Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Lato Sensu em Relações Internacionais e Diplomáticas da América do Sul Trabalho de Conclusão de Curso A COMUNIDADE DOS ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS: FORMAÇÃO HISTÓRICA, BASES IDEOLÓGICAS, POTENCIALIDADES E DESAFIOS Autor: Douglas Andrade da Silva Orientador: Prof. MSc. Creomar Lima Carvalho de Souza Brasília - DF 2013 DOUGLAS ANDRADE DA SILVA A COMUNIDADE DOS ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS: FORMAÇÃO HISTÓRICA, BASES IDEOLÓGICAS, POTENCIALIDADES E DESAFIOS Trabalho de Conclusão de Curso ao Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Relações Internacionais e Diplomáticas da América do Sul da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do certificado de Especialista Orientador: Prof. MSc. Lima Carvalho de Souza Brasília 2013 Creomar RESUMO SILVA, Douglas Andrade da. A Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos: formação histórica, bases ideológicas, potencialidades e desafios. 2013. 24 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Relações Internacionais e Diplomáticas da América do Sul). Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2013. Integração regional tornou-se tema premente na dinâmica internacional contemporânea. No continente americano, ao complexo arranjo institucional regional, formado por distintas organizações internacionais, com diferentes propósitos e escopos, foi adicionada, em 2010, uma nova instituição: a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC), resultado da fusão entre o Grupo do Rio e a Cúpula da América Latina e do Caribe sobre Integração e Desenvolvimento. A CELAC é composta por todos os 33 países latino-americanos e caribenhos e almeja, como objetivo mais evidente, apresentar a região como um ator coeso e capaz de atuar de modo concertado no sistema internacional. O presente trabalho, no esforço de melhor compreender a recente organização, apresenta a recuperação histórica do contexto no qual suas bases foram estabelecidas, a análise de seus documentos constitutivos, a ideologia responsável por sua criação e as possíveis oportunidades e desafios que sua atuação implica para a dinâmica regional. Palavras-chaves: Integração regional. América Latina e Caribe. CELAC. 2 ABSTRACT SILVA, Douglas Andrade da. A Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos: formação histórica, bases ideológicas, potencialidades e desafios. 2013. 24 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Relações Internacionais e Diplomáticas da América do Sul). Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2013. Regional integration has become a pressing issue in contemporary international dynamics. In the Americas a new institution was added, in 2010, to the complex regional institutional arrangement, formed by different international organizations, with different purposes and scopes: the Community of Latin American and Caribbean States (CELAC), a fusion of the Grupo do Rio and the Latin America and the Caribbean Summit on Integration and Development. The CELAC is comprised of all 33 Latin American and Caribbean countries and aims, as a more evident purpose, to present the region as an actor cohesive and able to act in a concerted manner in the international system. This work, in an effort to better understand the recent organization, presents the historical recovery of the context in which its foundations were laid, the analysis of its constitutive documents, the ideology responsible for its creation and the potential opportunities and challenges that it represents for the regional dynamics. Keywords: Regional integration. Latin American and Caribbean. CELAC. 3 A Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos: formação histórica, bases ideológicas, potencialidades e desafios 1. Introdução Integração regional tornou-se tema premente na dinâmica das relações internacionais contemporâneas, especialmente a partir da segunda metade do século XX. Os desafios impostos pela globalização levaram os Estados a perceber a necessidade de aproximação com seus vizinhos como forma de fortalecer sua inserção internacional. As diplomacias do século XXI compreenderam que atuação isolada implica desvantagens significativas, tanto em termos políticos quanto em termos econômicos, e iniciaram esforços diversos para promover a aproximação com atores considerados estratégicos, a começar pelos de suas regiões. No continente americano, os mecanismos de integração regional são múltiplos e apresentam objetivos e esferas de atuação diversos: Organização dos Estados Americanos (OEA), União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), Mercado Comum do Sul (Mercosul), Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional SulAmericana (IIRSA), Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), Comunidade do Caribe (CARICOM), Comunidade Andina de Nações (CAN), Aliança do Pacífico. Ao complexo arranjo institucional regional somou-se, em 2011, um novo organismo, exaltado por ser o único a reunir, exclusivamente, os 33 países latino-americanos: a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). O presente artigo pretende apresentar uma reflexão sobre o novo organismo. A discussão sobre a Comunidade ainda é incipiente, apesar de sua relevância para o Brasil e para a região, porque sua constituição é recente e sua consolidação ainda não foi concluída. Há, portanto, o risco sempre presente em analisar um processo que ainda não apresentou resultados 4 mensuráveis; existem, no entanto, aspectos relevantes que permitem algumas reflexões sobre a CELAC e sobre sua importância para a região. O presente trabalho procurará apresentar e discutir esses aspectos e, para isso, será dividido em quatro seções. Na primeira seção, será apresentado o processo de formação histórica da CELAC, constituída a partir de arranjos institucionais criados nos anos 1980. Serão abordados, desse modo, seus antecedentes históricos, fundamentais para melhor compreender o contexto em que suas raízes foram constituídas e as concepções que as embasaram. A seção seguinte procurará determinar, por meio da análise dos documentos constitutivos, o que é a CELAC: seus objetivos, seu modo de funcionamento e sua estrutura. Na terceira seção, serão apresentadas as concepções políticas e ideológicas que fundamentaram a criação da instituição, além do contexto político regional que possibilitou a constituição de uma organização dessa natureza. Por fim, serão propostas algumas considerações sobre as potencialidades e as vantagens do novo arranjo regional e sobre seus desafios e suas fragilidades. Objetiva-se, assim, oferecer uma contribuição para a compreensão de um mecanismo de integração regional recente e de sua relevância para a região e para o Brasil. 2. De Contadora à Cúpula da Unidade Durante o fim dos anos 1970 e início dos 1980, a América Central e o Caribe transformaram-se em zonas de conflito de alta intensidade. Movimentos sociais e revolucionários de libertação nacional recorreram às armas contra regimes autoritários e oligárquicos. Os conflitos extrapolaram o âmbito regional e inseriam-se na lógica da Guerra Fria, que passava por transformações significativas.1 Em Granada, um movimento popular insurgiu-se contra a ditadura que governava o país e formou um regime revolucionário em 1979. Os Estados Unidos rapidamente rechaçaram o novo governo, por considerá-lo “hostil” e “perigoso”, e conduziram uma intervenção militar em 1983, que 1 Após um período de afrouxamento das tensões, conhecido como détente, os atritos entre Estados Unidos e União Soviética voltaram a ganhar força. Episódios como a invasão soviética ao Afeganistão (1979), a Revolução islâmica no Irã (1979), a ascensão de Margaret Thatcher no Reino Unido (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1981) marcaram esse momento, que muitos historiadores chamam de Segunda Guerra Fria (HOBSBAWM, 1995). 5 interrompeu o processo revolucionário. Na Guatemala, durante as décadas de 1970 e 1980, as forças armadas travaram uma “guerra suja” contra os grupos de guerrilha rural e os opositores urbanos, como estudantes ativistas e líderes sindicais. Na Nicarágua, que desde a década de 1930 era governada como uma propriedade privada por uma única família, os Somozas, um movimento revolucionário denominado Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) conduziu uma prolongada resistência que culminou, em 1978, com uma rebelião generalizada, pondo fim ao governo de Anastasio Somoza. Em El Salvador, o governo oligárquico fortemente anticomunista das “quatorze famílias”, ou, às vezes, “as quarenta famílias”, tornou-se uma vitrine da Aliança para o Progresso dos Estados Unidos. As condições da grande maioria dos salvadorenhos, no entanto, eram desastrosas. O exército salvadorenho, treinado e equipado pelos Estados Unidos, conduziu uma sangrenta batalha contra os movimentos revolucionários do país, como a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), que durou até os anos 1990 (BOERSNER, 1996; CHASTEEN, 2001). A América Central viveu um período de indiscriminada violência. 2 Os Estados Unidos, mergulhados na concepção de mundo da Guerra Fria, lidavam com esses conflitos de modo maniqueísta: apoiando indiscriminadamente aqueles atores que considerava “anticomunistas” e combatendo os “comunistas”. Demetrio Boersner (1996, p. 270, tradução nossa), no entanto alerta para o fato de que esta ampla guerra civil centro-americana não se tratava de um choque entre os partidos ideológicos da Guerra Fria – marxistas versus defensores do capitalismo –, mas os fatores determinantes eram de natureza endógena. A revolução do povo campesino, trabalhador e de classe média contra as tiranias político militares e oligárquicas era autêntica e profundamente sentida. É nesse cenário que Colômbia, México, Panamá e Venezuela decidiram coordenar esforços para promover a paz na região e evitar intervenções 2 Um caso em particular exemplifica essa indiscriminada violência. Em 1981, um batalhão de elite salvadorenho, treinado nos Estados Unidos, entrou na minúscula aldeia de El Mazote, em El Salvador, e assassinou, sistematicamente, quase todos os habitantes: centenas de homens, mulheres e crianças desarmados e que não opuseram resistência. Os militares, amparados em uma informação incorreta, acreditavam tratar-se de uma base guerrilheira (CHASTEEN, 2001). 6 militares dos Estados Unidos nos países centro-americanos e caribenhos. Os chanceleres se reuniram, em 1983, na ilha panamenha de Contadora, razão pela qual esses quatro países ficaram conhecidos como Grupo de Contadora. O grupo foi criado em resposta à retomada da política intervencionista estadunidense na América Central, durante o primeiro mandato do presidente Ronald Reagan, materializada na invasão de Granada, em 1983. Boersner (1996, p. 271, tradução nossa) explica que entre 1983 e 1985, os presidentes e chanceleres de Contadora trabalharam incansavelmente com o objetivo de promover uma paz democrática na América Central. Junto com os governos do próprio istmo, elaboraram um plano de paz em setembro de 1984. Com diversas revisões e modificações, o conteúdo desse plano serviu de base para a pacificação paulatina da Nicarágua. Na reunião que deu origem ao grupo, Colômbia, México, Panamá e Venezuela expressaram sua preocupação com o agravamento do conflito centro-americano e com a crescente ingerência externa. É interessante notar a participação de Colômbia e Panamá no Grupo de Contadora, já que os dois países participavam, também, do Foro Pró-Paz e Democracia, o primeiro como membro pleno e o segundo como observador. O Foro, uma iniciativa patrocinada pelos Estados Unidos para isolar diplomaticamente o governo sandinista na Nicarágua, era composto pelos próprios estadounidenses, por Honduras, El Salvador, Costa Rica, Belize, Jamaica e Colômbia. Nesse sentido, o Grupo de Contadora representa o início do abando de posições isoladas e a busca de ações concertadas nas diplomacias latino-americanas, com maior grau de autonomia e de neutralidade. Mesmo tradicionais aliados dos Estados Unidos mostraram a possibilidade de reorientar sua política externa de uma forma independente (ARRIOLA, 1986). O impacto imediado do Grupo de Contadora, no entanto, foi pouco significativo e a situação centro-americana chegou a piorar nos meses seguintes à declaração de chanceleres de Contadora. O desacordo em relação aos mecanismos a serem adotados e a falta de mediadores confiáveis entre todos os envolvidos no conflito indicavam que uma solução negociada era cada vez mais distante. 7 O Foro Pró-Paz e Democracia desintegrou-se com a retirada de Colômbia e Panamá, e o Grupo de Contadora não se apresentava como alternativa às negociações. No entanto, depois de muitos impasses sobre o foro adequado para as negociações sobre a questão da Nicarágua (se a ONU ou a OEA), Contadora finalmente mostrou seu valor. O Grupo elaborou uma lista de oito pontos que seriam a base para as negociações bilaterais e multilaterais e conseguiu estabelecer um diálogo entre as partes envolvidas, o que contribuiu para a diminuição das tensões na Nicarágua e na região. 3 A atuação do Grupo de Contadora mostrou que os próprios latinoamericanos poderiam apresentar alternativas à solução do conflito na América Central e incentivou a atuação mais assertiva dos países da região em questões latino-americanas. O respaldo político para a atuação concertada dos países da América Latina cresceu entre os próprios latino-americanos. Os Estados Unidos viram-se obrigados a reconhecer que o Grupo de Contadora tinha um papel importante nas negociações. Mecanismos similares aos adotados na questão de Nicarágua foram adotados na crise da Guatemala e de El Salvador (BOERSNER, 1996). Com isso, outros países passaram a apoiar os esforços do Grupo de Contadora para a pacificação da região. Em 1985, o Brasil manifesta na ONU seu apoio ao plano de paz do Grupo de Contadora para a crise na América Central. No mesmo ano, é criado, em Lima, Peru, o Grupo de Apoio a Contadora, composto por Argentina, Brasil, Peru e Uruguai, que confere respaldo político adicional à pacificação centro-americana (GARCIA, 2006). As intervenções – ou ameaças de intervenções – dos Estados Unidos na América Central e no Caribe, aliadas a outros fatores, como a crise da dívida externa na América Latina e a Guerra das Malvinas, contribuíram para unir o continente latino-americano. Assim, “a América Latina passou a falar com voz própria, a revelar uma consciência política coletiva, a posicionar-se com coerência” (CERVO; BUENO, 2010, p. 450). Os quatro países do Grupo de Contadora e os quatro do Grupo de Apoio a Contadora conseguiram avanços extraordinários no processo de pacificação centro-americana e, em um movimento natural, ficaram conhecidos como o 3 Para mais sobre o processo de atuação do Grupo de Contadora e sobre os oito pontos, cf. ARRIOLA, 1986. 8 “Grupo dos Oito”: Colômbia, Venezuela, Panamá, México, Brasil, Argentina, Peru e Uruguai. Os países ampliaram suas consultas mútuas para abarcar, também, outros temas de interesse regional, hemisférico e mundial, e, em seguida, se abriram para a adesão de outros países latino-americanos. Nascia, em 1986, no Rio de Janeiro, o Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política, que passa a ser conhecido como Grupo do Rio. Em 1987, é realizada, no México, a I Cúpula entre Chefes de Estado e de Governo do Grupo do Rio, que aprova o Compromisso de Acapulco para a Paz, o Desenvolvimento e a Democracia. É a primeira vez que os países latinoamericanos “se articulam diretamente em torno de temas de interesse comum, em foro regional próprio, sem a presença dos EUA” (GARCIA, 2006, p. 235). É bem verdade que o Grupo do Rio enfrentou desafios significativos para definir seus propósitos e meios de atuação na América Latina: teve sua agenda esvaziada pela constituição de diversos mecanismos de integração regionais e sub-regionais e não conseguiu evitar, por exemplo, a intervenção militar dos Estados Unidos no Panamá, em 1989. No entanto, o formato do mecanismo é o que o diferencia dos outros instrumentos de integração. Para o governo brasileiro, os fundadores do Grupo do Rio resolveram delimitar seu escopo de atuação a reuniões de caráter informal, destinadas a servir como espaço exclusivamente político, apropriado para consultas, troca de informações e eventuais iniciativas conjuntas, decididas sempre por consenso. Ao longo de mais de duas décadas, foram realizadas vinte Cúpulas, vinte e nove reuniões ministeriais ordinárias e três extraordinárias. Sua temática foi aberta, tratando, em geral, de temas importantes para a região. Em suas mais recentes reuniões, o Grupo do Rio abordou questões como a promoção dos direitos humanos e o impacto das migrações (BRASIL, 2012) O Grupo do Rio constituiu, portanto, um espaço sem estrutura institucional, que permitiu aos seus membros estabelecerem diálogos políticos abertos. Apresentou a oportunidade, aparentemente simples, porém essencial ao processo de integração regional, de os países latino-americanos reuniremse para discutir assuntos relevantes para a América Latina e para sua inserção internacional. Foi a oportunidade dos latino-americanos conversarem entre si, trocarem percepções e apresentarem ideias. 9 Em 1992, por exemplo, o governo brasileiro lança, durante a VI Cúpula do Grupo do Rio, a Iniciativa Amazônica, pela qual o Brasil propõe a negociação de acordos de livre comércio com outros países sul-americanos. O Brasil amplia sua proposta durante a VII Cúpula do Grupo do Rio e sugere estabelecimento de uma "Área de Livre Comércio Sul-Americana" (proposta que não prosperou). Em 2004, a XVIII Cúpula do Grupo do Rio discutiu a situação no Haiti, preconizando o engajamento regional na reconciliação política e na reconstrução econômica e social haitiana (GARCIA, 2006). Assim, o Grupo do Rio fortaleceu-se, gradualmente, como espaço presidencial privilegiado. Além disso, pela própria demanda da dinâmica internacional contemporânea, passou a atuar como um mecanismo regional representativo da América Latina e do Caribe em relação a outros países e blocos. O Grupo do Rio ocupou o espaço necessário, e que ainda era incipiente, de interlocutor da região com o resto do mundo, realizando o intercâmbio de pontos de vista sobre importantes temas da agenda internacional. Seus parceiros de diálogo incluem União Européia, Conselho de Cooperação do Golfo, China, Rússia, Canadá, Índia, Japão, Coréia do Sul, ASEAN, Israel, Ucrânia, Liga Árabe, G-77, Grupo GUUAM (Geórgia, Ucrânia, Uzbequistão, Azerbaijão e Moldova), CEI, Austrália, EUA e União Africana (BRASIL, 2012). O Grupo do Rio, portanto, insere-se em um conjunto de mecanismos criados com o objetivo de promover a integração regional. Outra significativa iniciativa nessa direção foi a realização da I Cúpula da América Latina e do Caribe sobre Integração e Desenvolvimento (CALC), no Brasil, em 2008. A Cúpula, uma proposta brasileira, reuniu os 33 países que compõem a América Latina e o Caribe e aprovou a Declaração de Salvador, que destacou a “importância da integração regional, da cooperação, do desenvolvimento sustentável, da erradicação da pobreza e da promoção da justiça social e da democracia”. A Cúpula adotou, ainda, cinco declarações especiais sobre “as Ilhas Malvinas, o bloqueio econômico imposto a Cuba, apoio à solicitação do SICA para que o Panamá continue a receber os benefícios do SGP+, apoio à Bolívia e iniciativa da CALC frente à crise financeira mundial” (BRASIL, 2012). Corroborando a iniciativa brasileira da CALC, o governo mexicano também apresentou uma proposta: a criação da União Latino-Americana e 10 Caribenha (ULC), que partiria das bases do Grupo do Rio para constituir uma nova organização regional. A proposta mexicana reconhecia a agenda da CALC e sugeria sua fusão com o Grupo do Rio (ARAVENA, 2011). Em fevereiro de 2010, no México, foram realizadas em conjunto a XXI Cúpula do Grupo do Rio e a II Cúpula da CALC. Na ocasião, os países latino-americanos e caribenhos decidiram unir os dois mecanismos – Grupo do Rio e CALC – e adotaram a Declaração da Cúpula da Unidade, criando, desse modo, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). 3. A CELAC A CELAC passa a existir, formalmente, em julho de 2011, quando acontece a Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos e a III Cúpula da CALC, última a ser realizada, já que o organismo seria absorvido pela nova organização. A CELAC incorpora o patrimônio histórico do Grupo do Rio (com um viés de concertação política) e o da CALC (objetivos de desenvolvimento e integração), formando uma instuição mais forte que suas antecessoras. Todos os parceiros extrarregionais do Grupo do Rio, por exemplo, foram herdados por sua sucessora. A Declaração de Caracas No Bicentenário da Luta pela Independência, Percorrendo o Caminho de Nossos Libertadores, aprovada na Cúpula constitutiva da CELAC, define a organização como um “mecanismo representativo de concertação política, cooperação e integração dos Estados latino-americanos e caribenhos e como um espaço comum que garanta a unidade e a integração de nossa região”. O documento estabelece que a CELAC deve avançar no processo de integração política, econômica, social e cultural com um sábio equilíbrio entre a unidade e a diversidade de nossos povos, com o objetivo de que o mecanismo regional de integração seja o espaço idôneo para a expressão da nossa rica diversidade cultural e, por sua vez, seja o espaço adequado para reafirmar a identidade da América Latina e do Caribe, sua história comum e suas lutas contínuas pela justiça e pela liberdade (BRASIL, 2011) O documento afirma, ainda, que “as decisões são adotadas por consenso em todas as instâncias, e, caso isso não for possível, serão adotadas 11 por maioria qualificada” (BRASIL, 2011). O texto revela a divergência quanto ao procedimento de tomada de decisões, opondo defensores do consenso, entre eles o Brasil, e aqueles para os quais o consenso paralisaria a organização. É importante considerar que o procedimento adotado, por enquanto, tem sido o consenso (JARDIM, 2011). Quanto à estrutura, a nova organização será formada pela Cúpula dos Chefes de Estado e de Governo, pela Reunião dos Ministros das Relações Exteriores, pela Presidência Pro Tempore, pela Reunião de Coordenadores Nacionais, pelas Reuniões especializadas e pela Troika (composta pela presidência pro tempore atual, pela antecessora e pela sucessora).4 As Presidências Pro Tempore serão, inicialmente, anuais; a primeira foi ocupada pelo Chile, em 2012, seguido por Cuba, Costa Rica e Equador. As Cúpulas são realizadas, ordinariamente, no país que ocupa a Presidência Pro Tempore. A I Cúpula da CELAC foi realizada no Chile, em janeiro de 2013, quando ocorreu, em paralelo, a I Cúpula CELAC – União Europeia. A Cúpula constitutiva da comunidade, em 2011, aprovou, além da Declaração de Caracas, o Plano de Ação de Caracas 2012, o Estatuto de Procedimentos da CELAC e a Declaração Especial sobre a Defesa da Democracia e a Ordem Constitucional na CELAC, que prevê a suspensão de algum membro em caso de “ruptura da Ordem Constitucional ou do Estado de Direito”, a conhecida Cláusula Democrática. O Plano de Ação de Caracas 2012 estabelece intenções e diretrizes nas áreas de crise financeira internacional e a nova arquitetura financeira; complementaridade e cooperação entre os mecanismos regionais e subregionais de integração; energia; infraestrutura para a integração física do transporte, as telecomunicações e a integração fronteiriça; desenvolvimento social e erradicação da fome e da pobreza; ambiente; assistência humanitária; proteção ao migrante; cultura; e tecnologias da informação e da comunicação. 5 Já em seus primeiros comunicados, a CELAC condenou o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos a Cuba e apoiou o pleito argentino pela soberania sobre as Ilhas Malvinas. 4 A Declaração de Santiago, resultado da I Cúpula CELAC, em 2013, incorporou o país que exerce a presidência do CARICOM à troika, que passou, portanto, a compreender 4 membros (BRASIL, 2013). 5 Todos os documentos estão disponíveis em BRASIL, 2011. 12 4. Embasamento ideológico Se ainda é cedo para identificar resultados concretos produzidos pela atuação da nova organização regional, é possível verificar as concepções políticas que motivaram sua constituição. A CELAC viabilizou-se graças a um ambiente político favorável, em grande parte como consequência da coincidência de governos considerados de esquerda (ou que possuem, pelo menos, significativos traços ideológicos comuns) nos principais países da região. O discurso desses atores é fortemente amparado na busca de autonomia e na crítica à atuação dos Estados Unidos na região, principalmente por meio da recuperação da história da América Latina e do Caribe. O projeto “bolivariano”, impulsionado pelo governo de Hugo Chávez na Venezuela, é a materialização mais nítida desse pensamento. A CELAC nasce nesse cenário ideológico. A Declaração de Caracas, por exemplo, afirma que os latinoamericanos e caribenhos criam a Comunidade inspirados no Congresso Anfictiônico do Panamá de 1826, ato de fundação da doutrina da unidade latino-americana e caribenha, onde nossas jovens nações colocaram a questão sobre os destinos da paz, o desenvolvimento e a transformação social do continente [...]; conscientes de que já passaram 185 anos desde que foi ensaiado o grande projeto dos Libertadores para que hoje a região se encontre em condições de enfrentar, devido à experiência e à madureza adquirida, o desafio da unidade e da integração da América Latina e do Caribe (BRASIL, 2011). Não à toa, a própria Declaração, que tem um peso simbólico significativo por ser o ato de fundação da comunidade, tem como título No Bicentenário da Luta pela Independência, Percorrendo o Caminho de Nossos Libertadores. O discurso dos governos da região, especialmente o de Chávez, busca recuperar o pensamento de Simon Bolívar para fomentar a união da América Latina e Caribe e promover uma inserção internacional autônoma da região. Bolívar defendia um modelo de integração profunda à época das independências no continente, com a formação de um único Estado confederado. Em uma carta escrita em 1815, Bolívar (2009, p. 84, tradução nossa) afirma que 13 é uma ideia grandiosa pretender formar em todo o Novo Mundo uma só nação, com um só vínculo, que ligue suas partes entre si e com o todo. Já que têm uma origem, uma língua, um costume e uma religião, deveriam, por conseguinte, ter um só governo, que confederasse os diferentes Estados que haverão de se formar; mas não é possível porque climas remotos, situações diversas, interesses opostos, características diferentes dividem a América. O pensamento independentista, autonomista e integracionista está, portanto, na base ideológica da CELAC, o que faz alguns afirmarem que a Comunidade representa a vitória dos povos da América Latina contra a hegemonia do capital e do governo dos Estados Unidos. Representa recuperar o velho sonho de Simon Bolívar, que havia convocado um congresso latino-americano no Panamá, em 1826, para criar uma conferência de união dos povos do Sul, que pretendia enfrentar os impérios. Finalmente Bolívar venceu Monroe (ALAI, 2010). É preciso considerar, no entanto, que essa concepção política não é homogênea. Jorge Castañeda (2006) identifica duas correntes políticas na região: uma representada por Hugo Chávez, na Venezuela, que inclui Estados como a Bolívia de Evo Morales e o Equador de Rafael Correa; e outra exemplificada pelo governo Lula, no Brasil, Michelle Bachelet, no Chile e Tabaré Vazquez, no Uruguai. A primeira corrente tem um caráter mais agressivo, hostil às práticas de mercado e investimentos externos, enquanto a segunda apresenta postura mais cooperativa e aberta. A primeira seria uma “esquerda errada”, radical ou “irresponsável”; a segunda, uma “esquerda certa”, moderada ou “responsável”. Essa polarização talvez não seja a melhor forma de retratar o ambiente político da região, mas demonstra que existem divergências significativas entre os latino-americanos, por mais que a denominação “esquerda” seja indistintamente empregada. Amado Cervo (2008, p. 218), por exemplo, afirma que se as esquerdas ascendem ao poder em quase todos os países, não se configuram como frente política afinada com projeto comum para a América do Sul. [...] A esquerda pouco vai além de um esteriótipo político sem conteúdo uniformizador. 14 A convergência política na região, mesmo não total, foi suficiente para impulsionar a criação da CELAC e, paralelamente, a corrosão da legitimidade da OEA. Se um dos traços característicos da corrente política de esquerda é a desconfiança em relação aos Estados Unidos, a OEA torna-se, consequentemente, também suspeita. Os principais defensores da CELAC argumentam que a comunidade representa uma alternativa à OEA, que perde legitimidade pelas pressões e interferências dos Estados Unidos no organismo. O presidente do Equador, Rafael Correa, por exemplo, afirmou que deve-se mudar a OEA e construir algo melhor; nesse sentido, a CELAC “pode ser a alternativa à OEA para discutir nossos assuntos” (TELESUR TV, 2012). O presidente Hugo Chávez, da Venezuela, afirmou que “a CELAC é um grande pólo de poder que conseguirá deixar para trás a velha e desgastada OEA” (RT, 2011). Já para o presidente boliviano, Evo Morales, "nós temos uma alternativa à OEA: a CELAC” (ERBOL, 2012). A comparação entre a composição dos dois organismos é inevitável, já que a única diferença é a ausência dos Estados Unidos e do Canadá no novo mecanismo e sua presença na OEA. Chegou-se, inclusive, a se referir à CELAC, de modo pejorativo, como uma espécie de “OEA sem os Estados Unidos” ou a “OEA do B” (ESTADÃO, 2010). As duas organizações, pode-se argumentar, possuem escopos significativamente diferentes. O secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, afirmou que não é contra a CELAC e vê complementaridade entre a comunidade e a OEA. Para Insulza, “a CELAC não é um organismo no sentido de contar com uma estrutura, com um conjunto de leis, de regras e de instituições como é a OEA". Além disso, "há temas que são hemisféricos e outros temas que são da região latino-americana, os quais devem ser tratados aqui [na CELAC], por exemplo, os temas de integração econômica" (UOL, 2011). De qualquer modo, a legitimidade da OEA foi sistematicamente atacada nos últimos anos e mesmo seus resultados podem ser questionados, uma vez que “o modelo de negociação da Cúpula das Américas não tem gerado resultados palpáveis, servindo muito mais para os países reafirmarem suas posições já definidas” (SILVA; SILVEIRA, 2013, p. 77), o que cria fortes incentivos à atuação da CELAC. 15 A concepção política que fomentou a criação da Comunidade tem como principal motor a defesa de uma integração regional autônoma. Francisco Rojas Aravena (2011, p. 221, tradução nossa) explica que existe um consenso em “apontar para a aparição de uma nova forma de regionalismo e integração na região [América Latina], onde predominam os aspectos políticos sobre os comerciais e onde o tema da soberania adquiriu importância especial”. O “novo regionalismo” ao qual o autor refere-se implica a transferência do foco da integração regional, que estava na abertura comercial, para a concertação política, este um objetivo facilmente identificado com a proposta da CELAC. O objetivo do modelo de integração da comunidade aproxima-se da ideia de comunidade de segurança, conceito proposto por Karl Deutsch (1969, p. 5, tradução nossa), que consiste em um grupo de pessoas que se tornou “integrado”. Por integração, queremos dizer o alcance, em um território, de um “sentimento de comunidade” e de instituições e práticas fortes e disseminados o suficiente para assegurar, por um “longo” período de tempo, expectativas confiáveis de “mudança pacífica” entre sua população.6 As persistentes divergências entre os latino-americanos e os focos de tensão ainda verificados na região, como os atritos entre Colômbia e Venezuela ou a rivalidade histórica entre Chile, Bolívia e Peru, demonstram que o sentimento de comunidade parece ainda não estar consolidado na América Latina, o que diminuiu a probabilidade de existirem expectativas confiáveis de mudança pacífica. A constituição de uma organização nos moldes da CELAC contribui para desenvolver um sentimento de comunidade na região, mesmo que, muitas vezes, esse sentimento seja elaborado a partir da contraposição comum a um ator externo, os Estados Unidos. 5. Potencialidades e desafios Compreender o papel do novo organismo regional requer identificar suas vantagens, os aspectos que fortalecem sua inserção nas relações internacionais contemporâneas, e suas fragilidades, os desafios que precisará 6 Para uma discussão sobre o conceito de comunidade de segurança, cf. MAGALHÃES, 2012. 16 superar para alcançar os objetivos propostos. A análise das potencialidades e dos desafios da CELAC já constituiu, inclusive, objeto de reflexão de alguns autores (ARAVENA, 2011; FIGUEROA, 2012). Há uma vantagem evidente, de ordem prática, que consiste em permitir o encontro periódico de todos os chefes de Estado da região, o que aprimora o relacionamento entre os líderes latino-americanos e caribenhos, permitindo que se conheçam e que troquem percepções, ideias e propostas. A constituição de um canal de diálogo entre os países da região é o benefício mais imediato da organização. Se um dos objetivos das organizações internacionais é a construção ou o fortalecimento da confiança entre os participantes da dinâmica internacional, de modo a incentivar a cooperação entre eles, a CELAC oferece, pelo simples fato de sua constituição, a vantagem de criar um ambiente propício à construção de confiança. Francisco Rojas Aravena (2011, p. 229, tradução nossa), defende outro possível benefício da CELAC: a criação de um foro exclusivamente latinoamericano “poderia eliminar, ou ao menos diminuir, o tom fortemente ideológico que se imprime às Cúpulas hemisféricas, onde muitas das discussões estão centradas em atacar as ações anti ou pró-imperialistas”. A Comunidade oferece aos seus membros a oportunidade de conduzir um processo de integração regional que, alcance ou não êxito, terá como únicos responsáveis os próprios latino-americanos e caribenhos. O argumento segundo o qual o processo integrador é travado pelos Estados Unidos será insustentável na nova organização. Pode-se, ainda, considerar que um organismo latino-americano e caribenho tem potencial para promover outras iniciativas de integração na região. Mecanismos desenvolvidos por alguns países ou sub-regiões, como o Banco do Sul, a Unasul e a IIRSA, no contexto sul-americano, encontram, em uma organização que englobe toda a América Latina e o Caribe, a possibilidade de expandir ou aprimorar suas práticas. A troca de experiências entre as diversas iniciativas de integração regional pode contribuir para o desenvolvimento de práticas mais eficientes. A característica mais evidente da CELAC é o seu objetivo de concertação política, uma herança do Grupo do Rio, o que permite que posições comuns sejam acertadas e uma agenda convergente possa ser 17 construída. Há, como consequência do estabelecimento de posições comuns, implicações externas e internas. No âmbito interno, ou regional, estabelecer convergências significa fomentar a cooperação e a criação de oportunidades mutuamente benéficas. No âmbito externo, percebe-se o maior potencial da comunidade: inserir a região no sistema internacional como um ator harmônico, aumentando, expressivamente, o peso político dos latino-americanos e caribenhos no mundo. Oneida Figueroa (2012, p. 190, tradução) afirma que “a CELAC pode contribuir para superar o fracionamento que ainda prevalece na América Latina e no Caribe e que limita o reconhecimento internacional da região como um ator coeso”. A tentativa de apresentação da região como um interlocutor coeso e assertivo no sistema internacional tem sido o destaque da atuação da CELAC.7 A Troika, representando a comunidade, e o governo chinês acordaram, em 2012, o estabelecimento de conversas regulares entre a organização e a China, esta um parceiro estratégico para latino-americanos e caribenhos (PEOPLE‟S DAILY, 2012). Mecanismos semelhantes de diálogos regulares estão sendo negociados com a Rússia (RIA NOVOSTI, 2013) e reuniões foram feitas com representantes de Índia, Coreia do Sul, Nova Zelândia, Austrália e Noruega (BRASIL, 2013). A relação com a Europa avançou ainda mais: em janeiro de 2013, foram realizadas, no Chile, a I Cúpula da CELAC e a I Cúpula CELAC – União Europeia. Além das oportunidades, no entanto, a CELAC apresenta desafios expressivos, capazes de, se não solucionados, tornar irrelevantes, ou mesmo anular, os benefícios possibilitados pela nova organização. O mais evidente obstáculo é a heterogeneidade na composição da organização: os 33 latinoamericanos e caribenhos possuem estruturas econômicas assimétricas, objetivos distintos e estratégias de inserção internacional variadas. Coordenar atores tão diversos é uma tarefa complexa. A Aliança do Pacífico, criada em 2012, por exemplo, que reúne Chile, Colômbia, Peru, México e Costa Rica, orienta-se pela lógica da liberalização comercial e afasta seus membros da 7 Cabe destacar que há, para o Brasil, uma aparente contradição na opção pela CELAC. Como explica Paulo Roberto de Almeida (2007, p. 24), ”o principal foco de atuação política, econômica e estratégica do Brasil está obviamente centrado na América do Sul, conceito que vem sendo enfatizado pela diplomacia brasileira desde o início dos anos 1990, em substituição à noção politicamente vaga e geograficamente difusa de América Latina”. 18 estratégia adotada pelo Mercosul (SCHIPANI, 2013). A Cúpula CELAC – União Europeia, por sua vez, pode ter contribuído para aproximar as duas regiões, mas as divisões entre os latino-americanos e caribenhos impediram que medidas concretas fossem adotadas (THE ECONOMIST, 2013). Francisco Aravena (2011) alerta, ainda, para a multiplicidade de temas inseridos na agenda da CELAC, que pode implicar a dispersão das ações e, consequentemente, a adoção de compromissos que nunca serão implementados. Querer abordar todos os temas pode significar não abordar nenhum com eficiência. 8 Há, além disso, as incertezas quanto à manutenção da opção pelo modelo de integração da comunidade. A vontade política esteve presente no momento de constituição do novo mecanismo, mas a alternância natural de mandatários e a ausência, em muitos países, de uma política externa de Estado, em oposição a uma política de governo, não garantem que a vontade política estará presente para consolidar a organização. 9 Aravena (2011, p. 230, tradução nossa) explica que o tempo, na política, é de suma importância. O desafio que enfrenta a CELAC, em um contexto de fraca base de confiança mútua, é que será precisa uma alta dose de vontade política, de todos, para avançar na construção de uma agenda comum. Especialmente quando o tempo de convivência de todos os mandatários é curto. A isso se deve acrescentar que não são em todos os casos que existem e se desenvolvem políticas de Estado no que se refere à política externa. Diante dessas oportunidades e desses desafios, Oneida Figueroa (2012) propõe três cenários, simplificados, para compreender as perspectivas possíveis em relação à CELAC: a) uma trajetória inercial do novo organismo, com escassos resultados práticos e limitada eficiência na relação da região com o resto do mundo; b) o fortalecimento do novo organismo, com a constituição de uma agenda cooperativa comum e de uma convergência em relação aos principais temas da região; ou c) a emergência de esquemas de integração mais limitados, buscando reforçar suas respectivas lideranças e alcançando maior reconhecimento como representantes da região, o que 8 É preciso considerar, no entanto, que o principal escopo da CELAC é a concertação política, o que requer a análise de temas amplos e diversos. 9 A morte do presidente venezuelano Hugo Chávez, por exemplo, tirou do cenário político um dos principais articuladores do processo de integração regional. 19 relegaria a CELAC a um papel pouco relevante, ou mesmo completamente irrelevante. 6. Considerações finais Analisar instituições políticas recentes constitui tarefa de difícil execução, já que as incertezas inerentes à dinâmica social impossibilitam inferências seguras sobre o objeto estudado. É o que ocorre com a CELAC, organização adicionada, em 2011, ao complexo arranjo institucional regional. Alguns aspectos, no entanto, permitem uma melhor compreensão sobre a organização, sua formação, seu modo de atuação, seus objetivos e as perspectivas de sua atuação. O histórico da CELAC, por exemplo, indica que a organização é criada a partir de mecanismos consolidados e relativamente exitosos. O Grupo de Contadora e o Grupo de Apoio a Contadora nascem por meio de demandas reais da região, na década de 1980, e não por meio de iniciativas abstratas ou desconectadas da realidade latino-americana e caribenha. Constituir uma organização sob bases sólidas, como o Grupo do Rio, indica um compromisso com o processo de integração. A formação histórica da CELAC, a adesão de todos os 33 latino-americanos e caribenhos e a convergência das propostas brasileira e mexicana para sua criação indicam, também, que a disposição política para constituir a organização foi significativa, o que favorece sua consolidação. O formato escolhido para a organização, estabelecido nos documentos constitutivos aprovados em Caracas, em 2011, indica pouca institucionalização, característica de uma organização cujo primeiro objetivo é concertação política, e a tentativa de uma administração mais cooperativa: a atuação mais destacada da CELAC tem ocorrido por meio da Troika, e não da Presidência Pro Tempore isolada. A opção pelo consenso como critério para tomada de decisões cria incentivos para a paralisia da organização, mas, ao mesmo tempo, atribui legitimidade inquestionável às suas decisões. Outro aspecto passível de análise, para auxiliar na compreensão da CELAC, é o contexto ideológico que motiva a constituição da organização. A coincidência de governos de esquerda na região, que, embora não idênticos, 20 possuem características comuns, como a desconfiança em relação aos Estados Unidos e, consequentemente, à OEA, possibilitou a convergência necessária para a criação de uma nova instituição, em uma região onde diversas outras organizações, de diferentes escopos e abrangências, atuam há décadas. Os latino-americanos e os caribenhos, ao constituírem o novo mecanismo, almejaram uma integração regional autônoma, marcada mais pela autoafirmação da região e pela tentativa de repelir atores externos, notadamente os Estados Unidos, que por estratégias similares de inserção internacional. É possível identificar, também no esforço para melhor compreender a CELAC, algumas de suas potencialidades, de seus aspectos positivos, e alguns de seus desafios, de seus aspectos negativos. Um foro que permita a reunião de todos os países latino-americanos e caribenhos tem potencial para aprimorar a afinidade política na região e para desenvolver estratégias cooperativas importantes. Fomentar o diálogo, nas relações internacionais, é uma iniciativa sempre bem-vinda. A CELAC, além disso, apresenta ao mundo a América Latina e o Caribe como uma única região, apesar de essa constituir uma aparente contradição com a opção brasileira de adotar não a América Latina, mas a América do Sul como região de atuação preferencial. A nova organização pretende associar a América Latina e o Caribe a um ator que, apesar das divergências internas, almeja posicionar-se como coeso, o que fortalece sua capacidade de atuação e suas demandas no contexto internacional. Tem mais peso político apresentar interesses em nome de toda a região que em nome, apenas, de alguns países. Para que a CELAC alcance êxito, no entanto, obstáculos significativos deverão ser superados, a começar pelas próprias divergências internas que, se não manejadas, impedirão a organização de apresentar-se como um ator coeso e, portanto, comprometerão a essência da instituição. Latino-americanos e caribenhos precisam desenvolver, não apenas em benefício da nova organização, mas das relações internacionais, de modo mais amplo, a elaboração de políticas externas de Estado, não de governo, para garantir estabilidade e continuidade dos esforços de integração realizados. A CELAC exigirá dos latino-americanos e caribenhos o aprimoramento do processo 21 negociador e a aproximação das diplomacias da região e, nesse sentido, o desafio pode converter-se em oportunidade. Referências ALAI. América Latina en Movimiento. Bolívar derrotou Monroe. 02 mar 2010. Disponível em: <http://alainet.org/active/36510&lang=es>. Acesso em: 26 jun 2012. ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Brasil como ator regional e global: estratégias de política externa na nova ordem internacional. Cena Internacional, Brasília, vol. 9, nº 1, p. 7-36. 2007. ARAVENA, Francisco Rojas. Potencialidades y desafíos de la CELAC en el contexto de un nuevo regionalismo. Pensamiento Propio, Buenos Aires, ano 16, p. 217 – 236, enero – junio. 2011. Disponível em: <http://www.iadb.org/intal/intalcdi/PE/2011/08839.pdf>. Acesso em: 05 mar 2013. ARRIOLA, Mario. El Grupo Contadora y el Problema de la Distension em Centroamerica. In.: América, ayer y hoy. N. 7. 1986. Disponível em: <http://revistas.um.es/index.php/areas/article/view/87161/83881>. Acesso em: 25 junho 2012. BOERSNER, Demétrio. Relaciones Internacionales de América Latina: Breve historia. Venezuela: Nueva Sociedad, 1996. BOLÍVAR, Simon. Doctrina Del Libertador. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2009. Disponível em: < http://www.bibliotecayacucho.gob.ve/fba/index.php?id=97&backPID=96&sword s=bolivar&tt_products=1>. Acesso em: 28 jun 2012. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. I Cúpula de Estados LatinoAmericanos e Caribenhos (CELAC) - Declaração de Santiago. 28 jan 2013. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-aimprensa/i-cupula-de-estados-latino-americanos-e-caribenhos-celacdeclaracao-de-santiago>. Acesso em: 02 jun 2013. __________. Ministério das Relações Exteriores. América do Sul e integração regional. Celac. 2012. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/temas/america-do-sul-e-integracaoregional/celac>. Acesso em: 16 jun 2012. __________. I Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) Caracas, 2 e 3 de dezembro de 2011 – Documentos Aprovados. 04 dez 2011. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-deimprensa/notas-a-imprensa/i-cupula-da-comunidade-dos-estados- 22 latinoamericanos-e-caribenhos-celac-caracas-2-e-3-de-dezembro-de-20112013-documentos-aprovados-1>. Acesso em: 25 jun 2012. CASTAÑEDA, Jorge. Latin´s America left turn. Foreign Affairs. Maio – jun 2006. Disponível em: <http://sandovalhernandezj.people.cofc.edu/index_files/r21.pdf>. Acesso em: 10 jun 2012. CERVO, Amado. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. __________; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: UnB, 2010. CHASTEEN, John Charles. América Latina – Uma História de Sangue e Fogo. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2001. DEUTSCH, Karl W. et al. Political Community and the North Atlantic Area: International Organization in the Light of Historical Experience. New York: Greenwood, 1969. ERBOL. Presidente boliviano apuesta por la Celac como alternativa a la OEA. 05 jun 2012. Disponível em: <http://www.erbol.com.bo/noticia.php?identificador=2147483959687>. Acesso em: 28 jun 2012. ESTADÃO. Comunicado final cria 'OEA do B' sem EUA. 24 fev 2010. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,comunicadofinal-cria-oea-do-b-sem-eua,515267,0.htm>. Acesso em: 28 jun 2012. FIGUEROA, Oneida Álvarez. La CELAC: Nuevo actor regional en América Latina y el Caribe. Avales y obstáculos para lograr su consolidación. In: SERBIN, Andrés; MARTÍNEZ, Laneydi; RAMANZINI JÚNIOR, Haroldo (Coor). El regionalismo “post–liberal” en América Latina y el Caribe: Nuevos actores, nuevos temas, nuevos desafíos. Buenos Aires: CRIES, 2012. p. 177 – 205. Disponível em: <http://www.cries.org/wpcontent/uploads/2012/12/anuario2012.pdf>. Acesso em: 05 mar 2013. GARCIA, Eugênio Vargas. Cronologia das Relações Internacionais do Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. JARDIM, Claudia. BBC Brasil. Nova entidade latino-americana funcionará por consenso. 3 dezembro 2011. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/12/111203_celac_consenso_d g.shtml>. Acesso em: 25 maio 2013. 23 MAGALHÃES, Diego Trindade d‟Ávila. Comunidade de segurança: a teoria no conceito. Carta Internacional, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 81 – 98. jul – dez. 2012. PEOPLE‟S DAILY. China, Latin American and Caribbean States Troika launch regular foreign ministers' dialogue. 10 ago 2012. Disponível em: <http://english.peopledaily.com.cn/90883/7904863.html>. Acesso em: 01 jun 2013. RIA NOVOSTI. Russia Strengthens Ties With Latin America, Caribbean. 29 maio 2013. Disponível em: <http://en.rian.ru/politics/20130529/181408490/Russia-Strengthens-Ties-WithLatin-America-Caribbean.html>. Acesso em: 02 jun 2013. RT. Venezuela, Chile y Cuba forman la troika para la constitución de la Celac. 3 dez 2011. Disponível em: <http://actualidad.rt.com/actualidad/view/36144Venezuela%2C-Chile-y-Cuba-forman-troika-para-constituci%C3%B3n-deCelac>. Acesso em: 28 jun 2012. SCHIPANI, Andrés. Latin America cements „Pacific Alliance‟. Financial Times. 24 maio 2013. Disponível em: <http://www.ft.com/cms/s/0/118c2c66-c40911e2-8c30-00144feab7de.html#axzz2WV41nqRW>. Acesso em: 01 jun 2013. SILVA, André L. Reis da; SILVEIRA, Isadora Loreto da. Da ALCA à CELAC: o Brasil e os desafios da integração continental. Brazilian Journal of International Relations, Marília, v. 1, n. 3, p. 65 – 85. 2012. Disponível em: <http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/bjir/article/viewFile/2511/2190 >. Acesso em: 20 fev 2013. TELESUR TV. Rafael Correa: habrá que cambiar la OEA y construir algo mejor y nuestro. 4 junho 2012. Disponível em: <http://www.telesurtv.net/articulos/2012/06/04/rafael-correa-habra-que-cambiarla-oea-y-construir-algo-mejor-y-nuestro-7908.html>. Acesso em: 25 jun 2012. THE ECONOMIST. Latin American Integration. Past and Future. 2 fev 2013. Disponível em: <http://www.economist.com/news/americas/21571157-regionsanachronistic-new-face-past-and-future>. Acesso em: 12 maio 2013. UOL. Insulza diz que OEA e Celac se complementam. 13 dez 2011. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2011/12/13/insulza-dizque-oea-e-celac-se-complementam.htm>. Acesso em: 28 jun 2012. 24