenvolvidas pelo Programa posicionam, em especial, as mulheres-mães como
agentes prioritárias para a sua implementação, sendo “imprescindível” contar com
sua ajuda e participação. Primeiro, auxiliando na permanência das crianças
10
carentes na escola, com a intenção de chegar aos 100% de crianças
escolarizadas. Segundo, melhorando a qualidade de ensino através da efetiva
presença da família, que é apresentada na grande maioria dos textos restrita à
mulher-mãe, no processo de aprendizagem dos/as seus/suas filhos/as. Como
contrapartida, o Programa proporciona uma suplementação mensal de renda às
famílias que vivem em situação crítica de pobreza para que mantenham seus/suas
filhos/as freqüentando a escola.
Carin Klein vai descrevendo como tais afirmações vinculam as mulheres ao
exercício da maternidade através do cumprimento de um conjunto de práticas, tais
como ser “fiscal da educação das crianças”, levá-las regularmente aos serviços de
saúde, participar de programas educativos e qualificar-se para administrar a renda
familiar, entre outras. Na perspectiva assumida por tais programas, as mulheres
precisam tornar-se constituintes e constituidoras dessa trama que promove,
protege, cuida e fiscaliza a educação das crianças.
Aminatta Forna 10 sintetiza boa parte de nossa argumentação quando refere
que a criação dos filhos segue sendo uma tarefa exclusivamente feminina que,
hoje, já começa antes do momento da concepção:
Espera-se que a futura mãe se abstenha de café, chá, álcool, fumo
(inclusive passivo), determinados tipos de alimentos industrializados,
estresse, excesso de exercícios (...) Durante a gravidez, o
desenvolvimento do bebê e todos os aspectos do comportamento
dela são minuciosamente monitorados pelos serviços de saúde. (...)
Para o melhor e para o pior, hoje, as responsabilidades da mãe
dobraram: a estabilidade emocional e o desenvolvimento cognitivo e
psicológico dos filhos também estão a seu encargo. (...) As mães são
bombardeadas com mais informações do que conseguem absorver e
o conselho é sempre apresentado como o “melhor para o seu bebê”,
porém envolve vários outros interesses (ou dificuldades) sociais,
políticos e culturais.
Algumas considerações
No contexto desses interesses sociais, políticos e culturais poderíamos
apontar alguns pontos que permitem estabelecer algumas convergências entre os
estudos que vimos fazendo:
•
Eles têm, entre seus objetivos, a promoção da inclusão social. Nesse
sentido, embora sejam, supostamente, direcionados ao conjunto dos
11
grupos socialmente marginalizados ou a todas as mulheres, sua
implementação é dirigida, sobretudo, à mulheres dos segmentos sociais
mais pobres;
•
Os discursos que atravessam estes programas interpelam a mulher,
valorizando sua inserção na família, o trabalho doméstico, suas qualidades
humanas inatas, para então posicioná-la, enquanto mãe, como sendo a
maior responsável pela operacionalização dessa inclusão social, que passa
principalmente pela promoção de mais educação e saúde das crianças;
•
Alguns desse programas incorporam, explicitamente, definições mais
abertas e progressistas de família. Um dos efeitos de poder dessa
incorporação parece ser a ‘naturalização’ da ausência do pai nos núcleos
familiares mais pobres, o que implica em dois movimentos distintos: por um
lado, em posicionar o Estado no lugar de autoridade conferido ao pai na
família mononuclear moderna; por outro, em sobrepor aos deveres
maternos uma parte significativa dos deveres paternos, sobretudo aqueles
vinculados ao provimento do lar.
Por último, é preciso frisar que não estamos com nossas análises,
contestando a necessidade e a importância de políticas e programas que se
comprometam com a diminuição da exclusão e da injustiça social. Estamos
procurando analisar as tensões que se estabelecem entre tais políticas e as
políticas de identidade, sobretudo aquelas dos feminismos que se esforçaram por
demonstrar que mulher e mãe são posições de sujeito distintas, socialmente
construídas, que não se sobrepõem e nem se configuram como extensão uma da
outra. A meu ver, algumas das estratégias que parecem estar em ação nessas
políticas e programas funcionam, exatamente, no sentido de borrar as distinções
entre tais posições e fronteiras identitárias. Como educadoras que investem em
projetos de transformação social que incorporem perspectivas de gênero, penso
que não deveríamos deixar passar isso em branco.
Transformação social e mais justiça social implicam prover o acesso de todos
os segmentos da população aos bens e serviços de uma sociedade mas, a forma
como isso vem sendo proposto, nessas políticas e programas, re-afirma a
12
centralidade da díade mulher-mãe, sintetizada agora como família, que é
sustentada pelo pressuposto essencialista de que “a reprodução e a sexualidade
causam diferenças de gênero de modo simples e inevitável” 11. Configuram-se,
portanto, como políticas públicas que continuam enfatizando, de outros modos e
de forma ampliada, a responsabilidade feminina pela reprodução social, pela
educação dos filhos, pela erradicação da pobreza, das doenças e do
analfabetismo, pela demanda e organização de creches, por saúde e por outras
necessidades que garantam a manutenção e a permanência da família. Dentre
outros aspectos, concordo com Lourdes Bandeira quando esta diz que políticas e
programas públicos de gênero se diferenciam de políticas e programas
direcionados para as mulheres porque consideram “necessariamente, a
diversidade dos processos de socialização de homens e mulheres, cujas
conseqüências se fazem presentes, ao longo da vida, nas relações individuais e
coletivas” 12.
Nesse sentido, estudos que se proponham a articular educação, saúde e
gênero deveriam contribuir para delimitar, de forma mais ampla, as redes de poder
que se colocam em movimento com determinadas ênfases educativas,
instrumentos de diagnóstico e modos de assistir e monitorar mulheres-mães e
‘suas’ crianças, que vêm sendo utilizados no contexto destes e de outras políticas
e programas, na atualidade. Para além disso, se retomarmos dois dos
pressupostos teórico-metodológicos centrais da perspectiva analítica que
assumimos nestas investigações, quais sejam, a noção de que educar envolve o
conjunto de processos pelos quais indivíduos são transformados ou se
transformam em homens e mulheres específicos no âmbito de uma cultura e que
os sistemas de representação englobam práticas de significação lingüística e
cultural e sistemas simbólicos através dos quais os significados (que permitem a
mulheres e homens entenderem suas experiências e delimitarem modos de ser e
de viver) são construídos, tais estudos deveriam, também, levar-nos a perguntar,
mais freqüentemente, que representações de mulheres e homens, pais e mães,
filhos e filhas, a linguagem destas políticas e programas está produzindo e
legitimando e que sujeitos de gênero elas estão educando.
13
1
O senso comum se constitui de fragmentos de discursos que são “articulados ao longo da história de um
povo ou destacados de discursos [como os da educação e da saúde] em uma dada conjuntura política e social”.
Ele precisa ser considerado em estudos como este, não só por sua “enorme capacidade de dar sentido à vida
cotidiana” e por sua “enorme potencialidade de ser articulado a diferentes visões de mundo” mas, também,
porque no interior deste conjunto articulado de fragmentos discursivos - uma suposta unidade que passa a
funcionar como senso comum - os discursos científicos, quase sempre, aparecem como “sinônimo de saber e
de autoridade” PINTO, Céli Regina Jardim. Com a palavra o Senhor Presidente José Sarney ou como
entender os meandros da linguagem do poder. São Paulo: HUCITEC, 1989, p.44 - 5.
2
Cf. MEYER, Dagmar. Mulher perfeita tem que ter mamas e uma barriguinha: educação, saúde e produção
de identidades de gênero, concluída em fevereiro de 2003; Educar e assistir corpos grávidos para gerar e
criar seres humanos “saudáveis”. Educação, saúde e constituição de sujeitos “de direito” e “de risco”, que
se encontra em andamento, ambas desenvolvidas com bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq; DURO,
Carmem. Concepções de maternidade e de cuidado infantil de um grupo de mães da Vila Cruzeiro do
Sul/POA – RS. Porto Alegre: UFRGS, 2002. Dissertação.(Mestrado em Enfermagem). Escola de
Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002; KLEIN, Carin “...um cartão [que] mudou a
nossa vida”? Maternidades veiculadas e instituídas no Programa Nacional Bolsa Escola. Porto
Alegre/RS:UFRGS. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 2003; SOUZA, Jane. F e cols. Qualificar o cuidado infantil e a cidadania feminina: um
trabalho com mulheres atendentes de creches comunitárias em Viamão/RS. Porto Alegre:
UFRGS/FAPERGS, 2002. Relatório de pesquisa. Faculdade de Educação da UFRGS, Fundação de Amparo à
Pesquisa no Rio Grande do Sul, 2003; MEYER, Dagmar. e cols. Educação, saúde gênero e mídia: um estudo
sobre HIV/AIDS-DSTs com Agentes Comunitários/as de Saúde do Programa de Saúde da Família em Porto
Alegre, RS. Porto Alegre: UFRGS/CN DST-HIV/Aids, 2003. Relatório de Pesquisa. Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.
3
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. v. 1 e 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
4
Cf. SCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diálogo com as Ciências Sociais. Cadernos Pagu, n.
16, 2001.
5
Cf. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, v.
20, n. 2, jul/dez 1995; LOURO, Guacira. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997; LOURO, Guacira. Gênero: questões para a Educação. In:
BRUSCHINI, C.;UNBEHAUM, S. (orgs.) Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: FCC:
Editora 34, 2000 e, ainda, MEYER, Dagmar. Gênero e Educação: teoria e política. In: LOURO, G.;NECKEL,
J. F; GOELLNER, S. V.(ORG) Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na Educação.
Petrópolis: Vozes, 2003a.
6
Cf., dentre outros, SILVA, Tomaz Tadeu (org) O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte:
Autêntica, 1999; SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais.
Petrópolis: Vozes, 2000. e, também, o Dossiê ‘Cultura, Culturas e Educação’, da Revista Brasileira de
Educação, n. 23, maio/jun/jul/ago de 2003.
7
Cf. SPINK, Mary Jane Trópicos do discurso sobre risco: risco-aventura como metáfora na modernidade
tardia. Cadernos de Saúde Pública, v. 17, n. 6, nov/dez, 2001, e GIDDENS, Anthony, Modernidade e
Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
8
Cf. MEYER, Dagmar. As mamas como constituintes da maternidade: uma história do passado? Educação &
Realidade, v. 25, n. 2, jul/dez de2000; MEYER, Dagmar; OLIVEIRA, Dora L. Breastfeeding policies and the
production of motherhood: a historical-cultural approach. Nursing Inquiry, v. 10, n. 1, mar. 2003 b; e, ainda,
MEYER, Dagmar. Educação, saúde e modos de inscrever uma forma de maternidade nos corpos femininos.
Movimento – Revista da ESEF/UFRGS, v. 9, n. 3, set/dez 2003 c (no prelo).
9
Cf. KLEIN, Carin “...um cartão [que] mudou a nossa vida”? Maternidades veiculadas e instituídas no
Programa Nacional Bolsa Escola. Porto Alegre/RS:UFRGS. Dissertação (Mestrado em Educação).
Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003.
10
FORNA, Aminatta. Mãe de todos os mitos: como a sociedade modela e reprime as mães – Rio de Janeiro;
Ediouro, 1999.
11
BANDEIRA, Lourdes. O que não estamos conseguindo alterar na questão da violência contra a mulher?
Articulando – Jornal Fêmea, n.129, out. de 2003, p. 1.
14
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Idem.
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1 educação, saúde e re-produção de diferenças de gênero