Revista Portuguesa de Psicanálise 33 [2]: 9 – 28
A SUBLIMAÇÃO, ENTRE SOFRIMENTO E PRAZER
NO TRABALHO 1
Christophe Dejours2
RESUMO : Partindo dos aportes conceptuais da psicodinâmica do trabalho, o autor do
presente texto procura discutir de que forma a clínica do trabalho permite repensar o
conceito psicanalítico de sublimação. Com efeito, para dar um conteúdo ao destino
pulsional que Freud caracterizou como uma mudança de objectivo, é necessário
recorrermos a uma análise clínica detalhada da inteligência no trabalho, primeiro
nível da sublimação. Em seguida, importa considerarmos o reconhecimento social da
acção, enquanto segundo nível da sublimação. Por fim, a contribuição ao trabalho
de cultura (Kulturarbeit) fornece-nos um terceiro nível da sublimação.
PALAVRAS -CHAVE :
sublimação, clínica do trabalho, reconhecimento, psicodinâmica
do trabalho.
INTRODUÇÃO
A clínica do trabalho desenvolveu-se em França, em primeiro lugar no
período entre as duas guerras (I. Billiard, 2011) e depois da guerra sob o
nome de Psicopatologia do Trabalho. A partir dos anos 80, a sua renovação resulta de trabalhos de pesquisa em que se associam a Psicanálise
e a Ergonomia. O seu campo alargou-se então para além do estudo das
doenças mentais relacionadas com o trabalho, passando a incluir também
a investigação dos recursos psíquicos mobilizados por aqueles que conseguem resistir aos efeitos nocivos provocados pelos constrangimentos
laborais, conseguindo assim permanecer na normalidade. Foi assim que
foram descobertas as estratégias de defesa contra o sofrimento no trabaConferência apresentada no Institut Franco-Portugais a 22 de Fevereiro de 2013, organizada pela Sociedade Portuguesa de Psicanálise.
Artigo traduzido por Duarte Rolo.
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Médico psiquiatra, psicanalista da Association Psychanalytique de France e Presidente
do Conselho científico da Fundação Jean Laplanche. Professor no Conservatoire National
des Arts et Métiers.
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lho, cuja diversidade e riqueza permitiram expandir imensamente este
campo clínico. Para além das defesas e da normalidade, interessámo-nos
em seguida pelas condições específicas que permitem por vezes o acesso
ao prazer no trabalho, ou mesmo a construção da saúde mental graças ao
trabalho. Foi em função da expansão deste domínio clinico que uma nova
denominação foi proposta em 1992, a saber, a Psicodinâmica do Trabalho, englobando as pesquisas que vão do sofrimento ao prazer no trabalho, das patologias mentais à realização de si mesmo através do trabalho.
Esta clínica é de uma grande riqueza e de uma extrema diversidade.
Mas a Psicodinâmica do Trabalho não é apenas uma disciplina clínica,
ela é também uma teoria centrada na análise dos processos em causa na
etiologia do sofrimento e das patologias, bem como do prazer e da saúde,
relacionados com o trabalho. Uma das principais teses desta teoria foi
formulada sob o nome de “centralidade do trabalho para a subjetividade”
(J.-P. Deranty & C. Dejours, 2010).
Muito tempo ignorada e mesmo rejeitada pelos psicanalistas, a Psicodinâmica do Trabalho desenvolveu-se sobretudo graças ao confronto com
outras disciplinas: primeiro, com a Ergonomia e a Medicina do Trabalho;
em seguida, com a Sociologia (Sociologia da Ética e Sociologia da divisão
sexual do trabalho) e a Antropologia; e depois com a Filosofia (nomeadamente a fenomenologia de Michel Henry e a Escola de Frankfurt), com
o Direito e, mais recentemente, com a Economia.
Nos últimos dois anos, as escolas de Psicanálise têm vindo a abrir-se
à questão do trabalho, primeiro em França, mas depois também nas
diferentes capitais europeias, no Canadá, no Brasil, na Argentina. Esta
nova conjuntura relaciona-se sem dúvida com o facto de muitos dos
psicanalistas receberem pacientes cujo pedido inicial diz respeito ao seu
sofrimento no trabalho. Como fazer face a uma problemática relacionada
com o trabalho quando se parte do corpo teórico freudiano?
Para responder a esta questão, o melhor é sem dúvida começar pela
análise daquilo que convoca a subjetividade na relação com o trabalho.
Mais do que procedermos a uma investigação acerca dos efeitos patogénicos do trabalho, como se faz habitualmente quando a discussão se
dirige a outras disciplinas, é talvez mais idóneo examinar de que modo a
Psicodinâmica do Trabalho pode contribuir para a teoria da sublimação.
Somente depois poder-se-á questionar porque é que certas organizações
de trabalho, ceifando os recursos subjetivos da sublimação e mesmo
opondo-se fundamentalmente a esta última, são capazes de desestabilizar
o indivíduo e de provocar uma crise psíquica, podendo por vezes levar
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ao suicídio. Tomar em consideração todos estes dados saídos da clínica
faz-nos conceder à sublimação um lugar específico no funcionamento
psíquico, significativamente mais importante do que aquele que a psicopatologia e a metapsicologia lhe concedem.
TRABALHO, ATIVIDADE E SUBJETIVIDADE
De um modo geral, considera-se como opostos o trabalho de conceção e o
trabalho de execução, aquele passando por mais nobre do que este. A distinção não é completamente falsa, mas convém sublinhar que não existe tal
coisa como um trabalho de mera execução, se com isto quisermos designar
uma atividade de estrita obediência às instruções, processos ou ordens.
Todos aqueles que trabalham contornam os regulamentos, infringem
os procedimentos, transgridem as ordens e ludibriam as instruções. Não
necessariamente pelo gosto imoderado pela resistência ou pela desobediência, mas de modo mais corrente para fazer bem o seu trabalho.
Porque o trabalho concreto não se apresenta nunca exatamente como foi
previsto pelos que o conceberam e organizaram (F. Daniellou, A. Laville,
& C. Teiger, 1983). Há sempre imprevistos, bloqueios, disfuncionamentos, incidentes em todo o tipo de trabalho. O que está prescrito é o que
designamos sob o nome de tarefa. O que concretamente fazem os trabalhadores é a atividade. Resumindo, trabalhar é constantemente ajustar,
adaptar, reparar, arranjar. Aquele que não sabe fazer batota ou que não o
tenta fazer é um mau profissional. Porque aquele que se limita a uma execução estrita das prescrições peca por excesso de zelo. Nenhuma empresa,
nenhuma oficina, nenhuma organização pode funcionar se as pessoas se
limitarem à execução dos procedimentos oficiais. Um exército em que
os homens se contentam em obedecer às ordens é um exército vencido.
Se os enfermeiros executassem rigorosamente as ordens dos médicos,
haveria muitos mortos nos hospitais, o que precisamente conseguem
evitar graças ao seu zelo.
Mas o que é afinal o zelo? O zelo são duas coisas:
1. A inteligência que permite inventar as soluções necessárias para
resolver o desfasamento entre a «tarefa» (o prescrito) e a «atividade» (o efetivo).
2. A mobilização dessa inteligência em situações de trabalho muitas
vezes difíceis e apesar dos conflitos que surgem entre os trabalhadores sobre a maneira de tratar esse desfasamento entre o prescrito
e o efetivo.
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Desta abordagem do trabalho pela Ergonomia e pela clínica do trabalho, depreende-se que o trabalho é aquilo que o próprio trabalhador
precisa de inventar e acrescentar às prescrições para que as coisas corram
bem. Este zelo do qual falamos não é outra coisa senão o trabalho vivo,
sem o qual nenhuma organização laboral pode passar.
O trabalho nesta perspetiva apresenta-se fundamentalmente como
um enigma. O que é então preciso acrescentar às prescrições para que
corra bem? Não o sabemos antecipadamente e ainda por cima é preciso
inventá-lo. Em que consiste a inteligência que é para isso convocada?
Quais são os recursos psicológicos envolvidos? É um segundo enigma.
A análise mais aprofundada do zelo no trabalho mostra que a aptidão no trabalho passa por um envolvimento total da subjetividade do
trabalhador. Para se tornar competente no seu trabalho, aquele precisa
de aceitar a experiência do real e do fracasso, suportar o sofrimento até
não conseguir dormir de noite, até contaminar as relações no espaço
doméstico, até sonhar com isso. O psicanalista tem essa experiência com
a aprendizagem do seu próprio trabalho. Mas acontece o mesmo para
se tornar competente na condução de uma central nuclear, assim como
em todo o tipo de trabalho.
É por causa deste envolvimento da subjetividade no zelo no trabalho que este último nunca pode ser neutro em relação ao ego e à saúde
mental.
Pode gerar o melhor; neste ponto, em certos casos o trabalho torna-se
o mediador essencial na construção da saúde mental. Mas pode também
gerar o pior e conduzir à doença mental, à descompensação psíquica.
O TRABALHO VIVO
O trabalho vivo é o que o sujeito deve acrescentar às prescrições para
atingir os objetivos. Com efeito, o trabalho está sempre cheio de incidentes, de momentos de mau funcionamento dos recursos técnicos (quer se
trate da central nuclear, do avião ou do computador), de ordens contraditórias vindas da hierarquia, de perturbações vindas de pedidos urgentes formulados por terceiros, de colegas que faltam às suas responsabilidades, de desistências de última hora da parte dos clientes, etc. É o que
chamamos o «real» do trabalho. O trabalhador conhece este «real» quando
se confronta com aquilo que foge ao seu controlo.
A experiência do mundo real, quer dizer, daquilo que foge ao controlo,
leva inevitavelmente ao insucesso. Ou seja, a uma experiência afetiva:
surpresa, desagrado, desgaste, irritação, deceção, raiva, sentimento de
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impotência… todos estes sentimentos são parte integrante do trabalho.
São a matéria-prima fundamental no conhecimento do mundo. É afetivamente que o mundo real se revela ao sujeito que trabalha. Aquele
que é pouco sensível a isto é inevitavelmente um inapto. Quebra as
máquinas porque não sabe sentir afetivamente quando estão bloqueadas. O cuidador inapto desestabiliza o doente porque não reconhece
emocionalmente a angústia do outro. Para experienciar afetivamente o
mundo real e, portanto, conhecer o mundo, é preciso em primeiro lugar
um corpo, porque é com o corpo que se vivenciam os afetos.
Trabalhar é principalmente falhar. Mas é também em seguida
mostrar-se capaz de encaixar o falhanço, tentar de outra forma, falhar
de novo, voltar à obra, não abandonar, pensar nisso fora do trabalho,
aceitar uma certa invasão da preocupação com o real e com a sua
resistência, mesmo no espaço privado. Como os jovens psicanalistas
que falam de psicanálise incansavelmente e em toda a situação, das
dificuldades práticas e dos sucessos que encontram, também o jovem
engenheiro responsável pela condução ou manutenção de uma central
nuclear deve aceitar ocupar-se 24h/24h com as vicissitudes do seu
trabalho. Trabalhar não é só falhar, é também ser capaz de suportar
o insucesso o tempo que for necessário para encontrar a solução que
permita superar o real.
A “CORPROPRIAÇÃO” (CORSPROPRIATION)
Na verdade, esta resistência ao falhanço é decisiva. Para encontrar a
solução, é preciso primeiro estabelecer uma verdadeira intimidade com
a resistência colocada pelo real; é preciso lutar corpo a corpo com ela.
E podemos mostrar que o enigma do real, que se apresenta em todo o
tipo de trabalho, necessita em primeira instância de ser «apropriado»
segundo modalidades específicas, para poder ser decifrado. Encontrar a
solução conveniente é impossível sem uma familiarização subjetiva e afetiva do corpo com o real, que o filósofo Michel Henry teorizou sob o conceito de «corpropriação» (corspropriation) do mundo (M. Henry, 2004).
Esta “corpropriação” não é somente cognitiva. A sua essência joga-se no
corpo a corpo com o real, quer se trate do psicanalista que tenta detetar a angústia do paciente que ameaça a rutura da cura analítica, esforçando-se por dar forma a essa angústia, tentando encontrar os seus contornos e conteúdo, quer seja o técnico que procura sentir a instalação
nuclear que não reage como habitualmente e que ameaça escapar à sua
capacidade de controlo.
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No fundo, cada nova configuração do real encontrado no trabalho
exige o desenvolvimento de novas aptidões, de que o trabalhador não
dispunha até então. Desta forma, o trabalho entendido como trabalho
de produção – poiésis –, para ser de qualidade, convoca a subjetividade
ao nível das camadas mais íntimas, a saber, no corpo, lugar da experiência subjetiva. Cada aptidão é de facto o resultado de uma elaboração
da experiência subjetiva do corpo confrontado com o real. No fundo,
é o corpo que confere à inteligência o seu génio; por exemplo, o poder
fazer funcionar a regressão formal ao serviço de uma procura intuitiva
de soluções. Assim, o trabalho de produção – poésis – é transformado
graças à persistência, exigindo um outro trabalho – Arbeitsanforderung –
que se impõe ao psiquismo através da sua relação com o corpo, desde
que a experiência da resistência do real seja em primeiro lugar feita no
corpo. O léxico freudiano está repleto de ocorrências do termo Arbeit.
O trabalho-poésis implica num segundo tempo um trabalho do próprio
sobre si mesmo – trabalho-Arbeit: Erarbeiten, Durcharbeiten, do qual
depende a aquisição de novas aptidões. O prazer retirado do facto de conseguir levar a cabo o trabalho-Arbeit, despoletado pelo trabalho-poésis,
é uma experiência emocional e está ligado à expansão da subjetividade.
Trabalhar não é somente produzirmos, é também transformarmo-nos.
Com efeito, há no trabalho de qualidade uma promessa de crescimento
ao nível da sensibilidade e da inteligência do corpo, que é também uma
promessa de realização de si mesmo.
À força de trabalhar a madeira, o marceneiro distingue as substâncias
com o seu olfato e o seu tato e desenvolve registos de sensibilidade ignorados pelos profanos. O marinheiro, à força de se desenvencilhar no meio
das ondas, experiencia a água, a ondulação, as vagas, o oceano com um
prazer ignorado pelos outros. À força de lutar com o seu instrumento, o
violinista ouve na arte de outro virtuoso sonoridades às quais não teria
tido acesso antes de se ter dedicado ao seu violino.
Uma longa análise metapsicológica mostraria que este corpo que goza
do aumento da sua capacidade para sentir não é o corpo biológico, mas
o corpo erógeno, ou seja, este corpo que eu habito, este corpo que está
envolvido na expressividade, na mímica, no gesto, que usa os recursos
do corpo. E é precisamente este mesmo corpo que está envolvido no
encontro erótico (C. Dejours, 2001).
Assim, o trabalho é para o corpo uma experiência extraordinária, através da qual experiencia a vida, mas também através da qual pode transformar-se e crescer. Trabalhar nunca é só produzir, é também transformar-se.
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Tudo o que disse até agora sobre o trabalho de execução é também
válido para o trabalho intelectual: é com o corpo que o professor ou o
ator sentem e percebem como o seu público os escuta em cada momento,
ajustando depois o seu saber-fazer corporal, o qual designamos sob o
nome de «ação dramatúrgica», de modo a cativar a sua atenção. É com
o corpo que experienciamos afetivamente o contacto com os pacientes
e que adquirimos um conhecimento sobre o seu estado psíquico – é um
«conhecimento pelo corpo» (expressão vinda de Bourdieu, que por seu
lado a empregava noutro contexto).
A maneira pela qual o trabalho comum convoca a subjetividade do
trabalhador competente constitui o primeiro nível da sublimação.
Freud não pressentiu esta dimensão do trabalho e da sublimação, por
múltiplas razões. Ainda marcado pelo Romantismo, idealiza o génio e
não vê o que a inteligência deve ao trabalho quotidiano (ver «Mozart,
sociologia de um génio», Elias, 1991). Desconfiado em relação ao trabalho
comum, Freud não pode conceber que a sublimação possa ser indissociável do trabalho e desconhece que todo o trabalho de qualidade exige um
trabalho sobre si mesmo, que requer um certo génio. Ainda assim, não
se trata de negar as diferenças de amplitude entre as obras. Voltaremos
ao assunto mais à frente.
TRABALHO, COOPERAÇÃO E ATIVIDADE DEÔNTICA
Se bem que o que concerne à relação solipsista do indivíduo com o trabalho seja já de si muito complexo, ficar pela centralidade subjetiva
do trabalho é uma simplificação injustificada. Efetivamente, o trabalho
implica também, na maior parte das situações, a relação com o outro.
Trabalha-se para alguém, para um cliente, para um chefe, para os subordinados, para os colegas. Por vezes, o trabalho implica também o coletivo, que tem como eixo central a questão da cooperação.
Acontece com a cooperação o mesmo que acontece com a atividade.
Ou seja, existe sempre uma discrepância entre a organização do trabalho
como é concebida, o que designamos como coordenação, e a organização do trabalho como acontece efetivamente, o que designamos como
cooperação.
Trabalhar não é só mobilizar a inteligência do corpo, que os Gregos
designavam como Métis (M. Detienne & J.-P. Vernant, 2009). Agora é
de uma outra inteligência que falamos. Uma inteligência que se aparenta com uma forma de sabedoria, tanto moral, como política, de que
Aristóteles falou longamente: a sabedoria prática – phronésis. Porque
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a coordenação prescreve a divisão das tarefas, o que está atribuído a
quem, as prerrogativas de cada um, as limitações de papéis e de funções.
A coordenação é o lugar do exercício do poder e do domínio. Mas aí,
novamente, basta limitar-se a obedecer estritamente ao que é prescrito
para que o poder se afunde.
A cooperação é uma outra coisa. Ela implica um reajustamento consensual da organização tal como foi prescrita. Para isso, aqueles que se
esforçam para trabalhar juntos como um coletivo ou uma equipa precisam
de reorganizar a divisão das tarefas e dos recursos humanos, criando
regras práticas, aceites e respeitadas por todos.
Por falta de tempo, não posso comentar aqui todos os elos intermediários do processo de construção da cooperação. Assinalarei somente
que isto exige que se estabeleça entre aqueles que trabalham relações
de confiança. É a condição para que cada um possa mostrar aos outros
como trabalha, sem recear que, ao revelar as suas transgressões, isto
possa voltar-se contra si.
Desta forma, podem então ser postos à discussão os diferentes modos
operatórios de cada um, para poder ser decidido em conjunto o que
pode ser admitido e o que deve ser evitado ou proibido. Para além da
confiança e da visibilidade, é preciso ainda a capacidade para exprimir o
seu ponto de vista, e depois ser capaz de justificar e mesmo defender a
sua opinião. É preciso também ser capaz de escutar os outros. Tudo isto
consiste afinal em dar a sua contribuição para a deliberação coletiva sobre
“como” trabalhar em conjunto. Na melhor das hipóteses, conseguem-se
acordos consensuais sobre as maneiras de fazer e de trabalhar, sobre as
responsabilidades e as obrigações de cada um. Noutros casos, o acordo
consensual não pode ser atingido. Há litígio e é preciso a dado momento
optar por uma decisão que, não sendo consensual, só se torna operante
caso seja proferida por alguém que goze de uma autoridade efetiva.
A autoridade é também uma dimensão difícil de estudar. Acrescentando
mais um grau de complexidade, caso se chegue a um acordo, este ganha
então o valor de um acordo normativo, quer dizer, um acordo que será
a partir desse momento a referência para todos. Quando se conseguem
agregar vários acordos normativos, consegue-se construir o que se chama
um regulamento de trabalho. Quando por fim várias regras são articuladas
entre elas, formam um “regulamento profissional”.
Podemos mostrar facilmente, a partir da análise do processo de construção dos regulamentos, que uma regra nunca tem só uma vocação
técnica. Ela é, simultaneamente e sem exceção, uma regra social, que
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organiza a convivência e a vida em conjunto. Trabalhar não é unicamente
produzir, é também viver em conjunto. Regra de trabalho e convivência
caminham sempre lado a lado.
Em resumo, as regras de trabalho estruturam o trabalho concreto,
dando forma à cooperação propriamente dita, a qual é sensivelmente
diferente da organização que foi prescrita, quer dizer, da coordenação.
A esta atividade de construção de regras, que consome uma boa parte
do nosso tempo e da nossa energia, damos o nome de atividade deôntica.
Não existe um coletivo enquanto tal a não ser que hajam regras que
organizem a atividade comum. Senão não é um coletivo, é um grupo ou
uma multidão, ou mesmo uma massa.
A atividade deôntica faz parte integrante do trabalho quotidiano e
conduz a diferenciações, por vezes muito marcadas, entre equipas ou
coletivos, entre estilos de trabalho. Os coletivos e os grupos profissionais
têm uma história e esta não é senão a história dos seus regulamentos e
das transformações sucessivas que estes sofreram.
ATIVIDADE DEÔNTICA, ESPAÇO DE DISCUSSÃO E IDENTIDADE
Como podem dar-se conta, trabalhar em conjunto não está dado à partida e não é natural. Supõe uma enorme implicação, quer dizer, uma
outra forma de zelo. Mais uma vez, não existe trabalho que seja meramente de execução. Nesta circunstância, para poder cooperar é preciso
correr riscos: entre outros, o de se manifestar, de mostrar o que fazemos e de dizer o que pensamos. Indubitavelmente, isto é correr riscos.
Mas então por que é que os trabalhadores admitem correr riscos em
vez de fazerem todos greve de zelo? Certamente mais fácil, ela é praticada por um certo número de trabalhadores, que se limitam a fazer o
mínimo indispensável, apesar das críticas e da cólera dos outros, os quais
honestamente se implicam na obra comum.
Aqueles que participam na atividade deôntica, na vida do colectivo e
na vida em comum, trazem de facto uma enorme contribuição à cooperação, à organização do trabalho, à empresa ou à instituição e, no limite,
à sociedade. Se eles se implicam dessa maneira é porque, em troca desta
contribuição, esperam uma retribuição. Ora, a clínica do trabalho é sobre
este ponto incontestável – a retribuição que mobiliza a maioria dos trabalhadores não é a retribuição material. Não que ela não seja importante,
certamente, mas não é o motor. A retribuição esperada é antes de tudo
uma retribuição simbólica. A influência da retribuição material sobre a
mobilização subjetiva depende ela própria da sua dimensão simbólica e
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reenvia diretamente a critérios de justiça e equidade. A retribuição simbólica esperada toma normalmente a forma do reconhecimento. Na sua
dupla aceção: reconhecimento no sentido de gratidão pelo serviço prestado; e reconhecimento no sentido de julgamento sobre a qualidade do
trabalho realizado. Também o reconhecimento só atinge a sua eficácia
simbólica caso seja obtido e conferido de acordo com procedimentos,
com critérios extremamente rigorosos.
Não tenho tempo de desenvolver este ponto, que é atualmente bem
conhecido (I. Gernet & C.Dejours, 2009). Limitar-me-ei apenas a dizer
que o reconhecimento passa por julgamentos. Existem duas formas de
julgamentos:
O julgamento de utilidade faz-se sobre a utilidade económica, social
ou técnica da contribuição de um sujeito na organização do trabalho.
Este julgamento é essencialmente proferido pelos superiores hierárquicos, bem colocados para aferir a utilidade de um trabalho bem
feito. Mas também o é pelos subordinados, cujo julgamento sobre a
qualidade da prestação do chefe pode ser severo, e de facto não haveria cooperação no trabalho sem reconhecimento recíproco entre os
subordinados e o seu chefe. O julgamento de utilidade pode também
emanar do cliente, do utilizador, do paciente, do aluno, quer dizer,
do beneficiário da qualidade do serviço. O julgamento de utilidade é
importante para o sujeito, porque lhe confere um estatuto no seio da
organização para a qual trabalha e, para além disso, um estatuto na
sociedade. A condição para poder aceder não só a um salário, mas
aos direitos sociais, é que a sua atividade seja reconhecida como um
trabalho e não só como um hobby, um passatempo ou uma ocupação.
O julgamento de utilidade é a condição da sua afiliação na sociedade e
da sua inscrição na pólis, como o demostram todas as lutas à volta da
questão dos vistos de residência, tanto em França como no estrangeiro.
Aquando da restruturação de uma empresa ou de uma administração,
um assalariado até aí muito considerado e com boas avaliações pode
passar a ser visto pela hierarquia como inútil, e o sofrimento que daí
decorre pode ter consequências nocivas. Para se dar conta disto, basta
pensar nos efeitos terríveis daquilo que normalmente se chama «ser
posto na prateleira», quer dizer, o ser relegado para tarefas subalternas
ou inúteis, ou mesmo ser proibido de trabalhar, mas mantendo o salário.
Um grande número de profissionais que são postos na prateleira são
devastados pela vergonha e pela perda de confiança em si mesmos e
afundam-se na depressão.
A Sublimação, entre Sofrimento e Prazer no Trabalho | 1 9
O julgamento de beleza: o segundo julgamento é proferido pelos pares.
Já não diz respeito só à utilidade, mas à beleza do trabalho realizado
por um trabalhador. Enuncia-se sempre em termos estéticos: é um belo
trabalho, é uma bela obra, é uma demonstração elegante, é uma linda
forma. O julgamento de beleza afere primeiro a conformidade do trabalho realizado com as regras da arte, com as regras da profissão. Este
julgamento não pode ser proferido senão por um outro que conheça
as regras da arte e da profissão a partir de dentro. É o julgamento dos
pares, certamente o mais severo, mas que é também o mais apreciado.
O seu impacto sobre a identidade é considerável. Reconhecido pelos
seus pares, um trabalhador acede ao sentimento de pertença: pertença
a uma equipa, a um coletivo, a uma comunidade profissional. É através
do sentimento de pertença que o trabalho permite evitar a solidão. Diz-se
que é um piloto de guerra como os outros pilotos de guerra, que é um
investigador como os outros investigadores, que é um psicanalista como
os outros psicanalistas.
Existe uma segunda aceção do julgamento de beleza, que diz respeito
ao reconhecimento por parte dos pares da originalidade, até mesmo do
estilo, da prestação de um trabalhador. Este julgamento de originalidade
é certamente o mais precioso, aquele através do qual o trabalhador se
distingue de todos os outros. É diferente do julgamento de conformidade,
mas apenas é acessível quando este já tiver sido proferido.
Convém todavia sublinhar que, em relação a estes dois julgamentos
de utilidade e de beleza, o que é esperado pelo trabalhador é que digam
respeito à qualidade da prestação, à qualidade do trabalho apresentado.
Não é senão num segundo tempo que o sujeito pode transferir este julgamento do registo do fazer para o registo do ser, da identidade.
O reconhecimento, por esta razão, tem um impacto considerável sobre
a identidade. É graças ao reconhecimento que uma parte essencial do
sofrimento é transformada em prazer no trabalho. Estamos aqui longe
do masoquismo, quer dizer do prazer retirado diretamente da erotização
do sofrimento. O caminho para o prazer passando pelo reconhecimento
é muito mais longo e não vem da excitação sexual, depende sim do julgamento do outro. Assim, pode compreender-se o reconhecimento do
trabalho como a segunda dimensão da sublimação. Os termos enigmáticos de Freud para qualificar a sublimação tomam, sob a lupa da psicodinâmica do trabalho, um significado preciso. «É uma certa espécie
de modificação do objetivo e de mudança do objeto, na qual a nossa
escala social de valores entra em linha de conta, que distinguimos sob o
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nome de sublimação» (S. Freud, 1933). A forma como a escala social de
valores entra em linha de conta na sublimação parece então passar pelos
julgamentos de reconhecimento dos outros: julgamento de utilidade e
julgamento de beleza. A psicodinâmica do reconhecimento no trabalho
constitui o segundo nível da sublimação e introduz na questão uma nova
dimensão: o sucesso da sublimação depende em boa parte do julgamento
do outro e da lealdade de todos os envolvidos nesse reconhecimento
(enquanto que o primeiro nível da sublimação, o da “corpropriação”, é
estritamente intrasubjetivo).
Para muitos dos nossos pacientes, no fim da adolescência a identidade é incerta, inacabada, imatura e o risco de crise de identidade com
as suas consequências psicopatológicas não está longe. É por isso que
o trabalho, através do reconhecimento, constitui em muitos casos uma
segunda hipótese de construção da identidade e da saúde mental.
UM NOVO MÉTODO DE ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO:
A AVALIAÇÃO INDIVIDUALIZADA DO DESEMPENHO
No momento em que a invasão do mundo do trabalho pelos novos métodos de gestão atingia o seu auge, um novo método de organização, diretamente ligado à doutrina da gestão, é introduzido na maior parte das
empresas privadas, assim como no serviço público. Trata-se da avaliação
individualizada do desempenho. Este método é apresentado como uma
forma «objetiva» de avaliar o trabalho de cada indivíduo e de estabelecer
comparações entre trabalhadores. A avaliação individualizada tem como
princípio uma análise quantitativa e objetiva do trabalho, passando pela
medição dos resultados.
A avaliação do trabalho por métodos objetivos e quantitativos de
mensuração apoia-se em bases científicas erradas. Podemos com efeito
mostrar que, no estado atual do conhecimento nas ciências do trabalho,
é impossível medir o trabalho propriamente dito (C. Dejours, 2003).
Com efeito, como já vimos, se sabemos onde começa o trabalho, somos
incapazes de estabelecer critérios generalizáveis para delimitar o modo
como o trabalho convoca a personalidade, bem para além do horário e
do local de trabalho (indivisibilidade entre o estar no trabalho e fora do
trabalho). Atualmente, não sabemos medir o tempo psíquico e intelectual
que um trabalhador dedica ao seu trabalho para adquirir as aptidões e as
competências que precisa para atingir os objetivos e ter um bom desempenho. Por maioria de razão, com o importante desenvolvimento que
conheceram as atividades que implicam essencialmente competências
A Sublimação, entre Sofrimento e Prazer no Trabalho | 21
relacionais, é difícil tornar objetivo e quase impossível medir os recursos
psicológicos envolvidos no trabalho efetivo.
E, de facto, a avaliação individualizada não mede o trabalho! No
melhor dos casos, mede o resultado do trabalho. Mas precisamente, não
há qualquer proporcionalidade entre o trabalho e o resultado do trabalho.
Se trato doentes idosos com morbilidade múltipla, o meu trabalho é mais
difícil do que se tratar pacientes jovens que sofrem de uma patologia
única. E, certamente, os resultados são menos bons do que aqueles que
obtenho com doentes jovens. Do mesmo modo, é mais fácil fazer um
grande volume de negócio numa agência bancária de um bairro rico no
centro da cidade do que nos bairros populares da periferia. O volume de
negócio não é proporcional ao trabalho prestado.
Este método de avaliação quantitativa é, pois, falso e gera sentimentos de injustiça que têm também efeitos nocivos sobre a saúde mental.
Mas o mais grave são provavelmente os efeitos deste método no trabalho coletivo, na cooperação e na convivência.
Efetivamente, a avaliação individualizada e quantitativa do desempenho coloca todos os assalariados em concorrência uns com os outros.
Os sucessos de um colega tornam-se uma ameaça para o outro assalariado. É agora cada um por si e todos os golpes são permitidos. A desconfiança e o medo recaem sobre o mundo do trabalho. A deslealdade
torna-se banal. A amabilidade e a entreajuda desaparecem. As pessoas
já não se falam. A solidariedade desaparece. No fim, cada um se encontra só no meio da multidão, num ambiente humano e social repleto de
hostilidade. A solidão abate-se sobre o mundo do trabalho e isso muda
radicalmente os dados no que diz respeito à relação subjetiva com o
trabalho e à saúde mental.
Contrariamente ao que afirmam certos autores, o assédio no trabalho
não é novo. Se, efetivamente, as vítimas de assédio aumentam consideravelmente, não é por causa do assédio em si, é por causa da solidão.
Porque, face ao assédio, face à injustiça, e mesmo mais trivialmente face
às dificuldades quotidianas do trabalho e aos insucessos que comporta
toda a vida profissional, não é de todo idêntico enfrentá-los com a ajuda
e a solidariedade dos outros ou encontrar-se sozinho, isolado e num
ambiente humano potencialmente hostil.
A multiplicação atual dos suicídios no trabalho não resulta só das
injustiças, do infortúnio ou do assédio. Resulta principalmente da
experiência atroz do silêncio dos outros, do abandono por parte dos
outros, da recusa em testemunhar dos outros, da cobardia dos outros.
22 | Christophe Dejours
A traição pelos colegas, pelos próximos, é mais dolorosa do que o
próprio assédio. Assediada, mas beneficiando do apoio moral e da simpatia dos outros, a vítima resiste psiquicamente muito melhor. Porquê?
Porque os sinais de solidariedade moral significam que todos fazem a
mesma interpretação das críticas e das acusações feitas pela hierarquia
contra a vítima: estas últimas advém, no entender de todos, da injustiça
e do assédio.
Enquanto que, encontrando-se só face aos ataques, a vítima não sabe
se deva compreender a falta de coragem dos outros como uma traição
ou, pelo contrário, como um julgamento pejorativo partilhado por todos,
incluindo os mais próximos, sobre a qualidade do seu trabalho. Assaltada
pela dúvida sobre as suas próprias qualidades, duplica os esforços, pensando poder ainda assim reconquistar a estima e a confiança dos seus
chefes. E esgota-se, não dorme de noite… até que comete erros que vão
agravar o assédio e a vão convencer que está em falta e que merece o
infortúnio que sobre ela se abate.
Então, a espiral da depressão, com sentimentos de fraude, de fracasso,
de descrédito, etc., pode apoderar-se do trabalhador. O silêncio dos outros
face ao assédio de um colega desencadeia a desagregação do sentido
partilhado de justiça, de dignidade, de solidariedade, ou seja, do que
constitui o «terreno» comum sobre o qual é construído o «mundo», este
mundo que habitamos juntos na nossa diversidade (H. Arendt, 1993).
A derrocada deste «terreno comum» conduz ao que H. Arendt designa
sob o nome de «loneliness», traduzido em francês pelo termo de «dé-sol-ation» ou desolação (H. Arendt,1951).
O SOFRIMENTO ÉTICO
É neste contexto perturbado que certos trabalhadores acabam por aceitar colocar o seu zelo ao serviço de objetivos que a sua moral reprova.
Por exemplo, para atingir o volume de negócio a que nos comprometemos ao assinar um contrato de objetivos, somos obrigados a explorar os
clientes. Ou ainda, para aumentar o rendimento da sua equipa, o gestor
tem que manipular os subordinados, usando alternadamente a promessa
e a ameaça. Para aprender a arte de enganar o cliente ou de manipular
os subordinados existem formações ad hoc; afixam-se guiões no ecrã
do computador destinados a ajudar o operador a responder às questões
embaraçosas colocadas pelos clientes; ou ensinam-se as formulações mais
eficazes para impressionar os subordinados. Por outras palavras, daqui
para a frente temos ordem para mentir aos clientes e aos subordinados
A Sublimação, entre Sofrimento e Prazer no Trabalho | 2 3
e para os manipular. Mentiras e manipulações são prescritas. Quaisquer
que sejam os meios utilizados e as infrações aos regulamentos, a direção fechará os olhos se o volume de negócio for atingido.
Outrora, os trabalhadores não teriam aceitado obedecer a estas imposições porque estariam em contradição com os valores do serviço público
e com a lealdade devida aos utilizadores. Mas hoje em dia o trabalhador
hesita. Porque todos os outros, dos dirigentes aos colegas, dos quadros
aos subordinados, toda a gente aceita colocar o seu zelo ao serviço de
ações que a consciência moral reprova. (É para isso que caminhamos
com a desestruturação do sentido de justiça, quando afirmamos que o
mundo tal como o conhecíamos, o terreno comum de convivência, entram
em derrocada: lloneliness.)
Abre-se aqui um novo capítulo na clínica do trabalho, o do sofrimento ético, quer dizer, o sofrimento que desencadeia a experiência da
traição de si mesmo (C. Dejours, 1998). O que é grave aqui, do ponto
de vista psicopatológico, é que um recurso suplementar de sublimação
é anulado. «A nossa escala social de valores», vimo-lo anteriormente,
reenvia ao reconhecimento. Na nossa primeira abordagem, «a escala
social de valores» passava pelo julgamento do outro. O novo capítulo do
sofrimento ético torna mais compreensível uma segunda faceta da forma
como «a nossa escala social de valores entra em linha de conta», a saber,
o julgamento que o sujeito faz de si próprio, não só sobre a qualidade da
sua contribuição no que concerne a produção, mas sobre o valor ético
da sua prestação. Porque, pela sua atividade de produção, o trabalhador
compromete, de facto, o destino de outro, em particular do cliente que
tem obrigação de enganar ou do subordinado que deve «colocar sob
pressão». Isto significa que o trabalho não se reduz a uma atividade,
implica dimensões que advém da ação, no sentido que Aristóteles dá ao
conceito de praxis: ação moralmente justa. As novas patologias ligadas
ao sofrimento ético mostram que, atrás da noção de valor, se encontra
implicitamente designada a base ética da sublimação, a qual envolve
aquilo que, no narcisismo, diz respeito à auto-estima. É de algum modo
o terceiro nível da sublimação: quando o trabalho vivo é efetivamente
julgado e deliberadamente orientado com vista a honrar a vida, então
os efeitos do trabalho sobre a identidade ou sobre o eu traduzem-se em
acréscimo de auto-estima e de amor próprio.
Quando aceita colocar o seu zelo ao serviço de ordens e de prescrições que desonram a Kultur, no duplo sentido alemão de cultura e de
civilização, o trabalhador fragiliza ainda mais as bases intrasubjetivas
24 | Christophe Dejours
da sua identidade e torna-se ainda mais dependente do reconhecimento
da empresa para manter a sua identidade. É assim que a armadilha se
fecha. Porque depois de ter servido com zelo a empresa, depois de ter
contribuído incansavelmente para o sucesso da equipa, é agora a sua vez
de cair em desgraça e, como recompensa, ver-se humilhado, castigado,
assediado ou dispensado.
Quem poderia então procurar para falar da sua angústia e tentar
elaborá-la? Não os colegas, que não precisam de o fazer, nem as pessoas
próximas, porque seria preciso então revelar-lhes os compromissos sucessivos a que se foi submetendo e que eles ignoram. É neste contexto que
surge, para um trabalhador para o qual até aí tudo corria bem, a solidão
implacável do infortúnio neste contexto de desolação, e que pode provocar a passagem brutal ao ato, da angústia ao impulso suicida.
E de facto aqueles que são mais vulneráveis ao suicídio encontram-se
entre os trabalhadores mais implicados nas suas tarefas e que puseram
mais empenho no serviço prestado. Aqueles que fazem o mínimo exigido,
os preguiçosos, não se suicidam quando caem em desgraça.
A clínica do trabalho, procedendo à investigação dos suicídios no
trabalho, sugere que o trabalho implica a subjetividade e a identidade
de todos aqueles que se envolvem de forma autêntica na ética de um
trabalho de qualidade. O trabalho pode gerar o melhor, quando se
abre à sublimação e permite levar a termo uma atividade socialmente
valorizada. Os suicídios no trabalho em França apareceram recentemente, dado que os primeiros que foram recenseados remontam a
1995. Marcam uma viragem histórica na medida em que assinalam
o aparecimento do sofrimento ético naqueles que são levados, pelas
novas formas de organização do trabalho, a viver a experiência de se
trair a si próprio.
TRABALHO VIVO E TEORIA SOCIAL
Esta viragem histórica é uma ameaça para os indivíduos, mas é também
uma ameaça para a civilização, porque marca a possibilidade de romper a continuidade entre o trabalho quotidiano e a cultura. A cultura,
com efeito, é o que nas obras humanas se acumula ao longo do tempo
para honrar a vida. E as obras humanas são e serão sempre o resultado
de um trabalho, desde que este não seja só um trabalho de produção,
poésis, mas também o resultado de um Arbeit, quer dizer, um trabalho
do próprio sobre si mesmo, de uma Arbeitsanforderung, que estampa o
selo da subjetividade numa produção ou numa obra. Ou, para dizê-lo
A Sublimação, entre Sofrimento e Prazer no Trabalho | 2 5
de outra forma, o trabalho da cultura, a Kulturarbeit de Freud, não consiste somente nas obras realizadas pelos «große Männer», quer dizer, os
pintores e os escultores, os compositores e os filósofos, os pensadores e
os investigadores. A produção das obras culturais passa também pelas
relações de cooperação e de transmissão, e implica por vezes a participação de um grande número de indivíduos, quer se trate de construir
pirâmides ou pontes suspensas, de fundar cidades ou instituições, restaurar monumentos históricos ou encenar uma ópera. E quando, em vez
de agrupar as contribuições de cada um à volta do entusiasmo de participar numa obra conjunta, uma empresa ou uma instituição destrói as
relações de convivência necessárias para a cooperação, quando empurra
certos indivíduos para o suicídio, a Kulturarbeit já não está na ordem
do dia. O que se desenha é antes o espectro do falência desta empresa
ou o colapso desta instituição e, se não conseguirmos travar a expansão
deste processo, é a decadência da Kultur.
E de facto o trabalho não é neutro face ao viver em conjunto. Ou o
trabalho, via a atividade deôntica, funciona como meio poderoso para
criar, para transmitir laços sociais de cooperação, ou destrói esses laços
sociais e faz surgir a desolação.
Se insisto neste ponto é porque ele levanta questões teóricas interessantes. A clínica do trabalho, com efeito, sugere que o motor mais potente
de formação dos laços sociais é o trabalho. É para poder cooperar em
obras comuns que os seres humanos procuram vias de deliberação coletiva orientada para a escuta do outro e se esforçam assim para conjurar
os riscos de violência originados pela economia pulsional, a sexualidade
e o inconsciente. Freud tinha-o previsto. Cito-o (“Das Unbehagen in der
Kultur”, OCFP, XVIII, p. 267, nota de rodapé): «Na ausência de uma
predisposição particular prescrevendo imperativamente a orientação para
os interesses vitais, o trabalho profissional comum, acessível a todos,
pode tomar o lugar que lhe é dado pelo sábio conselho de Voltaire. Não
é possível apreciar de forma satisfatória, no contexto de uma breve
visão de conjunto, o significado do trabalho para a economia da libido.
Nenhuma outra maneira de conduzir a sua vida liga tão solidamente
o indivíduo à realidade como o ênfase posto no trabalho, que o insere
seguramente pelo menos numa parte da realidade, a comunidade
humana. A possibilidade de deslocar uma grande parte das componentes libidinais, narcísicas, agressivas e mesmo eróticas para a profissão e
para as relações humanas a esta associadas confere ao trabalho um valor
que o torna indispensável para o indivíduo poder afirmar e justificar a
26 | Christophe Dejours
sua existência na sociedade. A atividade profissional permite procurar
uma satisfação particular quando é livremente escolhida, logo, permite
utilizar através da sublimação as inclinações existentes, as moções pulsionais perseguidas ou constitucionalmente reforçadas.» Efetivamente
as relações entre o trabalho e a sublimação, na perspectiva da clínica do
trabalho, aparecem claramente como base do laço social. Freud é mais
reservado. Não somente a passagem que acabo de citar figura apenas
em nota de rodapé, mas esta nota termina com um comentário dúbio
sobre o trabalho. Cito-o: «E no entanto o trabalho, enquanto via para a
felicidade, é pouco apreciado pelos homens. Não nos apressamos para
isso como para outras possibilidades de satisfação. A grande maioria
dos homens não trabalham senão empurrados pela necessidade e, desta
natural aversão pelo trabalho que têm, surgem os problemas sociais mais
árduos.» (ibidem)
Entre uma teoria do laço social fundada sobre o trabalho e a cooperação e a teoria social formulada por Freud na «Psicologia das massas
e análise do eu», não há uma continuidade nada evidente. De resto, na
sua análise da crise da cultura, Freud faz poucas referências à teoria
social de 1921.
O objeto teórico desta discussão pode recapitular-se de modo lapidar:
o que é que está na base do laço social? O amor (e a libido), como o
defende Freud na «Psicologia das massas», ou o trabalho (e a sublimação)? Não amor e trabalho, mas amor ou trabalho. Não uma afirmação,
mas antes uma questão que, no decorrer desta exposição, me permito
dirigir aos psicanalistas interessados pela teoria social, questão que me
parece constituir um verdadeiro desafio para poder retomar, e de forma
bastante urgente, a questão fundamental da Kulturarbeit.
CONCLUSÃO
Deste percurso entre a clínica do trabalho e a sublimação, podem tirar-se
várias conclusões.
1 – A sublimação não é uma. Podemos decompô-la em:
– um primeiro nível, implicando principalmente a relação do sujeito
consigo próprio, entre “corpropriação” e expansão das capacidades
do corpo
– um segundo nível, implicando principalmente a relação com o outro,
entre o reconhecimento e a solidificação da identidade
A Sublimação, entre Sofrimento e Prazer no Trabalho | 2 7
– um terceiro nível, implicando principalmente a relação com a pólis,
a cultura, a civilização, entre a Kulturarbeit e a realização de si
mesmo e da sua idiossincrasia
2 – A sublimação não é apenas apanágio dos «große Männer». Ela está
em todo o tipo de trabalho sempre que este último for desempenhado
no sentido da procura da qualidade e quando, para o fazer, houver um
esforço para respeitar o regulamento profissional (ética profissional).
3 – A sublimação, limitada aos dois primeiros níveis, o da corpropriação do mundo e o do reconhecimento pelo outro, constitui a «sublimação
comum». Tendo uma influência poderosa sobre a identidade e sobre a
saúde mental, pode apesar de tudo ser atingida mesmo que o esforço
seja posto ao serviço do pior (fabricar armas de destruição massivas, por
exemplo, conduzir os comboios para transportar o rebanho humano para
os fornos crematórios…). Pelo contrário, quando a sublimação é deliberadamente orientada no sentido de honrar a vida e assume as exigências
da Kulturarbeit, surge a sublimação no sentido mais clássico do termo,
que poderíamos designar de «sublimação extraordinária».
4 – Potencialmente, a sublimação oferece benefícios essenciais para a
saúde mental, em termos de crescimento dos registos de sensibilidade do
corpo, da identidade e do amor-próprio. Pelo contrário, as organizações
do trabalho que impedem a sublimação, como o Taylorismo ou a avaliação individualizada do desempenho, são nocivas para a saúde mental.
O trabalho não pode ser neutro no que diz respeito à saúde mental, ou
gera o melhor por intermédio da sublimação, ou então gera o pior, a
ponto de poder, via sofrimento ético, conduzir à ruína do amor-próprio
e à passagem ao ato suicida.
O trabalho vivo pode claramente jogar um papel essencial na estruturação ou na desestruturação do laço social. A renúncia à satisfação
sexual da pulsão (Triebverzicht), que está na origem da sublimação, é
talvez o melhor candidato para dar conta da natureza do laço social, em
vez da libido e do amor, como defende Freud na «Psicologia das massas
e análise do eu».
TITLE:
Sublimation, between pleasure and suffering at work
Based on the conceptual contributions of, the author discusses how the
clinic of work allows us to rethink the psychoanalytic concept of sublimation. Indeed,
in order to give a content to the instinctual destination that Freud characterized as a
ABSTRACT:
28 | Christophe Dejours
change of purpose, one should resort to a detailed clinical analysis of the first level of
sublimation, that is to say intelligence at work. Furthermore, one should consider the
social recognition of activity as a second level of sublimation. Finally, the so called
Kulturarbeit can provide be assimilated to a third level of sublimation.
KETWORDS:
sublimation, clinic of work, recognition, psychodynamics of work.
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