Governabilidade, Governança e Democracia: Criação de Capacidade
Governativa e Relações Executivo-Legislativo no Brasil Pós-Constituinte*
Maria Helena de Castro Santos
INTRODUÇÃO
Neste artigo, parto do pressuposto que, no Brasil pós-Constituinte, qualquer que seja
a extração ideológica de um governante, a ele se colocarão os mesmos desafios, com
pequena margem de manobra no que se refere às soluções propugnadas. Assim, em
primeiro lugar, ao governante se imporá, em um mundo globalizado, o ajuste da
economia e a reforma do Estado em crise.
Não cabe aqui analisar em detalhe as causas e dimensões da crise do Estado
brasileiro. A literatura a respeito é abundante1. Para os propósitos deste trabalho é
suficiente lembrar que a referida crise é fruto, de um lado, de fatores exógenos, dentre
os quais se destacam os choques do petróleo de 1973 e 1979/80 e a conseqüente
crise da dívida externa em decorrência das altas taxas de juros internacionais que
passam a ser praticadas pelos países industrializados importadores de petróleo.
Estes, assim, transferem para os países em desenvolvimento, sobretudo os
dependentes desse insumo energético, o ônus de ajustar a economia aos novos
padrões de relações econômicas e financeiras.2
De outro lado, os desafios e pressões dos fatores exógenos chegam ao Brasil no
momento em que se constata o esgotamento do modelo desenvolvimentista, baseado
na industrialização por substituição de importações, fortemente centrado no Estado,
com o conseqüente desgaste da ordem político-institucional que sustentava esse
modelo. A esse respeito, assim se pronuncia Diniz:
"[...] em contraposição às interpretações dicotômicas, parece-me mais adequada uma
perspectiva que integre os dois planos da análise, associando à dimensão externa os
condicionamentos internos relacionados à corrosão da ordem pregressa. Por esta
razão, o descompasso entre o Estado e a sociedade situa-se no cerne da presente
crise. O hiato entre uma institucionalidade estatal rígida, dotada de fraco potencial de
incorporação política, e uma estrutura social cada vez mais complexa e diferenciada
exacerbou as tensões ligadas ao processo de modernização. Instaurou-se um sistema
multifacetado e multipolar de representação de interesses, através do qual a
sociedade extravasou do arcabouço institucional vigente, implodindo o antigo padrão
corporativo do Estado sobre a sociedade" (1996:3).
Nesse cenário, a partir dos anos 80, os governantes passam a se haver com
crescente desequilíbrio fiscal, desordem das contas públicas e inflação galopante.
Seguem-se as várias e conhecidas tentativas de estabilização da economia, com a
série de Planos a que a população é submetida, mais ou menos ortodoxos, mais ou
menos heterodoxos, em uma longa seqüência de ensaios e erros. Finalmente, impõese um modelo de ajuste da economia dentro do marco neoliberal, que produz, em um
mundo globalizado, agendas governamentais com pequena flexibilidade. Esses
problemas de governo, além do mais, têm de ser enfrentados em um contexto de
redemocratização e rompimento com a ordem social pregressa.
Ou seja, a reforma do Estado e a redefinição de suas funções são imprescindíveis
tanto para a adaptação ao novo ordenamento econômico e financeiro mundial como
para a adequação do Estado à nova sociedade e às novas formas políticas de
representação de interesses. Dentro desse quadro, os desafios contemporâneos do
governante no Brasil pós-Constituinte têm se definido da forma que se segue.
(i) Ajuste da economia e reforma do Estado. Parto do pressuposto que, atualmente, se
constituem em minoria os analistas, políticos ou cidadãos que consideram factível a
formação de coalizões políticas internas capazes, por assim dizer, de escapar do
modelo de conotação neoliberal de ajuste da economia imposto aos países em
desenvolvimento3. Esta avaliação, é bom frisar, independe de julgamento de valor.
Sendo esse o caso, pode-se dizer que, enquanto a primeira fase da política de ajuste,
isto é, a estabilização da economia, tem sido considerada bem-sucedida com o Plano
Real, as reformas estruturais, como a da previdência, da administração, e tributária e
fiscal, têm enfrentado, do ponto de vista do governo, grandes dificuldades. Anota-se,
neste ponto, para posteriores comentários, que enquanto o processo de estabilização
da economia é calcado em políticas formuladas, em grande parte, ao largo do
Congresso, as reformas estruturais citadas, ao contrário, necessitam da sua
aprovação, o que tem impedido que o processo de ajuste da economia se complete.
Quanto às novas funções do Estado, pode-se dizer que atualmente se arma consenso
em torno da construção de um Estado que não é mais mínimo como sugeriam as
primeiras visões simplistas de inspiração neoliberal, e que, portanto, não perdeu sua
importância estratégica. Na verdade, o Estado deve ser minimamente complexo para
atender aos desafios do capitalismo contemporâneo4. Dessa forma, restringe sua
atuação como produtor direto de bens e serviços, reforça sua atividade de regulação
das políticas públicas, enfatiza seu papel de coordenação entre as várias agências
governamentais e os três níveis de governo e entre a esfera pública e a privada, e
reorienta suas funções de controle.
(ii) Resgate da dívida social. Explícita na plataforma de todos os candidatos à
Presidência da República, quer como contrapeso das reformas estruturais e fator de
desestabilização política, quer como uma questão de justiça social5. Poucos analistas,
raros cidadãos e certamente nenhum político descartam a necessidade de um
programa social de governo. Todos os programas sociais dos governos pósConstituinte têm se submetido, contudo, à lógica do ajuste neoliberal.
(iii) Enfrentamento dos desafios anteriores, mantendo-se a ordem democrática. De
fato, nenhum político, poucos cidadãos e raríssimos analistas trabalham com a
hipótese da fujimorização6. O desafio, neste caso, é a construção de coalizões
democráticas de sustentação do governo em ambiência democrática, em um contexto
de expansão da participação e diversificação das formas de representação de
interesses que, além do mais, por razões de natureza histórico-cultural, é fortemente
impregnado pelo particularismo7. Caberia aqui, na verdade, a pergunta essencial: que
democracia somos capazes de construir?8
Vale, neste ponto, observar que, embora os dois últimos pressupostos possam ser
considerados normativos, tenho a pretensão de que minha perspectiva não o seja.
Assumindo a posição do analista, trabalho não com os meus pressupostos, mas com
aqueles que identifico como vigentes tanto no mundo da política como no da
academia (e que são os meus próprios, embora isto aqui não tenha importância).9
A discussão contemporânea sobre o novo Estado tem se voltado para os requisitos
políticos, societais, organizacionais e gerenciais que o tornem eficaz e eficiente, capaz
de enfrentar os desafios que se impõem e os dilemas que se apresentam. Os
conceitos de governabilidade e governança (governance) incorporam essas
preocupações, sendo tratados de forma diferenciada pela literatura recente.
Este artigo, embora não pretenda proceder a uma revisão da literatura sobre os
conceitos de governabilidade e governança, fará algumas considerações sobre o
tratamento desses conceitos, sugerindo, para propósitos analíticos, o termo"
capacidade governativa". Pressupondo o contexto democrático, destacará como um
dos elementos essenciais da capacidade governativa as características do processo
de tomada de decisão das políticas públicas, com destaque para a fase de formulação
e as relações Executivo-Legislativo. Discutirá a literatura brasileira recente sobre
esses pontos, entendidos como" gargalos" da capacidade governativa do Estado,
contrapondo achados de pesquisa empírica coordenada pela autora. Finalmente, a
título provocativo, fará algumas especulações acerca dos dilemas dos governantes,
comprometidos com a governabilidade democrática vis-à-vis as características do
processo decisório, e dos padrões de interação dos dois Poderes.
GOVERNABILIDADE, GOVERNANÇA E CAPACIDADE GOVERNATIVA
O desafio da reforma do Estado e seu ajuste à nova ordem econômica e financeira
global provocou profusa literatura sobre os conceitos de governabilidade e
governança. Os autores dedicam-se a recuperar a origem histórica dos conceitos e se
esforçam por diferenciá-los, nem sempre com êxito. Apontam para as causas da crise
da governabilidade ou ingovernabilidade e oferecem diagnósticos e sugestões para os
problemas encontrados. Enfatizam fatores exógenos e endógenos, diferentes
dimensões da questão ¾ política, econômica, organizacional, gerencial ¾ , investigam
a relação das dificuldades enfrentadas pelo governo com o tipo de regime político e
os trade-offs entre eficiência econômica e política.
No Brasil, destacam-se os trabalhos de Melo (1995) e Diniz (1995; 1996) que, a partir
de uma revisão extensiva da literatura, analisam vários dos pontos indicados acima.
Segue-se, tendo como referência os estudos desses autores, uma rápida
apresentação da gênese desses conceitos e de sua definição atual, entremeadas por
meus comentários.
Aponta-se uma primeira geração de análises sobre governabilidade originada nos
trabalhos de Huntington de final dos anos 60 e década de 70 (cf. Huntington, 1965;
1968; 1975), que interpretam a crise de governabilidade como fruto dos excessos da
participação e sobrecarga de demandas. Para Huntington, o funcionamento adequado
dos sistemas políticos depende do equilíbrio entre as instituições de input,
agregadoras de interesses ¾ sobretudo os partidos políticos ¾ e as instituições
governamentais de output, que regulam e implementam as políticas públicas. Quando
no contexto das democracias consolidadas surge uma onda de participação, seguese, em resposta, um aumento da atividade governamental, acompanhado de
sobrecarga no governo, falência de outputs e deslegitimação da autoridade, com
subseqüente enfraquecimento das instituições políticas. Estas últimas, contudo, por
serem fortes, adaptáveis e coerentes, acabam por absorver, dentro de limites, as
tensões e pressões por participação, conseguindo preservar-se até o arrefecimento
da onda de participação. Nas democracias recentes, por sua vez, a incorporação
política de grupos sociais antes excluídos conduz a essas mesmas conseqüências,
sem que haja, contudo, instituições consolidadas, capazes de suportar a pressão
sobre o sistema político. Na verdade, mais do que se haver com a debilidade das
instituições preexistentes, as democracias não-consolidadas terão de enfrentar o
desafio de criar ou recriar instituições políticas.
Assim, o remédio huntingtoniano para a sobrecarga de demandas sobre o sistema
político de países em desenvolvimento está no reforço e criação de instituições e da
autoridade governamental. A ênfase é colocada, não na democracia, mas na ordem:
antes de distribuir poder é preciso primeiro acumulá-lo. A saída é autoritária. A crise
de governabilidade por excesso de democracia foi tese reforçada pelas dificuldades
de execução dos programas de estabilização a partir dos anos 80. A solução estaria
em um Estado forte, sugerindo-se o predomínio do Executivo no processo decisório e
o insulamento burocrático como formas de controlar a participação social e garantir a
eficácia e a racionalidade das políticas públicas.
Paralelamente, no mesmo período, surge uma segunda geração de análises sobre
governabilidade e crise de governabilidade ligadas às condições de sustentação das
políticas de ajuste em contexto democrático. Liderando esse tipo de análise estão as
agências internacionais de financiamento, com destaque para o Banco Mundial e o
Fundo Monetário Internacional ¾ FMI. Os trabalhos do Banco Mundial passam, nos
anos recentes, a referir-se ao termo governance. Grande parte deles preocupa-se
com a origem e as distintas formas de definição do termo, e, quase todos, implícita ou
explicitamente, associam à concepção de governance a noção de good governance
ou good government.
Assim, para o Banco Mundial, a definição geral de governance "is the exercise of
authority, control, management, power of government." Ou, dizendo ainda melhor, "is
the manner in which power is exercised in the management of a countrys economic
and social resources for development."10 A noção de good governance encontra-se
intrinsecamente associada à capacidade governativa, "[good] governance is central to
creating and sustaining an environment which fosters strong equitable development,
and it is an essential complement to sound economic policies" (World Bank, 1992:1).
Dessa forma, good governance passa a ser requisito indispensável para um
desenvolvimento sustentado, que incorpora ao crescimento econômico eqüidade
social e também direitos humanos.11
O viés normativo implícito é o que associa esses pré-requisitos do bom governo à
democracia. Não se trata mais, parece-me, de considerar, como na década de 60 o
faziam as agências internacionais de financiamento para o desenvolvimento, que "all
good things go together". Ou seja, uma vez garantida a retomada do crescimento
econômico com a ajuda dessas agências, o desenvolvimento político ¾ vale dizer, o
desenvolvimento de instituições democráticas ¾ e a eqüidade social fluiriam
naturalmente.12 Embora se trate, atualmente, de uma retomada dos pressupostos
democráticos do "bom desenvolvimento", isto agora é visto não mais como uma
conseqüência natural da ajuda econômica, mas como um desafio. Alguns trabalhos
demonstram que o êxito das políticas de ajuste não guarda relação empírica com o
tipo de regime político, embora os países em transição democrática enfrentem
grandes dificuldades para ajustar a economia.13 Não se quer, entretanto, ao que
parece, no caso destes últimos, abrir mão dos princípios da democracia e da
eqüidade social.
Esse pressuposto do "bom governo", eqüitativo e democrático, é, como sugerido
acima, incorporado no Brasil, como de resto na maioria dos países que enfrentam a
tarefa de formular e implementar as políticas de ajuste, tanto pelos políticos como pela
maioria dos cidadãos e intelectuais.
É importante, neste ponto, voltar-se à definição do conceito de governance para que
se compreenda de que forma este passa a incluir os princípios democráticos. A
literatura recente incorpora o novo conceito, partindo da definição geral do Banco
Mundial, que, como indicado, refere-se ao modo como a autoridade é exercida no
gerenciamento dos recursos do país em direção ao desenvolvimento. Governance,
conforme Melo, refere-se ao modus operandi das políticas governamentais ¾ que
inclui, dentre outras, questões ligadas ao formato político-institucional dos processos
decisórios, à definição do mix apropriado do público/privado nas políticas, à
participação e descentralização, aos mecanismos de financiamento das políticas e ao
alcance global dos programas (cf. Melo, 1995:30-31). O conceito não se restringe,
contudo, aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado, tampouco ao
funcionamento eficaz do aparelho de Estado.
Reis, embora use o termo governabilidade, adverte-nos contra essa simplificação, que
reduz a capacidade estatal de governar a características da máquina do Estado, tal
como o tamanho certo do Estado, mecanismos operacionais ágeis nas funções
reconhecidas como próprias dele etc. Mas, continua o autor," há a sociedade [...] ¾ e
há a política. E o desafio crucial reside na obtenção daquela forma específica de
articulação do Estado com a sociedade na qual se reconheça que o problema da
administração eficiente não pode ser dissociado do problema político, ou seja, do
problema de garantir também a operação democrática do Estado" (Reis, 1995:41).
Dentro desse espírito, a discussão mais recente do conceito de governance
ultrapassa o marco operacional para incorporar questões relativas a padrões de
articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais que
coordenam e regulam transações dentro e através das fronteiras do sistema
econômico (Hollingsworth, Schmitter e Streeck apud Melo, 1995). Incluem-se aí, não
apenas os mecanismos tradicionais de agregação e articulação de interesses, tais
como partidos políticos e grupos de pressão, como também redes sociais informais
(de fornecedores, famílias, gerentes), hierarquias e associações de diversos tipos.
Com a ampliação do conceito de governance fica cada vez mais imprecisa sua
distinção daquele de governabilidade. Melo e Diniz, contudo, preferem reter este
último conceito para se referirem às condições sistêmicas e institucionais sob as quais
se dá o exercício do poder, tais como as características do sistema político, a forma
de governo, as relações entre os Poderes, o sistema de intermediação de
interesses.14 Martins (1995) expressa-se de forma semelhante em relação ao termo
governabilidade ¾ ao qual se refere como arquitetura institucional ¾ e o distingue de
governança, basicamente ligada à performance dos atores e sua capacidade no
exercício da autoridade política. Parece-me ter pouco sentido analítico tentar reter um
conceito, por assim dizer, tão esvaziado como o de governabilidade ¾ a não ser como
uma homenagem histórica, e, neste caso, o termo estará intrinsecamente ligado à
ingovernabilidade por sobrecarga de demandas e excesso participativo. Outros
autores,15 contudo, continuam a utilizar o termo governabilidade de forma mais ampla
e já referido ao moderno contexto das políticas de ajuste e reforma do Estado,
pressupondo a ambiência democrática. Na verdade, é pouco relevante, a meu ver, no
contexto atual, tentar distinguir os conceitos de governance e governabilidade. Sugiro,
então, para se fugir a essa discussão aparentemente interminável, que se adote
simplesmente, para fins analíticos, o termo capacidade governativa.
Vale observar aqui, que tanto na gênese do conceito de governabilidade como na do
de governance estão as concepções estrutural-funcionalistas de system capabilities e
processo de conversão do sistema político, conforme amplamente utilizadas na
literatura de modernização e desenvolvimento político pré-huntingtoniana. Assim,
segundo Almond e Powell Jr., o funcionamento de um sistema político pode ser
tratado em dois níveis. O primeiro refere-se à capacidade (capability) do sistema e
está ligado à sua performance enquanto uma unidade em seu meio ambiente. Um
sistema político caracteriza-se por sua capacidade regulatória, extrativa, distributiva e
responsiva (responsive). O segundo nível de funcionamento é interno ao sistema
político e refere-se aos processos de conversão, que são as formas como os sistemas
transformam inputs em outputs, ou seja, formas como demandas e apoios são
transformados em decisões (authoritative decisions) e estas implementadas (cf.
Almond e Powell Jr., 1966:28-29). Assim, para a geração de cientistas políticos que
rompeu com a ciência política institucionalista, inaugurando o behaviorismo, o que
importava ¾ como, de resto, é o que importa agora ¾ era a performance do sistema
político e sua capacidade de resistir às pressões, tanto internas (withinputs) como do
meio ambiente (inputs), isto é, dos sistemas econômico, social etc., sem entrar em
colapso. Para tanto era preciso ser capaz de converter esses distúrbios em políticas
governamentais (outputs) satisfatórias, que terminariam por reforçar o apoio ao
sistema político.
Parece-me que todas as tentativas examinadas até aqui de analisar governabilidade e
crise de governabilidade (ou ingovernabilidade), ou de distinguir governabilidade e
governance, remetem-se, de uma forma ou de outra, a essa origem estruturalfuncionalista da performance dos sistemas políticos. Por outro lado, o pressuposto
democrático que perpassa toda a literatura de modernização e que havia sido
quebrado por Huntington, volta agora com toda a força, embora, por assim dizer, sem
a ingenuidade de outrora, mas ainda conservando uma boa dose de otimismo no que
se refere à reprodução das características das democracias mais antigas e
estabelecidas.
A definição de capacidade governativa com que me proponho a trabalhar não escapa
a essas mesmas observações. Senão, vejamos. Em primeiro lugar, vamos pensar,
com Malloy (1993), em governabilidade (ou capacidade governativa) como a
capacidade de um sistema político de produzir políticas públicas que resolvam os
problemas da sociedade, ou, dizendo de outra forma, de converter o potencial político
de um dado conjunto de instituições e práticas políticas em capacidade de definir,
implementar e sustentar políticas.
Para propósitos analíticos, pode-se desagregar esta definição nos seguintes termos.
Diz-se que um sistema político é dotado de capacidade governativa se for capaz de:
(i) identificar problemas da sociedade e formular políticas públicas, isto é, oferecer
soluções; e (ii) implementar as políticas formuladas, mobilizando para isso meios e
recursos políticos, organizacionais e financeiros necessários.
Tanto os processos de formulação como os de implementação de políticas públicas
são elementos cruciais constitutivos da capacidade governativa do Estado. A
formulação bem-sucedida de políticas públicas depende, de um lado, do sucesso de a
elite governamental mobilizar apoios para as políticas de sua preferência mediante a
formação de coalizões de sustentação e, de outro, da construção de arenas de
negociação que evitem a paralisia decisória. O bom êxito do processo de
implementação exige, além de coalizões de apoio ao governo, capacidade financeira,
instrumental e operacional do Estado. Vale observar que as coalizões de apoio às
políticas governamentais são freqüentemente distintas no que se refere às fases de
formulação e implementação, bem como são conformadas de acordo com a natureza
(ou substância) da política, ponto de especial relevância para a agenda de reforma
dos países em desenvolvimento (a ser melhor desenvolvido na próxima seção).
Essa definição geral de capacidade governativa serve bem aos nossos propósitos.
Por um lado, engloba tanto características operacionais do Estado ¾ analisando-se aí
a eficiência de sua máquina administrativa, novas formas de gestão pública,
mecanismos de regulação e controle ¾ , como sua dimensão político-institucional, as
investigações podendo incluir, neste caso, desde as características das coalizões de
sustentação do governo, do processo decisório, das formas mais ou menos
tradicionais de representação de interesses, das relações Executivo-Legislativo, do
sistema partidário e eleitoral, passando pelas relações entre os três níveis de governo
e a forma e o grau de interação do público com o privado na definição e condução das
políticas governamentais, até a pouca analisada atuação do Judiciário como ator
político e a capacidade de liderança e coordenação do governo.
Por outro lado, a construção da capacidade governativa de forma mais ou menos
democrática fica caracterizada pelos mecanismos e formas que assumem as
instâncias da política na interação do Estado com a sociedade, identificados a partir
do exame de vários dos aspectos referidos acima, com especial destaque para a
maior ou menor inclusão de grupos sociais afetados pelas políticas governamentais.
Em resumo, o termo capacidade governativa, como aqui proposto, engloba as noções
sistêmicas e operacionais contidas no uso recente dos conceitos de governabilidade e
governance. Enfatiza, mais além, a importante distinção analítica entre as fases de
formulação e implementação das políticas governamentais, destacando a interação da
capacidade operacional e financeira do Estado com as instâncias da política que se
quer democrática. Retendo a noção de performance do sistema político, permite
investigar em que medida essas instâncias que se estabelecem são mais ou menos
democráticas.
Dentro dessa vertente, diferentes autores têm destacado e analisado distintos
aspectos da política democrática e sua relação com a capacidade governativa do
Estado. Assim, existe uma profusa literatura sobre o desenho institucional das novas
democracias. Tomando-se como referência especial a construção de coalizões de
suporte ao governo e os padrões de relação e conflito entre o Executivo e o
Legislativo, analisam-se as vantagens e desvantagens do presidencialismo vis-à-vis o
parlamentarismo, em suas diversas combinações com sistemas multi ou bipartidários
e sistemas eleitorais majoritário ou proporcional. Argumenta-se contra os perigos do
presidencialismo, especialmente em países com profundas clivagens e sistema
multipartidário fragmentado e polarizado (Linz, 1996a; 1996b), e enfatiza-se a
combinação particularmente benéfica para as novas democracias entre
parlamentarismo e representação proporcional (Lijphart, 1996a; 1996b). Contestamse, contudo, essas assertivas (cf. Horowitz, 1996; Lardeyret, 1996; Quade, 1996),
questionando-se inclusive sua validade para universos empíricos mais amplos do que
os pesquisados pelos autores (Lipset, 1996).16 No Brasil, esses temas controversos
foram amplamente tratados e debatidos.17 Malloy (1993), por sua vez, acredita que
mais importante para a democratização da América Latina do que eleições abertas e
competitivas, partidos políticos e direitos civis, é a relação estruturada entre os
principais grupos da sociedade civil (sindicatos e grupos empresariais) e o processo
de formação de políticas. Para esse autor, a formação de políticas e o acesso
contínuo a esse processo pelos grupos estratégicos é a questão democrática central.
Destaco, na seção seguinte, como elementos cruciais constitutivos da capacidade
governativa no Brasil o processo de tomada de decisão e as relações ExecutivoLegislativo, enfatizando, com Malloy (idem), o processo de formulação das políticas,
que, acredito, constitui a causa maior da ingovernabilidade no país.
CAPACIDADE GOVERNATIVA E PROCESSO DECISÓRIO
O objetivo desta seção é chamar a atenção para as características do processo
decisório do país enquanto instância política crucial da capacidade governativa. Incluo
nesse processo tanto a fase de formulação como a de implementação das políticas
governamentais, ambas essenciais para a condução dos problemas de governo,
embora aqui vá me referir basicamente à primeira.
Contraponho-me ao diagnóstico de que o gargalo da governabilidade está na
implementação, conforme explicitamente indicado nos trabalhos de Diniz (1995; 1996)
e de Frischtak (1994), assim como à tese dos influentes artigos de Figueiredo e
Limongi (1995a; 1995b) de predomínio quase absoluto do Executivo no processo
legislativo de formulação de políticas, combinado a um padrão cooperativo entre os
dois Poderes.
Segundo Frischtak: "To the extent that the problem area of structural adjustment is
increasingly identified as one of implementation, concern is shifting from the substance
of policies ¾ on which, incidentally, there is growing technical consensus ¾ to the
policy environment itself" (1994:1). No mesmo veio, Diniz afirma que a
ingovernabilidade não pode ser atribuída à paralisia decisória. Existe, ao contrário,
conforme a autora, uma hiperatividade decisória concentrada nos altos escalões
insulados da burocracia governamental, com a exclusão da instância parlamentarpartidária. Reforça seu argumento recorrendo a dados sobre o número de Decretosleis e Medidas Provisórias produzidos pelo Executivo desde o governo Sarney e aos
trabalhos de Figueiredo e Limongi, os quais afirmam que devido aos poderes
legislativos que o Executivo possui, este comanda o processo legislativo, deixando
margem muito estreita de autonomia para o Congresso. Esses dois autores contestam
explicitamente a visão de que o Executivo só vê seus projetos aprovados após
extenuantes e custosas negociações, com maiorias formadas caso a caso na base da
troca clientelista individual. Na verdade, dizem eles, o Legislativo exibe um
comportamento antes cooperativo do que conflituoso para com as iniciativas do
Executivo (Figueiredo e Limongi, 1995a). Sendo assim, conclui Diniz (1995:395 et
passim), o gargalo das políticas de ajuste está no processo de implementação.
As críticas a essas teses serão feitas a partir de achados empíricos de pesquisa por
mim coordenada, que investiga as características do processo decisório no Brasil pósConstituinte, com ênfase nas relações Executivo-Legislativo, mediante dois estudos
de caso de políticas estratégicas da agenda governamental ¾ a política salarial no
governo Collor e as políticas tributária e fiscal nos governos Collor e Itamar (cf. Castro
Santos, Rua e Costa Filho, 1992; Castro Santos et alii, 1994; e Castro Santos, Rua e
Machado, 1994) ¾ , além de analisar o processo orçamentário da União. É dos dois
primeiros que derivam os achados relevantes para os propósitos deste artigo,18 que
podem ser resumidos como se segue.19
O estudo da política salarial permite identificar dois padrões básicos de interação do
Executivo com o Legislativo. Um de composição, em que as lideranças políticas
governistas e de oposição chegam a um entendimento sobre os pontos em conflito.
Outro, de confronto, com a radicalização do processo de negociação mediante
estratégias de obstrução das matérias em votação, especialmente efetivas quando se
trata de projetos prioritários do governo (sobretudo a Lei de Diretrizes Orçamentárias
¾ LDO e a Lei Orçamentária Anual ¾ LOA, com prazos regimentais de votação),
rompimento de acordos, emperramento dos processos de decisão e adoção de
mecanismos de boicote, levando, em momentos de maior inflexibilidade do Executivo,
à completa paralisia decisória. A negociação entre os dois Poderes gira basicamente
em torno do valor do salário mínimo, das faixas salariais a serem indexadas, da
periodicidade dos reajustes e dos mecanismos automáticos de correção salarial.
A análise do processo de decisão das políticas fiscal e tributária mostrou
complexidade bem maior: tanto pelo número de atores estratégicos, bem mais
ampliado, como pela interação destes com os Poderes constituídos, em que agora se
destaca o Judiciário como ator político e importante parceiro no processo decisório,
para não mencionar a marcante atuação dos governadores. Identificam-se dois
padrões de interação dos atores públicos e privados. O primeiro envolve mais
estritamente o Executivo e o Legislativo. Neste caso, a interferência do Judiciário se
dá via Ações Diretas de Inconstitucionalidade ¾ ADIns20 ajuizadas por partidos de
oposição contra medidas do Executivo. Com relação aos governadores, sua
interferência se dá em via de mão dupla: numa direção atendem às solicitações do
governo, acionando suas bancadas no Congresso; na outra, pressionam diretamente
o Executivo, em função de interesses regionais, individualmente ou através do
Conselho de Política Fazendária ¾ Confaz, ou mesmo mediante a mobilização das
suas bancadas no Congresso Nacional. A moeda de troca essencial são os termos da
rolagem da dívida dos estados. Trata-se, basicamente, no caso da política em tela, de
padrões de confronto entre os dois Poderes, sem que, contudo, ocorra completa
paralisia decisória: tipicamente negociam-se pontos de menor conflito, adiando-se
sistematicamente a decisão sobre os mais polêmicos. Dessa forma, a cada final de
ano são aprovadas, após árduas negociações, medidas emergenciais que garantam o
orçamento do ano seguinte e o cumprimento de compromissos internos e externos do
governo, frustando-se regularmente as tentativas do Executivo de promover reforma
tributária e fiscal de cunho estrutural.
Figura 1
Figura 2
Processo de Tomada de decisão
Padrão de Interação Executivo-Legislativo
(Política Tributária e Fiscal)
Figura 3
O segundo padrão de interação dos atores envolvidos na formulação da política fiscal
e tributária tem caráter reativo, referindo-se às ações de grupos sociais (empresários,
banqueiros, segmentos organizados dos aposentados, trabalhadores, entidades
sindicais e associações de interesses desses grupos) contra as medidas do
Executivo, diretamente ou via Legislativo, ou ainda através do Judiciário. Este acaba
por servir de recurso de poder dos atores sociais insatisfeitos, mediante o ajuizamento
de ações diversas contra o governo. O número dessas ações é de tal ordem que
ministros de Estado se dirigem às instâncias regionais e superiores do Judiciário
solicitando moderação na concessão de liminares, já que a avalanche dessas
concessões às empresas e indivíduos estaria inviabilizando a política econômica do
governo.21
No que se refere ao padrão de interação Executivo-Legislativo, que é o foco deste
trabalho, foram identificadas quatro variáveis explicativas, cuja delicada combinação
explicaria o bom termo das decisões ou, ao contrário, a paralisia decisória: (i)
características da equipe econômica (flexibilidade e liderança); (ii) características de
liderança parlamentar do governo (fragmentação, trânsito entre os partidos,
capacidade de negociação, exercício de liderança); (iii) características de liderança do
articulador político do governo (trânsito entre os partidos, capacidade de negociação,
exercício de liderança); (iv) características do sistema partidário e comportamento dos
partidos no Congresso.
Das duas legislaturas do período em análise, conclui-se que a segunda propiciaria,
teoricamente, melhores condições para a construção de maiorias estáveis e o
entendimento entre governo e oposições, já que levar as decisões a bom termo
passaria a depender das negociações entre o bloco governista então criado (PFL,
PRN, PSC, PMN e PST) e o PMDB-PSDB. Contudo, tanto numa legislatura como na
outra, e tanto um presidente da República quanto o outro tiveram dificuldades em
consolidar uma base parlamentar que lhes garantisse resultados favoráveis nas
votações. De fato, Collor e Itamar chegam à Presidência sem base parlamentar de
sustentação. O primeiro, que iniciara seu governo contando com no máximo 7% dos
votos da Câmara dos Deputados,22 consegue formar uma base governista de
sustentação que exige cargos, trocas e benesses, enquanto o segundo, em contexto
pós-impeachment, recorre a amplas coalizões. Ambas as estratégias resultam em
maiorias instáveis.
Ainda a contribuir para a dificuldade de construir maiorias estáveis no Congresso
Nacional está o baixo grau de institucionalização dos partidos, cuja origem deve ser
buscada na constituição histórica do sistema político-partidário (aí incluída a recente
experiência autoritária), na qual se destaca a tradição intervencionista do Estado e o
caráter elitista e artificial de seu processo de formação. Dessa forma, os partidos
políticos não chegam a se constituir em reais parceiros do Executivo na arte de
governar, cumprem mal sua função democrática de agregar interesses da sociedade,
não se sentem responsáveis perante o eleitorado nem são capazes de tomar a
iniciativa de propor políticas necessárias ao reordenamento socioeconômico do país
no momento da transição democrática.
Por outro lado, em um sistema multipartidário polarizado e altamente fragmentado,
certas regras eleitoral-partidárias, tais como ausência de fidelidade partidária,
personalização dos mandatos, facilidade tanto de troca de partido como de
constituição de novos, induzem a coligações de suporte governamental voláteis.23
Agravando essa situação, cita-se a questão do constrangimento eleitoral sobre o
comportamento dos parlamentares, especialmente relevante nas novas democracias
em face do imperativo do ajuste econômico e dos custos sociais que lhe são
inerentes. Esses constrangimentos eleitorais afetam o comportamento tanto dos
partidos governistas como dos de oposição e manifestam-se especialmente em anos
de eleição. Dentre muitos exemplos, cita-se, em 1990, ano de eleições para deputado
federal e um terço do Senado, as negociações em torno das Medidas Provisórias ¾
MPs 154 e 168, espinha dorsal do Plano Collor I, relativas, respectivamente, às
políticas salarial e monetária. Mesmo apoiando o plano governamental de uma
maneira geral, em ambiente inicialmente cooperativo entre os dois Poderes, o PMDB
e o PSDB não deixam de persistentemente negociar com o governo alguns pontos
que afetam diretamente os pequenos poupadores e os assalariados, especialmente
os de baixa renda, logrando obter resultados mais favoráveis a esses grupos: a
periodicidade da indexação dos salários e os extratos de renda a serem indexados
(MP 154), os limites dos saques imediatos das cadernetas de poupança e o prazo de
devolução dos valores bloqueados (MP 168). Quanto aos partidos governistas, é
exemplar o episódio da derrubada do veto presidencial na Câmara à lei salarial do
Congresso, nº 5.340/90, quando parte da bancada governista vota contra o
Executivo.24
Interesses suprapartidários, por outro lado, perpassando as fronteiras partidárias, são
responsáveis por alinhamentos entre partidos e segmentos de partidos especialmente
caóticos. Este é o caso da MP 289/90 e do Projeto de Lei nº 2.155/91, relativos ao
Imposto Territorial Rural, parte dos pacotes emergenciais do final dos anos 90 e 91,
respectivamente. No primeiro caso, é notável a divisão das bancadas tanto
governistas como de oposição, sendo a medida rejeitada por estreita margem de
votos. No segundo, o projeto de lei é derrubado por ampla maioria, registrando-se a
maciça oposição dos partidos governistas e do PMDB (cf. Castro Santos et alii, 1994).
Em ambos os casos pode-se imputar os resultados à presença da bancada ruralista
espalhada por diversos partidos. As clivagens regionais podem ser exemplificadas
pela barganha proposta ao Executivo pela bancada nordestina, intermediada pelo
senador Marco Maciel (PFL-PE), de aprovação da reforma tributária de emergência
de 1991 em troca da reabertura dos bancos estaduais do Rio Grande do Norte,
Paraíba e Piauí, bem como da concessão de novos empréstimos ao banco estadual
de Pernambuco. Note-se que três dos estados envolvidos tinham governos pefelistas
e que o articulador político dessa barganha junto ao Executivo era o próprio líder do
governo no Senado (idem).
Finalmente, mas não menos importante, destaca-se a segmentação do
comportamento partidário dentro do Congresso Nacional: os partidos radicais de
esquerda mostram-se menos abertos às negociações pluralistas, apegados que são a
princípios mais propriamente ideológicos (aproximando-se do comportamento político
típico da arena redistributiva de Lowi); os partidos conservadores (chamados
governistas no governo Collor) não se furtam à negociação desde que esteja implícita,
entre os termos da barganha, a troca de favores e prebendas (aproximando-se do
comportamento político característico da arena distributiva); os partidos do centro do
espectro ideológico, especialmente parte do PMDB e o PSDB, negociam de forma
mais propriamente pluralista (aproximando-se das interações próprias da arena
regulatória).25
A afinidade eletiva entre democracia e pluralismo é classicamente afirmada pelos
primeiros escritos de Robert Dahl e Charles Lindblom. As coalizões pluralistas são,
contudo, tipicamente instáveis, já que se estruturam em função de questões e
interesses tangenciais. No entanto, é por regras de comportamento pluralista que o
Executivo consegue maiorias estáveis, através da negociação entre partidos em torno
de uma agenda de questões e suas soluções, que passam a compor um programa de
governo. Contudo, no Brasil, independentemente da substância da política em
questão (ponto em que me afasto de Lowi), os partidos políticos de esquerda
comportam-se como se todas as questões fossem redistributivas ¾ e, portanto, não
negociam com o governo ¾ , enquanto os mais à direita do espectro ideológico
exibem comportamento típico de arenas distributivas ¾ e, portanto, negociam com o
Executivo caso a caso, em troca de privilégios e cargos. Como os partidos dispostos a
negociações mais propriamente pluralistas não constituem a maioria absoluta do
Parlamento, qualquer presidente, mesmo que alçado ao governo por aliança eleitoral
baseada nesses partidos ¾ o que não foi o caso até agora ¾ teria imensas
dificuldades de construir maiorias estáveis.26
Dessa forma, mesmo o governo Fernando Henrique Cardoso que, diferentemente dos
anteriores, chega ao poder apoiado em sólida coalizão partidário-eleitoral, é
freqüentemente obrigado a negociar seus projetos arduamente. Em primeiro lugar,
porque alianças eleitorais são diferentes de alianças de sustentação. Nesse caso,
como os partidos que compuseram a aliança eleitoral que levou Cardoso ao poder
(PSDB-PFL-PTB) não chegam a formar maioria no Congresso, a base de sustentação
do governo é ampliada, passando a incorporar o PMDB. Em segundo lugar, a coalizão
de sustentação do governo compõe-se de partidos que, conforme sugiro aqui, exibem
comportamentos parlamentares marcadamente distintos. Assim, não só o Executivo é
obrigado a negociar com sua própria base de sustentação para manter seu apoio,
como tem de fazê-lo utilizando moedas distintas. Dessa forma, enquanto na maioria
das vezes a moeda de troca do PFL, do PTB e de parte do PMDB é a típica das
arenas distributivas de Lowi (cargos, benesses), no que se refere à parte "não
fisiológica" do PMDB, as negociações geralmente se dão em torno das questões
(issues) colocadas em pauta, em movimento característico das arenas regulatórias e
pluralistas. Ao PSDB, partido do presidente, não resta muita autonomia no que se
refere às negociações das questões em pauta. A construção de maiorias estáveis no
Parlamento, essencial para a recuperação da capacidade de governar, é portanto,
nesse cenário político-partidário, de difícil consecução.
Em vista dessas considerações, as características das lideranças parlamentares e do
articulador político do governo, somadas à flexibilidade ou inflexibilidade da equipe
econômica, tornam-se variáveis de grande importância para a construção bemsucedida de maioria a cada votação. Se se acrescenta à delicada combinação dessas
variáveis as mediações e intervenções do Judiciário e dos governadores, pode-se
compreender a grande dificuldade em se obter decisões coerentes que componham
uma política governamental ou, mais importante ainda, um conjunto de políticas que
constituam um programa articulado de governo.
Do exposto pode-se derivar os seguintes pontos, em que pese a limitação
metodológica intrínseca aos estudos de caso, plenamente reconhecida: 1) A
configuração político-institucional do processo de tomada de decisão varia conforme a
substância da política em foco ¾ no que se refere aos padrões de interação dos
poderes constituídos e destes com os atores sociais ¾ , bem como com o número e
importância dos atores envolvidos.27 2) O processo de tomada de decisão de políticas
fundamentais da agenda de governo do Brasil pós-Constituinte exibe baixa
institucionalização dos mecanismos de interação dos atores e suas formas de
representação de interesses. Isto, combinado às características dos sistemas eleitoral
e partidário e do comportamento parlamentar dos partidos (ver item 3), ressalta a
importância para a tomada de decisão dos atributos pessoais das lideranças do
governo e da oposição, e mesmo da equipe econômica, de variáveis conjunturais em
determinadas combinações e de mecanismos e procedimentos informais. 3) A baixa
institucionalização dos partidos, a existência de determinadas regras eleitorais e
partidárias em um sistema multipartidário polarizado e altamente fragmentado, a forte
presença de interesses suprapartidários, os constrangimentos eleitorais dos partidos e
sua forma segmentada de comportamento (partidos que ocupam distintas posições no
espectro ideológico negociando segundo diferentes moedas), dificultam a construção
de coalizões de sustentação do governo, obrigando o Executivo a empenhar-se na
obtenção de maioria a cada votação.
É certo que, conforme Figueiredo e Limongi, o Executivo termina por predominar
durante o processo legislativo de formulação das políticas, sendo raros os projetos de
lei de iniciativa do Congresso que tratam de questões fundamentais e são aprovados
com rapidez. Não é menos certo, contudo, que o Executivo não é o soberano
absoluto, sendo freqüentemente obrigado a submeter-se a penosos processos de
negociação com os partidos e líderes parlamentares da oposição, quando não com
sua própria base de sustentação parlamentar.
Evidência empírica mostra, inclusive, como sugerido acima, ocasiões em que se
instala um padrão de franco confronto entre os dois Poderes, como foi o caso da
política salarial do governo Collor. Assim, após o veto do Executivo à incorporação
dos dispositivos dos projetos oposicionistas à MP 154, negociados pelas lideranças
governistas parlamentares, instala-se uma situação de "queda-de-braço" entre os dois
Poderes. Essa situação se caracteriza por uma série de táticas de enfrentamento de
ambos os lados. Por duas vezes o Congresso aprova dispositivos legais contendo
princípios diametralmente opostos aos da política salarial pretendida pelo governo,
sem nenhuma chance, portanto, de obter a sanção presidencial: o Projeto de Lei nº
5.340, de junho de 1990, elaborado pelo próprio Congresso e o Projeto de Lei de
Conversão ¾ PLV nº 63/90, de dezembro de 1990.
O Executivo, por sua vez, reedita sistematicamente MPs, insistindo no princípio da
livre negociação salarial, enquanto a oposição, também sistematicamente, produz
PLVs, estabelecendo o princípio da reindexação dos salários, deixando expirar o
prazo de trinta dias para a apreciação das MPs, que assim perdem sua validade. Em
seu enfrentamento com o Congresso, o Executivo tenta instituir, sem sucesso, uma
arena decisória externa e superveniente ao Parlamento, o Fórum de Entendimento
Nacional, composto de representantes dos Ministérios da Justiça, Trabalho e
Economia, sindicalistas e empresários. O Fórum funcionaria como arena prévia de
negociação, cujas decisões o Legislativo seria constrangido a ratificar. Ao todo são
enviadas e reeditadas sete MPs (MP 193 e MP 199, reeditadas com ligeiras
diferenças pelas MPs 211, 219, 256, 273 e 292), até que o governo consegue aprovar
o PLV 7/91 (em que se transformara a MP 295) como a Lei nº 8.178, em fevereiro de
1991. Esta fica conhecida, tantos são os acordos, como a "lei dos abonos", incapaz
de estabelecer princípios norteadores para uma política nacional de salários. Esses
princípios somente são instituídos quando o Executivo, em acordo com o Legislativo,
abre mão do recurso às MPs e envia ao Congresso o Projeto de Lei nº 638, aprovado
em abril de 1991. Na verdade, a política nacional de salários só foi definida após
quase um ano de embates entre o Congresso e o Executivo e, assim mesmo, de
forma provisória. A política definitiva só seria estabelecida em abril de 1992, quando o
Projeto de Lei nº 2.747 é aprovado pelo Congresso e transformado na Lei nº 8.419 um
mês depois, quase sem modificações em relação à proposta original da equipe
econômica e sem vetos presidenciais. Este resultado, contudo, exigiu a ampliação da
base governista mediante a incorporação de quadros partidários ao primeiro e
segundo escalões da burocracia, providenciada pela reforma ministerial no início de
1992; a pressão de alguns governadores alinhados com o governo sobre suas
bancadas; manobras regimentais lideradas por Luiz Eduardo Magalhães (PFL/BA),
líder do bloco governista na Câmara; e a competente atuação do articulador político
do governo, Jorge Bornhausen (PFL/SC), ministro-chefe da Secretaria de Governo,
cargo especialmente criado para este fim. Bornhausen trata de assegurar a maioria
dos votos parlamentares para a proposta da equipe econômica mediante a
mobilização da recém-constituída base parlamentar do governo, com o auxílio dos
ministros recém-empossados e a cooptação direta de votos oposicionistas em troca
de cargos federais nos estados.28
No caso da reforma tributária e fiscal, se não ocorre completa paralisia decisória, o
próprio fato de tanto no governo Collor como no governo Itamar Franco as propostas
de reforma tributária e fiscal terem resultado, sistematicamente, em medidas
emergenciais de final de ano ¾ assim mesmo intensamente barganhadas e reduzidas
aos pontos de maior consenso ¾ demonstra o padrão de conflito que se instala entre
os dois Poderes. Assim, por exemplo, das oito medidas fiscais e tributárias em
tramitação ao final de 1990, apenas três foram aprovadas, relativas à elevação da
alíquota do Finsocial (MP 279, Lei nº 8.147, de 28/12/90) e do IPI sobre refrigerantes
e bebidas alcóolicas (MP 282, Lei nº 8.133, de 27/12/90) e à simplificação do Imposto
de Renda (MP 284, Lei nº 8.134, de 27/12/90).29
No que se refere à reforma tributária de emergência de 1991, as negociações do
governo com o PMDB ¾ sem o qual o Executivo não consegue obter maioria ¾
envolvem a explícita barganha pela qual o PMDB só aprovaria a reforma antes do
recesso parlamentar se o projeto da rolagem da dívida dos estados (PL nº 2.452/91)
fosse igualmente aprovado. Com vistas às eleições municipais no ano seguinte, o
PMDB lidera a bandeira da rolagem da dívida e compromete-se a apoiar o governo no
ponto mais polêmico do pacote de emergência, qual seja, a criação da alíquota de
35% para o Imposto de Renda de Pessoa Física (PL nº 2.159/91). O Bloco da
Economia Moderna ¾ BEM no Congresso envolve-se também nesta questão,
participando ativamente da elaboração do substitutivo da Câmara ao PL nº 2.159/91.
Reclamando do excesso de tributação sobre as empresas e argüindo a
inconstitucionalidade da antecipação do recolhimento dos impostos referentes ao
exercício de 1993, o BEM propõe tanto a diminuição da carga tributária das empresas
como a eliminação da alíquota de 35% sobre o imposto de renda das pessoas físicas.
O substitutivo da Câmara leva em conta essas demandas, embora mantenha a
Unidade Fiscal de Referência ¾ Ufir, indexador dos impostos proposto pelo governo
também no PL nº 2.159/91. O substitutivo é aprovado com 83% dos votos do PMDB,
que, assim, rompe em plenário o acordo com o Executivo. No final, apesar de cumprir
sua parte no que diz respeito à aprovação do projeto da rolagem da dívida dos
estados, o governo não consegue aprovar a alíquota de 35% para o Imposto de
Renda de Pessoa Física (PL nº 2.155/91), nem o estabelecimento da faculdade de
transação para dívidas referentes a impostos e contribuições previdenciárias (PL nº
2.157/91) e muito menos o aumento da alíquota do Imposto Territorial Rural (PL nº
2.155/91). O governo consegue, contudo, aprovar a criação da Ufir (PL nº 2.159/91), a
medida cautelar fiscal (PL nº 2.156/91) que autoriza a indisponibilidade de bens de
sonegadores de impostos federais, e o projeto de criação da Contribuição para
Financiamento da Seguridade Social ¾ Cofins.
A proposta de reforma tributária e fiscal do governo Itamar Franco, por sua vez,
concentra-se no aumento da receita tributária mediante a criação de novos impostos
(Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira ¾ IPMF, Contribuição sobre
Valor Agregado ¾ CVA, que incidiria sobre produtos e serviços, Imposto Seletivo
sobre combustíveis, telecomunicações, energia elétrica, automóveis, fumo e bebidas
e Imposto sobre Ativos Financeiros); no combate à sonegação fiscal, principalmente
com a quebra do sigilo bancário; no resgate da dívida pública, proibindo estados e
municípios de emitirem novos títulos da dívida pública e permitindo que empresas
públicas pedissem falência ou concordata; e no controle das decisões judiciais,
instituindo a ação declaratória de constitucionalidade, a ação de interpretação do
Distrito Federal e a Justiça Tributária. Desse projeto inicial, o governo consegue
aprovar apenas a criação do IPMF, a destinação de 20% dos recursos arrecadados
com ele para o financiamento de programas de habitação popular e 18% para a
educação, a proibição da emissão de títulos da dívida pública pelos bancos estaduais
e a ação declaratória de constitucionalidade. As negociações em torno do IPMF
seriam longas e intensas, envolvendo interesses extracongressuais poderosos, como
os dos empresários e banqueiros, sem que se formassem claras alianças entre os
partidos, assistindo-se, em vez disso, a negociações pontuais de distintos partidos ou
segmentos de partidos com o governo.30 O Projeto de Lei Complementar,
regulamentando o IPMF, foi aprovado em julho de 1993, seis meses após o início do
ano fiscal, não contribuindo, portanto, como as demais medidas emergenciais de final
de ano, para a garantia de recursos orçamentários para o ano seguinte. Este fato, por
si só, é indicador das difíceis negociações entre os dois Poderes.
Está-se longe, portanto, do padrão, em geral, cooperativo do Legislativo apontado por
Figueiredo e Limongi. O que sugiro aqui é que todos os governantes do Brasil pósConstituinte, qualquer que seja sua extração ideológica, dadas as dificuldades
descritas de construção de maiorias estáveis, se verão recorrentemente envolvidos
em um padrão de interação conflituoso com o Legislativo. Fica claro, portanto, que o
processo de formulação de políticas estratégicas da agenda governamental ¾ em que
o padrão de interação Executivo/Legislativo se apresenta como crucial ¾ pode
constituir-se em importante gargalo da capacidade governativa do Brasil recémdemocratizado.
A que atribuir, então, a diferença desses achados com relação às teses dos autores
mencionados? Para explicar o diagnóstico do gargalo da capacidade governativa do
Estado localizado unicamente na fase de implementação das políticas
governamentais recorro, mais uma vez, à hipótese central do trabalho clássico de
Lowi, "American Business, Public Policy, Case-Studies, and Political Theory" (1964),
que relaciona o tipo de política com o tipo de arena decisória. No caso, importa pouco
diferenciar se as políticas são distributivas, regulatórias ou redistributivas. A maioria é
regulatória e, no limite, já que ligadas à percepção de escassez de recursos dos
atores, todas são redistributivas. Relevante aqui é distinguir as decisões de políticas
que passam pelo Congresso e as que se encapsulam nas burocracias. Esse
encapsulamento, é bom lembrar, é sempre relativo, já que mesmo nos períodos mais
autoritários as burocracias do Estado, feitas arenas decisórias, são penetradas, formal
ou informalmente, por interesses privados.31
No caso das políticas de ajuste, parte passa pelo Congresso e parte não. A política
cambial e grande número dos instrumentos de política monetária, essenciais na fase
de estabilização, não passam, assim como também não passam as políticas de
crédito e de comércio exterior. O Banco Central e as burocracias fazendárias
produzem, em clausura relativa, sem controle social mais amplo,32 uma grande
quantidade de instrumentos legais, caracterizando o que Diniz (1995; 1996) chama de
"hiperatividade decisória da cúpula governamental". A formulação da política industrial
também tem passado ao largo do Congresso Nacional.33 Já as políticas de reforma
estrutural (previdência, privatização, administrativa, tributária e fiscal) passam,
necessariamente, pelo crivo do Legislativo, até porque dependem, em grande medida,
de reforma da Constituição. Anota-se, nesse caso, as grandes dificuldades do
Executivo, a partir da administração Collor, em aprovar no Congresso suas propostas
de reforma previdenciária,34 e reforma tributária e fiscal,35 incluindo-se, no caso do
governo Fernado Henrique, as árduas negociações com líderes parlamentares no que
se refere à reforma administrativa. A política de privatização apresenta grau menor de
conflito quanto à atuação do Legislativo, embora seu arcabouço legal tenha sido todo
discutido e negociado no Congresso (cf. Almeida, 1996).
Minha explicação para a tese que descarta a importância das características da fase
de formulação de políticas para a capacidade governativa do Estado é a de que os
autores que a endossam ¾ não é o caso de Figueiredo e Limongi ¾ têm focalizado,
em seu trabalho, políticas de ajuste que prescindem do Congresso.
No que se refere às teses de Figueiredo e Limongi quanto ao predomínio quase
absoluto do Executivo no processo legislativo e ao comportamento cooperativo do
Congresso, minha explicação para a discrepância de resultados entre a pesquisa
desses autores e a minha própria é de cunho metodológico. De fato, enquanto esses
autores trabalham com dados agregados e o método hipotético-dedutivo, a pesquisa
por mim coordenada baseou-se em estudos de caso de políticas de grande
importância na agenda governamental e no método indutivo. Se é certo que estudos
de caso não permitem generalizações, esta limitação metodológica não impede,
contudo, que seus achados, especialmente quando associados ao método indutivo de
análise, chamem a atenção para pontos relevantes que passam desapercebidos
quando o mesmo objeto é investigado por meio de dados agregados e do método
hipotético-dedutivo. Assim, o primeiro método ¾ apoiado no modelo racional de
comportamento dos atores combinado ao modelo de barganha política ¾ , ao
desvendar as relações, por assim dizer, miúdas entre estes, permite identificar, no
que se refere às políticas enfocadas, conflitos, negociações e padrões tanto de
cooperação quanto de confronto entre o Executivo e o Legislativo. Desvendam-se,
assim, relações conflituosas entre os dois Poderes, mesmo que o tempo de
tramitação dos projetos no Congresso não seja tão grande, que sua taxa de
aprovação seja alta e que a iniciativa dos projetos de lei seja quase sempre do
Executivo, constatações empíricas das quais se valem Figueiredo e Limongi para
evocar o comportamento cooperativo do Congresso.
Fica faltando ainda à análise institucionalista dos dois autores, baseada no estudo do
marco legal criado pela Constituição de 1988 e nas características da produção legal,
a explicação do comportamento dos atores parlamentares. Figueiredo e Limongi
deixam de considerar, assim, o que leva os parlamentares a votar contra ou a favor do
governo, a que induções seletivas são sensíveis etc. Interessante e importante, por
exemplo, seria a análise por issue areas dos dados desses autores combinada a um
modelo de comportamento parlamentar.
O desafio, em nome da produção do conhecimento, é a construção de uma ponte
metodológica entre as duas formas de trabalhar que permita aos estudiosos do
mesmo tema se beneficiarem dos resultados que decorrem de um e outro método de
análise, convergindo, no caso em questão, para a investigação das circunstâncias e
variáveis que explicam o estabelecimento de padrões de conflito e cooperação entre
os dois Poderes.
CONCLUSÕES: QUE DEMOCRACIA ?
Após uma revisão dos conceitos de governabilidade e governance, como tratados
pela literatura recente, apresento, como sugestão, para fins analíticos, a utilização do
termo capacidade governativa, definido de maneira ampla, de forma a englobar tanto
os aspectos operacionais do aparelho do Estado ¾ aí incluídos os requisitos
organizacionais e gerenciais ¾ como suas dimensões institucional, política e
econômica. Baseado na capacidade do sistema político de identificar os problemas da
sociedade, formular soluções por meio de políticas públicas e implementá-las, o termo
proposto enfatiza a importante distinção analítica entre as duas fases do processo de
decisão, indicando, ainda, o contexto mais ou menos democrático em que este se
desenvolve. Esse conceito operacional permite, assim, a análise da eficiência e
eficácia do Estado em ajustar a economia, redefinir seu tamanho e suas funções,
resgatar a dívida social e manter-se em ambiente democrático, desafios impostos e
assumidos por todos os governantes do Brasil pós-constituinte.
Dentre os vários aspectos considerados importantes para a capacidade governativa
do Estado, destaco e examino, neste artigo, o processo de tomada de decisão, com
ênfase na fase de formulação das políticas e nas relações Executivo-Legislativo.
Valendo-me dos resultados de dois estudos de caso de políticas fundamentais da
agenda do governo ¾ a política salarial e a política tributária e fiscal ¾ contraponhome à literatura que localiza o gargalo da capacidade governativa, basicamente, na
implementação das políticas governamentais ¾ aliás, plenamente reconhecido ¾ e à
tese de Figueiredo e Limongi que argúi o predomínio quase absoluto do Executivo no
processo legislativo e o conseqüente comportamento cooperativo do Congresso. Para
tanto, chamo a atenção para as grandes dificuldades da fase de formação das
políticas indicadas, que são colocadas à conta da baixa institucionalização dos
mecanismos de interação dos atores e de suas formas de representação de interesse,
e dos obstáculos para a construção de maiorias estáveis no Parlamento. De fato,
neste último caso, a baixa institucionalização dos partidos, determinadas regras
eleitoral-partidárias em um sistema multipartidário polarizado e altamente
fragmentado, a forte presença de interesses suprapartidários, os constrangimentos
eleitorais dos partidos e sua forma segmentada de comportamento (partidos que
ocupam distintas posições no espectro ideológico negociando segundo diferentes
moedas) dificultam a formação de coalizões de sustentação do governo, obrigando o
Executivo a empenhar-se na construção de maiorias a cada votação. A combinação
desses fatores faz ressaltar a importância, para a tomada de decisão, dos atributos
pessoais das lideranças do governo e da oposição ¾ e mesmo da equipe econômica
¾ , de variáveis conjunturais em determinadas combinações e de mecanismos e
procedimentos informais.
Para a discrepância desses resultados encontro as seguintes explicações. No que se
refere à tese de que o gargalo da capacidade governativa do Estado está
basicamente na implementação, recorro à hipótese central de Lowi que associa tipo
de política a tipo de arena decisória. Sugiro que relevante, nesse caso, é distinguir
entre as políticas que passam pelo Congresso e aquelas que são produzidas em
burocracias relativamente encapsuladas, e que os autores que abraçam a tese
mencionada vêm trabalhando com políticas econômicas cujo processo de formação
se desenvolve de acordo com a segunda modalidade.
No que se refere à tese de predomínio quase que absoluto do Executivo e de
cooperação do Legislativo no processo legislativo propriamente dito, a diferença é
metodológica. Os estudos de caso indicados e o método indutivo permitem desvendar
relações no plano micro entre os atores, e, assim, detectar conflitos, negociações
freqüentemente árduas e padrões de interação tanto de confronto como de
cooperação envolvendo os dois Poderes. Isso ocorre, mesmo que o tempo de
tramitação dos projetos de lei não seja tão grande e que sua taxa de aprovação seja
alta, como sugere a análise de dados agregados e o método hipotético-dedutivo
utilizados pelos autores mencionados.
Dessa forma, se é verdade, no período pós-Constituinte, que o Executivo tem o
domínio do processo legislativo, determina a agenda do Congresso e detém a
iniciativa dos projetos relevantes para o reordenamento socioeconômico do país, não
é menos verdade que é obrigado a negociar com o Congresso, muitas vezes
arduamente, tendo, freqüentemente, de construir maiorias a cada votação. Em outras
palavras, o Executivo predomina, mas o Congresso não é de forma alguma
irrelevante, e muito menos é cooperativo como regra geral.36 Em que circunstâncias e
que variáveis explicam o estabelecimento de padrões de interação envolvendo os
dois Poderes, de natureza mais ou menos conflituosa ou mais ou menos
coooperativa, é questão empírica ainda incipientemente investigada. Almeida (1996)
chama a atenção para o grau de coincidência da distribuição de preferências dos
parlamentares com a agenda reformista dos governos pós-1990. O meu próprio
trabalho enfatiza a importância de variáveis conjunturais em determinada combinação,
incluindo-se aí os atributos das lideranças do governo, da oposição e até mesmo da
equipe econômica. É razoável supor também que quanto maiores e mais
diversificados os interesses envolvidos, e quanto maior a importância estratégica dos
atores em jogo ¾ o que varia com a issue area em foco ¾ menores são as chances
de que se estabeleçam padrões de interação de natureza cooperativa entre o
Executivo e o Legislativo.
Em resumo, no que se refere às políticas de ajuste ¾ item da pauta de todos os
governos pós-Constituinte ¾ , se sua deficiência de implementação é reconhecida, o
processo de formulação das políticas que passam pelo crivo do Congresso é
freqüentemente complexo e difícil. Por outro lado, se boa parte das políticas de
estabilização são, basicamente, formuladas na relativa clausura das burocracias
governamentais, as reformas estruturais ¾ segunda fase do programa de ajuste ¾
são todas submetidas ao Legislativo, até porque dependem, em parte, de reforma
constitucional, o que, necessariamente, pelas dificuldades descritas de negociação
entre os dois Poderes, prolonga o tempo do processo de formulação das reformas
estruturais, tão ansiosamente perseguidas pelos governos pós-1990. Estamos
falando, portanto, de um padrão dual do processo de tomada de decisão.
Aqui o dilema do governante parece ser o seguinte. Para empreender as reformas
estruturais deve ele manter o processo de decisão o mais aberto possível, passando
pelo aval do Congresso Nacional, e, portanto, tornando-o visível aos olhos públicos, e
dessa forma submetendo-o às mais fortes e diversificadas pressões dos grupos
sociais, às interferências do Judiciário, dos governadores de estado, sem falar das
custosas negociações com partidos e líderes da oposição, quando não com a própria
bancada governista. Afinal, como diz Reis,
"[...] a democracia envolve, antes, por definição, a problematização do processo de
fixação dos fins da ação do Estado, com o reconhecimento de que há fins diversos e
às vezes divergentes ou mesmo conflitantes (em correspondência com a
multiplicidade dos interesses de que são portadores os diferentes grupos e categorias
da sociedade) e de que é preciso tratar de agregar fins múltiplos, se possível
compatibilizá-los por meio de negociações, definir prioridades com recurso a
procedimentos que venham a ser percebidos como legítimos etc." (1995:126, ênfase
no original).
Ou deve o governante, para garantir maior rapidez na implantação das reformas
estruturais, encapsular, sempre que possível e o máximo possível, sua fase de
formulação nas burocracias, à semelhança do que ocorre com as políticas monetária
e cambial? Nesse caso, não se estará abrindo mão dos princípios democráticos ¾
outro dos pressupostos dos políticos e da grande maioria dos cidadãos e acadêmicos
do país? Até que ponto a escolha da arena decisória é prerrogativa do governante?
Que constrangimentos internos ou externos, institucionais, políticos ou econômicos
conformam essa escolha? Mais importante ainda: será possível a convivência, a longo
prazo, entre democracia e um padrão dual de tomada de decisão, pelo qual certas
políticas têm como locus de decisão a relativa clausura das burocracias, enquanto
outras se concentram no Parlamento? E o que dizer do resgate da dívida social? É
possível conter seu potencial desestabilizador ¾ segundo a percepção de alguns ¾ ,
ou promover a justiça social ¾ conforme os princípios de outros ¾ , sob o imperativo
da lógica econômica? É possível construir democracia política sem democracia
social? Afinal, de que democracia estamos falando? Malloy prevê:
"Na década de 90, a América Latina será o cenário da criatividade política, na medida
em que esses países busquem reconciliar os impulsos contraditórios que os sacodem.
O resultado mais provável será o surgimento de novos regimes híbridos, nos quais os
elementos de estilo autoritário de política serão fundidos com processos eleitorais
democráticos. Nesses híbridos, a questão crucial será a de como as expressões
organizadas da sociedade civil serão ou não integradas ao processo de governo e de
elaboração de políticas públicas, e qual o papel que os partidos políticos
desempenharão enquanto mediadores desse tipo de articulação" (1993:126).
ODonnell (1993; 1994; 1996), igualmente preocupado com as novas poliarquias,
propõe, tomando como referencial empírico a América Latina, o termo "democracia
delegativa" para caracterizar um novo tipo de democracia, que se distingue das
democracias representativas mais antigas. As democracias delegativas, sugere o
autor, pressupõem a concepção cesarista e plebiscitária de um presidente eleito que
se percebe investido do poder de governar o país da forma como lhe aprouver,
constrangido apenas pelas relações de poder existentes e o tempo
constitucionalmente limitado de seu mandato. Nas novas poliarquias latinoamericanas, continua o autor, não há ausência de institucionalização. Na verdade,
essas poliarquias combinam eleições livres, competitivas e formalmente
institucionalizadas com instituições políticas não formalizadas, com destaque para o
clientelismo e, de forma mais ampla, o particularismo (no qual não há distinção
comportamental, legal e normativa entre as esferas pública e privada). As afinidades
eletivas entre o particularismo, a reduzida "prestação de contas horizontal" (entre as
agências públicas), a pouca transparência dos processos de tomada de decisão das
políticas governamentais, a grande distância entre as normas formais e o
funcionamento efetivo da maioria das instituições políticas e as concepções e práticas
delegativas e não representativas de autoridade política terminam por reviver e
acentuar características do antigo autoritarismo.
Embora se distingam de várias maneiras, as concepções de ODonnell e Malloy
acerca das novas democracias latino-americanas apontam, em comum, para regimes
políticos que combinam eleições democráticas institucionalizadas e práticas
autoritárias. Esses regimes híbridos, parece óbvio, guardam afinidade eletiva com o
padrão de decisão dual descrito acima. Nesse contexto, as relações ExecutivoLegislativo tornam-se cruciais. Um padrão freqüentemente conflituoso entre os dois
Poderes ¾ como argüido aqui ¾ tenderá a reforçar as arenas decisórias localizadas
em burocracias relativamente encapsuladas em detrimento do Parlamento, com
conseqüências óbvias para os rumos da democracia em construção.
Serão os regimes híbridos de Malloy a solução? Será a democracia delegativa de
ODonnell a única possível? O padrão de decisão das políticas governamentais será
basicamente dual? Estaremos dispostos a abrir mão dos mecanismos democráticos
clássicos? E como acomodaremos o particularismo de nosso contexto históricocultural? Que democracia poderemos ou estaremos dispostos a construir? De
qualquer forma, o desafio de ajustar a economia aos pressupostos de resgate da
dívida social em contexto democrático constitui-se, para todos os que não estão
dispostos a abrir mão desses pressupostos normativos ¾ eu mesma, inclusive ¾ , em
formidável desafio para a presente e futuras gerações do país, dos países latinoamericanos e dos países emergentes de uma maneira geral.
(Recebido para publicação em abril de 1997)
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ABSTRACT
Governability, Governance, and Democracy: Governing Capacity and ExecutiveLegislative Relations in Brazil since Enactment of the New Constitution
The article first offers some considerations regarding the concepts governability and
government as used in the recent literature and, for analytical purposes, suggests the
term governing capacity. In a context of economic reforms and democratization,
Executive-Legislative relations form one of the key elements of governing capacity.
Contesting Brazilian literature on this topic, the article grounds itself in basic policies
on the agendas of the Collor and Itamar Franco administrations to argue that if there is
a deficit in the implementation of a good share of economic stabilization policies and
policies to open up trade, produced within relatively insulated bureaucracies, at the
same time the structural reform policies submitted to Congress (social welfare,
privatization, administration, taxation) have fallen short not just in the realm of
implementation but in the realm of formulation as well. Underscoring the complexity of
the policy-making phase, the text cites some causes, such as problems the
government encounters in building stable majorities within Congress. Given this
difficulty, the Executive must often engage in tough negotiations to get governmental
policies approved, and it ends up entering into a pattern of conflict in its interactions
with the Legislative branch. As a consequence, government leaders are tempted to
favor the relatively insulated arena of bureaucracies over the parliament, with
foreseeable consequences for the process of democratization within Brazil. Based on
this scenario, the article asks what type of democracy Brazil can or is willing to build.
Keywords: governability; governance; governing capacity; Executive-Legislative
relations; democracy.
RÉSUMÉ
Gouvernabilité, Gouvernance et Démocratie: Création de la Capacité de Gouverner et
Relations entre le Pouvoir Exécutif et Législatif au Brésil de laprès-Constituante
Dans cet article on confronte tout dabord les concepts de gouvernabilité et détat de
gouvernance selon lusage quen fait la littérature actuelle, tout en suggérant aux
chercheurs demployer la formule" capacité à gouverner". Compte tenu du contexte
des réformes économiques et de démocratisation, lun des éléments essentiels de
cette capacité à gouverner consiste dans létablissement de bons rapports entre le
pouvoir exécutif et le législatif. A partir de létude des politiques de fond des
gouvernements Collor et Itamar Franco, lauteur se démarque de la littérature
brésilienne sur le sujet pour affirmer que si, dun côté, la plupart des politiques de
stabilisation et de libéralisation économique- produit de burocraties relativement
isolées - sont insuffisamment appliquées, dautre côté les politiques de réforme
structurelle (sécurité sociale, privatisations, réformes administrative et fiscale)
soumises au Congrès présentent des défauts de formulation et de mise en place. On
relève la complexité du stade de formulation de ces politiques, tout en montrant les
causes, parmi lesquelles la difficulté du gouvernement de construire une majorité
stable au Congrès. Ce fait mène souvent le pouvoir exécutif à des négociations
difficiles en vue de faire approuver sa politique et, par conséquent, à des niveaux
déchange conflictuels avec le pouvoir législatif. Les gouvernants sont donc tentés de
privilégier le camp relativement restreint des burocraties au détriment du parlement, ce
qui a de claires conséquences sur le processus de démocratisation du pays. Cest à
partir de ce cadre que se pose la question de savoir quel type de démocratie nous
pouvons ou nous sommes prêts à construire.
Mots-clé: Gouvernabilité; gouvernance; capacité à gouverner; rapports pouvoir
exécutif-pouvoir législatif; démocratie.
NOTAS:
*
A primeira versão deste artigo foi apresentada no XX Encontro Anual da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - Anpocs, Caxambu,
MG, 22-26 de outubro de 1996 e no I Congreso Interamericano del Centro
Latinoamericano de Administración para el Desarrollo - CLAD, Rio de Janeiro, 7-9 de
novembro de 1996. Parte do trabalho foi preparada para a Escola Nacional de
Administração Pública - ENAP. Agradeço a Carlos Pio por seus ouvidos atentos e
suas sugestões sempre pertinentes. As idéias aqui expostas são, contudo, de minha
inteira responsabilidade.
1. Ver, por exemplo, entre outros, os trabalhos de Santos (1993); Reis (1989a; 1989b;
1994; 1995); Fiori (1993); Diniz (1995); Sola (1993; 1995).
2. Nelson (1990) apresenta excelente análise sobre o processo de ajuste da
economia dos países em desenvolvimento nos anos 80.
3. Eduardo Viola (1996), por exemplo, considera que a possibilidade de uma coalizão
estatista-nacionalista se esgotou após a derrota do candidato do PT nas eleições
presidenciais de 1989.
4. Fábio Wanderley Reis assim se expressa em Reis (1994). Heredia e Schneider
(1996), resumindo o processo de reforma do Estado em resposta à
internacionalização econômica recente, apontam para a substituição das estratégias
iniciais de downsizing, que terminaram por gerar um Estado desintegrado, com
burocracias desmoralizadas e inoperantes, por uma segunda geração de reformas
administrativas, centradas na construção ou reconstrução das capacidades
institucionais e administrativas do Estado, moldando burocracias capazes de lidar com
pressões e demandas de mercados econômicos e políticos crescentemente
competitivos.
5. Por exemplo, o episódio da matança dos sem-terra em Eldorado dos Carajás tem
sido atribuído ou a uma perversa inversão de prioridades na agenda governamental
ou ao mau sentido de timing dos governantes, que teriam subestimado o potencial
desestabilizador da questão da terra.
6. Robert Barro, economista da Chicago University, é um desses raros analistas.
Apesar de existir significativa literatura sobre a performance de regimes autoritários
vis-à-vis os democráticos no que se refere ao ajuste estrutural da economia trata-se,
basicamente, de análises e avaliações, e não de recomendações. Ver nota 13.
7. ODonnell (1996:19) refere-se a particularismo como um termo geral que,
abrangendo o clientelismo, engloba os "vários tipos de relações não-universalistas,
desde as relações particularistas hierárquicas, a patronagem, o nepotismo, os favores
e jeitinhos, até as ações que, sob as normas formais do complexo institucional da
poliarquia seriam consideradas corruptas". Esta instituição não formalizada,
fortemente arraigada no contexto histórico-cultural latino-americano, exerce enorme
influência nas características do regime político das novas poliarquias da região.
8. Durante as duas últimas décadas o mundo assistiu a uma proliferação de regimes
democráticos sem precedentes. Chamada por Samuel P. Huntington de a "terceira
onda" de democracia, esta atingiu, em graus variados, todas as regiões do globo.
Existe hoje uma vasta literatura sobre as novas democracias e suas características,
perspectivas e critérios de consolidação, tipos de democracia etc. Autores tais como
Guillermo ODonnell, Philippe Schmitter, Larry Diamond, Terry L. Karl, Catherine
Conaghan, Laurence Whitehead, Samuel Valenzuela, James Malloy, Adam
Przeworski, Juan Linz, Alfred Stepan, Arendt Lijphart, Samuel Huntington dentre
muitos outros, têm contribuído extensamente para a análise e debate dessas
questões. Embora de grande interesse para a linha deste trabalho, essa discussão
transcende, contudo, a limitação do seu escopo.
9. As observações de Eduardo Viola levaram-me a esclarecer este ponto.
10. Ambas as definições de governance são do Websters New Universal Dictionary
(London, Dorset & Baker, 1979). Os aspectos de governance em geral considerados
são: "(a) the form of political regime (parliamentary or presidential, military or civilian,
and authoritarian or democratic); (b) the processes by which authority is exercised in
the management of a countrys economic and social resources; and (c) the capacity of
governments to design, formulate, and implement policies, and, in general, to
discharge government functions" (cf. World Bank, 1992:3 e nota 1). Enquanto os dois
últimos aspectos estão dentro do foco de análise do Banco, este não é o caso do
primeiro, embora este esteja também na base da concepção de governabilidade de
alguns dos autores contemporâneos.
11. Esses pressupostos estão claramente indicados, por exemplo, nos trabalhos de
Edgardo Boeninger (1992) e Edmundo Jarquin (1992).
12. Robert Packenham (1973), analisando as doutrinas e teorias por trás dos
programas de assistência técnica e econômica ao Terceiro Mundo, mostra os
pressupostos normativos que conectam desenvolvimento econômico e democracia.
Huntington (1968) critica esses pressupostos, baseado em seu argumento do gap
institucional dos países em desenvolvimento. Ambos reportam-se, extensivamente, ao
trabalho de Louis Hartz (1955), que chama a atenção para o fato de que políticos e
acadêmicos americanos, "handicapped by their happy history" (seu país nasceu com
governo e instituições políticas importadas da Inglaterra do século XVII, com idéias de
igualdade e liberdade individual já bem enraizadas, acreditando que a autoridade
deve ser limitada e o poder descentralizado, em vez de acumulado), são prisioneiros
da tradição liberal. São as seguintes as crenças sobre desenvolvimento político e
econômico, conforme moldadas pela" história feliz" americana e norteadoras da
política de ajuda externa das décadas de 50 e 60: "(1) change and development are
easy; (2) all good things go together; (3) radicalism and revolution are bad; (4)
distributing power is more important than accumulating power" (Packenham, 1973:20).
13. Dentre os autores mais citados que se dedicaram a investigar a existência de
relação entre regime político e êxito na implementação das políticas de ajuste estão
Haggard e Kaufman (1989), Skidmore (1977) e Remmer (1986). Ver, mais
recentemente, Remmer (1996).
14. Compare a semelhança entre essa definição de governabilidade e o aspecto de
governance descartado pelo Banco Mundial. Ver nota 10, acima.
15. Ver, dentre outros, os trabalhos de Fábio Wanderley Reis (1989a; 1989b; 1994;
1995).
16. No início da década, o Journal of Democracy publica um vivo debate sobre essas
questões envolvendo os atores mencionados. Os artigos estão compilados em
Diamond e Plattner (1996).
17. Bolívar Lamounier, Olavo Brasil de Lima Junior, Renato Lessa, José Antônio
Giusti Tavares, Argelina C. Figueiredo, José Serra, Jairo Marconi Nicolau, Marcus
Figueiredo, Fábio Wanderley Reis estão entre os autores que trataram desses temas.
Embora de grande interesse para a questão da construção da capacidade governativa
democrática no Brasil, o vivo debate que mobilizou o meio acadêmico sobre tipo de
governo, sistema partidário e eleitoral transcende o escopo deste artigo.
18. Embora o orçamento seja, como se sabe, crucial para a viabilização de toda e
qualquer política governamental e o processo orçamentário ilumine muitos aspectos
relevantes das relações Executivo-Legislativo, ele tem características específicas que
o distinguem das demais políticas públicas, na medida em que é sujeito à delimitação
formal de prazos e à utilização de instrumentos e arenas decisórias estabelecidos por
dispositivos constitucionais legais. Criam-se, assim, padrões peculiares de interação
do Executivo com o Legislativo, o que, portanto, não oferece boa base para uma
análise comparativa.
19. O texto a seguir baseia-se, extensamente, em Castro Santos, Rua e Costa Filho
(1992); Castro Santos et alii (1994); e Castro Santos, Rua e Machado (1994).
20. A Constituição de 1988 (art. 103) estabelece quem pode propor Ação Direta de
Inconstitucionalidade: o presidente da República; as mesas do Senado, da Câmara
dos Deputados e das Assembléias Legislativas; governadores de estado; o
procurador-geral da República; a Ordem dos Advogados do Brasil; partidos políticos;
e sindicatos.
21. O volume de liminares contra a Receita Federal, concedidas às empresas e
indivíduos em 1992 e relativas à Reforma Tributária de Emergência de dezembro de
1991, ao Finsocial e à Lei 8.200, alcançou tal magnitude que o ministro da Justiça
Célio Borja procurou sensibilizar os presidentes dos Tribunais Regionais quanto à
importância da moderação da concessão de liminares. Nessa ocasião, os ministros da
Economia, Marcílio Marques Moreira, e da Ação Social, Ricardo Fiúza, atribuíram à
Justiça a culpa pela instabilidade fiscal, por impedir a arrecadação de impostos e o
cumprimento de metas fiscais acordadas com o FMI. Mecanismo semelhante
observa-se durante o governo Itamar Franco, quando os ministros Gustavo Krause,
da Fazenda, e Paulo Haddad, do Planejamento, dirigem-se ao Supremo Tribunal
Federal demonstrando preocupação com a possibilidade de resultados desfavoráveis
ao governo no que se refere às ações contra a Lei 8.200 e o Finsocial.
22. O PRN, partido do presidente, contava com 23 deputados. Se se contar com as
bancadas do PST e PSC, partidos que fizeram formalmente parte da coligação
eleitoral de Collor, a base parlamentar inicial do governo chega, segundo os cálculos
de Nicolau (1996), a 6,8%.
23. Embora sem preocupação específica com relação à instabilidade das coalizões de
suporte governamentais, Nicolau (1993; 1996) examina cuidadosamente, na
experiência democrática brasileira pós-1985, as características dos sistemas eleitoral
e partidário brasileiros, procurando avaliar sua relação com a fragmentação singular
deste último. Para o autor, a alta fragmentação partidária, inevitavelmente, leva a
governos de coalizões, até aqui minoritárias, e obriga o Executivo a atrair deputados
ou bancadas de outros partidos para garantir a aprovação de seus projetos.
24. Para maiores detalhes desses episódios, ver Castro Santos, Rua e Costa Filho
(1992) e Castro Santos et alii (1994).
25. Para a descrição das arenas distributivas, regulatórias e redistributivas, ver o
clássico trabalho de Theodore Lowi (1964).
26. Os comentários de Carlos Pio levaram-me a esclarecer esses pontos.
27. Trata-se, basicamente, da hipótese central de Lowi (1964), que relaciona tipo de
política com tipo de arena decisória. Parece, por outro lado, que, por acaso, os dois
estudos de caso selecionados apresentam complexidades extremas quanto à
configuração político-institucional do processo decisório, representando a política
salarial o padrão mais simples, cujo núcleo se repetiria no padrão mais complexo da
política tributária e fiscal, que agrega número muito maior de atores. Uma hipótese
tentativa é a de que o processo decisório das políticas governamentais no Brasil pósConstituinte apresentaria padrões de interação entre os poderes constituídos e destes
com os atores sociais cuja complexidade variaria do mais simples (semelhante ao da
política salarial) ao mais complexo (semelhante ao da política fiscal e tributária).
28. Ver Castro Santos, Rua e Costa Filho (1992) para uma análise detalhada desse
assunto.
29. Foram rejeitadas as seguintes MPs: MP 280, que estabelece incentivos fiscais
para a capacitação tecnológica da indústria e da agropecuária; MP 283, que dispõe
sobre o tratamento tributário aplicável aos Fundos, Sociedades e Carteiras de
Investimentos de que participem, exclusivamente, não-residentes no Brasil; MP 285,
que dispõe sobre a concessão de medidas liminares contra atos do poder público; MP
287, que restabelece alguns incentivos fiscais e retira outros; e MP 289, que propõe
modificação no cálculo, cobrança e sistemática do Imposto Territorial Rural.
30. Ver Castro Santos et alii (1994) para análise detalhada desses aspectos.
31. Existe uma significativa literatura sobre o processo decisório do Estado autoritário
pós-64 que demonstra bem esse ponto. Ver, entre outros, Abranches (1978), Castro
Santos (1993), Paixão e Castro Santos (1988), Martins (1985), Guimarães e Vianna
(1987).
32. Rua (1997) aponta forte vinculação entre os dirigentes do Banco Central e o setor
privado, especialmente o financeiro. Do mesmo modo, as burocracias fazendárias
encarregadas da política de comércio exterior têm se aberto, de forma mais ou menos
institucionalizada, à influência do setor privado, permanecendo, contudo, isoladas da
pressão e controle do processo político pluralista, aí incluídos os checks and balances
do Legislativo.
33. Rua e Aguiar (1995), estudando a política industrial durante os governos Sarney e
Collor, mostram bem o elevado grau de autonomia dos burocratas no que se refere ao
processo decisório dessa política, do qual os políticos são excluídos.
34. Ver, a esse respeito, Melo (1997a; 1997b).
35. Ver, de uma perspectiva política, Castro Santos et alii (1994) e Melo e Azevedo
(1997). O primeiro trabalho analisa o processo de tomada de decisão de política
tributária e fiscal dos governos Collor de Mello e Itamar Franco, enquanto o segundo
se concentra no período da administração Fernando Henrique. Ambos apontam para
a grande variedade dos interesses em jogo e para a complexidade das negociações
entre o Executivo e o Legislativo, dentro do próprio Congresso, entre este e os
representantes da sociedade civil e entre as diferentes esferas governamentais,
derivando desse fato a explicação para o fracasso ¾ no caso dos governos Collor e
Itamar Franco ¾ e previsão de grandes dificuldades ¾ no caso do governo Fernando
Henrique ¾ de aprovação das respectivas propostas de reforma tributária e fiscal.
Embora a reforma tributária e fiscal no governo Fernando Henrique esteja ainda em
seus primeiros movimentos, no segundo semestre de 1996 o governo deu importante
passo, fazendo aprovar projeto de lei complementar que introduzia mudanças no
ICMS, aí se incluindo a eliminação do imposto sobre exportações de produtos
primários e semi-elaborados, isenção para a aquisição de bens de capital e, a partir
de janeiro de 1988, isenção para quaisquer bens de uso e consumo das empresas.
De autoria do ministro do Planejamento, Antônio Kandir, envolveu importantes
negociações com os governadores e com o Congresso, conduzidas pelo próprio
ministro. Centrada no novo ICMS, a proposta governamental tem sido criticada pelos
mais diferentes atores sociais envolvidos e, no âmbito do Congresso, tem sofrido
restrições tanto da oposição quanto da base de sustentação parlamentar do governo.
Este artigo já estava pronto para publicação quando o governo Fernando Henrique,
no rastro da crise financeira asiática, iniciada em maio de 1997, decide propor
imediatamente, dentre outras medidas, um duro ajuste fiscal e tributário, que inclui
cortes de gastos, reestruturação do sistema tributário, redistribuição dos gastos da
União, estados e municípios e o aceleramento das reformas administrativa e
previdenciária. Apesar do presumível efeito facilitador da situação de crise, pode-se
esperar, no que se refere a medidas que requerem a aprovação do Congresso,
difíceis negociações entre o Executivo e o Legislativo. Para estas negociações serão
utilizadas, basicamente, as mesmas estratégias e mecanismos de construção de
maiorias de sustentação das propostas do governo referidas anteriormente, que
certamente incluirão trocas miúdas e o atendimento de interesses particularistas e
cujo bom êxito dependerá, em grande medida, da capacidade das lideranças
parlamentares do governo.
36. Almeida (1996) aponta nessa mesma direção. Analisando (preliminarmente) as
relações Executivo-Legislativo no processo de reforma do Estado, a partir da
privatização das empresas e serviços públicos, a autora conclui que, no caso da
política em foco: (i) não resta a menor dúvida de que é o Executivo quem concebe o
programa de privatização, detendo a iniciativa legislativa e maior taxa de aprovação
para os seus projetos; (ii) a atuação do Congresso, contudo, não é irrelevante, tendo
todo o arcabouço legal da política sido submetido à discussão e negociação
parlamentar; (iii) não cabe responsabilizar o Congresso pelo ritmo lento da
privatização, já que ele não se constituiu, até agora, em obstáculo a esse processo: é
hora de olhar para o Executivo e sua fragmentação; (iv) a explicação do
comportamento cooperativo do Legislativo não deve ser buscada em sua
subordinação aos ditames do Executivo, mas na distribuição de preferências dos
congressistas, bem próxima à agenda reformista dos governos a partir dos anos 90.
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Governabilidade, Governança e Democracia