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INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE MINAS GERAIS
REVISTA DO INSTITUTO
DOS ADVOGADOS
DE MINAS GERAIS
Belo Horizonte – 2008 – n. 14 – ISSN 1981-1608
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Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, n. 1 - , 1995Belo Horizonte: IAMG, 1995 - .
n. 14, 2008
ISSN: 1981-1608
Anual
1. Direito – Periódicos I. Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
CDU: 34
Copyright © 2008 by
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE MINAS GERAIS
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios
empregados, sem a permissão, por escrito, do IAMG.
Coordenação: Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza
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Capa: Café Design Gráfico Ltda.
Diagramação: Eduardo Queiroz – Saitec Editoração Ltda.
Revisão: Tucha – Saitec Editoração Ltda.
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Telefone (31) 3241-1226 – www.iamg.org.br
CEP 30150-340 – Belo Horizonte – MG
Brasil
Impresso no Brasil
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REVISTA DO INSTITUTO
DOS ADVOGADOS DE MINAS GERAIS
DIRETOR
Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza
SECRETÁRIO
Leonardo de Faria Beraldo
CONSELHO EDITORIAL
Celso Cordeiro Machado
Eugênio Klein Dutra
Jair Leonardo Lopes
Décio de Carvalho Mitre
Márcio Garcia Vilela
Natália de Miranda Freire
Sylvia Maria Von Atzingen Venturoli Auad
Antônio Augusto Junho Anastasia
Osmar Barbosa
José Brígido Pereira Pedras Júnior
Dilvanir José da Costa
Cássio Gonçalves
Gustavo Capanema de Almeida
João Batista Ardizoni dos Reis
Paulo Tinôco
Sérgio Antônio de Rezende
Messias Pereira Donato
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INSTITUTO DOS ADVOGADOS
DE MINAS GERAIS
DIRETORIA EXECUTIVA
(Posse em 10/3/2006)
José Anchieta da Silva – Presidente
Luiz Ricardo Gomes Aranha – Vice-Presidente
José Brígido P. Pedras Júnior – Primeiro Secretário
Leonardo de Faria Beraldo – Segundo Secretário
Welington Luzia Teixeira – Tesoureiro
CONSELHO SUPERIOR
(Membros Eleitos)
Aristoteles Dutra de Araújo Atheniense
Eugênio Klein Dutra
Orlando de Oliveira Vaz Filho
Osmar Barbosa
(Membros Vitalícios)
Celso Cordeiro Machado
Décio de Carvalho Mitre
Fernando Andrade Ribeiro de Oliveira
Geraldo Dias de Moura Oliveira
CONSELHO FISCAL
(Efetivos)
Antonio Augusto Mercêdo Moreira
Maria Beatriz Conde Pellegrino
Raul de Araújo Filho
(Suplentes)
Aroldo Plínio Gonçalves
Evandro França Magalhães
José Marrara
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DIRETORIA ADJUNTA
Humberto Agrícola Barbi – Direito Civil
Sofia Miranda Rabelo – Direito de Família
Jean Carlos Fernandes – Direito Empresarial
DIRETORIA DA SEÇÃO DE JUIZ DE FORA
Francisco Xavier Amaral – Presidente
João Bosco Cascardo de Gouveia – Vice-presidente
Marcos de Lima Moreira – 1º Secretário
Almir de Oliveira – Tesoureiro
DIRETORIA DA SEÇÃO DE MONTES CLAROS
Danilo Pereira Borges – Presidente
Aurenice Mota Teixeira – Vice-Presidente
Eluiz Antônio Ribeiro Mendes e Bispo – 1º Secretário
Cynara Silde Mesquita – 2º Secretário
Daniel Arthur Quaresma da Costa – Tesoureiro
DIRETORIA DA SEÇÃO DE UBERABA
Aparecido João D‘Amico – Presidente
Claudiovir Delfino – Vice-Presidente
André Menezes Delfino – 1º Secretário
Lúcio Delfino – 2º Secretário
Gilberto Martins Vasconcelos – Tesoureiro
DIRETORIA DA SEÇÃO DE UBERLÂNDIA
Elza Maria Alves Canuto – Presidente
Roberto Silvestre Bento – Vice-Presidente
Yvonne de Sousa – Tesoureira
Ana Paula Crosara de Rezende – 1ª Secretária
Gil Ferreira de Mesquita – 2º Secretário
Yvonne de Sousa – Presidente de Honra
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COMISSÃO DE SELEÇÃO
Lúcia Massara
Maria Isabel Vianna de Oliveira Vaz
Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza
DIRETORES DE DEPARTAMENTOS
Alexandre Brígido de Alvarenga Pedras – Direito do Consumidor
Ana Amélia Menna Barreto de Castro Ferreira – Direito da Tecnologia da Informação
Carlos Mário da Silva Velloso – Direito Eleitoral
Dilvanir José da Costa – Direito Civil
Fernando José Armando Ribeiro – Teoria do Direito
Gustavo Brígido de Alvarenga Pedras – Direito Ambiental
José Barcelos de Souza – Direito Processual Penal
José Marcos Rodrigues Vieira – Direito Processual Civil
José Nilo de Castro – Direito Municipal
José Otávio de Vianna Vaz – Direito Tributário e Financeiro
Juliana Campos Horta – Direito Constitucional
Juventino Gomes de Miranda Filho – Direito Imobiliário
Leonardo Nemer Caldeira Brant – Direito Internacional
Luciana Diniz Nepomuceno – Direito Notarial e Registral
Luiz Fernando Valladão Nogueira – Direito de Família
Maria Coeli Simões Pires – Direito Administrativo e Agrário
Maurício Martins de Almeida – Direito do Trabalho
Odilon Pereira de Souza – Direito Penal
Paulo Soares Ribeiro de Oliveira – Direito Econômico
Rogério Tavares – Relações com a Imprensa
Sérgio Henriques Zandona de Freitas – Departamento Estudantil
William Eduardo Freire – Direito das Minas e Energia
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SUMÁRIO
Apresentação.................................................................................. 13
1. Antônio Augusto Cançado Trindade........................................... 15
The humanization of Consular Law: The impact of Advisory
Opinion n. 16 (1999) of the Inter-american Court of Human
Rights on international case-law and practice
2. Adhemar Ferreira Maciel........................................................... 39
An american national symbol and freedom of speech
3. Fernando José Armando Ribeiro............................................... 49
O conceito de Constituição na modernidade: Um estudo a partir
da Revolução Francesa
4. Padre José Carlos Brandi Aleixo............................................... 71
Uma nódoa na Constituição
5. Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza.............................................. 75
O 1808 e as formas de Estado do Brasil
6. João Dácio Rolim........................................................................ 79
Não-cumulatividade (valor agregado?)
7. José Marcos Rodrigues Vieira................................................... 93
Modelo constitucional do processo e revisão da coisa julgada
8. Leonardo de Faria Beraldo....................................................... 117
Uma falha do sistema processual: Qual o recurso cabível contra a
sentença que, ao mesmo tempo, nega liminar e extingue o processo?
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9. Lorena Vasconcelos Porto........................................................ 153
O trabalho humano na História e o nascimento do Direito do Trabalho
10. Bernardo Giusti Werneck Côrtes.......................................... 173
As gueltas e a prova diabólica no Direito do Trabalho
11. Leonardo Fulgêncio Júnior .................................................... 227
Direito de ex-cônjuge à pensão por morte de segurado vinculado
ao regime próprio de previdência social do Estado de Minas Gerais
12. Welington Luzia Teixeira......................................................... 291
O contrato de seguro e o novo Código Civil – Reflexos no âmbito
do Direito Material e Processual
13. Bruno Terra Dias.................................................................... 295
A criança, o legislador e o poder na familia desestruturada
14. Bruno Torquato de Oliveira Naves & Maria de
Fátima Freire de Sá.............................................................. 321
Concorrência de Direitos Fundamentais em Direito de Família –
Conflito entre intimidade genética do menor e interesses familiares
e conflitos referentes à liberdade religiosa no seio familiar
15. Maria Celeste Morais Guimarães......................................... 345
Entraves à eficácia da lei de recuperação de empresas em crise.
Como superá-los?
16. Euler da Cunha Peixoto.......................................................... 363
A responsabilidade dos sócios nas sociedades de advogados
17. José Barcelos de Souza........................................................... 379
A nova Lei de Falências e ação penal privada subsidiária
18. José Arthur Di Spirito Kalil & Luis Augusto Sanzo Brodt... 397
Considerações sobre o crime descrito no art. 66 do Código
de Defesa do Consumidor
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19. Tarcisio Marques & Edson Alexandre da Silva.................... 411
Lesão ao princípio do contraditório e da isonomia na esfera
da instância superior no que pertine à manifestação da
Procuradoria de Justiça
20. Beatriz Morais de Sá Rabelo Corrêa.................................... 425
Associativismo municipal e a consolidação do papel do município
como ente do sistema federativo brasileiro
MEMÓRIA DO INSTITUTO..................................................... 441
21. Paulo Roberto de Gouvêa Medina........................................ 443
Sálvio de Figueredo Teixeira: professor, juiz e líder intelectual
22. José Anchieta da Silva............................................................. 449
Discurso proferido por ocasião do recebimento da “Medalha
Desembargador Hélio Costa”, do Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais, na Comarca de Santa Bárbara, em 6/12/2007
23. José Anchieta da Silva.............................................................. 455
Pronunciamento por oportunidade da outorga da “Medalha do
Instituto dos Advogados de Minas Gerais”, a comenda oficial
do IAMG, em 7 de março de 2008
24. Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza........................................... 461
Homenagem a Humberto Theodoro Júnior, primeiro Diretor
do Departamento de Direito Processual Civil do IAMG
25. Roberto Busato......................................................................... 465
Consejo Federal de la OAB – Colegiación Obligatoria
Discurso proferido em Assunção/Paraguai
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APRESENTAÇÃO
Com grande prazer e agradável sensação de dever cumprido, entregamos aos nossos leitores o número 14 da Revista do Instituto dos
Advogados de Minas Gerais, correspondente ao ano de 2008.
Como sempre, desde que recriada pelo Professor Raul Machado
Horta, em 1995, suas páginas vêm cheias de excelentes artigos doutrinários, constando deste número textos sobre Direito Internacional, Teoria
do Estado, Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Processual Civil,
Direito Tributário, Direito do Trabalho, Direito Previdenciário, Direito de
Família, Direito Empresarial, Direito Penal, Direito Processual Penal e
Direito Municipal.
Na seção “Memória do Instituto”, temos discursos em homenagem
ao Ministro Sálvio de Figueiredo, ao Professor Humberto Theodoro Júnior,
dois pronunciamentos do nosso Presidente e um de Roberto Busato.
Assim, agradecendo, sempre, ao Presidente José Anchieta da Silva,
por seu indispensável apoio a mais esta rica edição, renovamos o convite
aos nossos associados para que colaborem em nossa revista, enviando
artigos e trabalhos a serem examinados pelo Conselho Editorial, para a
respectiva publicação.
Belo Horizonte, novembro de 2008.
Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza
Diretor da Revista do Instituto dos
Advogados de Minas Gerais.
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THE HUMANIZATION OF CONSULAR LAW:
THE IMPACT OF ADVISORY OPINION n. 16
(1999) OF THE INTER-AMERICAN COURT OF
HUMAN RIGHTS ON INTERNATIONAL
CASE-LAW AND PRACTICE
Antônio Augusto Cançado Trindade*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Introduction: Consular Law beyond the Inter-State
Outlook. 2. The Right to Information on Consular
Assistance in the Framework of the Guarantees of
the Due Process of Law. 3. The Humanization of
Consular Law in Contemporary International Practice.
4. Concluding Observations.
1 INTRODUCTION: CONSULAR LAW BEYOND THE
INTER-STATE OUTLOOK
The adoption of the 1961 Vienna Convention on Diplomatic Relations
and the 1963 Vienna Convention on Consular Relations, followed by their
wide acceptance by the member States of the international community was
soon to be reckoned as a landmark in the codification of modern International
Law. Their success was attributed to their pertaining to a classic domain of
International Law,1 which already counted, prior to adoption, on a
*
Ph.D. (Cambridge – Prêmio Yorke) em Direito Internacional. Ex-Presidente da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Professor Titular de Direito Internacional da Universidade de Brasília e do Instituto
Rio Branco. Doutor Honoris Causa e Professor Honorário de distintas universidades latino-americanas (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Paraguai e Peru). Membro Titular do Institut de
Droit International e do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia. Eleito, em
6/11/2008, Juiz da Corte Internacional de Justiça, da Haia. Conselheiro Editorial da Del Rey Editora.
1
SUY, E. Développement progressif et codification du droit international: le rôle de l’Assemblée
Générale revisité. In: Proceedings of the United Nations Congress on Public International
Law: international law as a language for international relations, p. 221.
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considerable State practice on the matter.2 The aforementioned Conventions
were regarded as generally “declaratory” of customary law on the matter,
which was significant if one was to keep “all hope of a possible future
reconstruction of that minimum of international homogeneity [...], a synthesis,
in the spirit of full tolerance, of the wealth and diversity of structures, beliefs
and ideologies with a minimum of cultural fundamentals in common”.3
It can hardly be doubted that, by the time the Vienna Conventions on
Diplomatic and Consular Relations were adopted and entered into force,
their implementation was envisaged from the outlook of strictly inter-State
relations.4 Yet, less than two decades later, those Conventions, or at least
some of their provisions, could be read in a distinct light, ineluctably linking
them to the fundamental rights inherent to the human person. The case of
the Hostages (United States Diplomatic and Consular Staff) in Tehran
(1979-1980), filed by the United States against Iran before the International
Court of Justice [ICJ], can be recalled in this connection.5
In its judgment of 24 May 1980 on the Hostages (U.S. Diplomatic
and Consular Staff in Tehran) case (United States versus Iran), the ICJ,
2
It was also attributed to their pertaining to State conduct, rather than with “the substance of
inter-State relations” (ZEMANEK, K. Does codification lead to wider acceptance? In:
Proceedings of the United Nations Congress on Public International Law: international law
as a language for international relations, p. 226.
3
MAREK, K. Thoughts on codification, 31. Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht
und Völkerrecht (1971) p. 520, 507.
4
Cf., e.g., NASCIMENTO E SILVA, G. E. do. Diplomacy in international law, p. 29-48;
MONNIER, J. Observations sur la codification et le développement progressif du droit
international. In: DUTOIT, B.; GRISEL, E. (Ed.). Mélanges Georges Perrin, p. 241-242.
5
In the course of the proceedings (written phase) before the ICJ, the United States, in its
memorial, after pointing out that, in the circumstances of the cas d’espèce, the U.S. nationals
had been held incommunicado “in the grossest violation of consular norms and accepted
standards of human rights”, added emphatically that Article 36 of the 1963 Vienna Convention
on Consular Relations “establishes rights not only for the consular officer but, perhaps even
more importantly, for the nationals of the sending State who are assured access to consular
officers and through them to others”. (ICJ. Hostages [U.S. Diplomatic and Consular Staff] in
Tehran case. ICJ REPORTS (1979); Pleadings, Oral Arguments, Documents, p. 174 (emphasis
added). Again in the oral arguments before the ICJ, the complainant State further contended
that “the right to be free from arbitrary arrest and detention and interrogation, and the right
to be treated in a humane and dignified fashion, are surely rights guaranteed to these individuals
by fundamental concepts of international law. Indeed, nothing less is required by the Universal Declaration of Human Rights” (ICJ REPORTS), argument of the agent for the United
States (Mr. Owen), p. 302-303.
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referring to the International Law governing diplomatic and consular relations
(Vienna Conventions of 1961 and 1963), felt obliged to draw “the attention
of the entire international community” to
the irreparable harm that may be caused by events of the
kind now before the Court. Such events cannot fail to
undermine the edifice of law carefully constructed by mankind
over a period of centuries, the maintenance of which is vital
for the security and well-being of the complex international
community of the present day, to which it is more essential
than ever that the rules developed to ensure the ordered
progress of relations between its members should be constantly
and scrupulously respected.6
In the same judgment on the Hostages case, the ICJ warned that
the obligations at issue of the respondent State were “not merely contractual obligations established by the Vienna Conventions of 1961 and 1963,
but also obligations under general international law”.7 The ICJ stated that
“wrongfully to deprive human beings of their freedom and to subject them
to physical constraint in conditions of hardship is in itself manifestly
incompatible with the principles of the Charter of the United Nations, as
well as with the fundamental principles enunciated in the Universal
Declaration of Human Rights”.8 In its reasoning throughout the judgment,
the ICJ stressed the importance of the relevant principles of International
Law as well as of the International Law of Human Rights. The corpus
juris of diplomatic law was thus approached in the light of basic
considerations of humanity.
In the same decision of 1980, the ICJ saw it fit to draw attention to
the universality of codified diplomatic and consular law, the faithful observance
6
ICJ REPORTS, p. 43, par. 92, 1980.
7
Case concerning United States Diplomatic and Consular Staff in Tehran (United States versus
Iran). ICJ Reports, p. 31, par. 62, 1980. The ICJ further pondered that the principle of the
inviolability of the persons of diplomatic agents and the premises of diplomatic missions had
a “fundamental character”, and was “one of the very foundations of this long established
régime [of diplomatic law], to the evolution of which the traditions of Islam made a substantial
contribution”; ICJ REPORTS, p. 40, par. 86.
8
ICJ REPORTS, p. 42, par. 91.
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of which was to the ultimate benefit to humankind as a whole. In the words
of the Court,
The Vienna Conventions [of 1961 and 1963], which codify
the law of diplomatic and consular relations, state principles
and rules essential for the maintenance of peaceful relations
between States and accepted throughout the world by nations
of all creeds, cultures and political complexions. [...]
[...] The Court considers it to be its duty to draw the attention
of the entire international community, of which Iran itself has
been a member since timeimmemorial, to the irreparable harm
that may be caused by events of the kind now before the
Court. Such events cannot fail to undermine the edifice of
law carefully constructed by mankind over a period of
centuries, the maintenance of which is vital for the security
and well-being of the complex international community of
the present day, to which it is more essential than ever that
the rules develop to ensure the ordered progress of relations
between its members should be constantly and scrupulously
respected.9
It can hardly be doubted that the work of codification and progressive
development, in the course of the XXth century, has endowed International
Law with an objective basis.10 Furthermore, and most significantly, it has
served the imperatives of international justice, and contributed to secure the
unity and universality of International Law.11 It is not surprising that it has
flourished amidst a humanist philosophy and a considerable importance
attributed to the general principles of international law.12 It acknowledges,
9
ICJ REPORTS, p. 24 and 43, pars. 45 and 92, respectively.
10
11
12
Such was the testimony of a protagoist of successive Vienna Conferences of codification of
international law. (Cf. NASCIMENTO E SILVA, G. E. do. A codificação do direito internacional, p. 28-30. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, n. 55/60, p. 100,
1972-1974.
GUERRERO, J.G. La codification du droit international, p. 9-10, 13, 24, 27,150.
MAHIOU, A. Rapport général: les objectifs de la codification. In: SOCIÉTÉ FRANÇAISE
POUR LE DROIT INTERNATIONAL. La codification du droit international (Colloque
d’Aix-en-Provence), p. 22, 45.
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moreover, that its normative content flows from the conscience of the
members of the international community (and not from their simple acts of
will), to respond to their common needs and aspirations, in a manifestation
of the opinio juris communis.13
It cannot pass unnoticed that a domain of International Law which,
some decades ago, was conceived upon a strictly inter-State basis, such
as diplomatic and consular law,14 is nowadays ineluctably permeated with
basic considerations of humanity. There could hardly be a more eloquent
illustration, as I perceive it, of the current historical process of
humanization of International Law, setting the ground for the construction
of a new jus gentium of the XXst century, the International Law of
humankind.15 The aforementioned Hostages case before the ICJ is not
an isolated example in this connection.
2 THE RIGHT TO INFORMATION ON CONSULAR
ASSISTANCE IN THE FRAMEWORK OF THE
GUARANTEES OF THE DUE PROCESS OF LAW
More recently, the Inter-American Court of Human Rights [IACtHR]
had the occasion to dwell upon the matter, upon a request by Mexico, in
respect of a provision of the 1963 Vienna Convention on Consular Relations
(Article 36(1)(b)) – in combination with the American Convention on Human
Rights, – in an Advisory Opinion of 01 October 1999. In the course of the
advisory proceedings,16 one of the eight intervening States before the
13
As admitted by another distinguished protagonist of codification of international law in the
XXth century; cf. AGO, Roberto. Nouvelles réflexions sur la codification du droit international.
In: DINSTEIN, Y. (Ed.). International law at a time of perplexity: essays in honour of S.
Rosenne. p. 2, 22.
14
To the aforementioned 1961 and 1963 Vienna Conventions, two others can be added,
namely, the 1969 Convention on Special Missions, and the 1975 Convention on the
Representation of States in Their Relations with International Organizations of a Universal
Character.
15
CANÇADO TRINDADE, A. A. International law for humankind: towards a new jus
gentium: General Course on Public International Law – Part II. Recueil des Cours de l’Académie
de Droit International de La Haye, chapter XXII, p. 130-149.
16
Cf. pleadings in Advisory Opinion OC-16/99, cit. infra n. (17), Series B (Pleadings, Oral
Arguments and Documents), n. 16, p. 3-217.
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IACtHR, – the United States, – argued inter alia that the 1963 Vienna
Convention was not a human rights treaty nor a treaty “concerning” the
protection of human rights, but rather “a multilateral treaty of the traditional
type concluded to accomplish reciprocal exchange of rights for the benefit
of the Contracting States”.17 In so doing, the United States assumed a position
which was diametrically opposed to the one it held upheld years earlier in
the Hostages case (cf. supra).
The IACtHR dismissed that argument, recalling that under the 1963
Vienna Convention “the consular officer and the national of the sending
State both have the right to communicate with each other, at any time, in
order that the former may properly discharge his functions”; the consular
communication serves a dual purpose, namely,
that of recognizing a State’s right to assist its nationals through
the consular officer’s actions and, correspondingly, that of
recognizing the correlative right of the national of the sending
State to contact the consular officer to obtain that assistance.18
The IACtHR further recalled that Article 36(1)(b) and (c) of the 1963
Vienna Convention pertained to consular assistance in a given situation, namely,
that of deprivation of freedom. The rights mentioned therein had as a
characteristic the fact that their titulaire is the individual. In effect, that provision
is unequivocal in stating that rights to consular information and
notification are ‘accorded’ to the interested person. In this
respect, Article 36 is a notable exception to what are essentially
States’ rights and obligations accorded elsewhere in the Vienna
Convention on Consular Relations. As interpreted by this Court
in the present Advisory Opinion, Article 36 is a notable advance
over international law’s traditional conceptions of this subject.19
17
IACtHR. Advisory Opinion OC-16/99, of 1º/10/1999. The Right to Information on Consular
Assistance in the Framework of the Guarantees of the Due Process of Law, Series A, n. 16, p. 179,
par. 26.
18
IACtHR. Advisory Opinion OC-16/99, of 1º/10/1999. The Right to Information on Consular
Assistance in the Framework of the Guarantees of the Due Process of Law, p. 238-239, pars. 79-80.
19
IACtHR. Advisory Opinion OC-16/99, of 1º/10/1999. The Right to Information on Consular
Assistance in the Framework of the Guarantees of the Due Process of Law, p. 239-241, pars. 81-82.
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It ensues from that provision that the exercise of that right is limited
only by the choice of the individual himself, who may “expressly” oppose
any intervention by the consular officer on his behalf; this, – added the
IACtHR, – “confirms the fact that the rights accorded under Article 36 of
the Vienna Convention on Consular Relations are rights of individuals”.20
The Court therefore concluded that
Article 36 of the Vienna Convention on Consular Relations
endows a detained foreign national with individual rights that
are the counterpart to the host State’s correlative duties. This
interpretation is supported by the Article’s legislative history.
There, although in principle some States believed that it was
inappropriate to include clauses regarding the rights of
nationals of the sending State, in the end the view was that
there was no reason why that instrument should not confer
rights upon individuals. [...]
Therefore, the consular communication to which Article 36
of the Vienna Convention on Consular Relations refers, does
indeed concern the protection of the rights of the national of
the sending State and may be of benefit to him. This is the
proper interpretation of the functions of ‘protecting the
interests’ of that national and the possibility of his receiving
‘help and assistance’, particularly with arranging appropriate
‘representation before the tribunals’. [...].21
In its Advisory Opinion of 1/10/1999, the IACtHR, in sum, held
that Article 36 of the 1963 Vienna Convention on Consular Relations
recognizes to the foreigner under detention individual 2rights, – among
which the right to information on consular assistance, – to which
correspond duties incumbent upon the receiving State (irrespective of
its federal or unitary structure).22 The Court pointed out that the evolutive
IACtHR. Advisory Opinion OC-16/99, of 1º/10/1999. The Right to Information on Consular Assistance in the Framework of the Guarantees of the Due Process of Law, p. 241, par. 83.
21
IACtHR. Advisory Opinion OC-16/99, of 1º/10/1999. The Right to Information on Consular Assistance in the Framework of the Guarantees of the Due Process of Law, p. 241-242,
pars. 84 and 87.
22
Paragraphs 84 and 140.
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interpretation and application of the corpus juris of the International Law
of Human Rights, have had “a positive impact on International Law in
affirming and developing the aptitude of this latter to regulate the relations
between States and human beings under their respective jurisdictions”;
the Court thus adopted the “proper approach” in considering the matter
submitted to it in the framework of “the evolution of the fundamental rights
of the human person in contemporary International Law”.23
The Court expressed the view that, for the due process of law
to be preserved, “a defendant must be able to exercise his rights and
defend his interests effectively and in full procedural equality with other
defendants”.24 Thus, the individual right to information under Article
36(1)(b) of the Vienna Convention on Consular Relations renders
effective the right to the due process of law. The non-observance or
obstruction of the exercise of this right affects the judicial guarantees.25
The Court in this way linked the right at issue to the evolving guarantees
of due process of law, and added that its non-observance in cases of
imposition and execution of death penalty amounts to an arbitrary
deprivation of the right to life itself (in the terms of Article 4 of the
American Convention on Human Rights and Article 6 of the
International Covenant on Civil and Political Rights), with all the
juridical consequences inherent to a violation of the kind, that is, those
pertaining to the international responsibility of the State and to the
duty of reparation.26
This Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR, truly pioneering, has
served as inspiration for the emerging international case-law, in statu
23
24
25
26
Paragraphs 114-115.
Paragraph 117. In order to attain its objectives, “the judicial process ought to recognize and
correct the factors of real unequality” of those taken to justice; thus, the notification, to
persons deprived of their liberty abroad, of their right to communicate with their consul,
contributes to safeguard their defence and the respect for their procedural rights. Paragraphs
119 and 121-122.
Paragraphs 124 and 129.
Paragraph 137; and cf. Concurring Opinion of Judge A.A. Cançado Trindade. – For the
pleadings and oral arguments before the Court, cf. IACtHR, OC-16/99, of 1º/10/1999, Series
B, n. 16 (2000), p. 3-217.
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nascendi, on the matter,27 and is having a sensible impact on the practice
of the States (infra) of the region on the issue. The Advisory Opinion
achieved a considerable mobilization in the advisory proceedings (with
eight intervening States, besides several non-governmental organizations
and individuals), one of the greatest in the whole history of the Court to
date,28 surpassed only by that in the subsequent Advisory Opinion n. 18
of the IACtHR on the Juridical Condition and Rights of Undocumented
Migrants (2003).29
It may be observed, in passim, that the historical Advisory Opinion
n. 16 reveals the impact of the International Law of Human Rights in the
evolution of Public International Law itself, specifically for having the
IACtHR been the first international tribunal to warn that non-compliance
with Article 36(1)(b) of the Vienna Convention on Consular Relations of
1963 took place to the detriment not only of a State Party but also of the
human beings at issue,30 as well as to affirm the existence of an individual
27
As promptly acknowledged by expert writing, singling out the advanced and evolutive
approach it propounded; cf. notes (36), (37) and (38), infra. It has beenpointed out, e.g., that
“la Cour Interaméricaine avait examiné dans quelle mesure la violation du droit d’être informé
de l’assistance consulaire pouvait être considérée comme une violation de la règle fondamentale
du procès équitable et si, par voie de conséquence, une telle irrégularité de procédure dans le
cas d’une condamnation à mort constituait aussi une atteinte illicite à la vie humaine protégée
par l’article 6 du Pacte relatif aux droits civils et politiques. [...] La CIJ ne s’est pas prononcée
sur ces questions qui ont trait à l’application de deux principes du droit international (la règle
du procès équitable et le droit à la vie)”. Ph. Weckel, M.S.E. Helali and M. Sastre, op. cit. infra
n. (46), p. 770. Cf. also, in further acknowledgement of the pioneering contribution of the
16th Advisory Opinion of the Inter-American Court: owards the humanization of the Vienna
Convention of Consular Rights – The LaGrand Case before the International Court of
Justice, 44. German Yearbook of International Law/Jahrbuch für internationales Recht, n.
(48), p. 430-432, 453-455, 459-460 and 467-468; MENNECKE, M.; TAMS, C. J. The
LaGrand Case, 51. International and Comparative Law Quarterly, n. (48), p. 454-455.
28
In the public hearings (on this 16th Advisory Opinion) before the Court, apart from the
eight intervening States, several individuals took the floor, namely: seven individuals
representatives of four national and international non-governmental organizations (active in
the field of human rights), two individuals of a non-governmental organization working for
the abolition of the death penalty, two representatives of a (national) entity of lawyers, four
University Professors in their individual capacity, and three individuals in representation of
a person condemned to death.
29
30
For the pleadings and oral arguments before the Court, cf. IACtHR, OC-18/03, of 17/9/2003,
Series B, n. 18 (2005), p. 3-231.
As the ICJ has subsequently also admitted, in the aforementioned case LaGrand.
23
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right to information on consular assistance in the framework of the guarantees
of the due process of law.31
In fact, it may be recalled that, throughout the contentious proceedings
in the subsequent LaGrand case (Germany versus United States) before
the ICJ, the advisory proceedings conducive to the aforementioned Advisory
Opinion n. 16, as well as this Opinion itself, of the IACtHR (of 1/10/1999),
were constantly brought to the attention of the ICJ, in both the written and
oral phases. Thus, in the written phase of the proceedings in the LaGrand
case, Germany, in its memorial (of 16/9/1999), expressly referred to the
request by Mexico for an Advisory Opinion pending before the IACtRH.32
Likewise, in its counter-memorial (of 27/3/2000), the United States expressly
referred to the Advisory Opinion n. 16 recently issued by the IACtHR.33
This latter was extensively referred to, also in the oral arguments before the
ICJ.34 Subsequently, in its Judgment of 27/6/2001 in the LaGrand case,
the ICJ found that the United States breached its obligations to Germany
and to the LaGrand brothers under Article 36(1) and (2) of the 1963 Vienna
Convention on Consular Relations.35
Subsequently to the LaGrand case, once again, in the case of Avena
and Other Mexican Nationals versus United States, the complainant State
before the ICJ, this time Mexico, in its memorial (of 20/6/2003), throughout its
argumentation referred extensively to the aforementioned and leading Advisory
Opinion n. 16 (of 1999) of the IACtHR, quoting excerpts of it reiteratedly.36
Cf. IACtHR. Advisory Opinion n. 16 (OC-16/99), cit. supra n. 18, p. 3-123, pars. 1-141
[Spanish text].
32
ICJ. Memorial of the Federal Republic of Germany (LaGrand case), v. I, 16/9/1999, p. 69.
33
ICJ. Counter-Memorial Submitted by the United States of America (LaGrand case), 27/3/
2000, p. 85-86, n. 110.
34
Cf., in particular, the pleadings of the co-agent and counsel for Germany (B. Simma). In: ICJ.
Public sitting of 13/11/2000, doc. 2000/26, p. 60/62; and doc. 2000/27, p. 9-11, 32, 36.
35
ICJ REPORTS, p. 515-516, 2001 (resolutory points 3 and 4). On the “diffident” attitude of
the ICJ, which “failed to mention” the judicial precedent of the Advisory Opinion n. 16 of the
IACtHR holding that Article 36 of the 1963 Vienna Convention on Consular Relations was
among the minimum guarantees essential for a fair trial of foreign nationals, cf. FITZPATRICK,
J. Consular rights and the death penalty after LaGrand. In: AMERICAN SOCIETY OF
INTERNATIONAL LAW. Proceedings of the 96th Annual Meeting, p. 309.
31
36
ICJ. Case concerning Avena and Other Mexican Nationals (Mexico versus United States).
Memorial of México, 20/6/2003, p. 80-81, 136-137, 140-141 and 144, and cf. p. 65.
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It further referred expressly to other decisions of the IACtHR, also in
contentious cases,37 relevant to the matter at issue before the ICJ, in sum,
to the relevant jurisprudence constante of the IACtHR on the subject.
At a stage of its memorial, Mexico argued, inter alia, in support of its
position, that
The increasing support of OC-[Advisory Opinion n.] 16 [of
the IACtHR] by foreign governments in death penalty cases
involving foreign nationals stronglysuggests the existence of
an emerging consensus in the practice of nations.38
In its Judgment of 31/3/2004 in the case of Avena and Other Mexican
Nationals, the ICJ found in favour of Mexico.39
3 THE HUMANIZATION OF CONSULAR LAW IN
CONTEMPORARY INTERNATIONAL PRACTICE
Shortly after its adoption, Advisory Opinion n. 16, of the IACtHR, on
the Right to Information on Consular Assistance in the Framework of
the Due Process of Law (of 1/10/1999), was promptly and expressly referred
to by the General Assembly of the United Nations, in its resolutions 54/166,
of 17/12/1999,40 and 55/92, of 4/12/2000,41 both on protection of migrants.
Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR was likewise expressly referred to by
the General Assembly of the Organisation of American States (OAS), in two
of its resolutions, adopted in 2000 and 2001, respectively.42 Furthermore,
37
ICJ. Case concerning Avena and Other Mexican Nationals (Mexico versus United States).
Memorial of México, 20/6/2003, p. 119-121, 151, 153 and 155-157, and cf. p. 55.
38
ICJ. Case concerning Avena and Other Mexican Nationals (Mexico versus United States).
Memorial of México, 20/6/2003, p. 141.
39
ICJ REPORTS, p. 70-73, 2004. Once again, like in the LaGrand case, in the Avena case the
ICJ, in approaching “consular assistance rights”, reasoned in the line of inter-State relations
(diplomatic protection) rather than individual human rights. (Cf. ICJ REPORTS, p. 60-61,
pars. 124-127, on the reticent position of the ICJ)
40
Tenth preambular paragraph.
41
Fifteenth preambular paragraph.
42
OAS. Resolutions AG/RES.1717(XXX-0/00), of 5/6/2000 (fifth considerandum), and AG/
RES.1775(XXXI-0/01), of 5/6/2001 (sixth considerandum).
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the aforementioned Advisory Opinion n. 16 was likewise expressly quoted in
decision 2001/52 of the U.N. Commission on Human Rights.43
On its part, the U.N. Subcommission on the Promotion and
Protection of Human Rights, in a statement issued on 08.08.2002, urged
the United States to stay execution of a Mexican national (J.S. Medina),
on the basis of the Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR (of 1/10/1999) and
the subsequent Judgment of the ICJ in the LaGrand case (of 27/6/2001).44
Again shortly after the Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR, the
rapporteur of the OAS Inter-American Commission on Human Rights
on the question of Migrant Workers and Members of their Families
reproduced the views expressed by Peru that the receiving State is under
the duty to facilitate consular assistance to foreigners, and by Bolivia
and Panama to the effect that migrants have the right to resort to consular authorities of the State of origin.45
Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR was truly pioneering, and has
served as inspiration for the emerging international case-law, in statu
nascendi, on the matter. This has been promptly acknowledged by expert
writing, for example, in referring to the subsequent decision of the ICJ (of
27/6/2001) in the LaGrand case, rendered “à la lumière notamment de
l’avis de la Cour Interaméricaine des Droits de l’Homme du 1er octobre
1999".46 It has further been pointed out that the IACtHR’s Advisory Opinion
43
Fourteenth preambular paragraph.
44
Statement reproduced in a press release of the U.N. High Commissioner for Human Rights,
of the same date, p. 1.
45
2nd. progress report, reproduced in OAS: Informe Anual de la Comisión Interamericana de
Derechos Humanos 2000, v. II, p. 1562 (Peru), 1560 (Bolivia) and 1561 (Panama).
46
COHEN-JONATHAN, G. Cour Européenne des Droits de l’Homme et droit international
général (2000), 46. Annuaire français de droit international, p. 642. It has also been pointed out,
as to the Inter-American Court’s Advisory Opinion n. 16, “le soin mis par la Cour à démontrer
que son approche est conforme au droit international”. Moreover, “pour la juridiction régionale
il n’est donc pas question de reconnaître à la Cour de la Haye une prééminence fondée sur la
nécessité de maintenir l’unité du droit au sein du système international. Autonome, la juridiction
est également unique. [...] La Cour Interaméricaine des Droits de l’Homme rejette fermement
toute idée d’autolimitation de sa compétence en faveur de la Cour mondiale fondamentalement
parce que cette dernière ne serait pas en mesure de remplir la fonction qui est la sienne”.
(HELALI Weckel, M. S. E. Ph.; SASTRE, M. Chronique de jurisprudence internationale, 104.
Revue Générale de Droit International Public, p. 794, 791, 2000)
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of 1999 contrasts with “la position restrictive prise par la Cour de La Haye”
in its decision of 2001 in the LaGrand case47:
La Cour Interaméricaine avait examiné dans quelle mesure la
violation du droit d’être informé de l’assistance consulaire pouvait
être considérée comme une violation de la règle fondamentale
du procès équitable et si, par voie de conséquence, une telle
irrégularité de procédure dans le cas d’une condamnation à mort
constituait aussi une atteinte illicite à la vie humaine protégée
par l’article 6 du Pacte relatif aux droits civils et politiques. [...]
La CIJ ne s’est pas prononcée sur ces questions qui ont trait à
l’application de deux principes du droit international (la règle du
procès équitable et le droit à la vie).48
Turning to the contemporary international practice on the matter, it
may be pointed out that two weeks after the adoption of Advisory Opinion
n. 16 by the IACtHR, the Ministry of External Relations of Mexico issued a
circular note to all its diplomatic and consular posts stressing the importance
of that Advisory Opinion and of due compliance with it.49 The matter dealt
with in the Advisory Opinion was already occupying a special place, in
recent years, in Mexico’s diplomatic and consular practice.50 In an intervention
47
In effect, “la juridiction régionale avait exprimé son opinion dans l’exercice de sa compétence
consultative. Or, statuant sur un différend entre États, la juridiction universelle ne disposait
pas de la même liberté, parce qu’elle devait faire prévaloir les restrictions imposées à sa
juridiction para le défendeur”. (WECKEL, Ph. Chronique de jurisprudence internationale,
105. Revue Générale de Droit International Public, p. 764-765, 2001)
48
WECKEL, Ph. Chronique de jurisprudence internationale, 105. Revue Générale de Droit
International Public, p. 770. Cf. also, in further acknowledgement of the pioneering contribution
of the Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR: MENNECKE, M. Towards the humanization
of the Vienna Convention of Consular Rights – The LaGrand Case before the International
Court of Justice, 44. German Yearbook of International Law/Jahrbuch für internationales
Recht, p. 430-432; 453-455; 459-460; 467-468, 2001; MENNECKE, M.; Tams, C. J. The
LaGrand Case, 51. International and Comparative Law Quarterly, p. 454-455, 2002.
49
50
SRE/MÉXICO. Notice Circular, p. 1-6, 14/10/1999.
Three years before the Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR, Mexico and the United
States concluded a Memorandum of Understanding on Consular Protection (1996) of their
nationals, stressing the need of compliance with Article 36(1) of the 1963 Vienna Convention
on Consular Relations, and to allow and facilitate consular officials to be present at all times
at the trials or judicial proceedings concerning their respective nationals.
27
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at the 56th U.N. General Assembly (2001) on the report of the ICJ, the Legal
Adviser to its Foreign Office stated that Mexico supported the conclusion of
the Judgment in the LaGrand case to the effect that individual rights ensued
from Article 36(1) of the 1963 of the Vienna Convention on Consular Relations,
but would have preferred if the ICJ had established in an “unequivocal manner”,
like the IACtHR had already done in its Advisory Opinion n. 16, that those
rights had the character of human rights; a pronouncement of the ICJ in this
sense “would have resulted of great relevance”.51
As from the end of the year 2000 onwards, Mexico began to resort
to diplomatic channels as a complementary strategy for the defence of their
nationals condemned to death penalty in the United States. Thus, in the
case of M.A. Flores, letters of the Ambassadors of Argentina (1/11/2000),
Honduras (8/11/2000), Poland (31/10/2000), Spain (2/11/2000), and
Uruguay (8/11/2000) requested clemency to the Governor of Texas. In
those letters, they all requested a reconsideration of the death sentence in
view of the Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR, in particular its finding
therein that the execution of a foreign national deprived of his “Article 36
rights” would constitute an “arbitrary deprivation of life”, in violation of Article
6 of the U.N. Covenant on Civil and Political Rights.
Again in the case of G. Valdez Maltos, letters to the same effect, and
with the same argument on the basis of the aforementioned Advisory Opinion
of the IACtHR, were sent by the Ambassadors of Argentina (12/7/2001),
Brazil (16/7/2001), Chile (13/7/2001), Costa Rica (16/7/2001), El Salvador (10/7/2001), Iceland (13/7/2001), Poland (16/7/2001) and Uruguay
(12/7/2001) to the Governor of Oklahoma, requesting clemency/ The same
happened in the case of J/ Suárez Medina, when letters of the Ambassadors
of Costa Rica (12/8/2002), Guatemala (6/8/2002) and Uruguay (1/8/2002)
likewise requested clemency to the Governor and local authorities of Texas,
on the basis of the IACtHR’s finding in its Advisory Opinion n. 16.
Moreover, in the case of G. Valdez Maltos, the Governments of Argentina, Bolivia, Brazil, Colombia, Ecuador, El Salvador, Guatemala,
Panama, Poland, Uruguay and Venezuela consented to join Mexico in filing
51
SRE/MEXICO. Intervención del consultor jurídico de la Secretaría de Relaciones Exteriores
de México (J.M. Gómez Robledo) en el Marco del Tema 13 del Programa de Trabajo de la
56a. Asamblea General de las Naciones Unidas.Informe de la CIJ, p. 2, 30/10/2001)
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an amicus curiae brief before the U.S. Supreme Court. In that amicus
curiae, of August 2001, they expressly supported “the seminal Opinion of
the Inter-American Court in OC-16/99”; in particular, they referred to the
Opinion’s sustaining that the lack of consular notification was prejudicial to
the minimum guarantees of due process to secure a fair trial, that a State
may not impose the death penalty dpriving individuals of rights under Article
36 of the Vienna Convention on Consular Relations, and that the execution
of foreign nationals under such circumstances would constitute an “arbitrary
deprivation of life” in violation of Article 6 of the U.N. Covenant on Civil
and Political Rights”.52
Likewise, in the case of J. Suárez Medina, the Governments of Argentina, Brazil, Chile, Colombia, El Salvador, Guatemala, Honduras, Panama,
Poland, Spain, Uruguay and Venezuela also consented to join Mexico in
filing an amicus curiae (of August 2002), wherein once again the “seminal”
Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR was expressly supported in the
same line of reasoning.53 Still in the J. Suárez Medina case, the Government
of Mexico, in a note (of 17/7/2002) to the U.S. Department of State,
expressly invoked the Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR to argue the
“illegality under international law” of the execution of its national, in breach
of Article 6 of the U.N. Covenant on Civil and Political Rights, “to which
the United States is a Party”.54
Other recent examples of international practice on the matter may be
singled out. In the framework of the contribution of Advisory Opinion n. 16
of the IACtHR (supra), three States of Central America – El Salvador,
Guatemala and Nicaragua – established, on 30 November 2000, a
“Mechanism of Trinational Consular Protection”. By means of this initiative,
they agreed to render consular protection, by the consuls of each of the
three States, to nationals of the other two States, whenever these latter did
not have consulates in the receiving State, and there was a situation of proven
emergency or necessity.55
52
Pages 7-8 and 20 of the amicus curiae.
53
Pages 7 and 18 of the amicus curiae.
54
SRE/Mexican Embassy in Washington D.C., Note of 17/7/2002, p. 3.
55
Consideranda 2-3 and operative paragraphs 1-2; the Mechanism became effective on 1
January 2001 (par. 3).
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Subsequently, the VII Regional Conference on Migration, held in
Antigua, Guatemala, on 30-31 May 2002,56 in its final Joint Communiqué
acknowledged “the importance of the mechanisms of consular protection in
condition of detention” – under the Vienna Convention on Consular Relations
or other international agreements – established in the framework of “full
respect of the human rights of the migrants”.57 Parallel to that, the I Iberian
Meeting of the Community of Brazilians Abroad,58 held in Lisbon, on 9-11/
5/2002, contemplated, it its final document, the establishment of a scheme
of juridical assistance abroad to Brazilian migrants, in order to secure them
“their condition of titulaires of fundamental rights”.59
Shortly after the IACtHR’s Advisory Opinion n. 16, Venezuela’s
newly-adopted national Constitution (of 17/11/1999) provided for the duty
to observe “consular notification, set forth in international treaties on the
matter”, in respect of detention of foreigners.60 For some years the
Venezuelan Ministry of External Relations had in fact been attentive to the
question of consular assistance to Venezuelans detained abroad.61 On its
turn, the Ministry of External Relations of Chile issued in 2001 its new Manual
of Procedure for the Due Exercise of Consular Assistance and
Protection and of Diplomatic Protection, which, in the light of Article
36(1) of the Vienna Convention on Consular Relations, acknowledges the
duty of the receiving State to inform Chilean consuls of the detention of
Chilean nationals, and the right of these latter to seek consular assistance
and protection, considered in the light of the fundamental rights of the human
person.62
On its part, the Ministry of External Relations of Brazil issued in 2000
the new version of its Manual of Consular and Juridical Service, which,
56
With the participation of Belize, Canada, Costa Rica, the Dominican Republic, El Salvador,
Guatemala, Honduras, Mexico, Nicaragua, Panama, and the United States.
57
Paragraph 3 of the Joint Communiqué. It further approved the establishment of “mechanisms
of cooperation”, on the basis of national legislations, on the matter at issue (par. 6(a)).
58
Promoted by Brazil’s Ministère Public.
59
Item XIII – Conclusion, of the final “Document of Lisbon”, p. 10.
60
Article 44(2) in fine.
61
As exemplified by MRE/Venezuela, circular letter n. DGSRC-a-18, of 4/7/1986, p. 1-2.
62
Sections 2.1 and 2.3 of the aforementioned Manual, p. 2 and 6.
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after singling out Article 36 of the Vienna Convention on Consular Relations,
provided for the organization of “Councils of Citizens” (abroad), to foster
communication between nationals living abroad and consular authorities of
the country of origin, as well as of “Itinerant Consular Missions”, to render
more agile the consular assistance normally rendered in consular offices.63
Still in South America, the Ministry of External Relations of Peru saw it fit to
consult the National Police on the compliance with the right of information
on consular assistance; this latter reported to the Peruvian Foreign Ministry,
on 31/12/2001, that the provision of Article 36 of the Vienna Convention
on Consular Relations on “the right of foreigners to receive assistance” from
consular authorities of the countries of origin was being complied with in the
country.64
In Central America, the Ministry of External Relations of El Salvador
sent a circular message, on 8/12/1999, to all its diplomatic and consular
posts, summarizing the contents of the Advisory Opinion n. 16 of the IACtHR,
and instructing them to comply, in the light of this latter, with the “duty” of
the Salvadorean State “to protect its nationals abroad” and to secure, in this
connection, the strict observance of the application of Article 36 of the
Vienna Convention on Consular Relations.65 Earlier on, in another circular
message of the kind, of 16/7/1998, the Foreign Ministry of El Salvador
instructed its diplomatic and consular missions to secure compliance with
the provision of Article 36 of the 1963 Vienna Convention pertaining to the
duty of the receiving State to inform the foreigner under detention of his
rights thereunder.66
More recently, on 1/6/2004, the Vice-Ministry of External Relations
for Salvadoreans Abroad was created, and has been very active ever since.67
In the same line of concern, the Ombudsman (Defensor de los Habitantes) of Costa Rica, concerned with alleged “policies of deportation” of “many
63
64
65
Items 3.1.23, 3.2.1, and 3.3.2, of the aforementioned Manual (version of 2/6/2000).
Peru/National Police, report n. 436-DIRSEG-JESE-DEX-IE, of 31/12/2001, p. 2. – And cf.,
earlier on, [VARIOUS AUTHORS]. Comunidades peruanas en el exterior: situación y perspectivas, p. 7-78.
MRE/El Salvador, Annex to doc. DUAJ/AEJ/1840-01, p. 1-3.
66
MRE/El Salvador, doc. DGSE/SAC/1042/98, p. 1.
67
Documents provided by the Salvadorean Ministry of External Relations, on file with the Author.
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Costa Rican citizens” in Panama, issued a communiqué, on 2/11/2001,
recommending to national authorities to national authorities the prompt
exercise of “consular protection”, in the light of the Advisory Opinion n. 16
of the IACtHR.68
Before the issuing of this latter, the Paraguayan Minister of Justice
and Labour sent a complaint (with annexes) to the U.S. Secretary of
State, in March 1998, to the effect that, in the Breard case, the right to
information for consular assistance had been breached by the United States
when the Paraguayan national A.F. Breard was arrested in 1992, and that
Paraguay was only notified of that arrest after his national had been tried
and sentenced to death. Paraguay was thus deprived of rendering consular assistance, in contrast with its own constant compliance with the relevant
provisions of the 1963 Vienna Convention on Consular Relations vis-àvis U.S. nationals in Paraguay.
The Breard case was then, as ultima ratio, lodged by Paraguay with
the ICJ, which issued a provisional measure of protection, on 9/4/1998,
indicating that the United States should not execute A.F. Breard pending
the Court’s final decision on the case.69 Notwithstanding, five days later, on
14/4/1998, A.F. Breard was executed in Virginia, in breach of the ICJ Order.
On 3/11/1998 the U.S. Government issued a statement fully recognizing the
violation by the United States of the 1963 Vienna Convention in the Breard
case, and conveying its apologies to “the Government and people of
Paraguay”. The U.S. statement added that
Consular notification is no less important to Paraguayan and
other foreign nationals in the United States than to U.S.
nationals outside the United States. We fully appreciate that
the United States must see to it that foreign nationals in the
United States receive the same treatment that we expect for
our citizens overseas. We cannot have a double standard.
On its part, the Paraguayan Ministry of External Relations, in an official
communiqué of 4/11/1998, took note of the “full recognition” on the part of
68
DHR/Costa Rica, doc. 08445-2001-DHR, of 2/11/2001, p. 3-4.
69
ICJ REPORTS, p. 258 (resolutory point n. 1). 1998.
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the U.S. Government of its breach of the 1963 Vienna Convention,
announced that it decided to withdraw its application from the ICJ, and
expressed the hope that what occurred to A.F. Breard did not happen again.70
The issue, however, became a recurrent one, as the subsequent LaGrand
and Avena cases before the ICJ, both against the United States, were to
show. We are thus here before, rather than a “persistent objector”, a
persistent violator of the relevant provisions of the 1963 Vienna Convention
on Consultar Relations, which seems to attempt to make one believe that a
simple apology provides sufficient redress for the irreparable damage caused
to the individuals at issue.
4 CONCLUDING OBSERVATIONS
The aforementioned examples on the contemporary international
practice on the issue converge in disclosing an opinio juris in the line of the
views upheld by the IACtHR in Advisory Opinion n. 16. Even before this
latter, there already was an incipient practice in the region under Article 36(1)
of the Vienna Convention on Consular Relations. Such international practice
was confirmed and enhanced by that Advisory Opinion, which has decisively
contributed to the formation of an opinio juris communis as to the individual
rights crystallized under Article 36(1) of the 1963 Vienna Convention. This
development, on its part, reflects the ongoing process of humanization of
International Law, encompassing relevant aspects of consular relations.
Subsequent to its Advisory Opinion n. 16, the IACtHR delivered, on
17 September 2003, its 18th Advisory Opinion, on the Juridical Condition
and Rights of Undocumented Migrants, in which it held that States ought
to respect and ensure respect of human rights, in the light of the general and
basic principle of equality and non-discrimination, and that any discriminatory
treatment with regard to the protection and exercise of human rights generates
the international responsibility of the States. In the view of the Court, the
fundamental principle of equality and non-discrimination has entered into
the domain of jus cogens.
The IACtHR sustained that States cannot discriminate or tolerate
discriminatory situations to the detriment of migrants, and ought to guaranteee
70
Documents provided by the Paraguayan Ministry of External Relations, on file with the Author.
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the due process of law to any person, irrespective of her migratory status.
This latter cannot be a justification for depriving a person of the enjoyment
and exercise of her human rights, including labour rights. Undocumented
migrant workers have the same labour rights as the other workers of the
State of employment, and this latter ought to ensure respect for those rights
in practice. States cannot subordinate or condition the observance of the
principle of equality before the law and non-discrimination to the aims of
their migratory or other policies.
The IACtHR has thus lately considered the subject at issue into an
yet larger framework, of concern to the international community as a
whole.71 At universal level, likewise, the Declaration and Programme of
Action adopted in Durban, South Africa, in 2001, by the U.N. World
Conference against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and
Related Intolerance, were not indifferent to the protection of migrants.
On the contrary, paragraphs 80-81 of the Programme of Action, e.g.,
saw it fit expressly to urge States
to seek full respect for, and compliance with, the Vienna
Convention on Consular Relations of 1963, especially as it relates to the right of foreign nationals, regardless of their legal
and immigration status, to communicate with a consular officer
of their own State in the case of arrest or detention; and
to prohibit discriminatory treatment based on race, colour,
descent or national or ethnic origin against foreigners and
migrant workers, inter alia, where appropriate, concerning
the granting of work visas and work permits, housing, health
care and access to justice”.
The matter at issue is thus nowadays acknowledged as one of concern
to humankind as a whole, having assumed an increasing relevance in the
new jus gentium.
71
On the historical importance of this Advisory Opinion n. 18 (of 2003) of the IACtHR, cf., e.g.,
AHLF, L. Ortiz. Derecho internacional público, p. 555-557; AHLF, L. Ortiz. De los migrantes:
los derechos humanos de los refugiados, asilados, desplazados e inmigrantes irregulares, p. 169; CLEVELAND, S.H. Legal Status and rights of undocumented workers – Advisory Opinion
OC-18/03 [of the IACtHR]. 99. American Journal of International Law, p. 460-465, 2005.
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AN AMERICAN NATIONAL SYMBOL AND
FREEDOM OF SPEECH*
Adhemar Ferreira Maciel**
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
Speech, the attribute that distinguishes man from other
animals. The need for its constitutional protection. The
slow evolution of constitutional protection of the right
of freedom of speech and expression. The 1689 English
Bill of Rights. The French Declaration of 1789. Freedom
of criticism in the United States’ press. The Zenger Case.
Agreement between federalists and anti-federalists for
the elaboration of amendments to the Philadelphia
Constitution. The present First Amendment. Madison’s
text. Ban on previous restraint. Blackstone’s influence
on North American Law. The Clear and Present Danger
theory. The importance of the New York Times Co. v.
Sullivan case. Public flag burning as a right to free
expression. The Street v. New York Case. Recent attempts
to change the First Amendment. Conclusions.
It might have been Pascal (Pensées, 3471) who, unwittingly, best
formulated the synthesis of man: “a thinking reed”. Although other animals
might have a “voice”, they do not have a “speech” (logos); in other words,
they cannot express logically and rationally what they think.
If we examine the history of the roseau pensant, we will see that man
has always had to fight a never-ending battle to be allowed to express what
he thinks, whether it be by gestures, silence, speech, cartoons, stickers on
vehicles or countless other ways. To preserve the freedom of ideas and
*
Artigo enviado ao Prof. Charles D. Cole, da Cumberland School of Law, Sanford University,
em Birmingham – AL/USA.
**
Ministro aposentado do STJ. Consultor jurídico. Membro da Academia Mineira de Letras
Jurídicas.
1
PASCAL, Blaise. Pensées. L’homme n’est qu’un roseau, le plus faible de la nature; mais c’est un
roseau pensant. (Available at: http://www.croixsens.net/pascal/index.php. Accessed: Nov. 26 2007)
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ADHEMAR FERREIRA MACIEL
thought, man has had to struggle, to resist (LASKI, 1937, p. 94).2 Resist,
first, religious tyranny, then State tyranny, and finally the tyranny of social
groups. If his thoughts were in disagreement with those of the Church, man
was guilty of heresy; if they clashed with the State’s, he was a rebel; if his
ideas and actions were different from most, he had to be silenced. Many a
time has man had to fight against the tyranny of both State and Church,
joined to stifle him.
A careful analysis of modern political Constitutions, starting from the
Fundamental Orders of Connecticut, considered by Karl Loewenstein
(1959, p. 4)3 to be the first modern written Constitution, will show that the
fundamental rights were implemented gradually, along time. Thus, the 1689
English Bill of Rights granted freedom of speech only to people’s
representatives, whether in Parliament or outside it. The 1789 Declaration of
Rights of Man and of Citizens, under the influence of the Enlightenment,
expanded the right to free speech: La libre communication des pensées et
des opinions est un des droits les plus précieux de l’Homme: tout Citoyen
peut donc parler, écrire, imprimer librement, sauf à répondre de l’abus
de cette liberté dans les cas déterminés par la Loi (Art. 11). From then on,
countless documents of international reach, such as the Universal Declaration
of Human Rights issued by UN’s General Assembly (1948) and the European
Convention for the Protection of Human Rights (1950), have been consolidating
and improving the right to free speech and communication.
Even though free speech originated in England, it was in the United
States that it reached its zenith. In 1695, when the Licensing Act became
extinct, there was no longer the need to obtain previous permission from the
Stationer’s Company4 or from the Church to publish books in Great Britain.
2
LASKI, Harold J. Emphasizes that the secret of freedom of mind lies in the courage to resist:
liberty in the modern state, p. 94.
3
LOEWENSTEIN, Karl. Verfassungsrecht und Verfassungspraxis der Vereinigten Staaten S.
4: “[...] die Fundamental Orders of Connecticut, erlassen in Hartford im Jahre 1638, kann
wohl als die erste geschiebene Verfassung gelten und geht zeitlich dem mutterländischen
Instrument of Government von Cromwell (1654) vor. Georg Jellinek remembers that the
Fundamental Orders of Connecticut had an influence in the elaboration of the Agreement of
the English People. (Teoría general del estado, p. 631)
4
The guild Stationer’s Company, of editors and book sellers, was founded in 1403, obtaining
the royal monopoly in 1557 (Available at: http://encyclopedia.farlex.com/
Stationer’s+Company. Accessed: Jan. 25 2008).
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But criticism to public officials in periodicals was still subject to court action.
In Colonial America there is a famous, therefore frequently quoted case,
involving freedom of the press. John Peter Zenger, the owner of a New
York weekly paper, published a series of articles criticizing the city’s English
governor. He was sued for libel. In the English tradition, he was submitted
to a grand jury that did not indict him – the facts published had been true…
Freedom of speech and communication may involve delicate
questions that are most of the times difficult to solve. Does the Government
have the right to self-promotion? Does the tax-payer have the right to
stop tax paying? Do I have the right to make and show a pornographic or
obscene film? Can I start a blog preaching atheism? Racial hatred?
Homosexualism? Can a company that produces alcoholic beverages, having
spent millions of dollars on neuromarketing, legitimately advertise on TV
its undoubtedly harmful products?
When the United States Constitution was elaborated, the federalists,
with a view to winning the anti-federalists’(later “Republicans”) support to get
the Constitution ratified by the Member-States, promised to make constitutional
amendments that would guarantee the fundamental rights, which had not been
expressly protected in the original 1787 text. In 1789, during the first legislature
of the Congress, 78 proposals for constitutional amendments were discussed.
The House of Representatives passed 17. In Senate, that number was reduced
to 12, Finally, on December 15, 1791, the state assemblies ratified only 10,
which became known as the Bill of Rights.
Certainly, the First Amendment to the Bill of Rights is the most
important of all the ten first amendments to the American Constitution, as it
deals with “freedom of speech”, which sets “the thinking reed” apart from
other animals.
The First Amendment confirms that the Congress is forbidden to make
a law establishing an official religion (as formally happens in England), banning,
as well, any act abridging the freedom of speech, or of the press. The
freedom of belief, which is the cement that binds together all freedoms of
speech, is not expressly stated in the First Amendment. It is implicit
(NOWAK, ROTUNDA, 2007, p. 599).
Madison, the main author of the Constitution, who was familiar with
the French constitutionalists, proposed, on June 8th, 1789, the following
text for the future First Amendment:
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The people shall not be deprived or abridged of their right to
speak, to write, or to publish their sentiments, and the freedom
of the press, as one of the great bulwarks of liberty, shall be
inviolable.
As can be noticed, the wording is extensive and, in the French fashion,
subjectively praises the press, one of the great bulwarks of liberty.
The text was rejected by the House of Representatives’ Special
Committee. In the Senate, the proposed constitutional clause was altered.
When the First Amendment was proposed, Sir William Blackstone’s
(1723-1780) ideas predominated and had already been influenced by
Locke’s (1632-1704) and John Milton’s (1608-1674) beliefs. Blackstone,
in his magnificent work Commentaries on the Laws of England,5 took a
stand against any previous censorship to the press. He admitted, however,
a posteriori punishment, particularly if the news published was improper,
mischievous, or illegal. Madison himself, as recorded in the on the Annals
of Congress (n. 434), had already endorsed the Blackstonian view:
The liberty of the press is indeed essential to the nature of a
free state. But this consists in laying no previous restraints
upon publications, and not in freedom from censure for criminal matter when published. Every freeman has an
undoubted right to lay what sentiments he pleases before the
public; to forbid this, is to destroy the freedom of the press:
but if he publishes what is improper, mischievous, or illegal,
he must take the consequence of his own temerity.
For many years, freedom of speech prevailed in the United States
with limitations. The existing rule was: there must be no previous restraint.
The truth is that between 1791, when the Bill of Rights was ratified, and
the United States’ entering the First World War, very few cases involving
freedom of the press arrived at the Supreme Court. With the War, however,
pacifists and religious people started urging the young not to enlist by
means of letters and leaflets. They would picket and put up posters. The
5
The Commentaries can be consulted in their integrity on the Internet (http://www.lonang.com/
exlibris/blackstone/).
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Congress, fearing disastrous consequences, passed two laws that made
those activities a crime (Espionage Act and Sedition Act). The Supreme
Court gave a new interpretation to the free speech and free press clauses
of the First Amendment. Oliver Holmes Jr. (1841-1935) and Louis
Brandeis (1856-1941) created a criterion to validate or not antiwar
behavior: if there was Clear and Present Danger, the protection of the
First Amendment could not be invoked. Thus, the right to free speech in
circular letters and leaflets advocating opposition to the draft was discussed
in the Schenck v. United States case, 249 U.S. 47, 51-52 (1919).
HOLMES stated in his opinion:
We admit that in many places and in ordinary times the
defendants in saying all that was said in the circular, would
have been within their constitutional rights. But the character
of every act depends upon the circumstances in which it is
done. Aikens v. Wisconsin, 195 U. S. 194, 205, 206. The
most stringent protection of free speech would not protect a
man in falsely shouting fire in a theater and causing a panic. It
does not even protect a man from an injunction against uttering
word that may have all the effect of force. Gompers v. Bucks
Stove & Range Co., 221 U. S. 418, 439. The question in
every case is whether the words used are used in such
circumstances and are of such a nature as to create a clear
and present danger that they will bring about the substantive
evils that Congress has a right to prevent.
At the beginning of the 1950 decade, Clear and Present Danger
was revised (NOWAK/ROTUNDA, 2007, p. 625). In the 60’s, Fred
Vinson (1890-1953) reformulated Holmes and Brandeis’ theory: it fell upon
the Government to demonstrate “substantial interest” in waiving the protection
of the First Amendment. Felix Frankfurter (1882-1965) pointed out that
the Clear and Present Danger theory was flawed by its inflexibility
(NOWAK/ROTUNDA, 2007, p. 625).
Regarding freedom of the press, newspapers and magazines were
always wary of publishing news against public agents. Though it was the
responsibility of the press to divulge the public administration’s dishonest
acts, keeping citizens well informed, the publications ran the risk of the
public authority bringing a libel suit against them. On March 29th, 1960,
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there was an incident that resulted in a new concept of freedom of the
press. On that day, the New York Times published a report entitled Heed
Their Rising Voices, with the objective of raising funds for the defense of
the black leader Martin Luther King, accused of tax evasion (Alabama).
The chief of Montgomery’s police, Comissioner Sullivan, despite not having
been named in the report, felt that it had harmed his honor. Consequently,
he filed a libel action. The Circuit Court of Montgomery County granted
him damages of $500,000 The sentence was confirmed by the Supreme
Court of Alabama, which saw the news published by the paper as libelous
per se, where falsity and malice are presumed. There had been, according
to the sentence, “irresponsibility” on the part of newspaper, which had files
where the correctness of the facts described in the paid advertisement could
have been verified. However, the New York Times had had not no such
concern, acting in reckless disregard of the truth. The Supreme Court of the
United Stares, when judging the case (NewYork Times Co. v. Sullivan),
had to address several issues, including some related to constitutional
jurisdiction: did the Fist Amendment also apply to laws made by state
assemblies or only to those made by the Congress?
Ronald DWORKIN (1996, p. 196), several years after the 1968
decision, hailed the New York v. Sullivan case as a modern foundation
of the American law of free speech. It fell upon Justice William Brennan
Jr. to speak for the Court. This Supreme Court landmark brought about a
discussion on how responsible a vehicle for news and ideas is for what it
publishes. How liable are the owners of a newspaper or magazine for facts
published without prior checking? Here is where the question of onus
probandi comes into the picture: does it fall upon the publication to prove
that it has not acted with malice or recklessly? Is actual malice6 required
so that the publication can be convicted in the case of a legal suit claiming
harm to the honor of a public official? How far can legal suits filed by public
officials against newspapers and magazines be legally limited if several of
those suits may only have the purpose of redressing harm done to their
honor rather than financial compensation? Can a state’s libel law (such as,
6
Like the Brazilian Law, the American Law makes a distinction between actual malice or
malice in fact and malice in law. On that subject, consult BLACK, Henry Campbell. Black’s
law dictionary, p. 863.
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in the concrete case, Alabama’s) apply the First Amendment that mentions
the “Congress”? Shouldn’t the 14th Amendment be used instead?
Evidently, the delicate issue of malice in fact or actual malice had
already been discussed in several cases prior to New York Times Co. v.
Sullivan.7 However, even though before that trial there might have been a
few opinions the importance of a free press, it was only with New York
Times Co. v. Sullivan that the Supreme Court guaranteed the protection
of a press which might not have been all too precise about the facts published
or was even “hasty” when reporting news. The possibility of having to pay
fat compensations for libel or defamation cannot but be a barrier to the
action of a free press. The fear of a court sentence – more civil than criminal
in fact – can prevent any criticism of public organs, which do not always
have the collective interest in mind. That is why BRENNAN Jr.’s opinion
stated that “(...) the fear of damage awards under a rule such as that invoked
by the Alabama courts here may be markedly more inhibiting than the fear
of prosecution under a criminal statute....” The New York Times decision
was so important that books on the case were published immediately after
it.8 There were those who doubted whether the Watergate investigation
would have been successful had it no been for the New York Times
(DWORKIN, 1996, p. 195/6) case. In fact, the espionage carried out by
President Nixon’s aids in the Democratic National Committee headquarters
at the Watergate hotel complex led the Supreme Court, in July 1974, to
allow the publication of the President’s private papers and tapes,
understanding that the Government had not proved that disclosing such data
put the country’s interests at risk.
In New York Times, BRENNAN, aware of the importance of the
precedent being set, warned when starting his opinion:
[…] we are required in this case to determine for the first
time the extent to which the constitutional protections for
speech and press limit a State’s power to award damages in
7
Charles Parker Co. v. Silver City Crystal Co., 142 Conn. 605, 618, 446 (1955); Phoenix
Newspaper, Inc. v. Choisser, 82 Ariz. 271, 277, 278 (1957).
8
Anthony LEWIS, author of Gideon’s Trumpet, wrote the book Make no Law: The Sullivan
case and the first amendment, in successive editions by Random House.
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ADHEMAR FERREIRA MACIEL
a libel action brought by a public official against critics of his
official conduct.
However, even in a country where democracy is well consolidated
like the United States, the fundamental rights must be watched over,
even though they may have over two hundred centuries of positive
constitutional use. More than one attempt has been made to change the
redaction of the First Amendment. Since 1989 there have been notorious
moves to alter the First Amendment to ban flag burning, which is seen
by the Supreme Court as freedom of expression. In Street v. New York,
394 U.S. 576 (1969), for instance, a young man, indignant when hearing
on a radio broadcast that a black leader had been assassinated, set fire
to the national flag in public. His act was typified as crime. The Supreme
Court, however, understood that no matter how peculiar and insane the
gesture might have been, the youth had exercised his right to free
expression, guaranteed by the First Amendment. In his opinion, Justice
HARLAN stated:
We add that disrespect for our flag is to be deplored no less
in these vexed times than in calmer periods of our history.
Cf. Halter v. Nebraska, 205 U. S. 34 (1907). Nevertheless,
we are unable to sustain a conviction that may have rested
on a form of expression, however distasteful, which the
Constitution tolerates and protects.
In another case – United States v. Eichman, 110 S. Ct. 2404 (1990)
– the Supreme Court, once again led by William Brennan Jr., supported by
Justices Marshall, Blackmun, Scalia e Kennedy, decided that the burning of
the North-American flag, prohibited by a 1989 law,9 was a legitimate
manifestation of the right to free political expression, protected by the First
Amendment. The same line of thought had been used in the preceding Texas
v. Johnson. 491 U.S. 397 (1989).
9
Flag Protection Act. The Brazilian Federal Constitution, in its article 13, § 1.º, holds the flag
as one of the national symbols. Law 5.700/1971, changed by Law 8.421/1992, in its article
31, describes any manifestation of disrespect for national symbols as a misdemeanor. However,
the destruction of the flag is regarded as a crime, punishable with detention for 2-4 years.
(Decreto-Lei n. 898/1969, art. 44).
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AN AMERICAN NATIONAL SYMBOL AND FREEDOM OF SPEECH
In June 2006, by one single vote, the Senate failed to pass a proposal
to change the First Amendment to include a ban on the burning of the national
flag. If the proposal had passed, it would have made it impossible to preserve the Supreme Court judgments on freedom of expression, a fierce
battle won over centuries. There is no doubt that the inclusion of the
criminalization of flag burning in the First Amendment will be a retrogression,
stopping an evolution founded on the Calvinist creed.
BIBLIOGRAPHY
BLACK, Henry Campbell. Law dictionary. St. Paul Minn.: West Publishing
Co, 1979.
BLACKSTONE, William. Commentaries on the laws of England (Internet:
http://www.lonang.com/exlibris/blackstone/).
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constitution. Harvard University Press, 1996.
JELLINEK, Georg. Teoría general del estado. Translation by Fernando de
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LASKI, Harold J. Liberty in the modern state. London: Penguin Books, 1937.
LEWIS, Anthony. Make no law: the Sullivan case and the first amendment.
Random House.
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Vereinigten Staaten. Berlin: Springer, 1959.
NOWAK, John; ROTUNDA, Ronald. Principles of constitutional law. 3rd
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O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NA
MODERNIDADE: UM ESTUDO A PARTIR DA
REVOLUÇÃO FRANCESA
Fernando José Armando Ribeiro*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Introdução. 2. A ruptura revolucionária e a nova dimensão do conceito de liberdade. 3. A revolução pretende-se concretizar pelo direito. 4. O delineamento teórico
do novo conceito de Constituição. 5. As aporias do pensamento revolucionário. 6. Conclusão. 7. Referências.
1 INTRODUÇÃO
No momento em que se celebram os 20 anos de nossa mais importante Constituição, a sociedade brasileira se vê tomada por distintas e contraditórias manifestações a respeito da Carta de 1988. Ao mesmo tempo
em que se louvam as conquistas democráticas e humanas entoadas por
essa Constituição, vozes não faltam a dilapidá-la como instrumento de atraso
e engessamento das relações políticas e econômicas do Brasil de hoje.
Ademais, em tempos de festa e de celebração de nossa Constituição mais
democrática, acusam-na de bastardia.
Todavia, para além dos insondáveis desígnios das estratégias e dos
interesses políticos, parece haver algo mais que permeia nosso cenário
de incompreensão – até ousaria dizer, analfabetismo – constitucional. São
pré-compreensões historicamente construídas que, permeando mesmo
os períodos de efervescência democrática, têm marcado uma visão mal
formada ou distorcida sobre o fenômeno constitucional.
*
Doutor e Mestre em Direito. Professor da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas
(Graduação e Mestrado) e da Faculdade de Direito Milton Campos. Diretor Departamental
do IAMG. Juiz do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais.
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FERNANDO JOSÉ ARMANDO RIBEIRO
Parece-me, pois, ter lugar aqui também a famosa provocação lançada
por Immanuel Kant, no alvorecer da Era Moderna: sapere aude! Ouse
conhecer! Ousemos nós todos conhecer e procurar discutir e esclarecer
os verdadeiros sentidos de uma Constituição, seus pressupostos e suas
possibilidades. Talvez, a partir de uma visão mais clara sobre os verdadeiros significados do constitucionalismo, possamos entender mais e melhor sobre nós mesmos, e do que o Direito e a Constituição podem ou/e
devem fazer em uma sociedade politicamente organizada. Talvez possamos, a partir daí, aprender a aceitar a imperfectibilidade inerente a toda
Constituição e melhor reconhecer e implementar suas grandes conquistas. Que possamos, então, deixar de lado, os brasileiros, a obsessão de
reformular simplesmente os textos – como se eles tudo pudessem – e
passemos a reformular a interpretação, pela ampliação dos parâmetros
de nossa própria compreensão. Só assim poderemos nos aproximar da
importante verdade, tão bem explicitada por Souza Cruz, de que o processo constituinte deve assumir a condição de um aprendizado coletivo
permanentemente aberto para a inclusão, aquisição e transformação dos
direitos que regram a sociedade.1
O estudo que ora realizamos faz parte de uma tentativa de reconstrução histórica do conceito de Constituição, destacando e apresentando tanto os seus pressupostos filosóficos e políticos quanto à sua
inserção paradigmática na vivência da Modernidade ocidental. Sua importância pode ser facilmente justificada se entendermos, com Chamon
Júnior, que a compreensão da legitimidade do Direito na Alta
Modernidade deve comportar um permanente entrelaçamento com os
aspectos dogmáticos, históricos e sociológicos.2 Se em textos anteriores pretendemos realizar a análise da organização política antiga e medieval, intenta-se agora chegar à organização política moderna, com a
afirmação da Constituição como estrutura normativa superior, reguladora e controladora do Estado e de suas instituições, limitando e dividindo o exercício do poder estatal em nome das liberdades fundamen1
SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Poder constituinte e patriotismo constitucional. In:
GALUPPO, Marcelo (Org.). O Brasil que queremos, p. 98.
2
CHAMON JÚNIOR, Lúcio A. Filosofia do direito na alta modernidade, p. 222-226.
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O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NA MODERNIDADE: UM ESTUDO A PARTIR DA
tais do indivíduo por ela consagradas. Trata-se da análise de um dos
momentos fundadores do constitucionalismo.
No momento em que se fala de um “constitucionalismo mundial”,3
e no Brasil se celebra o aniversário da fundação constitucional de nosso
Estado Democrático – ao mesmo instante em que se ouvem vozes clamando por sua re-fundação ou reformulação integral –, faz-se oportuno
tecer algumas reflexões sobre a fundação do Estado Constitucional na
França revolucionária. Ao fazê-lo, não somos motivados por objetivo
outro senão o de apontar a dialeticidade inerente ao processo de afirmação do próprio constitucionalismo, permeado por tensões e contradições, sempre possíveis e passíveis de superação no correr da vivência
humana intersubjetiva.
2 A RUPTURA REVOLUCIONÁRIA E A NOVA DIMENSÃO
DO CONCEITO DE LIBERDADE
Tamanha foi a ruptura e a transformação que o Direito sofreu com
a Revolução Francesa de 1789 que esta viria a se consagrar como um
verdadeiro símbolo histórico do universo jurídico e político moderno,
fenômeno que Hegel iria tematizar como o verdadeiro “parto de uma
sociedade nova”.4 É que, como ensina Baracho Júnior, no período que
antecede a formação das organizações políticas modernas, as normas
que regulam o agir humano têm uma fundamentação transcendental,5 pouca
distinção havendo entre o Direito e demais ordens normativas. Entretanto, o processo de ruptura e transformação não adveio do acaso, mas é
fruto de longa sedimentação histórica. Como ensina Ferraz Jr.,
na passagem do século XVIII para o século XIX, há uma
mudança no quadro das teorizações científicas, já preparada na
ciência renascentista, na dúvida cartesiana e na necessidade de
fundar o conhecer a partir de si próprio. A dicotomia entre contemplação e ação, bem como a idéia platônica de que a verdade
era percebida apenas no ato solitário da visão, começara a ser
3
ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitutionalism. Virginia Law Review, p. 771-797.
4
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A leitura hegeliana da revolução francesa. Síntese, p. 74.
5
BARACHO JR., José Alfredo de O. Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente, p. 23.
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FERNANDO JOSÉ ARMANDO RIBEIRO
abalada quando a ciência se torna atividade que faz, que constrói os objetos que conhece. Com isso, a velha noção de teoria
como contemplação e como conjunto de verdades concatenadas e dadas vira hipótese de trabalho que pode ser mudada
conforme os resultados que produz, fazendo depender sua
validade não daquilo que desvenda (alétheia), mas pelo fato de
funcionar (produção científica).6
Ademais, desde a Idade Média que a técnica de produção se
transmudara, fazendo com que o poder econômico se deslocasse das
glebas feudais para a burguesia das navegações, do comércio e das
manufaturas, criando nas cidades a base da nova sociedade que paulatinamente deixaria suas antigas fundações no campo e na terra. Num
primeiro momento, as exigências econômicas farão com que os monarcas, já sem meios de qualquer ação impeditiva à expansão capitalista
da primeira idade do Estado moderno, venham a estimular a classe burguesa mediante o desenvolvimento de políticas mercantilistas. Assim
agindo, entretanto, a monarquia absoluta não fazia mais que atenuar e
encobrir a contradição latente e frontal que se escondia sob a convivência de um governo de reis e nobres, de direitos feudais e instituições
do período medievo, em uma sociedade de bases econômicas tão profundamente modificadas. Ali, o poder da riqueza gravitava já em órbita
social absolutamente distinta, qual seja, o da burguesia recém-formada
e fortalecida.7
Com essa política de suporte à burguesia e de apoio a livre empresa, a monarquia sufocara temporariamente a rebelião burguesa e seus
intentos de tomada do poder político. Todavia, como assevera Bonavides,8
quando a burguesia cimentou seu inquebrantável poder econômico, tornou-se-lhe impossível tolerar a autoridade política em mãos de um príncipe guardião da antiga ordem jurídica e social privilegiada, que vinha da
Idade Média, num desafio de continuidade aos tempos modernos, a saber, os tempos da burguesia.
6
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. O legado da revolução. Síntese, p. 5.
7
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 69-72.
8
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 71.
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O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NA MODERNIDADE: UM ESTUDO A PARTIR DA
Assim é que a Revolução em armas seria apenas o “epílogo militar”
(Bonavides) da revolução econômica antes instaurada pela transmutação
do processo de produção de riquezas, e da revolução intelectual que
dantes se impingira nas consciências, trazendo ao processo revolucionário
a adesão dos melhores espíritos de França. Fortalecendo a burguesia com
o apoio e a aliança de pensadores da envergadura de um Montesquieu e de
um Sièyes. Seria o braço forte que permitiria que a entidade denominada
Nação – já trabalhada e erigida pelo pensamento anterior – se tornasse,
então, soberana, assumindo o lugar antes ocupado pelo rei.
A grande questão trazida, pois, à vivência histórica daquele momento passou a ser a tentativa de fundação de uma nova ordem social, sustentada nos princípios universais da justiça social, igualdade e fraternidade, e
tendo como fim precípuo a manutenção de uma convivência humana livre,
e ao mesmo tempo possuidora de um nível de segurança jurídica compatível com a racionalidade dos novos tempos. Assim é que, com pretensões
de definitividade e universalidade, veio a se afirmar, na Déclaration des
Droits de l’Homme e du Citoyen de 1789, os princípios racionais da nova
organização social que soerguiam imaculados sobre os escombros da ordem anterior.
O dualismo de complementaridade – Direitos do Homem e do Cidadão – que, em análise apressada, poderia até mesmo sugerir alguma
redundância no enunciado da célebre Déclaration, justifica-se, como ensina Comparato, em razão do caráter universal presente no espírito dos
revolucionários, fazendo-se, pois, conscientes de que não se dirigiam apenas ao povo francês, mas a todos os povos, concebendo pois o documento em sua dupla dimensão: nacional e universal.9 Aliás, as “disposições
fundamentais” da Constituição de 1791 fazem a nítida distinção entre os
“direitos do homem”, independentemente de sua nacionalidade, e os “direitos do cidadão”, próprios unicamente dos franceses.
Ademais, como esclarece Reale, todo o conteúdo das Declarações
de Direitos revolucionárias deve ser entendido como influência direta dos
ventos da Ilustração, que levaram os juristas da Revolução a assinalar,
com enorme ênfase, o valor primordial consubstanciado no caráter inato
9
COMPARATO, F. Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 132.
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e universal dos direitos fundamentais do homem. Ao ressaltarem tal valor,
fizeram-no, porém, com base na natureza mesma do homem, sem qualquer
alusão a Deus como sua fonte originária, ao contrário da Declaração norteamericana, de base inegavelmente religiosa, que timbra em reconhecer a
origem transcendente dos direitos inatos. A Declaração francesa é uma
proclamação laica, obra exclusiva da sociedade e do Estado, que, até mesmo
em conseqüência da tentativa de ruptura ideológica, fez-se à margem de
qualquer interferência da Igreja ou de seus princípios.10
Como assinala o jusfilósofo brasileiro, poder-se-ia dizer que esse
entendimento marca o apogeu do racionalismo no plano da experiência
jurídica, ou da autoconsciência do Direito. O Cogito cartesiano (Cogito,
ergo sum) projeta-se no domínio social, convertendo-se em: Cogito, ergo
sum subjetus iuris. Ser sujeito de direito significa ser cidadão, adquirindo,
assim, a cidadania um sentido de universalidade.11
Na ótica de Hegel, que fará da Revolução Francesa uma das bases
de seu pensamento filosófico, esta só se faria historicamente compreensível
a partir da idéia de liberdade, sendo que o grande legado da Revolução à
história universal seria justamente erigir a liberdade a fundamento da vida
humana: “A liberdade absoluta se eleva ao trono do mundo sem que poder
algum lhe possa opor resistência”.12 A liberdade será, então, concebida
como o próprio princípio racional do Estado, encontrando nos direitos do
homem o sustentáculo para a sua convivência.
Assim, para Hegel, se a História Universal tem seu início com os gregos, com que desponta a consciência da unidade impostergável entre o serhomem e ser-livre, esse momento era revelador de uma liberdade concreta
ainda limitada, uma vez que reservada apenas a alguns. O cristianismo é que
iria trazer ao Ocidente a consciência do homem livre enquanto livre.13
Entretanto, será a Revolução Francesa que concretizará a consciência cristã da liberdade, fazendo dela o fundamento da socialidade,
visto que a liberdade política é elevada a fundamento mesmo da ordem
10
REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno, p. 76.
11
REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno, p. 76-77.
12
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fundamentos de la filosofia del derecho, p. 94.
13
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas: em compêndio, p.
55-60; 189-202; 271-283.
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O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NA MODERNIDADE: UM ESTUDO A PARTIR DA
social. A liberdade, que já fora princípio da história européia é convertido
em princípio da História Universal, base de todas as ordens estatais e jurídicas. É um mundo novo e um tempo novo que surge a partir de então. É com
esse entusiasmo que Hegel fará consignar em sua Filosofia da História:
Nunca, desde que o Sol começou a brilhar no firmamento e
os planetas começaram a girar ao seu redor, se havia percebido que a existência do homem está centrada em sua cabeça, isto é, no pensamento, a partir do qual ele constrói o mundo real. Anaxágoras já havia dito que o nous governa o mundo; contudo, somente agora o homem conseguiu conhecer a
realidade espiritual.14
Qual seria, porém, o limite ou a extensão dessa liberdade, tão
enaltecida, mas com tamanha potencialidade conflitiva inserida na Declaração de Direitos francesa? É que, como apontam abalizados estudiosos,15 o conteúdo normativo insculpido na célebre Déclaration vem a
refletir, desde sua gênese, a marca das duas grandes tradições do pensamento político moderno: a liberal e a republicana. Tal confluência adviria,
não apenas da histórica divergência entre jacobinos e gerundinos, mas
também dos pilares teóricos que motivaram e sustentaram a revolução.
Assim, se de um lado, a tradição republicana – que remonta a Aristóteles
– pode encontrar vazão na voz de um J. J. Rousseau,16 não se pode
esquecer da abertura à tradição liberal – de John Locke e Stuart Mill –
oferecida por um Montesquieu e um Sièyes, todos eles igualmente convertidos em verdadeiros lastros teóricos do movimento revolucionário.
14
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas: em compêndio, p. 366.
15
Cf. JIMÉNEZ REDONDO, Manuel. Introducción. In: HABERMAS, Jürgen. Facticidad y
velidez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del
discurso. Madrid: Trotta; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A. Direito, política e filosofia. São Paulo: Lúmen Júris, 2007.
16
Bem traduzindo os pressupostos comunitaristas inerentes ao pensamento de Rousseau,
assim se posiciona Mário Lúcio Quintão Soares: “O ato constitutivo desta associação produz, em substituição à pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, o
Estado, mero executor das decisões, composto de tantos membros quantos são os votos da
assembléia, e que, por esse mesmo ato, adquire sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade” (Teoria do estado, p. 114).
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Como mostra Cattoni de Oliveira, tal contradição já se faz presente
no conteúdo normativo do disposto nos artigos 4º e 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.17 O art. 4º, ao declarar que
“a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a
outrem” demonstra a ausência de limites ao exercício dos direitos naturais
do homem, à exceção daquele que garante a todos os seus membros o
gozo de iguais direitos. Todavia, o art. 6º iria introduzir uma fonte diversa
de normatividade que não aquela representada pelos direitos naturais anteriores à conformação da sociedade política. É que, com Rousseau, consagrar-se-ia a idéia de que a lei é expressão da vontade geral, tendo todo o
direito de concorrer para sua formação. Trata-se da díade entre democracia e liberdade individual que, como alicerces das conquistas do Estado
Constitucional moderno, demonstram que a ruptura moderna não é algo
tão simples e acabado, mas um projeto cuja dialeticidade faz parte de sua
própria gênese, sendo-lhe, talvez, condição de possibilidade.18
3 A REVOLUÇÃO PRETENDE-SE CONCRETIZAR PELO
DIREITO
Diante de tal quadro, necessário seria que se efetivassem os postulados da Declaração de Direitos de 1789, garantindo-se sua realização prática mediante procedimentos e instituições, para que desde logo se concretizassem em reformas políticas e jurídicas fundamentais. Entretanto, como
constatou Tocqueville, esse modo de pensar e de agir não poderia buscar
17
18
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A. Direito, política e filosofia, p. 25-29.
O caráter dialético e conflituoso dos princípios encetados pela Revolução Francesa foi
também percebido por notáveis publicistas brasileiros: Almeida Melo assim se manifestou:
“A Constituição teve, então, a finalidade de frear o governante e o Estado. Como o rei era
quem mandava, enfraqueceu-se a sociedade política, com a criação de limites e travamentos à
sua organização e a seu funcionamento. A Constituição serviu de primeiro instrumento destinado a enfraquecer o Estado” (Direito constitucional brasileiro, p. 29); Ricardo Fiúza e
Mônica Aragão lançam o seguinte questionamento: “Rousseau entendia o homem como
dotado de soberania individual, inalienável. Mesmo acorrentado, amordaçado, sob pressões e
torturas, o homem é livre e soberano. Mas, como viver em conjunto, com tanta soberania
individual?” (Aulas de teoria do estado, p. 51). José Adércio L. Sampaio também ensina que
“na França revolucionária [...] reinava uma certa ambigüidade no emprego da palavra
Constitution, ora assimilada à ordem, ora à norma” (A constituição reinventada pela jurisdição constitucional, p. 13).
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O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NA MODERNIDADE: UM ESTUDO A PARTIR DA
sua fundamentação no sistema político-jurídico até então vigente, haja vista
a crença, partilhada pelos revolucionários de que a construção da nova
ordem necessitava mais de princípios ditados pela razão do que de exemplos históricos ou costumes antigos.19
Nesse sentido, a constatação de Ferraz Jr., ao demonstrar que o
Direito, com a Revolução Francesa, torna-se uma criação ab ovo. É que o
direito passou a ter sua validade percebida como algo maleável e, ao fim,
manipulável, podendo ser tecnicamente limitada no tempo, possibilitando,
em alto grau, o detalhamento dos comportamentos como juridicizáveis,
não dependendo mais o caráter jurídico das condutas de algo que tivesse
sido sempre Direito.20 A plena convicção de novidade, partilhada pelos
revolucionários, revela-se bem pela mudança das formas métricas tradicionais, pela criação do sistema métrico decimal e, sobretudo, pela abolição e
substituição do calendário cristão.
Assim, a necessidade de implantação de uma nova ordem social traz
em seu bojo a idéia de uma nova Constituição do Estado, a qual haveria de
ser baseada na separação de poderes e na garantia dos direitos individuais
(art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão).
Da observação conjunta da Declaração de Direitos e da Constituição de
1791 constata-se facilmente tratar-se de documentos que representam a
quintessência das realizações constitucionais da fase inicial da Revolução
Francesa, sendo que, a partir de então, sobretudo da norma contida no
célebre art. 16, só se poderá falar de uma constituição, com o sentido que
lhe é atribuído pelo constitucionalismo moderno, desde que se observe nos
textos uma adesão a certos requisitos anteriormente definidos.
Como constata Horst Dippel, notável historiador do constitucionalismo, embora não tivessem sido completamente reproduzidos na
Declaração francesa de 1789 e na Constituição de 1791, os dez traços
essenciais de Virgínia apenas se tornaram elementos constitutivos do
constitucionalismo moderno como fenômeno global porque foram recebidos (acolhidos) em França, em 1789, e em virtude de o art. 16 declarar
que somente a presença de certos traços essenciais nos permite falar de
19
TOCQUEVILLE, C. Alexis H. de. L’ancien régime et la révolution, p. 293-294.
20
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. O legado da revolução. Síntese, p. 9.
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constituição no seu sentido moderno. Qualquer que tenha sido a importância do art. 16 num contexto especificamente francês, o seu significado global reside no fato de nele se insistir, pela primeira vez, num documento
constitucional que o constitucionalismo moderno envolve certos elementos
na ausência dos quais não podemos falar propriamente de constitucionalismo
moderno.21
Porém, como essa nova ordem não deveria absorver os legados do
passado, a idéia de Constituição se confundirá com a idéia de uma construção grandiosa e racional de uma ordem social e política totalmente nova,22
tendo-se, pois, a noção, precisa e exata, da Constituição do Estado como
substrato de realização da liberdade. A Constituição viria a se manifestar
como a própria forma de exercício das liberdades do povo soberano.
Analisando o conteúdo da Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão, Reale constata que seus dispositivos logo se revelariam como têtes de chapitre de novas disciplinas jurídicas, sobretudo no
que se refere ao Direito Constitucional.23 De fato, é com a Revolução Francesa que se assentam as bases do constitucionalismo e se torna possível
uma compreensão unitária e sistemática do Direito Constitucional. A partir
daí é que se têm instaladas as primeiras cátedras de Direito Constitucional,
as quais, tendo em vista a efervescência do movimento político na França,
viriam a ter lugar na Itália – ainda no período jacobino – espalhando-se por
Pavia, Bolonha, Pádua e Gênova.
4 O DELINEAMENTO TEÓRICO DO NOVO CONCEITO
DE CONSTITUIÇÃO
Seria ingênuo pensar que o novo conceito de Constituição do Estado se fizesse definir de forma direta e imediata, sem arrastar consigo inúmeros e graves debates. Afinal, como constata Saldanha, quando do advento da Revolução, os franceses ainda pensavam em Constituição como
21
22
23
DIPPEL, Horst. História do constitucionalismo moderno: novas perspectivas, p. 16-17.
Digna de nota é a conclusão a que chega Velloso de que “tendo como fonte um poder inicial,
incondicionado, autônomo e do qual derivam os demais poderes, é inegável estar a Constituição acima das normas elaboradas pelos órgãos por ela constituídos” (VELLOSO, Carlos
Mário da Silva. Temas de direito público, p. 126).
REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno, p. 82.
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O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NA MODERNIDADE: UM ESTUDO A PARTIR DA
estrutura política, forma de governo, modo de ser do Estado ou coisa similar, sendo que o moderno conceito de Constituição não se atingiria antes
que o moderno conceito de Lei, como norma consubstanciadora de direito
objetivo, dominasse o processo legislativo.24 Também foi preciso que, na
linguagem política, se enraizasse a fórmula de Rousseau, segundo o qual a
lei é a expressão da vontade geral, detentora da soberania. Assim, entender-se-ia a Constituição como lei geral de organização política, sendo esta
a compreensão inicial da Constituição moderna.25
De fato, grandes divisões se fazem no pensamento constitucional
desse período. Alguns constituintes de linhagem mais conservadora26 traçavam um modelo de Constituição extremamente vinculado à tradição
feudal francesa, onde nobreza, clero e terceiro Estado formavam um só
24
25
26
Lúcida é a advertência de Kildare Carvalho, para quem o constitucionalismo do Estado
Liberal de Direito acarretou o nascimento do abstracionismo constitucional, é dizer, o direito
abstrato tomou o lugar do direito histórico. Pois, com os influxos doutrinários do Iluminismo,
chegou-se à racionalização do poder, cujo formalismo propiciou a expansão do
constitucionalismo formal (CARVALHO, Kildare G. Direito constitucional, p. 216).
SALDANHA, Nelson. Formação da teoria constitucional, p. 70.
A crítica reacionária surgida à época insurgiu-se também contra o “racionalismo abstrato”
presente no pensamento de grandes líderes revolucionários de 1789, os quais estariam mais
preocupados em defender a pureza das idéias do que a dignidade concreta da pessoa humana.
Assim, sustentou De Maistre que “a Constituição de 1795, tal como as suas irmãs mais
velhas, é feita para o homem. Ora, não há homem no mundo. Em minha vida, vi franceses,
italianos, russos, etc. Sei até, graças a Montesquieu, que se pode ser persa: mas quanto ao
homem, declaro que nunca o encontrei em toda a minha vida; se ele existe, eu o ignoro
completamente” (apud COMPARATO, F. Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 114). Também Edmund Burke, na mesma trilha, fez-se notável no debate contrarevolucionário. Indagava: “Qual a utilidade de se discutir o direito abstrato do homem à
comida ou ao remédio? A questão toda gira em torno do método para obtê-los e fornecê-los.
Eu aconselharei sempre que se convoque o auxílio de um agricultor e de um médico, antes que
o de um professor de metafísica” (apud COMPARATO, F. Konder. A afirmação histórica
dos direitos humanos, p. 115). Todavia, a rápida difusão dos ideais revolucionários não só
pelo continente europeu, mas atingindo regiões tão distantes quanto a Índia, a Ásia Menor e
a América Latina, demonstrou, com nítida certeza, que é justamente em seu universalismo que
reside a grande importância histórica da Revolução Francesa, a qual, como bem disse Tocqueville,
serviu para “aproximar ou separar os homens, a despeito das leis, da tradição, dos temperamentos, da língua, transformando por vezes os compatriotas em inimigos e os estrangeiros
em irmãos; ou antes, ela formou, acima de todas as nacionalidades particulares, uma pátria
intelectual comum, da qual os homens de todas as nações puderam tornar-se cidadãos”.
(L’ancien régime et la révolution, p. 87). Vêem-se aí lançadas as bases do princípio ou
pressuposto de racionalidade que permeia o sistema constitucional moderno.
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corpo político, ordenado e estável, uma vez que convergentes ao princípio
ordenador comum, representado pela autoridade da coroa. Essa a posição
ocupada por um Mirabeau que, na proposta de Constituição apresentada
na sessão de 28 de julho de 1789, assim se posiciona:
Nós, os representantes da nação francesa, convocados pelo
rei, reunidos em Assembléia Nacional, em virtude dos poderes
que nos foram confiados pelos cidadãos de todas as classes,
encarregados especialmente por eles de fixar a constituição
da França e de assegurar a prosperidade pública, declaramos
e estabelecemos, pela autoridade de nossos comitentes, como
Constituição do Império francês, as máximas e regras fundamentais e a forma de governo, tal como se expressará em
seguida; e quando tenham sido reconhecidas e ratificadas pelo
rei, não poderá mudar-se nenhum dos artigos que encerram, a
menos que seja pelos meios que naquelas se encontre reconhecido.27
Outros pensadores, no entanto, adotariam a postura de largo consagrada pelo movimento liberal-burguês: a idéia de que a Constituição deveria ser escrita, consistindo no ato fundador por meio do qual a nação soberana, por intermédio de seus representantes e de acordo com os postulados do art. 16 da Declaração de 1789, organizaria juridicamente o Estado,
mediante a distribuição e limitação dos poderes em termos precisos, e da
proteção e garantia dos direitos naturais e inalienáveis do homem. Essa a
postura adotada por Sieyès em diversos pronunciamentos por ele proferidos e que lançariam sólidas bases na fixação da noção moderna de Constituição. Refletindo a respeito, assim se posiciona Baracho,
O conceito racional-ideal (de Constituição) provém do momento histórico da difusão do constitucionalismo vigente à
época da Revolução Francesa, cuja doutrina foi exposta por
Sieyès. A Teoria do Poder Constituinte de Sieyès propunha o
estabelecimento de uma Constituição baseada nos seguintes
pontos capitais: declaração de direitos, forma escrita, governo
representativo, separação entre poder legislativo e executivo.
27
Apud DINIZ, M. A. Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional, p. 60.
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Tornava-se necessária a convocação de uma Assembléia
Nacional, representativa de toda a nação, com os poderes extraordinários, constituintes, para formular a nova Constituição.28
Instaura-se, então, a partir daí, a crença que envolveria os principais
espíritos dos séculos XVIII e XIX de que a Constituição do Estado
consubstancia-se numa Lei Fundamental, escrita e sistemática, que assegura a supremacia desse corpo de leis sobre todas as demais regulamentações de conduta existentes no Estado. Sob a influência de autores como
Locke e Rousseau, a Constituição do Estado passará também a ser vista
analogamente ao “contrato social”, sendo imperioso, pois, que seja escrita
e redigida da forma mais clara e completa possível, a fim de assegurar não
apenas sua posição hierárquica superior, como também o valor da segurança jurídica – tão caro aos homens desse período – mediante o amplo
conhecimento a todos dado de seus direitos constitucionais.
Daí poder-se constatar que se trata de uma fase essencial na
teorização dos pontos cardeais das Constituições. Tem-se, pois, que as
leis constitucionais ou fundamentais são anteriores e superiores às leis ordinárias, impondo-se o respeito do Poder Legislativo às leis constitucionais.
A autoridade do legislador ordinário não pode atingir a possibilidade de
mudança das leis constitucionais, uma vez que “é da Constituição que os
legisladores retiram e justificam seus poderes. Não podem mudá-la sem
destruir o fundamento de sua autoridade”.29
5 AS APORIAS DO PENSAMENTO REVOLUCIONÁRIO
Como demonstra Reale, é todo um Direito novo, o Direito Moderno, que se acha embutido na declaração revolucionária, o que explica
tenha ela servido de preâmbulo à Constituição de 1791.30 Promulgada
em 3 de setembro de 1791, a Constituição francesa teria uma destacada influência, servindo de modelo a várias Constituições do continente
28
29
30
BARACHO, J. Alfredo de Oliveira. Teoria da Constituição, p. 17.
BARACHO, J. Alfredo de Oliveira. Teoria geral das constituições escritas. Revista Brasileira de Estudos Políticos, p. 27-28.
REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno, p. 77.
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europeu. Entretanto, o sistema constitucional da liberdade erigido em solo
francês terminaria por sucumbir e, à instabilidade constitucional que marcaria a primeira década pós-revolucionária, seguir-se-ia a explosão de violência que faria tantos dos ideários naufragarem em uma sanguinolenta vertigem de cabeças cortadas.
Hegel se apresenta aqui como a mais autorizada voz na explicação
das contingências do fenômeno revolucionário. A Revolução Francesa, rompendo com a “bela totalidade grega”, traria para o Ocidente, como grande
conquista da humanidade, a afirmação do princípio da subjetividade. Vale
dizer, tendo por base o pensamento de Rousseau, que erigira a vontade
como fundamento do Estado, eleva a liberdade, como unidade consigo
mesma, a fundamento do Estado e de todo Direito. A influência do pensador genebrino verifica-se no vigoroso intuito dos revolucionários de estabelecer um regime popular.31 Todavia, a liberdade trazida pela Revolução
apresenta-se ainda como liberdade abstrata que, como liberdade absoluta, aparece “à primeira vista a mais real e rica, mas que se revelará,
entretanto, como a mais pobre, abstrata e desprovida de realização”.32
Como diz Hegel, “o mundo é para ela pura e simplesmente sua vontade e
esta é vontade universal”.33
É uma liberdade que não se efetiva, uma vez que não se determina,
pois não se diferencia e estabelece a determinidade de um conteúdo específico. A determinação é essencial no pensamento de Hegel, concebida
como “a negatividade imanente ao universal, a solução dialética para o
dualismo da infinitude (universal) e da finitude (particular)”.34 Ora, a
efetivação do homem como ser livre, para Hegel, só pode ser feita mediante a elevação do indivíduo empírico ao plano da existência universal, vale
dizer, a liberdade vista como processo dialético de determinação imanente
31
32
Adotou-se na Constituição francesa de 1791 um sistema legislativo unicameral em que os
membros da assembléia eram eleitos por dois anos e se faziam plenos depositários da soberania nacional. O rei constituía apenas figura decorativa, dispondo tão somente de um veto
suspensivo por três legislaturas (Cf. BARACHO, J. Alfredo de Oliveira. Teoria geral das
constituições escritas. Revista Brasileira de Estudos Políticos, p. 26-31; COMPARATO, F.
Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 132-138).
BICCA, L. A revolução francesa na filosofia de Hegel. Síntese, p. 53.
33
Apud BICCA, L. A revolução francesa na filosofia de Hegel. Síntese, p. 53.
34
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A leitura hegeliana da revolução francesa. Síntese, p. 76.
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do universal. A particularidade do indivíduo, negada pela universalidade do
logos, será “superada”, uma vez que o homem, portador do logos universal, torna-se a universalidade concreta, a síntese do universal e do particular, sendo que realizar o homem na história, para Hegel, é justamente encontrar a síntese entre a universalidade e a particularidade, que se faça
compatível com as contingências próprias à situação histórica.35
Na Revolução Francesa, entretanto, apesar de ser a vontade universal e absoluta, é tão-somente vontade dos indivíduos singulares, sendo que,
como essa vontade dá fundamento ao direito, o direito termina por ser “o
que a lei quer”. Essa lei, contudo, procede das vontades individuais, uma
vez que o Estado que a edita é um agregado de muitos indivíduos, sem
constituir uma “unidade substancial em si e para si”, configurando-se, pois,
o direito como produto de uma vontade absoluta.36 O primeiro momento
revolucionário apresenta-se como exacerbação do caráter imediato da liberdade, sendo esta, pois, destituída da percepção da necessidade de
mediação, vale dizer, da sua composição mediante a criação de um mundo
de instituições que estabeleçam a garantia de sua dignidade: o mundo objetivo da efetivação da liberdade.
Trata-se da percepção reducionista da liberdade, típica do liberalismo, que a concebe de forma adstrita à esfera da ação subjetiva, sendo que
por subjetividade compreende-se, então, a interioridade em contraposição
à realidade objetiva. Ora, como Hegel demonstrou, a liberdade moderna
não pode ser concebida como mera subjetividade, mas, ao contrário, só
poderá ser corretamente percebida à medida que se faça historificada na
esfera das normas, dos costumes e das instituições, é dizer, do mundo objetivo. Não que se queira negar a subjetividade, enquanto momento
constitutivo da liberdade – o que Hegel reconhece –, mas o que não se
pode é reduzi-la a esse momento, sob pena de parcialidade extremamente
comprometedora de sua realização efetiva.
Para Hegel, com base nessa concepção abstrata de liberdade, a
Revolução apresenta-se debilitada em sua capacidade de produzir uma
estrutura estável do mundo, ao mesmo tempo compatível com a
35
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A leitura hegeliana da revolução francesa. Síntese, p. 77.
36
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel, p. 311.
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racionalidade moderna e a nova consciência da liberdade. Assim, com a
proclamação da República em 1792 e a prisão do desventurado Luís XVI,
entra em franco declínio a Constituição de 1791, sendo logo substituída
pela Carta de 24 de junho de 1793, a qual, por sua vez, num furor de
radicalismo democrático, consagra dispositivos absolutamente inaplicáveis
de democracia direta, não logrando, pois, ser posta em funcionamento.
É que, logo após sua promulgação, a Convenção Nacional37 instituiu um governo provisório, denominado “governo republicano”, para atuar
enquanto durasse a guerra contra as potências monárquicas. O Poder
Executivo seria atribuído a comissões de deputados, dentre as quais se
destacaram a “comissão de governo” e a de “salvação pública”, na qual
pontificava Robespierre, cujos poderes tenderiam rapidamente à ditadura pura e simples.38
Na análise de Hegel, o terror adviria, assim, como uma trágica conseqüência inerente à dialética histórica do próprio movimento revolucionário. O terror apresenta-se como um momento caracterizador de uma necessidade dialética dos rumos trilhados pela Revolução. Afinal, ao afirmarse a liberdade individual como absoluta, exclui-se o reconhecimento de
qualquer outra, afirmando-se como exclusiva. Essa pluralidade de
consciências de si absolutas será a própria contradição em si, uma vez que,
como conseqüência dessa afirmação de liberdade, tem-se a exclusão da
outra individualidade livre, e a luta para que cada uma seja reconhecida
como absoluta. Note-se que já não mais se cuida do reconhecimento da
consciência de si, mas da sua liberdade absoluta. Isso, porém, só ocorreria
com a eliminação das outras liberdades que também se querem absolutas.
Com o golpe de Estado de 9 do termidor do Ano II (27 de julho de
1794), seguida da prisão, julgamento sumário e execução imediata de
Robespierre, a Constituição de 1793 foi logo substituída pela Constituição do ano VIII, ou Constituição diretorial de 1795. Esta viria a
37
38
“Convenção Nacional” foi o nome que a Assembléia Legislativa, que havia sucedido a
Constituinte de 1789, logrou dar à nova Assembléia Constituinte por ela convocada para,
após o declínio da Carta de 1791, votar uma nova Constituição para a França. A denominação
deve-se à influência do exemplo norte-americano (COMPARATO, F. Konder. A afirmação
histórica dos direitos humanos, p. 135).
Cf. COMPARATO, F. Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 136.
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introduzir no sistema francês o modelo de Executivo colegiado, vale dizer, um
Diretório composto de cinco membros, cada um dos quais tomava o título de
presidente pelo período de três meses.39 Todavia, as guerras da França revolucionária contra os Estados opositores da ideologia liberal na Europa exigiriam uma brusca transformação de governo. Assim é que somente por meio
do “intermezzo napoleônico” a sociedade francesa pôde voltar às fontes
originárias de sua Revolução, superando, a um só tempo, as forças comprometedoras do populismo radical e do autoritarismo.40
A dialética histórica da Revolução Francesa se revelará como um dos
grandes embates para a afirmação do conceito de Constituição moderna,
como institucionalização concreta da liberdade humana. No fundo de todas
as contingências e cisões presentes em seu processo, situa-se aquela contradição, latente e profunda, dos conceitos de liberdade dos antigos e da
modernidade liberal. O choque da sociabilidade e da subjetividade aparece, enfim, como o grande embate que propicia a síntese do espírito revolucionário e seu legado para a história universal. A partir da Revolução,
como demonstra Salgado, ordem e liberdade têm de encontrar-se na vida
social, de modo irreversível e eficaz, realizando a unidade da ação política
dos franceses com a reflexão filosófica do idealismo alemão. Assim, a ordem
deixaria de ser uma organização política do arbítrio para se converter numa
“organização constitucional dos direitos do homem”.41
A síntese temporária ou o equilíbrio historicamente possível entre os
pressupostos de uma tradição liberal e aqueles da tradição republicana
tinham sido alcançados e novos elementos de legitimação do Direito haviam-se afirmado. Todavia, uma aporia permaneceria aberta no quadro
dessa nova configuração do Direito moderno. Os problemas dela advindos
marcariam todo o século XIX e primeiras décadas do século XX. Refirome ao fato, constatado por Cattoni de Oliveira, de que tanto a tradição
liberal quanto a tradição republicana pressupõem uma visão de sociedade
centrada no Estado.42 A superação dessa visão monopolística do Direito
39
COMPARATO, F. Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 136-138.
40
REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno, p. 81.
41
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel, p. 316.
42
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A. Direito, política e filosofia, p. 35.
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como algo que só se realiza no Estado será um dos grandes desafios que a
“alta modernidade” terá resolutamente de enfrentar.
6 CONCLUSÃO
O fenômeno do constitucionalismo é um dos elementos centrais da
cultura jurídica e política moderna. Com ele, foram estabelecidas e concretizadas algumas das mais importantes transformações que justificariam a
própria idéia de uma Idade Moderna. As conquistas obtidas pelas revoluções que marcam esta era podem muito bem ser compreendidas com base
em um conceito-chave que apenas no contexto político-cultural do século
XVIII apareceu: a Constituição do Estado.
Ao estudar a influência da Revolução Francesa sobre o conceito
moderno de Constituição, pretendemos destacar, de um lado, a profunda
ruptura ideologicamente pretendida por esse conceito da concretização da
consciência histórica da liberdade. Trata-se da visão triunfal de que ali, na
Declaração Universal de Direitos, o homem atingiria não apenas a consciência da sua liberdade individual, mas a consciência da liberdade de todo
ser humano, compreendendo que, por ser universal, deve ser realizada e
garantida a todos e por todos.
Todavia, como uma decorrência das próprias influências teóricas que
desaguariam na Revolução Francesa, bem como da ruptura com um
paradigma de liberdade que marcara toda a tradição pré-moderna, os
ideários político-jurídicos consagrados nas Constituições francesas fariam
em breve ressaltar a contraditoriedade latente que lhes era implícita. Assim,
a dialética entre indivíduo e sociedade, bem como entre liberdade e democracia, seria o reflexo normativo da tensão entre o grande arcabouço de
tradições e pré-compreensões que fundaram as condições de possibilidade para o aparecimento da própria Revolução. Nesse sentido, o conflito
entre as tradições liberal e republicana, ambas tão bem representadas em
território francês, tanto por seus grandes teorizadores como nos embates
políticos que conformariam a ordem revolucionária.
Desde sua gênese, o Estado Constitucional pretende ser um Estado
que erige a liberdade como seu valor polar e a distribui equanimemente pela
sociedade. Todavia, a definição – ou redefinição – dos limites dessa liberdade, bem como sua condição de nova fonte de legitimação do Direito, legaria
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ao constitucionalismo moderno uma tensão até hoje não inteiramente resolvida e que se apresenta como de importância vital nos dias contemporâneos. O legado constitucional da Declaração de Direitos está muito
além das aparentemente simples fórmulas de organização política do Estado, da delimitação do poder e da proteção dos direitos humanos. Há
algo mais que se esconde, desde o início, nessas notáveis formulações
jurídicas. Os séculos vividos e pensados que lhe subjazem não poderiam
levar senão a grande riqueza e profunda densidade que entremeia todos
os seus textos.
A análise do fenômeno de sua manifestação histórica serve bem para
mostrar que a Modernidade não nos é oferecida numa bandeja. Ela não
está pronta, nunca esteve e, possivelmente, nunca estará. Cabe conquistála! Não com a postura romântica e ingênua de revolucionários que miram o
novo pelo simples desejo de mudar, mas com a consciência do conflito
que, inerente a todo consenso racional, recobra dos juristas não a atenção
impávida para com os legados do passado, mas o compromisso com a
integridade do Direito e sua permanente reconstrução.
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UMA NÓDOA NA CONSTITUIÇÃO
Padre José Carlos Brandi Aleixo*
Na leitura da Carta Magna é exercício salutar e pedagógico identificar e questionar a situação daqueles que ainda são vítimas de discriminações, mesmo quando não estejamos abrangidos por elas.
Neste artigo contempla-se uma categoria de cidadãos que experimenta particular embaraço e constrangimento em se organizarem e se apresentarem em público, para reivindicar seus legítimos direitos. Sabe-se com
que arrogância ou tom, quer cáustico, quer condescendente, muitos
escandem o vocábulo “analfabeto” e com ele querem estigmatizar
concidadãos seus. Foram estes, liminarmente, impedidos de se candidatarem
a cada uma das Constituintes da República, como continuam enfrentando a
proibição de sequer pleitear cargos eletivos municipais, estaduais e federais, do Legislativo e do Executivo. Impende, assim, também a nós, a responsabilidade de trabalhar no sentido de sanar essa grave ferida.
Membros de sociedades ágrafas, existentes ainda em nossos dias,
de acordo com suas tradições, exercem funções de governo. Acresce que,
mesmo em países com instituições escolares, pessoas sem diplomas ocuparam, com descortino, ofícios de comando. Carlos Magno (742-814)
ascendeu, iliterato, ao trono. Mahatma Gandhi (1869-1948) disse ter aprendido com a mãe analfabeta grandes lições. Na Índia os analfabetos votam
e podem ser votados.
Recorde-se que povos antiqüíssimos, como os talentosos fenícios,
desenvolveram formas de comunicação escrita. Analfabetos criaram o alfabeto.
É também pertinente ressaltar, por uma analogia, embora muito limitada, que pessoas fisicamente incapacitadas de enxergar desempenharam
ou desempenham altos cargos de direção. São conhecidos os casos do
*
Doutor em Ciência Política. Autor de trabalhos sobre o analfabeto. Membro da Academia
Mineira de Letras.
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PADRE JOSÉ CARLOS BRANDI ALEIXO
Presidente Joaquim Balaguer, na República Dominicana, e do Governador
David Paterson, em Nova Iorque. Cegos e analfabetos podem encontrar
pessoas confiáveis que lerão para eles papéis relevantes e escreverão o
que eles ditarem.
Cidadãos adultos, sem o domínio do abecedário, têm reconhecida,
em lei, sua idoneidade para numerosos atos da vida civil. Podem testar,
adquirir ou alienar móveis e imóveis, abraçar ou não crenças religiosas e
convolar núpcias. Como os demais, estão obrigados a pagar impostos,
defender a pátria, bem cuidar de sua progênie. Atinadamente, já em 1º de
maio de 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho não incluiu entre “as
condições para o exercício do voto como para a investidura em cargo de
administração ou representação econômica ou profissional” a de ser alfabetizado (art. 529).
Hoje, diferentemente de um século atrás, quase toda a população
tem acesso ao rádio, ao cinema e à televisão e, assim, pode adquirir amplo
conhecimento sobre o País e o mundo. As maiores facilidades de viagem
entre pontos geograficamente distantes, assim como de uso do telefone,
permitem que pessoas até com residências, entre si, longínquas se comuniquem e comentem fatos, causas e personalidades as mais diversas.
É praticamente consenso que deve haver escolas para todas as
crianças assim como para adultos que na puerícia não as puderam freqüentar (arts. 205 e 208 da Constituição de 1988). Meritórios progressos nesse sentido não lograram, contudo, que elas surgissem em todas as
plagas e particularmente naquelas de escassa povoação. Milhares de pessoas, por viverem ou terem vivido nestas lonjuras, ou por terem padecido
diversas penúrias, como as da subnutrição ou do malsinado trabalho infantil, e não por indolência, a elas, desavisadamente, assacada, chegam
iletradas aos 18 anos de idade. Dolorosamente estão cerceadas na sua
cidadania e sujeitas a ouvir, confundidas e humilhadas, a pungente sentença: “Como vocês são analfabetos, são também, constitucionalmente,
inelegíveis!”
Elas sofrem dupla e perversa punição. Por injunções e incúrias, alheias,
não tiveram condições de aprender a ler e escrever e, em conseqüência
disso, são privadas do elementar direito de ser sufragadas. Esses cidadãos,
com as duras lições da escola da vida, podem valorizar muito mais que
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UMA NÓDOA NA CONSTITUIÇÃO
outros, bafejados pela fortuna, a importância dos educandários. Estímulos
e aplausos calorosos aos que promovem ou cursam, em todos os níveis,
escolas modelares, não significam endosso à falácia ou ilusão de que à
maior instrução correspondem, necessária e proporcionalmente, maior virtude e maior sabedoria. Estas dependem também de outros fatores.
Artigos, diligências, gestões, campanhas de pessoas e agremiações
clarividentes, de variadas ideologias, quer dentro, quer fora do Parlamento, prepararam o caminho para que a auspiciosa Emenda Constitucional nº 25, de 15 de maio de 1985, pusesse termo à gravíssima injustiça, enxertada na Lei Maior de 1891 (art. 70) e protraída até então: a
da inalistabilidade dos analfabetos. A Magna Carta de 1988 (art. 14, §
1º, II, “a”), ditosamente, confirmou este serôdio desagravo. Teve este
o promissor mérito de demonstrar que a imensa maioria dos Congressistas repeliu como infundadas e preconceituosas as objeções levantadas ao direito inalienável do analfabeto ao voto.
Transcorridos quase vinte anos da Carta de 1988, é imperiosa a
pergunta: Está concluída e completa a reparação? Certamente que não.
Nossas históricas dívidas para com os laboriosos, mas, geralmente, emudecidos ou constrangidos analfabetos, ainda não foram totalmente saldadas. Eles continuam inelegíveis. Nada importa que demonstrem, na
vida, patriotismo, espírito público, seriedade, honestidade, capacidade
administrativa, inclusive empresarial, confiabilidade e sabedoria. Qualquer adversário, talvez carente desses atributos e temeroso de uma
derrota, pode impugnar, com base no § 4º do art. 14, os molestos rivais. É mais. Na falta de uma definição legal do termo “analfabeto”,
probos magistrados aplicam, ou julgam poder aplicar, em suas jurisdições, aos pré-candidatos testes de crescente complexidade.
Para expungir essa nódoa de nossa Constituição, basta suprimir,
no § 4º do art. 14, os três últimos termos: “São inelegíveis os inalistáveis
e os analfabetos” (grifo do autor).
Assim livrar-se-ão eles de ser, liminarmente, esbulhados da prerrogativa comum à cidadania, de arrostar as incertezas das urnas. E se
porventura, movidos pelo desejo de melhor servir às comunidades, postularem certos cargos públicos, serão ou não alçados a eles, como quaisquer outros candidatos, a critério do eleitorado soberano.
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PADRE JOSÉ CARLOS BRANDI ALEIXO
Nos idos de 1982, havia a expectativa de que, em breve, não se
perguntaria mais por que não votam os analfabetos, mas por que foram
privados, por tanto tempo, desse direito. A Emenda Constitucional n. 25,
de 1985, realizou a esperança em questão. Oxalá em futuro próximo já não
mais se indague por que são elegíveis os analfabetos, mas por que não o
puderam ser por mais de um século.
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O 1808 E AS FORMAS DE ESTADO DO BRASIL
Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza*
As televisões, os jornais, as revistas e os livros já estão abordando o
tema a todo vapor ou, melhor, “a velas enfunadas”: a vinda da Família Real
portuguesa para o Brasil, cujo bicentenário será comemorado no início do
ano que vem (2008).
Boa oportunidade para se homenagear D. João VI, que nada tinha
de parvo, como caricatamente, sempre dele se falou. Mesmo parecendo
(ou querendo ser) indeciso, ele foi um estadista e um estrategista, ao transplantar a capital do reino lusitano para o trópico sul-americano, numa atitude inédita e única na História.
Dele disse o grande Napoleão Bonaparte, em suas Memórias: Foi o
único que me enganou.
Escritores, jornalistas, acadêmicos já estão a tratar de reconstruir a
imagem histórica de D. João VI. O professor de TGE, que aqui escreve,
prefere, na oportunidade, tratar das formas de Estado que o Brasil teve
antes e depois do 1808.
O que se denomina “Forma de Estado”, no Direito Público, é a estrutura adotada em função da centralização ou da descentralização do Poder nos Estados. Sob esse aspecto, os Estados são unitários, regionalizados
ou compostos (estes podem ser uniões políticas monárquicas, confederações e federações).
Curiosamente, o nosso Brasil passou por diversas formas de Estado
em sua história, nem sempre bem estudada sob o ponto de vista jurídico.
Em linguagem bem sucinta e simples (“jornalístico-jurídica”, como
diria o mestre Jorge Miranda), vamos examinar tais mudanças estruturais.
1. Enquanto colônia, o Brasil integrava Portugal, primeiro Estado
Unitário, verdadeiramente nacional, da Europa.
*
Professor de Teoria do Estado da FDMC. Editor-Adjunto da Del Rey.
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ADHEMAR FERREIRA MACIEL
2. Em 1532, o Rei D. João III estabeleceu, no Brasil, o regime das
Capitanias Hereditárias, dando ao País uma coloração de Estado
Regionalizado, já que os capitães-donatários, como disserta Queiroz Lima,
gozavam de verdadeiras atribuições de governo, legislando, administrando
e judicando, só devendo obediência à Coroa.
3. Com o insucesso quase total do sistema, o próprio D. João III,
em 1548, sem extinguir as capitanias, criou um Governo Geral, para lhes
dar “favor e ajuda”. Vê-se, aí, já agora, a intenção centralizadora do monarca, dando pouca autonomia às capitanias. Fixou-se a capital em Salvador, como cidade-fortaleza, e elaborou-se um Regimento, que tratava das
funções administrativas, legislativas e judiciárias, além de segurança, finanças e comércio. Um verdadeiro Estatuto. O Brasil funcionou, àquela época, como uma grande região autônoma de Portugal, à maneira do Canadá
e da Austrália, em relação à Grã-Bretanha, em certa e ainda recente fase
de suas respectivas histórias.
4. De 1580 a 1640, o Brasil, que nunca foi colônia da Espanha, fez
parte, com Portugal, da União Política Pessoal hispano-lusa, decorrente
da morte do soberano português D. Sebastião, solteiro e sem filhos, e a
conseqüente subida sucessiva, ao trono de Lisboa, dos Filipes espanhóis.
A União Política Pessoal significa que a ligação só se faz na pessoa do
monarca, continuando os Estados com sua vida internacional própria e seus
governos internos separados. Tal união se desfez com a morte de Filipe IV,
da Espanha, que era Filipe III, de Portugal. Os portugueses revoltaram-se
e aclamaram o Duque de Bragança Rei de Portugal, com o título de D.
João IV.
5. De 1720 em diante, embora não tenha havido um ato formal, o
Brasil passou à condição de Vice-Reino de Portugal, situação que perdurou até 1815. O nosso país passou, então, a ter o título de “Estado do
Brasil” e a capital foi transferida para a Cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro, em 1763. O vice-rei era um governador geral, com mais pompa e
circunstância. Contra suas decisões executivas, legislativas e judiciárias, só
cabia recurso ao soberano. Mais uma vez, quanto à forma, vemos o Brasil
como uma região autônoma, agora unitária, de Portugal, como hoje ainda
são a Madeira e os Açores.
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AN AMERICAN NATIONAL SYMBOL AND FREEDOM OF SPEECH
6. Em 1808, como todos sabemos, D. João, ainda príncipe regente,
chega ao Brasil, com sua louca mãe, a Rainha Dª. Maria I, e com todos os
nobres e tesouros lusitanos. Kenneth Maxwell, o conhecido
brasilianalista, citado por Cyro Siqueira (em 1º./12/07), afirmou que a
chegada da Corte portuguesa foi o verdadeiro momento fundador do
Brasil. O Rio de Janeiro passou a ser a capital da monarquia! Em 1815,
depois de ter decretado tantos benefícios ao nosso país, como, decerto, os
historiadores e jornalistas já estão “revivendo” em seus escritos, D. João,
ainda regente, eleva o Brasil à categoria de Reino. Passa, pois, o vice-reino
a integrar, como Reino, uma União Política Real, com a denominação
pomposa de “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”. A união real é
uma forma de Estado composto mais íntima que a união pessoal e significa
a ligação de duas ou mais monarquias, com o mesmo soberano, sem diferença de desinência numérica, aparecendo na vida internacional como um
só Estado. (A Grã-Bretanha é um exemplo vivo e incorporado desse tipo
de união.) Ela nasce com um ato jurídico, como foi o “Ato de Rei”, de 16
de dezembro de 1815. Com a morte de Dª. Maria I, em 1816, ainda no
Brasil, o príncipe passa a ser o Rei D. João VI. Em 1821, contra sua
vontade, ele parte para Lisboa, deixando aqui seu filho Pedro, na qualidade
de príncipe-regente do Brasil, com um ministério próprio.
7. Em 7 de setembro de 1822, vem o “Grito do Ipiranga” e cria-se o
Império do Brasil. A Constituição de 1824 consagra a forma de Estado
Unitário, com o território dividido em províncias, num exemplo de
desconcentração administrativa e não de descentralização política. O jovem
Pedro I, Imperador, jura obedecer à carta outorgada no dia 25 de março de
1824. Foi a Constituição que mais tempo vigorou no Brasil (65 anos).
8. Com a morte de D. João VI, em 1826, em Portugal, o nosso
Pedro I, Imperador, recebe de herança o trono português e, lá, passa a ser
Pedro IV, Rei. Forma-se, então, uma União Política Pessoal entre Brasil
e Portugal, exclusivamente na pessoa do monarca. Tal forma de Estado
durou apenas até 1831, quando o impetuoso Pedro renunciou ao trono
brasileiro em favor do menino Pedro, que viria a ser o Imperador Pedro II,
o Democrata. Da Coroa portuguesa, ele já havia abdicado condicionalmente, até que sua querida filha Maria da Glória, nascida no Rio, passasse
a ser efetivamente a Rainha D. Maria II de Portugal, a Educadora.
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ADHEMAR FERREIRA MACIEL
9. Finalmente, em 15 de novembro de 1889, proclama-se afoitamente
a república e, em 1891, com a primeira Constituição republicana, adota-se
a Federação, forma de Estado composto, criada pelos norte-americanos
em 1787, e pela qual a União passa a ter a soberania no plano interno e
internacional e os Estados-Membros têm a autonomia política, com personalidade jurídica de Direito Público interno. A federação americana nasceu
de baixo para cima, com os Estados, antes confederados, cedendo as suas
soberanias à União e conservando para si grande dose de autonomia política. No Brasil, a federação veio de um Estado Unitário, de cima para
baixo.
Mesmo assim, temos a característica básica da federação: dois planos de governo completos (legislativo, executivo e judiciário), na União e
nos Estados-Membros, havendo, pois, a descentralização política.
Somos uma federação, sim, embora bem alerte o sempre presente
Raul Machado Horta que, no Brasil, “o convívio harmonioso entre o
ordenamento federal e os ordenamentos estaduais, entre a União e os Estados-Membros, perdura ainda como grande desafio à criatividade técnica
do constituinte federal”. É só ler os periódicos diários e semanários, ouvir o
rádio e assistir à televisão, para se ver que, no Brasil, a federação, mesmo
cláusula pétrea, está sempre ameaçada pelas forças da União!
(Artigo escrito em dezembro de 2007.)
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NÃO-CUMULATIVIDADE (VALOR AGREGADO?)
João Dácio Rolim*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Modalidades e núcleo essencial da não-cumulatividade (ICMS, IPI, COFINS); 2. Finalidades da nãocumulatividade (neutralidade e oneração do consumo
em contraste com outros princípios e objetivos de política fiscal)
O princípio da não-cumulatividade será tratado neste estudo tendo
em vista os tributos ICMS, IPI, e COFINS, à luz da Constituição Federal
e da técnica dos tributos de mesma natureza, tal como a do IVA, que na
teoria e na prática incidem sobre o valor agregado na produção ou
comercialização de mercadorias e serviços. O contraste a ser efetuado terá
o objetivo de demonstrar um núcleo essencial que caracterize tais tributos
nas suas diferentes modalidades, de forma que se um tributo não apresentar tal característica essencial ele não poderia ser considerado não cumulativo de acordo com o cânone constitucional aparentemente indeterminado.
Como se verá adiante, a não-cumulatividade, em princípio, conforme instituída com o objetivo de evitar o efeito em cascata do imposto sobre vendas, identifica-se com a característica de tributo sobre o
valor agregado não somente por sua finalidade, mas também por suas
modalidades. Algumas diferenças podem existir, mas desde que não se
altere a substância de suas características essenciais, tais como a neutralidade, a oneração do consumo e evitar a tributação cumulativa, o
imposto não cumulativo se identifica essencialmente com a natureza e
forma dos tributos sobre o valor agregado. Por outro lado, pela natureza do sistema constitucional brasileiro e primazia do ordenamento
*
Master of Law in Laws pela London School of Economics and Political Science (LSE).
Doutor em Direito Tributário pela UFMG. Prof. de Direito Tributário da Fundação Getúlio
Vargas. Pesquisador na Queen Mary University of London. Advogado.
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JOÃO DÁCIO ROLIM
constitucional a noção de não-cumulatividade deve ter um núcleo essencial, que não pode ser alterado ou modificado pelo legislador
infraconstitucional.
1 MODALIDADES E NÚCLEO ESSENCIAL DA NÃOCUMULATIVIDADE (ICMS, IPI, COFINS)
A teoria econômica demonstra que os impostos sobre o valor agregado ou não cumulativos gravam o consumo,1 ou seja, a renda consumida,
e as suas modalidades variam basicamente de acordo com o método de
cálculo de cada um. Em linhas gerais, valor agregado é o valor que o
agente econômico acrescenta aos seus insumos e compras (exceto salários) antes de vender seu produto novo ou revender seus bens e serviços.
Assim, insumos são adquiridos, a mão-de-obra é remunerada para
transformá-los ou beneficiá-los, e, quando produtos ou serviços finais
são fornecidos ou prestados, algum lucro será auferido (lucro = vendas –
insumos – salários). Logo, a realidade econômica do valor agregado de
bens e serviços pode ser traduzida por uma adição (lucro mais salários)
ou por uma subtração (vendas menos insumos).2 Bens de capital são
considerados insumos consumidos ao longo do tempo para a produção
dos bens e serviços.
Portanto, desejando tributar o valor agregado, deve-se tributar ou a
diferença entre vendas e insumos (saídas menos entradas) ou a soma entre
lucro e salários, havendo quatro formas de alcançar em princípio o mesmo
resultado3:
1. lucro mais salário: pelo método contábil chamado aditivo direto;
1
A renda nacional corresponde ao valor adicionado de todas as atividades econômicas e o
balanço da renda nacional apresenta os seguintes componentes: os fatores do produto doméstico bruto (basicamente salários, lucros, aluguéis, depreciação) bem como suas despesas ou
gastos (consumo, investimento, exportações menos importações), em que o item consumo
será igual aos fatores do PDB menos investimento e exportações líquidas, correspondendo ao
valor agregado da economia do país. (Cf. BLACK, John Oxford dictionary of economics,
2002, e ROXAN, Ian. Theory and role of VAT and similar taxes, handout 3, de 10/10/2002)
2
Cf. TAIT, Alan A. Value added tax: international practice and problems, 1988.
3
TAIT, Alan A. Value added tax: international practice and problems, p. 4-5.
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NÃO-CUMULATIVIDADE (VALOR AGREGADO?)
2. lucro mais salário: pelo método aditivo indireto, segundo o qual o
valor agregado não é diretamente calculado, mas somente o imposto sobre
os seus componentes;
3. saídas menos entradas: pelo método contábil chamado subtrativo
direto (ou base sobre base como denominado na França);4
4. saídas menos entradas: pelo método do crédito (ou da nota fiscal
fatura) chamado subtrativo indireto, que é o mais usual e serviu de base ao
modelo comum europeu.
Em princípio, os métodos diretos (1 e 3) de calcular o imposto sobre
o valor agregado parecem ser mais simples e imediatos, desde que se considere que há, pelo menos quatro razões principais para a adoção do método indireto do crédito (da nota fiscal).
• Primeiro porque tal método vincula a obrigação tributária à transação em si de fornecimento de bens e serviços, tornando-o jurídica
e tecnicamente melhor que os outros pela identificação em cada
operação se o imposto realmente é devido pela natureza da transação, qual a alíquota aplicável, restando ainda a nota fiscal como um
comprovante da transação e do imposto devido.
• Segundo, tal método melhor assegura que o imposto seja creditado quando pago e a veracidade do fato de não haver imposto a
pagar quando as entradas excedem as saídas.
• A terceira vantagem desse método se refere, na verdade, a uma
desvantagem ou inépcia dos métodos contábeis (1 e 3) quando o
imposto tem alíquotas diferentes em razão da natureza das operações ou da categoria das mercadorias e serviços fornecidos, já que
o método usual contábil de calcular o lucro não leva em consideração tais circunstâncias.
4
Esse método é chamado também de business transfer tax, ou como adotado durante um
período no Estado de Michigan (EUA), onde foi denominado business activities tax. Sobre
esse método, cf. WHALLEY, John; FRETZ, Deborah. The economics of the goods and
services tax, p. 97-99, e, também, COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei
complementar, p. 26-27.
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• Enfim, uma última vantagem do sistema de crédito indireto diz respeito ao método direto contábil de entradas e saídas, que além de
ser somente mais apropriado a um sistema de alíquota única do
imposto, é inconveniente para uma apuração mensal de vendas,
compras e inventários, onde os estoques podem ainda variar substancialmente de acordo com o tipo de produção e sazonalidade de
mercado.5
De acordo com a Constituição Federal de 1988, o método indireto
de subtração de saídas menos entradas parece ser claramente o mais adequado para o ICMS,6 já que se refere à compensação em cada transação,
pela existência de alíquotas diferenciadas para determinadas operações (internas ou interestaduais), bem como pela possibilidade de diferentes alíquotas
em razão da essencialidade das mercadorias e serviços. As exceções aos
créditos previstos na própria Constituição parecem não alterar o seu núcleo de forma que se possa afirmar que o ICMS não seja um tributo sobre
o valor agregado, pois substancialmente continua pela lógica e literalidade
do texto constitucional a onerar o consumo e assegurar uma substantiva
neutralidade do imposto.
Quanto ao IPI, a CF/88 é mais econômica em palavras, mas não
menos clara ao melhor método pela referência a imposto devido em cada
operação7 e pela obrigatoriedade de adoção de alíquotas diferenciadas
pela essencialidade dos produtos, consoante o inciso I do § 3º do art. 153
da CF/88.
Relativamente à COFINS, como o § 12 do art. 195 da CF estabeleceu que a lei definirá os setores de atividade econômica para os quais ela
será não cumulativa, sem expressa menção a cada operação e pela própria
incidência sobre receita bruta ou faturamento, o melhor método poderia
ser o contábil (base sobre base) e em princípio pela impossibilidade de
5
Cf. TAIT, Alan A. Value added tax: international practice and problems, p. 5.
6
Para o ICMS, art. 155, § 2º, inciso I: “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido
em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”.
7
Art. 153, § 3º, inciso II: “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada
operação com o montante cobrado nas anteriores”.
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adoção de alíquotas diferenciadas por produtos ou serviços.8 Entretanto,
como atividades econômicas submetidas ao regime do valor agregado adquirem bens e serviços de fornecedores que podem estar no regime cumulativo, os quais pagam uma alíquota menor de tributo, o método contábil base
sobre base se torna mais complexo e difícil de operacionalizar. Uma inferência
lógica do texto constitucional, porém, é a natureza não cumulativa, a qual
pode ser regulamentada por qualquer das formas existentes que conduzem à
tributação do valor agregado, devendo haver uma correspondência necessária e simétrica entre a hipótese de incidência e base de cálculo do tributo
(faturamento ou receita bruta) e quaisquer aquisições ou entradas que econômica ou juridicamente contribua para a sua realização ou apuração. Quanto maior a amplitude do conceito receita bruta, maior a possibilidade de créditos. Em outras palavras e a título de exemplo, se uma receita financeira é
abrangida pelo conceito de faturamento ou receita bruta, qualquer despesa
financeira paga a terceiros e que seja tributada igualmente como receita bruta
deve gerar crédito a ser compensável. Outro exemplo é a despesa, por exemplo, de locação que, contribuindo ou até mesmo sendo necessária para o
exercício da atividade econômica e em conseqüência auferir receita, não pode
deixar de gerar crédito se é tributada pelo COFINS.
Os tipos de crédito passíveis de aproveitamento dependem também
do sistema adotado para a não-cumulatividade relativa a bens e serviços.
Na doutrina relativa ao VAT europeu, aplicável ao ICMS e ao IPI, tem-se
a classificação do VAT nos tipos produto, renda ou consumo.9
O VAT tipo produto só permite o aproveitamento dos créditos relativos aos bens que integrem fisicamente o produto vendido, por isso não
podem ser aproveitados créditos relativos às entradas de bens destinados
ao ativo permanente, ainda que colaborem com a produção ou
comercialização dos bens, ocasionando a cumulatividade do imposto. Portanto, pode-se concluir que tal modalidade não é a que se melhor se
adapta ao texto constitucional, a não ser expressa ressalva constitucional.
Dependendo da essencialidade dos bens de capital e da sua proporção em
8
O § 9º do art. 195 permite alíquotas diferenciadas “em razão da atividade econômica, da
utilização intensiva de mão-de-obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do
mercado de trabalho”, mas não em princípio pelo tipo de bens e serviços ou sua essencialidade.
9
Cf. TERRA, Bem J. M.; KAJUS, Julie. A guide to the European VAT Directives, p. 51.
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relação à produção de bens e serviços, o VAT tipo produto pode deixar de
ser imposto sobre o valor agregado e passar a ser um imposto misto que
grava não o valor agregado, mas algo mais, tornando o imposto apenas
parcialmente não cumulativo.
O VAT tipo renda admite o aproveitamento dos créditos apenas
quando da efetiva utilização do bem adquirido na produção de mercadorias ou serviços cuja saída seja tributada, mediante o aproveitamento
escalonado de créditos, por períodos, estimados de acordo com a previsão de depreciação do bem adquirido. Esse tipo de sistema foi incorporado ao ICMS pela Lei Complementar 102/2000, segundo a qual os
créditos relativos a bens do ativo permanente podem ser aproveitados à
razão de 1/48 por mês.
No VAT tipo consumo não é feita a distinção entre uso ou consumo
imediato ou contínuo dos bens adquiridos. Para o direito ao crédito, é
irrelevante o tipo de produto, restando autorizado o aproveitamento imediato e integral, no momento da aquisição, dos créditos relativos a bens
destinados ao ativo permanente da empresa contribuinte.
Relativamente a bens de capital, tanto para efeito do ICMS, IPI e
COFINS, em razão da não-cumulatividade constitucional, a mais adequada sistemática é a do tipo consumo, restando a do tipo renda possivelmente adequada ao COFINS, adotando-se o método contábil de base sobre
base. E como a menos adequada, para não se dizer incompatível com a
não-cumulatividade constitucional, restaria a sistemática do tipo produto.
2 FINALIDADES DA NÃO-CUMULATIVIDADE
(NEUTRALIDADE E ONERAÇÃO DO CONSUMO EM
CONTRASTE COM OUTROS PRINCÍPIOS E OBJETIVOS
DE POLÍTICA FISCAL)
A principal finalidade da não-cumulatividade é evitar o efeito regressivo da incidência em cascata ou cumulativa de impostos plurifásicos que
gravam bens e serviços integralmente a cada etapa da sua circulação ou
fornecimento.10 Essa característica da cumulatividade acarretava outro efeito
10
Esse foi o objetivo principal quando introduzido na França em 1954. (Cf. TAIT, Alan A.
Value added tax: international practice and problems, p. 15; WHALLEY, John; FRETZ,
Deborah. The economics of the goods and services tax, p. 134-88).
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indesejável economicamente de concentração da cadeia produtiva numa
única empresa e onerosidade excessiva da circulação de bens. Ou seja, a
forma de incidência cumulativa evidentemente não era neutra em relação à
organização dos meios de produção e circulação. Quanto à exportação de
bens o imposto cumulativo não é totalmente desonerado em razão de toda
cadeia anterior de produção e circulação, a não ser por complexas formas
de créditos presumidos. Por fim, o IVA europeu também foi escolhido pela
Comunidade Européia porque, em contraste com os tributos multifásicos e
cumulativos que o precederam, ele era o menos provável de “distorcer as
condições de competição ou restringir a liberdade de circulação de mercadorias e serviços num mercado comum”.11 Ainda conforme os objetivos
expressos no mesmo Preâmbulo, tal imposto era destinado a
resultar na neutralidade na competição, de forma que em cada
país mercadorias similares tivessem a mesma carga tributária,
qualquer que fosse a duração da cadeia de produção e distribuição, e de maneira que no comércio internacional o montante da tributação sobre bens seja conhecida e que uma exata
equalização daquele montante possa ser assegurada.12
Posteriormente, consolidando a sua jurisprudência entre os objetivos do imposto na Comunidade Européia, o Tribunal de Justiça Europeu,
já na vigência da 6ª Diretiva, decidiu que o “sistema comum do VAT assegura completa neutralidade da tributação de todas as atividades econômicas, quaisquer que sejam seus objetivos ou resultados, considerando
que elas sejam sujeitas em princípio ao imposto” (sem grifo no original).13
Fazendo menção à neutralidade no aspecto da tributação do consumidor
final, o Tribunal fez no caso Elida Gibbs Ltd. em 1996 a seguinte explicação do princípio:
11
§ 2º do Preâmbulo da Primeira Diretiva do VAT (1967), após o Comitê Neumark ter proposto
em 1958 o VAT para a então denominada Comunidade Econômica Européia.
12
§ 8º do Preâmbulo da Primeira Diretiva. Sobre o histórico e natureza do VAT de acordo com
os propósitos e objetivos constantes dos Preâmbulos das Diretivas, especialmente no tocante à neutralidade, FARMER, Paul; LYAL, Richard. EC tax lax, cap. 2-4; OGLEY, A. Principles
of value added tax: a european perspective, cap. 1-3, e MORSE, Geoffrey; WILLIAMS,
David. Davies: principles of tax law, cap. 24-26.
13
Caso Rompelman , 268/83, § 19.
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JOÃO DÁCIO ROLIM
O princípio básico do VAT é ter o objetivo de tributar somente
o consumidor final. Em conseqüência, o montante tributável
que serve como base para o VAT ser recolhido pelas autoridades fiscais não pode exceder o valor realmente pago pelo consumidor final que é a base de cálculo do VAT no final assumido por ele.14
Assim, para garantir a neutralidade e a tributação última do consumidor, não poderia haver, em princípio, cobrança a maior em qualquer fase
da cadeia de circulação que não fosse efetivamente suportada pelo consumidor final, a não ser no caso das expressas exceções constitucionais.
Outra alternativa ao imposto plurifásico cumulativo seria um imposto
monofásico sobre vendas no final da cadeia de circulação onerando o consumo. Nesse tipo de imposto não se trata de incidência sobre valor agregado, mas, sim, bruto da operação, mas minimizado pela incidência única.
Entretanto, outros problemas desse imposto seriam maior possibilidade de
sonegação (normalmente tendente a ser maior no varejo em alguns países);
maior necessidade e dificuldade de fiscalização, incluindo os pequenos comerciantes (no caso sendo mais difícil justificar uma isenção pela incidência
única no varejo); distinção entre Estados produtores e consumidores favorecendo em termos de arrecadação somente os Estados em que o consumo é maior do que a produção.
Por outro lado, as vantagens de um imposto plurifásico não cumulativo seriam, além de evitar a incidência em cascata (como no imposto
monofásico), a de arrecadar desde o início da fase de produção e circulação (arrecadatória), o não-favorecimento somente dos Estados consumidores, sendo justificadas a maior complexidade e custos de fiscalização e
de cumprimento de obrigações acessórias em relação ao imposto
monofásico por maior justiça fiscal e base de arrecadação, assegurando
outras principais vantagens como a neutralidade e oneração substancialmente do consumo, e não da produção.
14
Caso n. 317/94, Elida Gibbs Ltd v Customs and Excise Commissioners, § 19: The basic
principle of the VAT system is that it is intended to tax only the final consumer. Consequently
the taxable amount serving as a basis for the VAT to be collected by the tax authorities cannot
exceed the consideration actually paid by the final consumer which is the basis for calculating
the VAT ultimately borne by him.
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A neutralidade fiscal, que é uma das finalidades principais da nãocumulatividade visa também impedir que impostos sobre o consumo introduzam distorções nos elementos da concorrência como visto na justificativa para a adoção do IVA na Europa. Não há como negar que a
tributação pode afetar as decisões econômicas dos consumidores, uma
vez que pode interferir no custo de produção e na formação dos preços.
Por essa razão, a tributação sobre o consumo deveria se estruturar da
forma mais neutra possível, sendo injustificável qualquer restrição a créditos de operações anteriores que afete substancialmente a neutralidade
do imposto.15
Outro aspecto da neutralidade do tributo não cumulativo é o de ser
neutro entre empresas com proporções diferentes de salários em relação
a lucros,16 de forma que o empresário não toma decisão de ter mais ou
menos mão-de-obra nem propõe valor de salários em razão da incidência ou não de tributos não cumulativos. Como visto, duas modalidades
de determinar a base de cálculo do valor agregado como base de incidência dos tributos não cumulativos se referem exatamente à fórmula lucro mais salário (seja pelo método contábil aditivo direto ou indireto).
Nesse contexto, louvável o disposto no § 13 do art. 195 da CF/88 mandando aplicar a técnica da não-cumulatividade na substituição gradual,
total ou parcial, da contribuição sobre folha de salário pela incidente sobre a receita ou o faturamento.17 Esse comando constitucional reforça o
entendimento sobre a não-cumulatividade como valor agregado, gravando o consumo, e de forma mais neutra possível, o que, evidentemente, se
é para ter alguma eficácia e sentido, exige que créditos sejam tomados sem
restrições conflitantes com a neutralidade, se adotado o método do crédito
15
16
17
James M. Biclkey (The VAT: concepts, issues and experience, p. 47 Tax Notes 447), ao tratar
da questão da neutralidade para o VAT, assim conclui: From an economic perspective, a source
of revenue is generally preferred, the greater its neutrality; that is, the less it affects economic
decisions. Conceptually, a VAT on all consumption expenditures with a single rate that is
constant over time would be relatively neutral compared to other major revenue sources.
JAMES, Simon; NOBES, Christopher. The economics of taxation, p. 239.
Art. 195, § 13. “Aplica-se o disposto no § 12 inclusive na hipótese de substituição gradual,
total ou parcial, da contribuição incidente na forma do inciso I, a, pela incidente sobre a receita
ou o faturamento. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 42, de 19/12/2003).
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(saídas menos entradas). Se adotado talvez mais apropriadamente o
método contábil de lucro mais salário, todas as despesas que em princípio tenham sido gravadas pelo tributo por quem forneceu bens, serviços
e outros direitos já estariam diretamente computadas.
Vejamos alguns exemplos da aplicação da não-cumulatividade e
seu principal corolário da neutralidade. Com relação à substituição tributária para frente e a incidência monofásica de um imposto que em sua concepção é multifásico e não cumulativo, outros princípios devem ser levados
em consideração para justificá-los ou não. A neutralidade é um princípio
essencial, mas não absoluto, comportando a convivência a mais harmônica
possível com outros princípios gerais da tributação ou específicos do próprio imposto não cumulativo. Dentre esses princípios, podem ser ressaltados a eqüidade na aplicação do imposto, a eficiência econômica para o
controle da evasão e da elisão fiscal, a simplificação, bem como uma justa
e equilibrada repartição dos custos de administração e arrecadação entre
os entes tributantes e os contribuintes. Nenhum desses princípios deveria
ser absoluto, admitindo-se certa graduação entre eles, dependendo das
circunstâncias de cada caso concreto. Por exemplo, invocando-se a neutralidade como princípio e a simplificação como um objetivo, a norma tributária mais simples possível seria não haver imposto algum, mas seria factível
econômica e socialmente, seria justo? Portanto, exceções à neutralidade
podem existir desde que justificadas por outros princípios racionalmente
inerentes à ordem constitucional.
Sopesar ou ponderar o princípio da neutralidade com outros objetivos de simplificação e de controle da evasão e elisão é tarefa do legislador
a ser escrutinada pelo Judiciário, como ocorreu com dois casos decididos
com relação ao IVA europeu pelo Tribunal de Justiça Europeu, relatados a
seguir,18 bem como pelo Supremo Tribunal Federal no caso da substituição
tributária para a frente com relação ao ICMS.19 Tal análise jurídica deve
18
Casos Ampafrance (C- 177/99 and C-181/99 de 19/09/2000) e Sudholz (C-17/01, Finanzamt
Sulligen v Walter Sudholz, de 29/4/2004).
19
A aplicação dos objetivos de simplificação, de facilitar arrecadação e fiscalização com a redução
da possibilidade de evasão em alguns segmentos, está sendo contrastada com outros princípios
e garantias constitucionais, como o da neutralidade e garantia de restituição no caso de recolhimento ou cobrança a maior do imposto, no caso da discussão da substituição tributária definitiva (sem restituição ou cobrança a maior posterior), sendo as margens de lucro razoáveis.
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ser permeada por outros princípios racionais, como o da otimização aplicável no sentido de não somente conciliar diferentes objetivos e princípios,
mas de tentar otimizá-los em cada situação concreta.
No primeiro caso (Ampafrance), decidido pelo Tribunal Europeu,
entendeu-se que era ilegítimo negar o direito de crédito do IVA referente a
gastos com hospedagem e alimentação, que poderiam ser provadas como
despesas comerciais, ponderando o princípio da neutralidade com os objetivos de simplificação (dispensa de documentação e fiscalização) e evitar
elisão e evasão fiscal (despesas pessoais como despesas da empresa). O
fisco francês havia negado peremptoriamente, após autorização formal da
Comissão Européia exigida pela própria Diretiva do VAT, com fundamento
na simplificação e combate à evasão e elisão fiscal, mas o Tribunal deu preponderância à neutralidade e à possibilidade de provar que tais despesas
documentais eram relacionadas com a atividade econômica da empresa.
Por outro lado, no outro caso (Sudholz), o Tribunal entendeu que
em nome da simplificação e combate a eventuais abusos e elisão, a limitação do direito de crédito do IVA a 50% sobre o veículo do contribuinte
que era usado no interesse particular e comercial não infringia substancialmente o princípio da neutralidade, ainda que o contribuinte pudesse demonstrar que o veículo era utilizado mais para o trabalho (70% no caso).
Para assim decidir, o Tribunal considerou, dentre outras razões, que o veículo
era depreciável ao longo de sua utilização e que o valor marginal de imposto eventualmente não deduzido poderia ser um custo repassado ao custo
da prestação de serviços tributável pelo imposto e, portanto, repassável ao
consumidor, resguardando-se ao menos indiretamente a neutralidade que
deve em linha de princípio ser integral e completa.
De acordo com o ordenamento jurídico-constitucional do Brasil, um
tributo não cumulativo monofásico pode ser instituído, desde que preservados alguns parâmetros de otimização com outros princípios jurídicos e
relevantes objetivos de política fiscal. Outro requisito seria a consistência
entre o regime monofásico de um tributo não cumulativo e o seu regime
plurifásico, de maneira que a exceção não se torne a regra, a não ser que os
objetivos de um imposto plurifásico não sejam mais válidos, partindo para
a adoção de outro imposto, não importando mais a sua denominação de
não cumulativo, pois poderá se tornar extremamente complexo para todo
o tipo de bens e serviços, tendo-se de lidar com todo o tipo de presunções
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de quantas vezes eles circulam e qual o limite razoável bem como a alíquota
aplicável para cada atividade econômica ou grupo de bens e serviços. Ademais, seria aplicável a um imposto residual, no qual poderá se transformar
o imposto monofásico ainda que rotulado de não cumulativo, o art. 154, I,
da CF/88, que exige como requisito para o exercício da competência residual federal ser o novo imposto não cumulativo, podendo-se cair num
raciocínio circular, do qual para se sair exigir-se-iam as complexas presunções de fases de circulação dos bens e serviços, bem como de margens
razoáveis de lucro de cada fase. Isso pode-se tornar extremamente complexo e paradoxalmente em nome da simplificação (de recolhimento, cumprimento de obrigações acessórias e fiscalização) e possível maior controle da elisão e da evasão fiscal.
Mais dois exemplos de interação de um tributo não cumulativo com a
tributação monofásica no início da cadeia ou submetido à substituição tributária “para frente”. Admitindo-se, em tese, tais formas de tributação, segundo
os parâmetros principiológicos e práticos acima, não caberia direito de crédito na aquisição de bens e serviços jsto porque, se a tributação é legítima e
justificável na forma monofásica ou por substituição que garanta neutralidade
substancial, o simples fato de um contribuinte estar adquirindo bens ou serviços tributados naqueles regimes não justificaria a sua quebra em linha de
princípio. Em casos específicos, como na aquisição de um bem submetido a
uma tributação por substituição presumindo-se três fases de circulação e
apenas duas de fato e de direito ocorrem, é lógico que haverá direito de
crédito corresponde ao débito da fase que não ocorreu.
Concluindo, a neutralidade é uma decorrência natural e necessária
da não-cumulatividade de tributos que incidem sobre o valor agregado, tais
como o ICMS, o IPI e a COFINS, e qualquer restrição deve ser ou autorizada expressamente pelo texto constitucional a ser interpretado em razão
do seu contexto e finalidade, ou em decorrência da aplicação de outros
princípios e valores legítimos de acordo com o interesse público, sem anular a essência da neutralidade em cada caso concreto.
REFERÊNCIAS
BICLKEY, James M. The VAT: concepts, issues and experience, 1990.
BLACK, John Oxford dictionary of economics. 2002.
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NÃO-CUMULATIVIDADE (VALOR AGREGADO?)
COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São
Paulo: Resenha Tributária, 1978.
FARMER, Paul; LYAL, Richard. EC tax lax, 1994.
JAMES, Simon; NOBES, Christopher. The economics of taxation, 2000.
MORSE, Geoffrey; WILLIAMS, David. Davies: principles of tax law, 2004.
OGLEY, A. Principles of value added tax: a european perspective, 1998.
ROXAN, Ian. Theory and role of VAT and similar taxes. Handout 3, de
10/10/2002.
TAIT, Alan A. Value added tax: international practice and problems, 1988.
TERRA, Bem J. M.; KAJUS, Julie. A guide to the European VAT Directives.
International Bureau of Fiscal Documentation Publications, dez. 1994/jan. 1995.
WHALLEY, John; FRETZ, Deborah. The economics of the goods and
services tax. Canadian Tax Foundation, 1990.
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MODELO CONSTITUCIONAL DO PROCESSO E
REVISÃO DA COISA JULGADA
José Marcos Rodrigues Vieira*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Coisa julgada – Garantia constitucional. 2. Limites objetivos da coisa julgada e garantia constitucional da jurisdição. 3. Função negativa da coisa julgada. 4. Preclusão,
eficácia preclusiva e questão de inconstitucionalidade.
5. Prejudicial de inconstitucionalidade e Direito brasileiro.
6. Os arts. 475-L, inciso II e § 1º; 741, parágrafo único;
543-A, § 2º; e 543-B, § 1º, do CPC. 7. Rescisão e revisão.
8. Limites objetivos da revisibilidade. 9. Referências.
1 COISA JULGADA – GARANTIA CONSTITUCIONAL
Se até a Lei pode ser declarada incompatível com a Constituição,
não haveria recear que também o possa a coisa julgada.1 Isso, entretanto,
não autoriza entrever no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República
*
Advogado. Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto de Direito Processual Civil da
Faculdade de Direito da UFMG. Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade
Mineira de Direito da PUC Minas. Procurador do Estado de Minas Gerais.
1
BARBOSA, Rui. Trabalhos jurídicos – Estado de sítio. In: ______. Obras completas, v. XIX, t.
III, p. 142: “Não há casos julgados contra a verdade constitucional. As sentenças inconstitucionais
não constituem aresto. São axiomas, que a jurisprudência americana me ensinou”. E a seguir (p.
143), cita Bancroft: “Sustentar que um tribunal, abrindo-se-lhe os olhos a um erro, deve, todavia,
mantê-lo, só porque uma vez o articulou em opinião judicial, seria revestir de inviolabilidade o
capricho, e assegurar preponderância aos desacertos do executor sobre a constituição, a que jurou
obedecer. Assim como se tem por írrito e nulo o ato da legislatura, que transgredir a Constituição,
as decisões do Supremo Tribunal, que a contravierem, são igualmente vãs e nenhumas”. Do
mesmo modo, citando, em seguida (p. l43-144), Lincoln: “Mas, sendo manifesta a possibilidade
de decisões errôneas em certos e determinados casos, os maus efeitos delas, se se circunscreverem
à matéria especial do pleito, podendo-se reconsiderar depois, e não criando jamais precedente para
outros casos, serão muito mais toleráveis do que as conseqüências, a que a prática oposta nos
sujeitaria”. Advertimos, porém, que estamos vivendo a formação jurisprudencial do direito, com
precedentes horizontais e verticais, por força de nossas últimas reformas (sentença repetitiva,
súmulas impeditivas de recurso e súmulas vinculantes).
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apenas uma ordem (de respeito à coisa julgada) dirigida ao legislador, e
não ao julgador. É que, felizmente vivemos no Estado de Direito, após duas
grandes guerras e suas seqüelas e ainda viva a lembrança de suas atrocidades. Se ninguém está acima da Lei, conforme dicção do art. 5º, II, da
Constituição da República, e sequer a Lei poderia desrespeitar a coisa
julgada, menos o pode a sentença. Nesse sentido, a regra do art. 471 do
Código de Processo Civil retrata a função negativa da coisa julgada.
É dúplice, portanto, a condição jurídica da parte tutelada por sentença de mérito trânsita: de sujeição à autoridade da coisa julgada, mesmo
que revelada a inconstitucionalidade da declaração concreta; e de sujeição
à eficácia retroativa da declaração abstrata de inconstitucionalidade. Esboçava-se tal duplicidade com a utilização da ação rescisória fundada na
superveniente declaração de inconstitucionalidade em via concentrada pelo
Supremo Tribunal Federal. Veio, porém, o direito positivo consagrar a
impugnação ao cumprimento da sentença, a inexigibilidade do título executivo judicial, sob o mesmo fundamento (art. 475-L, inciso II, e § 1o).
A compatibilidade entre as duas condições jurídicas impõe admitirse diversidade cognitiva entre a matéria constitucional e a matéria
infraconstitucional, no âmbito da preclusão – conclusão a que nos obriga o
confronto respectivo. A garantia constitucional da coisa julgada não pode
excluir a garantia constitucional da jurisdição – em tanto que subsista jurisdição constitucional não exercitada e exercitável.2
Não há dúvida de que, tanto quanto a jurisdição, a coisa julgada é
garantia constitucional. E não o poderia ser se também não o fosse aquela.
Ocorre que – é imprescindível considerar o aspecto de inclusão – a coisa
julgada é garantia constitucional (conteúdo) da garantia constitucional da
jurisdição (continente). Porque a lei não pode excluir da apreciação do
Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CF), não
2
O que é apontado por Bancroft (apud BARBOSA, Rui. Trabalhos jurídicos – Estado de sítio.
In: ______. Obras completas, v. XIX, t. III, p. 142) – mas não queremos com o exagero norteamericano: “O alcance de uma sentença do Supremo Tribunal só é irreparável no tocante ao
caso particular em litígio; e a esse seu efeito a sociedade se submete, por evitar a anarquia na
solução quotidiana de fatos usuais. Mas, se envolve questão de direito constitucional, a tal
respeito não encerra o julgamento força definitiva. ‘To the decision on a underlying question
of constitucional law no such finality attaches’. Para prevalecer, há-de ser justo. E, se é justo,
receberá a devida sanção no assenso geral dos imparciais”.
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pode excluir a apreciação produzida pelo Judiciário; a lei respeitará a coisa
julgada (art. 5º, XXXVI, CF).
De um lado, a coisa julgada não poderia ser garantia constitucional
se não o fosse, já, a própria jurisdição. Fosse possível desrespeitar-se a
coisa julgada, ainda que por outro exercício de jurisdição, estaria excluída
a jurisdição anterior, tanto que desautorizada. Tem-se, pois, que a coisa
julgada é limite constitucional da garantia da jurisdição. De outro lado, a
jurisdição não poderia ser garantia constitucional se não o fosse, em decorrência, a coisa julgada. Fosse possível excluir a jurisdição sobre espécie
outra, ainda que conexa, estaria ampliada a coisa julgada anterior ao ponto
em que já se tornasse desautorizada. Tem-se, pois, que o respeito à área
não abrangida pela jurisdição exercitada é limite constitucional da autoridade da coisa julgada.
Eis toda a proporcionalidade que se tem procurado buscar nos estudos sobre a (falsa) relativização da coisa julgada: a coisa julgada não pode
vitimar a garantia da jurisdição (sobre espécie outra, ainda que conexa); a
jurisdição não pode vitimar a garantia da coisa julgada (sobre a mesma
espécie, ainda que por outro órgão jurisdicional).
2 LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA E GARANTIA
CONSTITUCIONAL DA JURISDIÇÃO
É atento a tais limites recíprocos que o legislador estabelece os limites objetivos da coisa julgada. São eles definidos por exclusão no art. 469
do CPC, mas também no art. 468 do mesmo Código, inclusivamente.
A razão de tais dois artigos nos parece explicável. O art.469 do
CPC atende ao raciocínio chiovendiano, o qual o Código brasileiro adota
diretamente, disciplinando o processo a caminho da coisa julgada. O art.
468 do CPC, por seu turno, atende ao sistema carneluttiano, o qual o
Código perfilha reversamente, disciplinando o processo ante a coisa julgada.
Ali, os limites refletem os elementos objetivos da ação, para afastar de
exame outra causa com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir. Aqui,
os limites refletem os elementos da lide, para excluir jurisdição sobre outra
causa com os mesmos bens (lide) e interesses (questões). Bens litigiosos,
bens jurídicos disputados e interesses conflitantes, que, unidos, perfazem
as razões de decidir, as soluções de questões – sua inclusão exegética é
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necessária, por causa do instituto da eficácia preclusiva da coisa julgada do
art. 474 do CPC. Algo evolui do objeto do pedido para o objeto do julgado. É o que cumpre discutir e procuraremos demonstrar.
3 FUNÇÃO NEGATIVA DA COISA JULGADA
Dúvida não paira sobre a imutabilidade do elemento declaratório do
direito, do bem jurídico reconhecido, contido no dispositivo sentencial, não
nos fundamentos da sentença. Releva, por isso, considerar que não se admite a utilização de raciocínios outros, a pretexto de formulação de causa
de pedir diversa ou de pedido outro. A coisa julgada não se estende aos
fundamentos, mas a eles serve a eficácia preclusiva, não se admitindo
mutabilidade da fundamentação em pedido (aparentemente outro) sobre a
mesma controvérsia.
Colhe-se, portanto, como primeira conclusão a de que não haverá
desrespeito à coisa julgada, tanto que se possa imaginar demanda, embora
conexa: se pelo pedido, com causa de pedir realmente diversa (despejo
anterior, por falta de pagamento, improcedente; novo despejo, por
infringência de obrigação contratual); se pela causa de pedir, com pedido
realmente diverso (possessória anterior, com dúvida de divisa, improcedente; demarcatória com queixa de esbulho).
O que, porém, tem sido desenvolvido nos trabalhos de exposição
da tese da (impropriamente chamada) relativização da coisa julgada é a
temática da revisão; isto é, da renovação da instância sob pedido de
nulidade da coisa julgada (a exemplo da impugnação ao cumprimento de
sentença por inexigibilidade, como a que ocorra sob invocada declaração de inconstitucionalidade da regra aplicada), âmbito em que não estranha sejam fundidos dispositivo e fundamentação. Novo pedido imediato
e nova causa de pedir imediata surgiriam ambos da declaração de inconstitucionalidade pelo STF. Pedido e causa de pedir de inconstitucionalidade
do julgado trânsito.
Embora idênticos o pedido mediato (bem da vida) e a causa de pedir mediata (fato jurídico), poder-se-ia raciocinar com novo pedido e nova
causa de pedir imediatos – de modo a não vedar o reingresso em juízo –
redefinida a eficácia preclusiva da coisa julgada.
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MODELO CONSTITUCIONAL DO PROCESSO E REVISÃO DA COISA JULGADA
É o que tem sido tentado (embora já divergente a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça) nos casos de reinvestigação de paternidade
com base no exame de DNA, prova não existente ao tempo em que produzida a coisa julgada. À orientação admissiva da prova antes não disponível como nova causa de pedir ou da revisão da coisa julgada com base no
princípio da dignidade da pessoa humana contrapõe-se a que vê atendidas
as garantias do devido processo legal e do ato jurídico perfeito, com as
provas disponíveis à época e em prestígio da segurança jurídica.
Vê-se, portanto, que o tema é intrincado e se está longe de poder
dizer a última palavra sobre a solução. Mas legem habemus. Pelo menos a
disciplina processual da inexigibilidade da coisa julgada inconstitucional, na
fase de cumprimento da sentença, tem de ser enfrentada doutrinária e
jurisprudencialmente.
Até que os recursos extraordinários advindos de causas em que se
tente a revisão com fundamento nos arts. 475, II e § 1º e 741, parágrafo
único, do CPC sejam apreciados e se firme no Supremo Tribunal a verdadeira exegese de tais regras – e, vale dizer, sejam fixados os limites e as
condições de revisão por inconstitucionalidade supervenientemente declarada – urge que a doutrina se pronuncie.
4 PRECLUSÃO, EFICÁCIA PRECLUSIVA E QUESTÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE
Registre-se que Botelho de Mesquita3 afirmou, com ceticismo, que
“a parte que se julgue prejudicada por sentença fundada em norma que
considere inconstitucional poderá sempre demandar a rescisão da sentença, haja ou não precedente declaração de sua inconstitucionalidade”. E o
faz, porque, segundo também diz,
os que sustentam a possibilidade de se declarar, a qualquer
tempo, a nulidade da sentença dada contra a Constituição,
mesmo após o prazo da rescisória, não se deram conta, não
se sabe bem por quê, de que a nova sentença que assim
decidisse poderia ser imediatamente rescindida, não porque
3
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A coisa julgada, p. 111.
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estivesse errada do ponto de vista do direito constitucional,
mas pela simples e boa razão de ter sido dada contra a coisa
julgada, que é causa autônoma de rescindibilidade (CPC
art.485, IV).4
Entretanto, o argumento não exaure o problema. demonstraremos
que a matéria constitucional, dados os pressupostos recursais extraordinários e a inexistência de pedido declaratório em via incidente5 leva a prejudicial a ser tratada tão-somente de modo incidente, sem possibilidade de
produção de coisa julgada, com o mesmo efeito que teria uma preliminar.
Pedido imediato (outro) e causa de pedir imediata (outra), relativamente ao
mesmo bem jurídico e ao mesmo fundamento fático, poderiam encontrar
situação de admissibilidade no direito brasileiro: a de ação conexa por
prejudicialidade. E só haveria cogitar de uma hipótese em que poderia ocorrer a partir da declaração de inconstitucionalidade. Cuida-se da ação
declaratória6 de nulidade (da coisa julgada inconstitucional), lembrandose, com Tesheiner,7 que “na ação direta de inconstitucionalidade [única ao
tempo em que escreveu – o que, portanto, se estende às demais do controle concentrado] não há causa de pedir, porque não há alegação de fato de
que se extraia como conseqüência o pedido”. Acrescenta o citado
processualista gaúcho que “a causa de pedir, nas ações declaratórias, é o
fato de que decorre a existência do direito subjetivo [...] e se não há direito
subjetivo a ser afirmado ou negado, causa de pedir não há”.
É lícito, não obstante, considerar que, ainda que não haja fato, há o
ponto, o qual pode existir alhures como controvérsia autônoma. É verdade, “não são [...] objeto de declaração os ‘predicados’, como, por exemplo, a qualidade de pertença de um bem, ou a ‘capacidade’ para agir de uma
pessoa. Tampouco ‘meras questões de direito’”.8 Mas “qualquer ‘ponto’
que [...] possa existir como controvérsia autônoma [...] dá lugar a questão
4
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A coisa julgada, p. 115-116.
5
Já o adverte, Adailson Lima e Silva (Ação declaratória incidental de inconstitucionalidade.
Tese de doutorado. Inédita)
6
Declaratória: declara-se nulidade; decreta-se anulabilidade. Nesse sentido, TORNAGHI,
Hélio. Comentários ao código de processo civil, v. II, p. 230.
7
TESHEINER, José Maria Rosa. Os elementos da ação. Revista Ajuris, n. 62, p. 121.
8
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo civil, v. I, p. 94.
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MODELO CONSTITUCIONAL DO PROCESSO E REVISÃO DA COISA JULGADA
prejudicial. E somente são ‘questões prejudiciais’ e podem dar lugar a
‘causas prejudiciais’ as controvérsias relativas à vontade de lei em caso
concreto”.9
Encontraríamos, portanto, o pedido circunscrito à lide (mais
abrangente) e a causa de pedir circunscrita ao conjunto de questões (mais
amplo). A lide prejudicial, assente sobre a questão prejudicial de
inconstitucionalidade a posteriori, poderia excluir, na conexão por
prejudicialidade, a solução porventura alcançada na lide prejudicada.
Miguel Teixeira de Souza10 é de ser lembrado. Desenvolve profunda
argumentação para, afinal, demonstrar, ante o equivalente de nosso pressuposto do prequestionamento nos recursos (europeus) de revista ou de
cassação (diríamos, entre nós, do especial e do extraordinário), que “a
qualificação jurídica integra o caso julgado material – depois de lembrar
que nem o fato vale sem a qualificação jurídica, nem a qualificação jurídica
vale sem o fato, pelo que o âmbito objetivo do caso julgado material é a
extensão fático-jurídica da decisão judicial”.
Na tramitação processual, em formação da coisa julgada, deixe-se o
ressaibo savignyniano. Mas, na revisão da coisa julgada, teria ensejo a
lição do processualista lusitano. Enquanto o processualista português, para
dizer da abrangência da coisa julgada, fala em objeto de sentença (integrado da qualificação jurídica), Barbosa Moreira fala,11 para a mesma finalidade, em objeto da demanda e mesmo em objeto do pedido. Ora, se se
vê o direito ao justo processo, a ação como direito à sentença justa –
perspectiva atualíssima – alguma revivescência savigyniana ressuma. (Não
que queiramos a eternização da lide. Não que queiramos desprestigiar a
imutabilidade da coisa julgada.)
Mas onde não há fato, na atuação da eficácia vinculante da declaração de inconstitucionalidade alhures proferida pelo Supremo Tribunal Federal – em que porventura haja aflorado a questão constitucional que cumpriria discutir, mas que nosso sistema diuturnamente afasta, pela objeção
9
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo civil, v. I, p. 97-98.
10
TEIXEIRA DE SOUZA, Miguel. O objeto da sentença e o caso julgado material (estudo
sobre a funcionalidade processual). Revista Forense, p. 135, 190.
11
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara, p. 242, 249.
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de obliqüidade da tese recursal extraordinária –, não haveria que se recear
a qualificação jurídica do ponto de fato homogêneo suscitado, embora,
por outrem.
Já, sobre a matéria constitucional, Miguel Teixeira de Souza 12 aduz:
“Naturalmente distinta de uma consunção prejudicial entre objetos da sentença é a apreciação prejudicial da validade da norma jurídica, particularmente o controle de sua constitucionalidade”.
Ora, em tema de controle de constitucionalidade da coisa julgada, já
não cabem os conceitos chiovendianos de pedido e de causa de pedir,
aplicados à conexão de “objetos de sentença” (para usarmos a expressão
do jurista lusitano), em sua dissertação que enfrentava, de maneira pioneira, a relativização do objeto do processo. Serve à discussão a conexão de
lides, por identidade de questões carneluttianas, como demonstraremos.
A revisão se dá por tese jurídica, por direito em tese. Daí, o binômio
constitucional causa de pedir-pedido, em amálgama: coisa julgada violadora
da Constituição e pedido de (nulidade por) inconstitucionalidade.
5 PREJUDICIAL DE INCONSTITUCIONALIDADE E
DIREITO BRASILEIRO
Se, porventura, também ocorrer a conexão pelo pedido ou pela causa
de pedir, no âmbito da constitucionalidade da solução adotada com coisa
julgada, apenas se confirmará a relevância da questão constitucional, hábil
a gerar a prejudicialidade. Prejudicialidade, pertinente a “objetos de sentença”, ou, em termos carneluttianos do nosso art. 468 do CPC, a outra
lide. Se as questões são comuns à composição de mais de uma lide, são
prejudiciais.13
Durante muito tempo conviveram sem diálogo, no processo civil
brasileiro, as vias concentrada e difusa do controle de constitucionalidade.
Já estabelecida a eficácia erga omnes da declaração concentrada de
inconstitucionalidade e, a seguir, da de constitucionalidade, ao se inserir
12
TEIXEIRA DE SOUZA, Miguel. O objeto da sentença e o caso julgado material (estudo
sobre a funcionalidade processual). Revista Forense,, nota 168, p. 135.
13
CARNELUTTI, Francesco. Sistema del diritto processuale civile, v. I, p. 930; Lezioni de
Diritto processuale civile, v. IV, p. 63.
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no sistema a formação jurisprudencial do direito, sob vinculatividade horizontal (sentenças repetitivas, art. 285-A, CPC) e vertical (súmula
impeditiva de recursos, § 1º do art. 518 do CPC), não se pode ficar
indiferente14 à prática do trancamento dos recursos. Ainda que exauriente
da discussão pela preclusão de questões, reforçada pela eficácia
preclusiva da coisa julgada, o trancamento não esgota a força eficacial da
jurisprudência vinculante, que continuaria a postular uniformidade a
posteriori, em se revelando discrepante da coisa julgada inter partes.
Mesmo a norma concreta, a lex specialis, não poderia deixar de ser
sententia generalis.
Não se pode mais falar, a rigor, ante o sistema de súmulas vinculantes,
de súmulas impeditivas de recurso e ante a formação jurisprudencial do
julgado pelo precedente, “da falta, na sentença moderna, da força criadora
do direito, própria do ‘iudicatum’ do processo romano clássico”.15 Nem se
pode mais aduzir que a autoridade da coisa julgada impeça o julgamento
da questão prejudicial, alhures deduzida principaliter, ainda que se reconheça que “a autoridade da coisa julgada não impede somente a reprodução da ação, mas ainda qualquer juízo diferente sobre a mesma relação,
embora simplesmente deduzida em processo novo por via meramente prejudicial”16: Liebman não escreveu sob o direito brasileiro, menos ainda sob
o direito brasileiro vigente.
De todo modo, a norma concreta se posiciona ao lado da fatispécie
legal, compondo a pretensão tutelável, em termos de um critério de possibilidade jurídico-jurisprudencial. Já ao ingressar em juízo (crescentemente
tal exigência ocorrerá, na prática dos precedentes), a parte terá de verificar
a jurisprudência constitucional e infraconstitucional da matéria, para assegurar-se do exame em grau de recurso, inclusive o especial, bem assim do
exame da tese recursal extraordinária. Passa a ter sentido a tese
carneluttiana, rejeitada em uníssono, de produzir a coisa julgada material como suposto da coisa julgada formal, sendo aquela a imperatividade
14
Ao que haveria de ceder passo a razão de José Ignácio Botelho de Mesquita. (Cf. A coisa
julgada, cit.)
15
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficacia e autorittà della sentença, nota 13, p. 47.
16
CARNELUTTI, Francesco. Lezioni de diritto processuale civile, notas 381, 393, p. 418, 481.
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(do comando complementar, sentencial) e esta a imutabilidade, advinda da
preclusão dos recursos.17
Retorna-se a Windscheid18, quando entreviu
que não se pode dizer que a ‘actio’ romana seja a nossa pretensão; no conceito de ‘actio’ está compreendido um elemento que não figura em nosso conceito da pretensão, o elemento
do tribunal, da sua audiência e da tutela judiciária, da possibilidade de se obter do juiz o acolhimento da própria instância.19
Retorna-se a Muther, já que “o pretor, no conceder a ‘actio’, não
cria pretensões, mas dá ‘actiones’ para proteger as pretensões que antecipadamente declarou reconhecer come legítimas [...] mediante a tuitio
pretoris”.20
Tal é a pretensão tutelável, em que a fixação do objeto do processo
também inclui a prévia absorção da formula. A pretensão perseguível em
juízo, segundo a qual o autor, livre, embora, de não traduzir, em sua inicial,
o tratamento jurisprudencial da espécie, não pode deixar de tê-lo em consideração ao deduzir o pedido: do que hoje se diria, ante a formação
jurisprudencial da sentença, que há de considerá-lo até mesmo na fixação
dos limites do pedido. “A independência do pretor do ‘ius civile’, [...] posta à base da construção da ‘actio’ como posição substancial concedida
pelo magistrado”21 – lembrado o processo formulário de duas fases – tem
agora a primeira fase, na postulação do advogado. Indispensável à administração da justiça (art. 133 da Constituição da República), o advogado
põe limites à aplicação do precedente, demonstra seu ajustamento ou seu
desajuste à espécie, valendo-se dos recursos, se necessário, e, à final, da
17
WINDSCHEID, Bernard. Diritto delle pandette, v. 1, p. 183-184, 186: “[…] o uso da
linguagem alemã, como a analogia do romano, permitem usar tal expressão [pretensão], não só
para indicar o pretender como fato, mas também como pertinência jurídica, portanto como
direito de pretender, de requerer qualquer coisa de outrem”.
18
PUGLIESE, Giovanni; HEINITZ, Ernst. Introduzione à polemica intorno all’actio, p. XVII.
19
MUTTER, Theodor. Sulla dottrina del’actio.... In:______. Polemica intorno all’actio, p.
214-215.
20
FAZZALARI, Elio. Note in tema di diritto e processo, p. 16.
21
MORAES, Antão de. Problemas e negócios jurídicos, p. 403.
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Reclamação ao STJ ou ao STF, ante a indevida aplicação ou desaplicação.
E por esse mecanismo reconstrói o direito positivo, via sobredireito
jurisprudencial constitucional. Assim, perfaz-se a res in iudicium deducta,
em inteiro resguardo do princípio do dispositivo e com inteiro respeito à
garantia constitucional da coisa julgada: a advocacia é outra garantia constitucional.
Do ponto de vista da completude do objeto do processo, não se
dá que a coisa julgada possa recobrir lide diversa, valendo, aqui, a velha
noção de processo parcial. Lide diversa, a da prejudicial de inconstitucionalidade, por não abrangidos seus elementos objetivos nos limites
objetivos da coisa julgada anterior, o ter sido decidida incidenter tantum,
não principaliter – portanto, com a só cognitio e sem o iudicium –
nenhuma violação faz à regra do art. 471, CPC, e nenhum óbice faz à
revisão, seja em controle difuso, seja em controle concentrado. Porque
nenhum juiz ou tribunal poderia suprimir a competência do Supremo Tribunal Federal na produção, com eficácia vinculante, do controle de
constitucionalidade.
6 OS ARTS 475-L, INCISO II E § 1º; 741, PARÁGRAFO
ÚNICO; 543-A, § 2º; E 543-B, § 1º, DO CPC
Ter-se-ia, pois, ensejo de excluir a preclusão da matéria constitucional decidida incidenter tantum [sem coisa julgada e sem vinculatividade]
não admitida o extraordinário, ainda que pelo Supremo Tribunal, porque
juízo de admissibilidade não se confunde com juízo de mérito. Se é verdade que “desapareceu do nosso processo a possibilidade de se anular o
mérito do julgado na instância da execução, como conseqüência de se não
haver mantido a figura dos embargos remetidos”,22 o advento da regra do
art. 475-L, inciso II e § 1º, e do art. 741, parágrafo único, do CPC reabre
a questão em novos termos. Não poderia haver coisa julgada da matéria
constitucional decidida tão só incidentemente: hipótese em que a coisa julgada
material (ou a aptidão do contraditório a produzi-la) se faz pressuposto
reverso da coisa julgada formal.
22
RODRIGUES VIEIRA, José Marcos. Lide prejudicial constitucional não decidida e coisa
julgada. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, p. 176-177.
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Ora, não queremos incorrer em velha crítica. É óbvio que haveríamos de pensar a revisão da coisa julgada em limites que não os – intangíveis – da coisa julgada. E, por paradoxal que pareça, estamos tranqüilos,
como já escrevemos,23 que o espaço de revisão da coisa julgada é o da
conexão por prejudicialidade constitucional a posteriori.
Certo, há a tentativa de desconsideração, por inexistência, da coisa
julgada, ao argumento de que, não podendo ter sido produzida a coisa
julgada formal, possa a nova demanda ser proposta indiferentemente,24 aí
abrangida a tese de inexistência jurídica de sentença de mérito proferida
quando o autor não preencha as condições da ação.
Duvidamos, porém, de que a revisão da coisa julgada possa vencer
a barreira da preclusão das questões (em contraditório hábil) decididas.
Vale lembrar que a tese de violação à garantia constitucional do devido
processo legal é fundamento quase sempre rejeitado em inadmissão de
recursos extraordinários, por obliqüidade, por entendido como desdobramento de violação de regra de direito processual infraconstitucional. Sendo
sempre de indagar-se por que não argüida a inconstitucionalidade da sentença desde antes de se converter em coisa julgada,25 haver-se-á de forrála da preclusão de questões e da eficácia preclusiva da coisa julgada do art.
474 do CPC.
Aqui, porém, um parêntese. O direito brasileiro não contém, como
visto, a ação declaratória incidental de inconstitucionalidade. A menos que
o Supremo Tribunal aprecie o mérito do recurso extraordinário, em matéria
de inconstitucionalidade não haverá coisa julgada que resista a ulterior declaração específica do Supremo Tribunal, quer nas ações diretas, quer no
contraditório difuso. Ademais, como conseqüência inarredável de não abrigarmos, em nosso sistema, a prejudicial de inconstitucionalidade, suspensiva,
da técnica italiana, nem de ter o nosso recurso extraordinário, apesar de
versar matéria constitucional, efeito suspensivo, teremos de construir a
teoria dos atos processuais inconstitucionais, com destaque o próprio
23
WAMBIER, Tereza Arruda Alvim et al. O dogma da coisa julgada, p. 31.
24
Aqui é adotada a visão da Lei de Introdução ao Código Civil, na qual a coisa julgada é chamada
a decisão judicial de que já não caiba recurso.
25
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara, p. 204.
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julgado O fato jurisprudencial constitucional superveniente retiraria eficácia de fatos processuais do processo findo e essa retirada de eficácia de
fatos jurídicos outra coisa não é que a lide, outra lide, pois.
Cabe recordar que, na análise da repercussão da prejudicialidade
sobre a coisa julgada, Barbosa Moreira,26 em tentativa de exegese do
art. 289 do CPC de 1939 (diria, hoje, o mesmo, do art. 471, CPC),
formulava critério: “a) que a questão, ao ressurgir, já tenha sido ‘decidida’; b) que haja de ser objeto de nova ‘decisão’; c) que diga respeito,
agora, à ‘mesma lide’ antes julgada.[....]. Mas basta, por ora, admitir que
nem todos os pronunciamentos judiciais são ‘decisões’, em sentido técnico, para tirar a ilação necessária [...]”. E embora, no trecho transcrito
retire ilação quanto à questão que de principal passe a prejudicial noutro
processo, no qual a lide, por isso, seria outra, volta ao tema, esboçando
a ilação inversa, isto é, quanto à questão que de prejudicial passe a principal noutro processo:
A parte pode estar despreparada para enfrentar uma discussão
exaustiva da questão subordinante, [...] e, no entanto, achar-se na contingência, por este ou aquele motivo , de ajuizar desde logo a controvérsia subordinada [...]; seria pouco razoável que, ao fazê-lo, ficasse
obrigatoriamente sujeita a ver estender-se aos antecedentes lógicos da
pretensão formulada a autoridade da decisão que sobre esta última se
venha a emitir.
Note-se que, ainda para o mestre carioca, questão e relação jurídica
terminam por identificar-se, no âmbito da prejudicialidade, bastante a possibilidade de conversão da questão em causa prejudicial, isto é, onde haveria de ser decidida como questão principal27.
A questão prejudicial, porém, decidida incidenter tantum apenas
sofre a preclusão – o que, no dizer de Ada Pellegrini Grinover28 é a “eficácia que se resolve na [extinção] da faculdade de suscitar novamente a questão, no mesmo processo”. E também sofre a eficácia preclusiva da coisa
26
27
28
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara, p. 181, 188, 190.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Ação declaratória incidental, p. 29.
GUIMARÃES, Luiz Machado. Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo. In: ______.
Estudos de direito processual civil, p. 21.
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julgada: mas podendo ser suscitada em processo outro “cujo objeto seja
diverso do objeto do processo precedente”.29
Parece-nos, porém, que a declaração de inconstitucionalidade
superveniente perfaz objeto diverso. É o que se esforçou por demonstrar
Barbosa Moreira,30 ao dizer que o “ordenamento jurídico [...], por evitar a
contradição ‘prática’ dos julgados, [em face de] pronunciamento [que] adote
premissas lógicas incompatíveis com as [de] outro, [....], pode mesmo
criar, e costuma fazê-lo, expedientes vários para impedi-la ou remediá-la.
Mas entre eles não se incluirá necessariamente o da extensão da ‘auctoritas
rei iudicatae’ [...] à solução das questões prejudiciais” – no que se vale da
explicação de Betti31: “Além de com óbvios motivos de oportunidade, com
o fato de que a argumentação adotada pelo juiz para alcançar a decisão
não participa do valor normativo desta”.
E aqui retomamos a linha desenvolvida por Miguel Teixeira de Sou32
za, para asseverar que o controle de constitucionalidade, postulando a
validade da norma jurídica, se dá sem relação jurídica (e só com questão)
prejudicial – por não demandar “dependência de um fato-tipo perante um
fato concreto”.
7 RESCISÃO E REVISÃO
Não temos (ou ainda não surgiu entre nós) a declaratória incidente
de inconstitucionalidade. Mas também não dispomos do “simples expediente
de vedá-la (art. 34 do CPC italiano) onde não constituiria solução
satisfatória”. Ao contrário da prática prévia da delibazione, na Península,
respeita-se – diria, ainda, o mestre de Copacabana33 – o princípio relativo
à cognição ‘incidenter tantum’, evitando-se o mal maior que seria atribuir à
29
30
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara, p. 232.
BETTI, Emilio. Diritto processuale civile italiano, p. 601.
31
TEIXEIRA DE SOUZA, Miguel. O objeto da sentença e o caso julgado material (estudo
sobre a funcionalidade processual). Revista Forense, p. 135.
32
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara, p. 228.
33
Embora sem se referir aos mesmos fundamentos, assim também Adailson Lima e Silva (Ação
declaratória incidental de inconstitucionalidade. Tese de doutorado. Inédita).
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mera ‘cognitio’ efeitos peculiares e exclusivos do verdadeiro ‘iudiciu’”. Ora,
não se pode, a menos que se faça, por assim dizer, exercício de hipocrisia,
tratar a prejudicial como preliminar34 – o que lamentavelmente vem sendo
feito via inadmissão de recursos extraordinários.
A revisão da coisa julgada, pela superveniente declaração de
inconstitucionalidade”, é, portanto, a contraface da pulverização das teses
recursais extraordinárias em aplicação, a mancheias, de pressupostos de
(in)admissibilidade.
O advogado é indispensável à administração da justiça (art. 133
Constituição da República). A ele cabe romper a violação da garantia do
acesso (da questão constitucional) à jurisdição de mérito vinculativa. Não
pode o Supremo Tribunal, em última análise, encastelar-se em óbices processuais de modo a retirar a eficácia de fatos jurídico-constitucionais, eximindo-se de apreciar, em ultima ratio, a questão constitucional. Daí que
ressurja, ante fato jurisprudencial-constitucional superveniente, a questão
constitucional prejudicial.
À objeção de José Ignácio Botelho de Mesquita,35 de que seria absolutamente indiferente a superveniente declaração de inconstitucionalidade, nada impedindo se a demandasse, em ação rescisória, teria respondido, como visto e transcrito, Barbosa Moreira36 – que a parte estaria
despreparada para a discussão exaustiva da questão subordinante, v. g., por não lhe ter sido possível, ainda, coligir todas
as provas [e aqui entraria a hipótese da investigatória sob o
DNA] que, potencialmente, a favoreceriam, e no entanto,
achar-se na contingência [alimentícia, diríamos] de ajuizar
desde logo a controvérsia subordinada.
Embora não o dissesse o professor da Guanabara, atinamos com o
que poderia aduzir, em justificativa da proposição transcrita. É que: 1) ação
rescisória não cabe em tema de patente divergência jurisprudencial (o que
já se assinala nos casos freqüentemente apontados da chamada
34
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A coisa julgada, cit.
35
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara, p. 227.
36
FALZEA, Angelo. Efficacia giuridica. In: ENCICLOPEDIA DEL DIRITTO, v. XIV, p. 481.
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‘relativização’) – o que esvaziaria o sentido do permissivo da violação literal de lei; 2) ação rescisória não depende da exaustão dos recursos, pelo
que o tema que poderia ter sido levantado não preclui para efeito de sua
fundamentação, que deve, sempre e sempre, ser nova, não compreendida
na discussão anterior, em nenhuma de suas etapas, pena de se utilizar a
ação rescisória como recurso.
A decadência poderia decorrer da não-propositura da rescisória;
mas de se falar em propositura da rescisória já se teria optado por outra via
que a do recurso extraordinário, sabido que o exame de mérito, pela última
instância a enfrentá-lo, determinaria o início de contagem do prazo
decadencial.
Resta considerar a superveniência de fato, não jurisprudencial, demonstrativo de fraude (perpetrada pelo vencedor da demanda): fraude não
é tese de ação rescisória. As causas de rescindibilidade (dentre elas o dolo
da parte vencedora em detrimento da parte vencida) remontam – note-se –
a resultantes de atos ou documentos da causa. De genuína revisão (não de
rescisão), porém, são os casos – que têm emergido na jurisprudência – de
admissão do exame de DNA em processo de sentença de mérito trânsita
de investigatória; de litisconsorte necessário não citado, em processo já
findo; de sustação de pagamento de indenização expropriatória, por já paga
em processo outro, findo.
O âmbito, pois, da ação rescisória não recobre o da eventual ação de
nulidade da coisa julgada inconstitucional, a qual deriva de fato novo, homogêneo ao que não tenha gerado, como tese de violação constitucional, a
admissibilidade do extraordinário. Ou de efeito novo, externo ao processo
findo, em face de garantia constitucional outra (liberdade, propriedade, personalidade, indisponibilidade) prestigiada implícita ou explicitamente, mas
indidenter tantum, na coisa julgada. Necessário o agravo para não haver
preclusão. Tenha timbrado, pois, o Supremo Tribunal em não conhecer do
extraordinário, em que pese à falta de violação à Constituição a argumento
processual, revelar-se-ia, de futuro, o error in iudicando – e curiosamente
irrescindível – se o Supremo Tribunal, alhures, viesse a admitir a tese jurídica
que fez afastada de exame, ferindo-lhe o mérito em acolhendo a argüição
idêntica! Necessária a ação, para provocação do exame do efeito jurídico
inconstitucional superveniente. Daí, falar o art.475-L, inciso II e § 1º, bem
como o art. 741, parágrafo único do, CPC – em inexigibilidade do título.
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Quer-se, portanto, identificar o âmbito da revisão transrescisória,
que é de ser diverso, ainda que atinente ao objeto do processo. Há que se
escrever mais, portanto, sobre o objeto do processo o qual Retorna aos
termos em que desenvolvida, como visto, a idéia do Anspruch, que não se
esgota nem no momento processual, nem no momento substancial da ação.
E, no entanto, continua a força do direito a reclamar tutela jurídica.
8 LIMITES OBJETIVOS DA REVISIBILIDADE
É preciso que a doutrina acorde (é mesmo o caso de um alerta) para
a troca de sentidos entre dogmática e hermenêutica. A dogmática incluiu
em seus ditames a formação jurisprudencial do direito, quer para a
vinculatividade, quer para a inadmissibilidade de recursos – aí delineado,
em outros termos, o aspecto negativo da coisa julgada. A verdadeira exegese
do art. 471, CPC, vem, agora, de termos extraprocessuais, de prejudicial
externa – admita-se, afinal.
Tempo é, pois, de que se esforce a doutrina por perceber que não é
mais somente pré-processual (contemporâneo da violação do direito, a
teor do art. 189 do Código Civil) a fixação do objeto perseguível em juízo.
Os institutos do precedente sentencial, da súmula impeditiva de recurso e
da súmula vinculante tendem a aperfeiçoar um sistema processual híbrido,
ao abrigo da Constituição. Ora, seria paradoxal que a discussão constitucional, inadmitido o recurso extraordinário, fosse alhures admitida: a
vinculatividade haveria de desenvolver um percurso retrooperante, demonstrado que o recurso extraordinário devesse ter sido admitido. E a uniformidade jurisprudencial é uma resultante indisputável do hibridismo – com o
que se teria a negação da coisa julgada material, mediante o binômio igualdade-jurisdição, aí envolvidas duas garantias fundidas, sendo a igual oportunidade de acesso à jurisdição constitucional, por assim dizer, condição
da garantia da coisa julgada.
Sobre o problema da eficácia jurídica (pois que falamos de casos de
inexigibilidade da coisa julgada, ante a superveniente declaração de
inconstitucionalidade), uma das expressões doutrinárias mais agudas, a de
Falzea, desvenda as hipóteses de fatispécie parcial relevante:
A incerteza originária acerca dos elementos subjetivos ou
objetivos da situação jurídica; a incerteza originária acerca
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da superveniência de um interesse externo prevalente e incompatível com o interesse que é interno à fatispécie parcial.
E prossegue: no primeiro caso a fatispécie tem necessidade
de ser integrada mediante fatos que valem para constituir, especificar ou individuar o sujeito ou o objeto da situação jurídica; no outro, a integração advém com fatos que têm a função
de denunciar a inexistência do interesse externo prioritário.37
O exame da distinção entre eficácia e relevância – tema que põe em
contato a validade e a eficácia, de modo hábil a demonstrar que a relevância
se interpõe entre uma e outra, pelo que poderíamos aproveitá-lo para a exclusão da sanatória geral de nulidades produzida pela coisa julgada – remetenos, como veremos, à reanálise da pretensão windscheidiana. Diz Falzea:
As duas exigências metodológicas – uma das quais visa ao
valor complessivo representado pela unidade do sistema,
enquanto a outra é dirigida aos valores parciais contidos nas
normas específicas – [produzem] o processo de integração
da norma no sistema.38
Referimo-nos ao vocábulo “coisa”, à res deducta, da expressão “coisa julgada” – para dizer que deve apresentar aptidão ao exame de mérito –
quando a enfocamos, vertida pela jurisdição do precedente em res
iudicabilis, na composição da eficácia retroopertante da revisão.
Nenhum contato com a ação rescisória, que cuida de errores in procedendo e de errores in iudicando – nos limites do pedido e da causa de
pedir, examinado o processo, como visto, a caminho da coisa julgada. A
revisão transrescisória examina o processo ante a coisa julgada, encarando
a lide, o conflito de pretensões, com a solução das questões transposta a
razões de decidir e tais razões – não obstante a coisa julgada – passíveis de
contrariedade à eficácia vinculante do precedente da Suprema Corte ou
por efeito contrário à garantia mesma da jurisdição.
37
FALZEA, Angelo. Efficacia giuridica. In: ENCICLOPEDIA DEL DIRITTO, v. XIV, p. 463.
38
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada ‘relativização’ da
coisa julgada material. In: ______. Relativização da coisa julgada, 2006; Revista Dialética de
Direito Processual, v. 22, p. 220.
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Pela primeira vez, a coisa julgada material (ou, pelo menos, a possibilidade de sua produção) se verte em pressuposto da coisa julgada formal.
Ousaríamos dizer, nessa conversão da hermenêutica em dogmática,
que se faz a técnica juspositivada do precedente e sua eficácia
crescentemente vinculativa (desde a sentença repetitiva até a súmula
vinculante), que a análise – completa – do objeto do processo retoma a
origem pandectista: o Anspruch, recorde-se, outra coisa não é que a pretensão tutelável. E esta supõe o modelo constitucional, legal-conceitual, de
um lado, e jurisprudencial, de outro.
A lide não é mais, portanto, o conflito intersubjetivo de interesses. É
algo (também da lide increpada de sociológica) que se submete a um critério de possibilidade jurídico-jurisprudencial. Aí temos o equivalente brasileiro da delibazione empreendida para a admissão da pregiudiziale
d’inconstituzionalità. Estamos em que volta a ter sentido a velha pretensão – posta entre o direito e a ação – como depuração de admissibilidade
da tutela jurisdicional de mérito prestada. Equivalente da prejudicial italiana, temos a remessa, após seleção, de um extraordinário, ficando os demais sobrestados. Para estes, o remetido é prejudicial de inconstitucionalidade. O Direito brasileiro parece revelar o tanto que ocultou.
Outra não é a razão (dado o momento de sua inserção juspositiva)
das regras de inexigibilidade da coisa julgada por força da jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal (estampada nos arts. 475-L, II e § 1º, e 741,
parágrafo único, ambos do CPC). A chamada coisa julgada inconstitucional
surgiu não como contradictio in terminis (sentido no qual a repudiaríamos), mas como resultante do modelo (legal-jurisprudencial) do processo,
modelo em que o devido processo legal não pode deixar de ser, paralelamente, o devido processo jurisprudencial.
Concedemos que a ação declaratória de nulidade por inconstitucionalidade do julgado de mérito trânsito possa ser proposta – também para
provocar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Nela, o recurso
extraordinário, com a demonstração da repercussão geral, terá a valia necessária. O instituto da repercussão geral é outro componente do modelo
legal-jurisprudencial do processo, outro reclamo de uniformização. Mesmo porque atende à mesma área em que se assentaria uma ação declaratória
incidental de inconstitucionalidade, para provocar o exame prévio da prejudicial de inconstitucionalidade.
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JOSÉ MARCOS RODRIGUES VIEIRA
A tanto se reduz a lide prejudicial constitucional não decidida. Na
prática do modelo legal-jurisprudencial a tendência é de reduzir a possibilidade de revisão transrescisória da coisa julgada. A constitucionalidade
(ao dizer da repercussão geral) é de exame exclusivo do Supremo Tribunal Federal, nos termos do § 2º do art. 543-A do CPC. Sabido que a
seleção de espécimes recursais ocorrerá, na instância recorrida, mediante aplicação do § 1º do art. 543-B do, CPC, teremos uma prejudicial
externa, ao modelo – de questão e não de causa – de uma pregiudiziale
d’inconstituzionalità, cuja delibazione se dá na instância ordinária. Os
feitos sobrestados – e o serão todos os não selecionados – irão se somando na evolução do direito positivo brasileiro.
Logramos, pois, na revisão transrescisória da coisa julgada o mecanismo de correção dos eventuais descompassos entre o direito legislado e
o direito jurisprudencial.Tal é, no hodierno direito brasileiro, a eficácia
vinculante da interpretação constitucional, quer no controle concreto, quer
no controle abstrato, já admitida no direito brasileiro – a do contraditório
concentrado, salvo modulação de efeitos. E, pela formação de precedente,
a do contraditório difuso.
O direito processual positivo tinha de estabelecer a inexigibilidade,
por inconstitucionalidade supervenientemente declarada, da sentença de
mérito trânsita. O mérito, lide nos limites do pedido, é também a lide nos
limites (vinculativos) da interpretação constitucional do pedido.
O futuro apresentará, no exercício constitucional da revisão da coisa
julgada, uma escala crescente de manifestações de eficácia retrooperante
do controle concentrado e uma escala decrescente de projeções
retrooperantes da eficácia do controle difuso.
Barbosa Moreira,39 apesar de verberar a revisão (após o prazo
decadencial da ação rescisória), chega a admitir, de lege ferenda, a eliminação do prazo, ante determinadas violações à Constituição, “em atenção à particular gravidade do vício [....], a título excepcional” – com o
ajuizamento da rescisória a qualquer tempo. Certamente o grande mestre
não se esquece do que, há tempos, escrevera:
39
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara, p. 232.
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Em perspectiva diferente caberia dizer que a ‘regra jurídica concreta’ disciplinadora de certa relação não pode ter ora tal teor,
ora teor contrário. A uniformidade, por esse ângulo, é essencial
à certeza do direito, à segurança da vida social; e garanti-la é
justamente função precípua do instituto da coisa julgada.40
Eis o esquema da prejudicial subordinante (ou determinativa) a
posteriori – lide diversa, conexa por identidade de questão, da terminologia carneluttiana.
A tanto nos obriga concluir o art. 128 do CPC, que fala em lide
proposta como definidora dos limites do decisum e da cognoscibilidade
das questões, objeto do processo é, pois, uma realidade que transita de
significado entre o pedido e a lide; o pedido, encarado a caminho da coisa
julgada, expressão formal desta; a lide, encarada ante a coisa julgada, expressão substancial daquela.
9 REFERÊNCIAS
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada
‘relativização’ da coisa julgada material. In: ______. Relativização da coisa
julgada. 2. ed. Salvador: Podium, 2006.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada
‘relativização’ da coisa julgada material. Revista Dialética de Direito Processual, v. 22, p. 220.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada.
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara,
p. 242, 249, 1967.
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1892, t. III.
BETTI, Emilio. Diritto processuale civile italiano. 2. ed. Roma, 1936.
CARNELUTTI, Francesco. Lezioni de diritto processuale civile. Padova:
Cedam, 1986. v. IV.
40
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões prejudiciais e coisa julgada. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Estado da Guanabara, p. 232.
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JOSÉ MARCOS RODRIGUES VIEIRA
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UMA FALHA DO SISTEMA PROCESSUAL:
QUAL O RECURSO CABÍVEL CONTRA
A SENTENÇA QUE, AO MESMO TEMPO,
NEGA LIMINAR E EXTINGUE O PROCESSO?*
Leonardo de Faria Beraldo**
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. O problema. 2. A polêmica sobre o princípio constitucional do duplo grau de jurisdição. 3. Alguns apontamentos sobre o princípio constitucional da segurança jurídica. 4. A solução do problema com base na
letra fria da lei. 5. O manejo da medida cautelar. 6. A
utilização do agravo de instrumento e da apelação
simultaneamente. 7. O emprego de um outro mandado
de segurança. 8. Solução para o impasse. 9. Conclusão.
10. Referências
1 O PROBLEMA
Recentemente deparei com um problema na minha advocacia e,
ao estudar o tema, vi que realmente a solução é bastante complexa.
Impetrei mandado de segurança com pedido de liminar, todavia, o
juiz de primeiro grau, na mesma decisão, não concedeu a liminar
requerida e, ainda, extinguiu o mandado de segurança, sem resolução
*
Trabalho escrito em homenagem à Professora Doutora Teresa Arruda Alvim Wambier, intitulado:
Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais, p. 743-758. O tema desenvolvido neste
estudo poderá ser aplicado nos seguintes casos: i) liminar negada ou concedida, apenas na
sentença, em mandado de segurança, ou, ii) tutela antecipada ou outra liminar negada ou
concedida apenas quando da prolação da sentença.
**
Advogado em Belo Horizonte. Mestre em Direito pela PUC Minas. Especialista em Processo Civil. Professor em cursos de graduação e pós-graduação de Direito Civil e Processual
Civil. Coordenador da Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Societário do Praetorium.
Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Membro da Lista de Árbitros e do
Conselho Deliberativo da Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil (CAMARB). Diretor 2°Secretário do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
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do mérito, tendo em vista que no seu entendimento não havia direito
líquido e certo.1
Com efeito, o problema era descobrir uma solução para que meu
cliente pudesse obter a liminar que urgentemente necessitava o mais
rápido possível. E é sobre isso que pretendo discorrer a seguir, analisando, por óbvio, todas as alternativas possíveis, verificando as suas aparentes vantagens bem como os seus inconvenientes.
Portanto, analisarei inicialmente os princípios constitucionais do duplo grau de jurisdição e da segurança jurídica para, em seguida, verificar
qual seria o instrumento jurídico adequado para solucionar o problema acima colocado, quais sejam: apelação, agravo de instrumento, mandado de
segurança e medida cautelar. Qual deles é o correto?
2 A POLÊMICA SOBRE O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Há na doutrina e na jurisprudência discussão se o princípio do duplo
grau de jurisdição está ou não protegido pela Constituição de 1988. A meu
ver, não há como negar a existência de tal princípio no âmago da nossa Constituição. Trata-se, destarte, de corolário lógico dos princípios da ampla defesa, do contraditório, da inafastabilidade e, claro, do due process of law.
Com efeito, “é decorrente do sistema constitucional de organização
do Poder Judiciário a possibilidade de pedido de reexame das decisões
pela parte inconformada. Pelo menos uma vez há oportunidade de outro
órgão jurisdicional proceder à revisão da causa por meio de recurso”.2
Num sistema processual como o nosso, o qual é repleto de recursos e
tribunais, parece-me lógico que não só possa como deva haver a necessidade de melhor controle das decisões judiciais. E isso se faz com a
reapreciação das sentenças e decisões interlocutórias de primeiro grau,
por meio dos tribunais estaduais, federais e turmas recursais. Assim,
1
Diga-se de passagem que o magistrado equivocou-se profundamente, pois o direito liquido e
certo (prova pré-constituída) existia, sim. Ocorre que ele confundiu esse conceito com a
denegação de segurança, que ocorre quando existe o direito líquido e certo, porém o juiz
entende que não é o caso de se conceder a segurança, seja porque a pessoa não se enquadra na
moldura da lei, seja por qualquer outra razão.
2
GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro, v. 2, p. 86-87.
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o princípio do duplo grau de jurisdição funda-se na possibilidade de a decisão de primeiro grau ser injusta ou errada, daí
decorrendo a necessidade de permitir sua reforma em grau
de recurso. Apesar disso, ainda existe um corrente doutrinária – hoje reduzidíssima – que se manifesta contrariamente
ao princípio. [...]. Mas o principal fundamento para a manutenção do princípio do duplo grau é de natureza política:
nenhum ato estatal pode ficar imune aos necessários controles. [...]. O duplo grau de jurisdição é, assim, acolhido
pela generalidade dos sistemas processuais contemporâneos, inclusive pelo brasileiro. O princípio não é garantido constitucionalmente de modo expresso.3
Mas, com toda certeza, está garantido pela CR/88. Dessa forma,
segundo J. J. Calmon de Passos,
devido processo constitucional jurisdicional, cumpre esclarecer, para evitar sofismas e distorções maliciosas, não é
sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do
rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra
o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir.
Exige-se [...] o controle dessa decisão (possibilitando-se,
sempre, a correção da ilegalidade praticada pelo decisor e
sua responsabilização pelos erros inescusáveis que cometer). Dispensar ou restringir qualquer dessas garantias não
é simplificar, deformalizar, agilizar o procedimento privilegiando a efetividade da tutela, sim favorecer o arbítrio em
benefício do desafogo de juízos e tribunais. Favorece-se o
poder, não os cidadãos, dilata-se o espaço dos governantes
e restringe-se o dos governados. E isso se me afigura a
mais escancarada anti-democracia que se pode imaginar.4
Não podemos deixar as garantias processuais constitucionais
de lado em nome de uma efetividade indiscriminada do processo.
3
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido
Rangel. Teoria geral do processo, p. 74-75.
4
CALMON DE PASSOS, J. J. Direito, poder, justiça e processo, p. 69-70.
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Assim, com base nas opiniões dos juristas que acabo de transcrever, pode-se observar que a doutrina majoritária é firme ao afirmar
que o princípio do duplo grau de jurisdição está, sim, garantido pela
CR/88.5 Quando se fala em princípios constitucionais como, v.g., da
ampla defesa, do contraditório e da inafastabilidade, parece-me lógico
que o princípio do duplo grau de jurisdição deverá ser extraído da idéia
do que aqueles princípios representam dentro do nosso ordenamento
jurídico. Em outras palavras, o duplo grau de jurisdição é corolário
lógico do devido processo legal e, conseqüentemente, está implicitamente garantido e protegido pela CR/88.
Entretanto, segundo Nelson Nery Jr.,
as constituições que se lhe seguiram limitaram-se a apenas
mencionar a existência de tribunais, conferindo-lhes competência recursal. Implicitamente, portanto, havia previsão para
a existência de recurso. Mas, frise-se, não garantia absoluta
ao duplo grau de jurisdição. A diferença é sutil, reconheçamos, mas de grande importância prática. Com isso queremos dizer que, não havendo garantia constitucional ao duplo
grau, mas mera previsão, o legislador infraconstitucional pode
limitar o direito de recurso.6
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart perfilham deste
mesmo entendimento. Para eles, “a exigência de dois juízos para a definição do litígio acaba por atentar contra o direito à tempestividade da
tutela jurisdicional”.7
Na jurisprudência, infelizmente, o entendimento que vem
prevalecendo é o de que “não há, no ordenamento jurídico5
Nesse sentido: DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil, p. 392;
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, p. 192; LIMA, Alcides de Mendonça.
Introdução aos recursos cíveis, p. 140; MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito
processual civil, v. 2, p. 47-49; PAIXÃO JÚNIOR, Manuel Galdino da. Teoria geral do
processo, p. 335.
NERY JR., Nelson Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 175.
6
7
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart Manual do processo de conhecimento. 6ª
ed. São Paulo: RT, 2007, p. 497.
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constitucional brasileiro, a garantia constitucional do duplo grau
de jurisdição”. 8
Desta forma, data venia, não obstante o fato de a jurisprudência ter
adotado a corrente defendida pela doutrina minoritária, tenho que o princípio
do duplo grau de jurisdição é sim uma garantia constitucional, razão pela qual
o acesso à segunda instância deve sempre ser facilitado pelo legislador e pelo
magistrado, sob pena de se desrespeitar direito fundamental.
3 ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DA SEGURANÇA JURÍDICA
Inicialmente, cumpre destacar que o princípio da segurança não
era garantido no Estado Absoluto, “dadas as freqüentes intervenções do
príncipe na esfera jurídico-patrimonial dos súbditos e o direito discricionário do mesmo príncipe quanto à alteração e revogação das leis”.9 A
segurança, destarte, passa a ser objetivo de preocupação do legislador
apenas a partir do Estado Liberal.
E o que seria, então, esta segurança jurídica?
A meu ver, previsibilidade seria a palavra que melhor lhe cairia
como sinônimo. Esta previsibilidade dar-se-ia no campo das decisões
judiciais, das leis elaboradas e das decisões tomadas na esfera do Executivo. Aliás, neste mesmo sentido é a lição de J. J. Gomes Canotilho,
para quem “os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo,
executivo e judicial”.10
A propósito, acrescenta ainda J. J. Gomes Canotilho que “o homem
necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e
8
STF, 2ª T., AgR no AI 513.044/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 22/2/2005, DJ 8/4/2005, p. 31.
No mesmo sentido: STF, Pleno, RHC 79.785/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/3/2000,
RTJ 183-03/1.010; STF, 1ª T., RE 356.287/SP, Rel. Min. Moreira Alves, j. 19/11/2002, DJ
7/2/2003, p. 47; STF, 1ª T., AgR no AI 248.761/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 11/4/2000,
DJ 23/6/2000, p. 10; STJ, 1ª T., REsp. 638.887/MG, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 14/12/2004,
DJ 21/11/2005, p. 131; STJ, 2ª T., AgRg no REsp. 499.833/ES, Rel. Min. Franciulli Netto, j.
19/12/2003, DJ 17/5/2004, p. 181.
9
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 109.
10
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 257.
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responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideram os
princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como
elementos constitutivos do Estado de direito”.11
Com efeito, esta previsibilidade possui duas facetas: a estabilidade do ordenamento jurídico e o efetivo cumprimento do que ele dispõe.
A primeira diz respeito à razoável duração dos textos legais. Claro que não se pretende engessar o sistema normativo. Porém, antes de se
votar e sancionar uma lei, deve haver ampla discussão do seu conteúdo, e
não só dentro do Poder Legislativo, mas entre ele e entidades não governamentais. Isto tudo para evitar reiteradas reformas legislativas, muitas vezes sobre o mesmo assunto e em curto espaço de tempo, como vem ocorrendo com o Código de Processo Civil – CPC, desde o ano de 1994.
E, a segunda, é a certeza de que a lei será efetivamente cumprida. Isto
vale para o magistrado, ao proferir sentença ou acórdão, e também para as
partes envolvidas. Por isso deve haver meios coercitivos para tanto.
E o que é que o princípio da segurança jurídica exige então? Ele
ordena, no fundo, “(1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência
dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja
garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos
dos seus próprios actos”.12
Assim, o princípio da segurança jurídica deve ser visto sob duplo
aspecto: o primeiro seria apenas o princípio que por muitas vezes é aplicado ou não pelo magistrado em um caso concreto; já o segundo deve ser
tido como o norte que o legislador deve pautar-se no momento da elaboração da lei.13 Prova disso, por exemplo, são os institutos da prescrição,
11
12
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 257.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 257. Canotilho
completa seu raciocínio da seguinte maneira: “O princípio da determinabilidade das leis
reconduz-se sob o ponto de vista intrínseco a duas idéias fundamentais. A primeira é a da
exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser
possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto. A segunda aponta para a exigência de densidade
suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo que não contém uma disciplina
suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de:
(1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de
actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da
legalidade e a defesa e os interesses dos cidadãos” (p. 258).
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da coisa julgada e do direito adquirido. Todos eles têm o mesmo objetivo,
qual seja, o de trazer tranqüilidade e certeza ao cidadão.
Na prescrição, o cidadão sabe que a demanda não poderá ser
proposta, sob pena de haver julgamento de improcedência do pedido.
Havendo coisa julgada, ele sabe que a ação já julgada e passada em
julgado não poderá ser repetida. E o direito adquirido cuida do reconhecimento pelo Direito da existência de um direito que já é da pessoa, em
conseqüência de fato idôneo para gerá-lo e de requisitos pré-estabelecidos já alcançados.
O que quero dizer, em outras palavras, é que tais institutos só foram criados em homenagem ao princípio da segurança jurídica, com
o fito de se buscar a tão almejada paz social. Assim, deve o legislador
sempre estar buscando os meios mais adequados para a consecução
deste objetivo.
Noutro norte, trago a lume as cuidadosas e ponderadas palavras de
Gustavo Ariel Kaufman, ao discorrer sobre o oposto do que estou falando:
a insegurança jurídica. Para ele,
a insegurança jurídica não deve jamais ser atribuída a uma
só pessoa ou a um só órgão: é fundamentalmente um problema estrutural de funcionamento das instituições elencadas
pela Constituição. Se bem que certos erros e certas injustiças irreparáveis são inevitáveis nas instituições dirigidas por
humildes mortais, sendo uma função essencial destas instituições implementar seus melhores esforços para evitar que
estes erros e essas injustiças venham a ocorrer. Assim, somente com a solução do problema estrutural da insegurança
jurídica é que se permite a uma sociedade estabilizar-se e
viabilizar-se a longo prazo como um Estado de Direito.14
Com efeito, é sempre bom lembrar que a insegurança gera medo. O
medo desencoraja. A falta de coragem inibe o empreendedorismo. Ante a
13
Nesse diapasão: La seguridad jurídica es un fin referible al ordenamiento jurídico. (GARCIA
NOVOA, César. El principio de la seguridad jurídica en materia tributaria, p. 43)
14
KAUFMAN, Gustavo Ariel. La seguridad jurídica y el progreso económico. In: ______.
Seguridad jurídica y el progreso económico, p. 22-23, tradução nossa.
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ausência de empreendedores a economia se estagna. E como conseqüência temos o desemprego, que tem a capacidade de gerar uma série de
outros fatores negativos para o crescimento socioeconômico de todo e
qualquer país.
Exemplo não tão distante de medida tomada pelo Poder Público e que
causou danos aos cidadãos à época, e reiteradamente é lembrada, foi o bloqueio feito nas contas bancárias pelo então Presidente da República Fernando
Collor. Até hoje ainda existe certo temor entre a sociedade de que isso possa
ocorrer novamente, gerando, portanto, insegurança jurídica.
No direito comparado, conforme assinala Humberto Theodoro Júnior,
o princípio da segurança jurídica é tido como base do Estado de Direito.15
O doutrinador destaca que em países como Alemanha e Itália, por exemplo, que passaram por regimes autoritários há algumas décadas, tal princípio é muito valorizado.
Na Itália,
muito se tem discutido a propósito do tema e, mesmo no silêncio da Constituição, a Corte Constitucional italiana já proclamou que a ‘segurança jurídica é de fundamental importância
para o funcionamento do Estado democrático’, e que deve ser
definida como ‘um princípio supremo’, ao afirmar que ‘a confiança do cidadão na segurança jurídica constitui um elemento
fundamental e indispensável do Estado de Direito’.16
Na Alemanha ocorre o mesmo fenômeno que na Itália. O referido
princípio não está previsto expressamente na Constituição (Lei Fundamental), todavia, é tido como “um elemento essencial, com a justiça
(Gerechtigheit), do princípio do Estado de Direito e tem, por conseguinte,
como todos os elementos estruturadores da noção do Estado de direito,
um valor constitucional.17
15
THEODORO JÚNIOR, Humberto A onda reformista do direito positivo e suas implicações
com o princípio da segurança jurídica. Revista IOB Direito Civil e Processual Civil, p. 30-37.
16
THEODORO JÚNIOR, Humberto A onda reformista do direito positivo e suas implicações
com o princípio da segurança jurídica. Revista IOB Direito Civil e Processual Civil, p. 31.
17
THEODORO JÚNIOR, Humberto A onda reformista do direito positivo e suas implicações
com o princípio da segurança jurídica. Revista IOB Direito Civil e Processual Civil, p. 32.
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Em Portugal, embora não conste em nenhum texto expresso, é notório que tanto a doutrina quanto a jurisprudência entendem que o princípio
da segurança jurídica é elemento constitutivo do Estado de Direito.18
Na Espanha o princípio da segurança jurídica está expressamente
previsto na Constituição, no art. 9.3.19 Em França o princípio da segurança jurídica, assim como ocorre em outros países europeus, não se encontra
expresso no sistema normativo, porém é tido como corolário lógico do
Estado de Direito.
Não bastasse, conforme magistério de Humberto Theodoro Júnior,
“o princípio de segurança jurídica foi erigido pela Corte de justiça das comunidades européias ao grau de exigência fundamental”.20
E, por derradeiro, cumpre lembrar que a segurança está prevista na
Declaração Universal dos Direitos do Homem, conforme pode-se extrair de seu art. 3º.
No Brasil tal princípio encontra-se previsto, expressamente, no art.
5º, caput, e também no preâmbulo da CR/88.
Dessa forma, por se tratar de um princípio, e todo princípio é norma,
ele vincula a administração pública e o Poder Judiciário, devendo ser aplicado quando necessário ou requerido pela parte e, a contrario sensu, não
pode ser violado, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. Destarte,
deve o magistrado sempre proceder a um juízo de compatibilidade entre a
norma insegura e o princípio da segurança jurídica.
Bem, com base nesses expendimentos, podemos observar que sem
segurança jurídica inexiste liberdade, impossibilitando, de tal modo, a criação de um “ambiente de vida jurídica no qual o homem pode desenvolver
sua existência com pleno conhecimento das conseqüências de seus atos”.21
Assim, se não tivermos regularidade e eficácia nos mecanismos de
aplicação do Direito, bem como clareza, coerência e estabilidade do
18
Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 257.
19
Art. 9.3: La Constitución garantiza el principio de legalidad, la jerarquía normativa, la
publicidad de las normas, la irretroactividad de las disposiciones sancionadoras no favorables
o restrictivas de derechos individuales, la seguridad jurídica, la responsabilidad y la
interdicción de la arbitrariedad de los poderes públicos.
20
THEODORO JÚNIOR, Humberto A onda reformista do direito positivo e suas implicações
com o princípio da segurança jurídica. Revista IOB Direito Civil e Processual Civil, p. 33-34.
21
LINS, Miguel; LOUREIRO, Célio. Teoria e prática do direito tributário, p. 83.
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ordenamento jurídico, não há que se falar em segurança jurídica, mas,
sim, em insegurança.
Uma visão mais moderna do mencionado princípio pode ser encontrada em Federico Arcos Ramírez: La concepción clásica de la
seguridad jurídica como la previsibilidad de las decisiones judiciales
queda seriamente cuestionada.22 Não que seria uma ilusão ou um mito,
mas certamente a previsibilidade absoluta não pode continuar sendo o
fundamento principal ou central da aplicação do princípio da segurança
jurídica.23
A nova concepção do princípio da segurança jurídica, contudo,
está no poder de se controlar as decisões jurídicas. Assim, a segurança
jurídica viria a identificar-se, pois, com a exigencia de publicidad,
racionalidad, justificación, argumentación, etc., que evite la
arbitrariedad y que, sin embargo, es perfectamente compatible con
la indeterminación y la falta de certeza y previsibilidad del contenido
de la decisión judicial.24
Veja-se, portanto, que é imprescindível a correta e ampla fundamentação das decisões para que não haja violação à segurança jurídica.
Aliás, “a fundamentação das decisões que se servem das cláusulas gerais
ganha, neste contexto, maior relevo”.25
Daí a lição proficiente de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, para
quem
essa justificação, porém, não pode ser abstrata, desordenada,
desvairada, ilógica, irracional ou arbitrária, formulada ao influxo das ideologias, do particular sentimento jurídico ou
das convicções pessoais do agente público julgador, porque
ele não está sozinho no processo, não é seu centro de gravidade e não possui o monopólio do saber. A justificação se
faz de acordo com um conteúdo estrutural normativo que
22
ARCOS RAMÍREZ, Federico. La seguridad jurídica: una teoría formal, p. 325.
23
ARCOS RAMÍREZ, Federico. La seguridad jurídica: una teoría formal, p. 325.
24
ARCOS RAMÍREZ, Federico. La seguridad jurídica: una teoría formal, p. 325.
25
KATAOKA, Eduardo Takemi. Segurança jurídica como direito fundamental e as cláusulas
gerais do novo Código Civil brasileiro. In: SARMENTO, Daniel; Flavio Galdino (Org.).
Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres, p. 373.
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as normas processuais impõem à decisão (devido processo
legal), em forma tal que o julgador lhe dê motivação racional
com observância do ordenamento jurídico vigente e indique
a legitimidade das escolhas adotadas, em decorrência da
obrigatória análise dos argumentos desenvolvidos pelas partes, em contraditório, em torno das questões de fato e de
direito sobre as quais estabeleceram discussão. Portanto, a
fundamentação da decisão jurisdicional será o resultado lógico da atividade procedimental realizada mediante os argumentos produzidos em contraditório pelas partes, que suportarão seus efeitos.26
Trata-se, portanto, de condição essencial de toda convivência civilizada para qualquer sociedade minimamente organizada, não sendo possível existir Estado de Direito sem o princípio da segurança jurídica. Contudo, é possível afastá-lo no caso concreto para que outro princípio, que
melhor se amolda àquela situação específica, seja aplicado.
4 A SOLUÇÃO DO PROBLEMA COM BASE NA LETRA
FRIA DA LEI
Neste item inicio a análise de quais seriam as hipóteses cabíveis para
solucionar o problema levantado no item 1.
Se formos buscar a solução para esse problema na letra fria da lei, o
máximo que se encontrará é a possibilidade de requerer a antecipação da
tutela recursal em sede de apelação, claro. Em outras palavras, contra a
sentença referida no item 1 deveria o impetrante interpor recurso de apelação e, em tópico específico, requerer ao relator que antecipe os efeitos da
tutela recursal. O amparo legal para tanto se encontra presente nos arts.
527, III, c/c 558, parágrafo único, do CPC.
Nesse sentido é o magistério de Teori Albino Zavascki:
Porém, (a) se a sentença recorrida tiver sido de improcedência, ou meramente terminativa (extintiva do processo sem exame do mérito), [...] pode a parte, demonstrando a configuração
26
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. A fundamentação das decisões jurisdicionais no estado
democrático de direito. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, p. 339-340.
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dos pressupostos do art. 273 do CPC, requerer e ter atendido o pedido de antecipação de tutela. A circunstância de o
processo estar na sua fase recursal não é empecilho a tal
pretensão, eis que, como já se afirmou reiteradamente, antecipar a tutela constitui, não antecipação de uma sentença,
mas um adiantamento dos atos executivos da tutela definitiva, os quais nas hipóteses (a) e (b) supra, ainda se encontram reprimidos. Ora, se ficar evidenciado que a medida
antecipatória, nas hipóteses em tela, é indispensável para
afastar perigo de dano irreparável ao direito afirmado e tido
pelo julgador como verossímil, seria ilógico e contrário ao
sistema negar a sua concessão, apenas pela razão de já ter
sido proferida sentença em primeiro grau. Negar a medida,
nas circunstâncias, importaria sacrificar a efetividade da jurisdição, direito constitucional cuja preservação constitui a
própria essência da tutela antecipada.27
A princípio, pode parecer que estaria tudo tranqüilo, e que eu estou fazendo “tempestade em copo d’água”. Entretanto, é bom lembrar
que o relator somente apreciará este pedido quando o recurso de apelação chegar às suas mãos. E quando será isto? Ora, se for no estado de
São Paulo poderá demorar até cinco anos.28 Aí vem a indagação: pode o
jurisdicionado esperar este tempo todo? Tudo bem, esqueçam então o
estado de São Paulo e peguemos outro estado da federação, no qual
este prazo diminua drasticamente, para apenas alguns meses. Ainda assim continuo formulando a mesma pergunta: pode o jurisdicionado esperar este tempo todo? Pode ele esperar, alguns meses que sejam, para ver
seu pedido liminar ser apreciado pelo relator? Evidentemente, a resposta
é negativa.
Dessa forma, esta hipótese não me parece salutar, pois, dependendo
do caso concreto, não solucionará o problema da parte.
27
28
ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela, p. 144.
Salvo se o inciso XV do art. 93 da CR/88 estiver sendo respeitado, ou seja, estiver sendo
procedida a distribuição imediata dos processos, em qualquer grau de jurisdição. Mas mesmo
assim pode ser que exista uma longa fila apenas para se distribuir, podendo levar semanas ou
até meses para que se efetive.
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5 O MANEJO DA MEDIDA CAUTELAR
Já que a alternativa do item 4 não poderá socorrer o jurisdicionado,
tenho que a próxima idéia seria o ajuizamento de medida cautelar.
O primeiro passo seria verificar em qual órgão jurisdicional deveria
ser proposta: no próprio juízo de primeiro grau ou no tribunal? A resposta para tanto está no parágrafo único do art. 800 do CPC, que dispõe:
“Interposto o recurso, a medida cautelar será requerida diretamente no
tribunal”. Já sabido onde ajuizá-la, fica a dúvida a respeito de saber a
partir de qual momento já pode o tribunal tomar as medidas cabíveis,
que, in casu, vêm a ser o deferimento da liminar requerida no mandado
de segurança (cf. item 1).
A princípio, pela redação do parágrafo único do art. 800 do CPC,
acredito que, interposto o recurso de apelação, no mesmo dia já poderia
ser ajuizada medida cautelar com o propósito de que o tribunal possa deferir a liminar indeferida no mandado de segurança. Evidentemente que a
cautelar deverá ser instruída com todos os documentos possíveis a fim de
que possa ficar clara a existência do direito líquido e certo no mandado de
segurança, pois este seria o fumus boni iuris. A demonstração do periculum
in mora dependerá, claro, do caso concreto, cabendo ao advogado comprovar a sua existência ao magistrado de segundo grau. Alguns inconvenientes, porém, vão surgir.
O primeiro deles é que, segundo a jurisprudência do STJ, a medida cautelar somente poderá ser apreciada quando o recurso já tiver sido
interposto29 e recebido despacho positivo no juízo de admissibilidade,30
29
“A pretensão cautelar objetivando a atribuição de efeito suspensivo a recurso ordinário pendente de juízo positivo de admissibilidade no Tribunal de origem ou, alternativamente, a recurso
especial que sequer foi interposto — mitigando a orientação consubstanciada nas Súmulas 634
e 635/STF —, somente tem sido acolhida nos casos de decisões manifestamente teratológicas
ou de flagrante ilegalidade, o que não restou evidenciado no presente caso, mormente se considerada a plausibilidade do entendimento adotado pela Corte de origem” (STJ, 1ª T., EDcl no
AgRg na MC n. 11.128/SP, Rel. Min. Denise Arruda, j. 28/3/2006, DJ 24/4/2006, p. 353).
30
“Na esteira de orientação da Suprema Corte, firmou-se a compreensão de que a jurisdição do
Superior Tribunal de Justiça para apreciar medida cautelar objetivando emprestar efeito
suspensivo a recurso especial somente é instaurada com a prolação de juízo positivo de
admissibilidade pelo Tribunal de origem” (STJ, 6ª T., AgRg na MC n. 12.007/CE, Rel. Min.
Paulo Gallotti, j. 17/10/2006, DJ 11/12/2006, p. 423).
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sob o fundamento de que apenas assim se estabelece a sua jurisdição.
Exige-se também que o requerente demonstre a verossimilhança do que
alega, bem como do possível acolhimento do recurso especial por ele
interposto.31
Com efeito, o STJ é tão radical que, nem mesmo quando comprovado a interposição de agravo de instrumento contra a decisão denegatória
de seguimento de recurso especial,32 é passível de conhecer da medida
cautelar para concessão de efeito suspensivo ou ativo ao recurso especial.
É bem verdade que, excepcionalmente, o STJ defere liminar em sede de
medida cautelar para atribuir efeito suspensivo a recurso especial ainda não
admitido no tribunal de origem, mas, na prática, é muito raro de se obter tal
liminar.33 Logo, se esses problemas surgem quando da apreciação da medida cautelar pelo STJ e pelo STF,34 é claro que também ocorrerão na
hipótese ora ventilada, qual seja, de liminar indeferida juntamente com a
“1. A concessão de efeito suspensivo a Recurso Especial reclama a demonstração do periculum
in mora, que se traduz na urgência da prestação jurisdicional no sentido de evitar que quando
do provimento final não tenha mais eficácia o pleito deduzido em juízo, bem como, a caracterização do fumus boni iuris, ou seja, que haja plausividade do direito alegado. 2. Em sede de
medida cautelar, objetivando emprestar efeito suspensivo a recurso especial, exige-se que o
requerente demonstre a verossimilhança do que alega, bem como do possível acolhimento do
recurso especial por ele interposto” (STJ, 1ª T., MC 12.725/PE, Rel. Min. Luiz Fux, j. 8/5/2007,
DJ 21/5/2007, p. 544).
32
“Não se admite atribuir efeito suspensivo a recurso especial que recebeu juízo negativo de
admissibilidade na instância de origem. Esse raciocínio deve ser aplicado, também diante da
eventual interposição de agravo de despacho denegatório, pois este recurso não teria a força
de fazer com que o recurso especial fosse admitido. Nem mesmo há nos autos demonstração
inequívoca de que tenha sido interposto agravo de instrumento da decisão que não admitiu o recurso especial” (STJ, 2ª T., AgRg na MC n. 7.635/SP, Rel. Min. Franciulli Netto,
j. 4/3/2004, DJ 21/6/2004, p. 178). No mesmo sentido: STJ, 1ª T., AgRg na MC n. 12.189/
SP, Rel. Min. Denise Arruda, j. 5/12/2006, DJ 18/12/2006, p. 304.
33
“Em conformidade com a orientação traçada pelo Supremo Tribunal Federal nas Súmulas
634 e 635, em casos excepcionais, em que haja risco de comprometimento de valor jurídico
prevalecente, como o direito constitucional à efetividade da jurisdição, é admissível medida
cautelar destinada a antecipar tutela recursal ou atribuir efeito suspensivo a recurso especial
ainda não admitido pelo Tribunal de origem” (STJ, 1ª T., AgRg na MC n. 10.260/SP, Rel.
Min. Teori Albino Zavascki, j. 23/8/2005, DJ 5/9/2005, p. 203).
34
Súmula 634 do STF: “Não compete ao supremo tribunal federal conceder medida cautelar
para dar efeito suspensivo a recurso extraordinário que ainda não foi objeto de juízo de
admissibilidade na origem”. Súmula 635 do STF: “Cabe ao presidente do tribunal de origem
decidir o pedido de medida cautelar em recurso extraordinário ainda pendente do seu juízo de
admissibilidade”.
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petição inicial, cujo recurso cabível é a apelação. Com todo o respeito,
esses argumentos são absurdos e não devem prosperar. Ora, a meu ver,
para fins de fixação de competência do STJ, pouco importa se será por
meio de despacho positivo no juízo de admissibilidade ou por meio de
agravo de instrumento, interposto tempestivamente contra a decisão que o
negou seguimento. A situação, data venia, é a mesma, uma vez que, em
ambas as hipóteses, o recurso será distribuído e julgado por um (decisão
monocrática) ou mais ministros do STJ. Logo, é claro que a competência
do STJ será, sim, estabelecida. Quanto à questão de o recurso eventualmente não chegar ao STJ, é evidente que, caso a medida cautelar tenha
sido deferida em favor do recorrente, bastará ao recorrido peticionar ao
STJ e dizer que houve o trânsito em julgado.
O segundo inconveniente que poderia ser ventilado refere-se ao
disposto no art. 296 do CPC, que prevê, nas hipóteses de indeferimento
da petição inicial e apresentado recurso de apelação, que será facultado ao
juiz, no prazo de quarenta e oito horas, reformar sua própria decisão. A
nosso ver, esse argumento é plausível, mas fácil de ser derrubado. A uma,
porque se trata de mera faculdade do juiz alterar sua decisão. A duas,
porque não está na lei que é obrigatório o tribunal observar ou aguardar o
transcurso do prazo de quarenta e oito horas, e, caso seja deferida liminar
em sede de cautelar, e o juiz de primeiro grau se retrate, a cautelar simplesmente perderá o objeto. E, a três, porque é sabido que raramente (para
não dizer nunca) os magistrados fazem uso do referido art. 296 do CPC.
O terceiro inconveniente é o fato de ser um tanto quanto duvidosa
a possibilidade de se atribuir efeito ativo (tutela antecipada recursal) a um
recurso de apelação, não obstante a existência, na jurisprudência, de poucas decisões vislumbrando essa possibilidade.35 Aliás, que bom que existem tais decisões nesse diapasão, pois, do contrário, seria muito penoso
para o jurisdicionado ter de esperar decisão final do tribunal ad quem sobre o recurso. Contudo, pensando friamente, é um pouco demais admitir
que uma medida cautelar possa atribuir efeito ativo a recurso de apelação,
pois estaria fazendo as vezes da tutela antecipada. E, como as decisões
concernentes à antecipação dos efeitos da tutela têm natureza interlocutória,
35
STJ, 1ª T., MC n. 11.383/RJ, Rel. Min. José Delgado, j. 1º/6/2006, DJ 30/6/2006, p. 164.
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tem-se que o recurso mais correto para obtê-la seria o agravo de instrumento.
O último inconveniente diz respeito à competência na hipótese de
recurso de apelação não interposto ou, então, que não ainda tenha recebido juízo de admissibilidade. Por analogia à Súmula 635 do STF, seria do
próprio juízo de primeiro grau. Ora, sinceramente, será que alguém acha
mesmo que o juiz que indefere liminar e petição inicial de mandado de
segurança vai conceder efeito suspensivo ou ativo a uma medida cautelar
proposta contra decisão proferida por ele mesmo? É claro que não.
Por derradeiro, observem que já existem julgados negando o uso da
cautelar, e inclusive alertam que o remédio cabível seria o uso do agravo de
instrumento. “A tutela antecipatória deferida no bojo de sentença é atacável
mediante agravo de instrumento. Correta a decisão que negou seguimento
a medida cautelar ajuizada com esse propósito”.36
Desse modo, com base nos expendimentos elencados, parece ter ficado muito claro que, por mais que a medida cautelar possa ser uma saída
para o problema objeto deste estudo, não é, contudo, a melhor solução,
razão pela qual passo a examinar no próximo item uma outra possibilidade.
6 A UTILIZAÇÃO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO E DA
APELAÇÃO SIMULTANEAMENTE
Apresentada a idéia nos itens anteriores, pensemos em outra alternativa para atender aos anseios do impetrante. E por que não interpor dois
recursos contra a mesma decisão? Em outras palavras, seria interposto
agravo de instrumento contra a parte da sentença que negou a liminar e
recurso de apelação contra a sentença propriamente dita.
Ora, se estivermos diante de uma sentença que, ao mesmo tempo,
indefere a liminar pleiteada e ainda extingue o mandado de segurança, sem
a resolução do mérito, não seria hipótese de afirmarmos que se trata de um
ato processual complexo ou misto? Será que a essa sentença realmente se
pode aplicar, única e tão-somente, a definição prevista no art. 162, § 1º, do
CPC, como o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos
36
TRF 4ª R., Plenário, AGR na MC 1999.04.01.010184-2, Rel. Juiz Nylson Paim de Abreu,
j. 30/6/1999.
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arts. 267 e 269, também do CPC? Sinceramente, acredito que não. É
claro que essa sentença terminativa contemplará alguma das hipóteses do
art. 267 do CPC, todavia, haverá algo mais ali.
O desenvolvimento deste item 6 dar-se-á da seguinte forma: i) precisão conceitual do princípio da unirrecorribilidade; ii) análise da doutrina e
jurisprudência sobre o recurso cabível contra a sentença que defere tutela
antecipada no seu próprio bojo; e iii) conclusão tendo como base o problema levantado e exposto no item 1, bem como nos dois parágrafos anteriores.
Primeiramente, cumpre ponderar, então, sobre o princípio da
unirrecorribilidade, também comumente chamado de unicidadade ou singularidade.
Segundo Jose Frederico Marques, “a uni-recorribilidade da sentença significa que a mesma questão não pode ser objeto de dois recursos
simultâneos”.37
Outro doutrinador que pensa exatamente dessa forma é Francisco
Cavalcanti Pontes de Miranda. Para ele, “não se pode exercer a pretensão
recursal quanto a dois ou mais recursos, simultaneamente, sobre o mesmo
ponto. É o princípio da unicidade do recurso (princípio da unirrecorribilidade)”.38
MARQUES, Jose Frederico. Instituições de direito processual civil, v. IV, n. 892, p. 60. Em
seguida ele tece alguns importantes comentários, que merecem ser transcritos: “Se a parte
viola o princípio da unirrecorribilidade, interpondo mais de um recurso contra uma só decisão, como se proceder? Pontes de Miranda assim resolve o problema: ‘o juiz, se já admitiu
um, pode negar o outro; se dois, por acaso, foram admitidos, pode o juiz mandar intimar o
recorrente para dizer qual dos dois prefere, desistindo de um deles; se ambos sobem, e o
recorrente desiste já no grau superior, de um deles, conhece-se do que entrou em pauta, ou o
presidente ou o relator ordena a intimação para que o recorrente prefira, desistindo de um
deles’” (Op. cit., p. 61). [...]. “Não nos parece que a parte que interpõe um segundo recurso,
tempestivamente, tenha necessidade de declarar expressamente que desiste do anterior. A
desistência, aí, está implícita. Como diz Pedro Batista Martins, ‘se o vencido interpõe
sucessivamente dois recursos, sem desistir expressamente do primeiro, entende-se que é
tácita a sua desistência, isto é, entende-se que ele usou da faculdade que a lei lhe concede de
variar de recurso. É que, segundo bem expôs o ministro Mário Guimarães, em toda manifestação de vontade, o ato posterior, contrário ao primeiro, revoga-o implicitamente. Se, pois, a
recorrente entrou com outro recurso, abandonou, ipso facto, o que precedentemente interpusera. Variou, como lhe permitia a lei. Não usou ao mesmo tempo de dois recursos. O aparecimento de um assinalou a cessação do outro” (Op. cit., p. 62).
38
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao código de processo civil,
t. VII, p. 55.
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Há de se registrar, ainda, os ensinamentos de José Carlos Barbosa
Moreira:
[...] que contra determinada decisão seja interponível um único recurso. [...]. Tanto no direito anterior como no vigente,
porém, a regra geral era e continua a ser a de que, para cada
caso, há um recurso adequado, e somente um. É o que se
denomina princípio da unicidade do recurso. Ele se manifesta,
em primeiro lugar, pela impossibilidade de interpor-se mais de
um recurso contra a mesma decisão (lato sensu).39
Após esta seqüência de citações doutrinárias, porém, necessária e
imprescindível, é necessário observar e refletir que nenhum dos juristas
conceituou o princípio da unicidade, unirrecorribilidade ou singularidade considerando-o a vedação de interposição de mais de um recurso contra o mesmo ato processual. A única exceção, até onde sei, é
Nelson Nery Júnior, ao sustentar que “para cada ato judicial recorrível há
um único recurso previsto pelo ordenamento, sendo vedada a interposição
simultânea ou cumulativa de mais outro visando a impugnação do mesmo
ato processual”.40 Data venia, esse conservadorismo só serve para criar
insegurança jurídica e obstáculos à ampla defesa e acesso pleno e verdadeiro à Justiça.
Destarte, imperioso ater-se aos mínimos detalhes das definições do
princípio da unirrecorribilidade trazida por esses eminentes juristas. Segundo eles, não se pode interpor mais de um recurso em relação a um mesmo
ponto ou questão. E, quando se fala em decisão (lato sensu), parece-me
que não se está se referindo a sentença ou decisão interlocutória, mas, sim,
a ponto ou questão. Prova disso é que foi utilizada a expressão lato sensu
(e não stricto sensu), logo depois.41 Assim, com base nestas três definições citadas, tenho que inexiste óbice ao manejo do agravo de instrumento e da apelação simultaneamente, desde que, claro, cuidem de
pontos distintos, ou seja, com natureza jurídica diferentes.
39
Barbosa Moreira, José Carlos. Comentários ao código de processo civil, v. V, n. 141, p. 246-247.
40
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos, p. 121.
41
Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos Comentários ao código de processo civil, p. 247.
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Entretanto, em sentido diametralmente contrário ao que acabo de
defender, está Nelson Nery Júnior, ao afirmar categoricamente que se um
mesmo ato judicial “contém duas decisões interlocutórias (as que rejeitaram a incompetência absoluta e a coisa julgada) e uma sentença, formando
um todo indivisível, pois, para efeitos de recorribilidade, o CPC não autoriza a ‘divisão’ do ato judicial”.42 Adiante assevera que isso se dá “porque define os pronunciamentos do juiz e estabelece a correspondente
recorribilidade, de modo a orientar o intérprete no sentido dessa
indivisibilidade”.43 E conclui assegurando que se o ato do juiz tiver várias
decisões interlocutórias, mas extinguir o processo, “esta última circunstância é de conteúdo mais abrangente no sentido finalístico, prevalecendo
sobre as demais decisões abrangidas”.44
Com todo o respeito, o CPC não veda a possibilidade de se poder
“dividir” o ato processual para fins recursais. E, também, não há que se falar
em absorção de uma decisão mais abrangente em detrimento das demais
(menos abrangentes – que seria a interlocutória), tendo em vista a inexistência
de previsão legal nesse sentido.45 A questão é muito mais lógica do que
teórica. Quando o juiz profere sentença, o perdedor irá apelar porque é o
recurso previsto na lei processual. Ele não interporá, contra esta sentença,
recurso especial ou extraordinário porque estará infringindo a seqüência constitucional já preestabelecida.46 Agora, se nessa sentença contiver decisão
interlocutória e ele sentir a necessidade de recorrer dela, seja por qualquer
motivo juridicamente relevante, não pode o sistema processual criar obstáculos para tanto. É evidente e lógico que a sentença à qual nos referimos é
um ato processual de natureza híbrida, complexa ou mista, e por isso
mesmo é que se deve admitir o aviamento do agravo de instrumento contra
essa parte e a apelação em face da decisão terminativa ou definitiva (a sentença propriamente dita). Caso não se concorde com isso, então qual seria um
fundamento lógico para proibir o manejo dos dois recursos simultaneamente
42
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos, p. 121.
43
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos, p. 121.
44
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos, p. 122.
45
E não caberia, aqui, analogia com a figura da continência (art. 104 do CPC).
46
Cf. arts. 102, III, e 105, III, ambos da CR/88.
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que não fosse o princípio da unirrecorribilidade? Por que não permitir que
isso aconteça? Qual seria o problema ou o prejuízo?
Bom, já em um segundo momento, Nelson Nery Júnior dá outro
exemplo, só que, desta vez, trata-se de atos distintos, praticados na mesma
audiência do procedimento sumário.47 São eles: rejeição de incompetência
absoluta, oitiva de testemunhas e sentença. Nesse exemplo, segundo o referido processualista, seria outra hipótese, diferente do exemplo acima, e
na qual caberia agravo de instrumento e apelação, uma vez que “isto, contudo, não tem o condão de equiparar atos distintos, reduzindo-os à mesma
categoria para o fim de classificá-los e estabelecer-lhes a recorribilidade”,48
pois “terão sido praticados vários e distintos atos processuais, com naturezas e conseqüências igualmente distintas, nada obstante isto haja acontecido na mesma audiência, no mesmo momento processual”.49
A posição defendida por Nelson Nery Júnior, num primeiro momento, pode parecer tecnicamente a mais correta e, logo, absolutamente isenta
de críticas. Todavia, a meu ver, com todo o respeito, tal solução, definitivamente, não é a melhor para o jurisdicionado. O ordenamento deve sempre verificar o que é melhor para o jurisdicionado, e não para o direito
processual civil. Quando se tem esta filosofia, ou seja, quando esse é o
objetivo do legislador ou do aplicador da norma, aí, sim, estamos diante do
verdadeiro significado de Direito e Justiça.
Não se pode sacrificar os direitos constitucionais à ampla defesa, à inafastabilidade e nem ao duplo grau de jurisdição só porque o
juiz de primeiro grau entendeu por bem conceder tutela antecipada na
sentença de mérito, ou, porque negou liminar em mandado de segurança no bojo da sentença terminativa. Nesse sentido é, aliás, o ponto
de vista do desembargador Edílson Fernandes, do TJMG.50
47
Cf. NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos, p. 122-123.
48
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos, p. 123.
49
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos, p. 123.
50
“No presente caso, o culto e operoso Magistrado proferiu ato judicial complexo: um de
natureza interlocutória (art. 162, § 2º, CPC) e outro extintivo do processo com solução do
mérito da controvérsia instaurada nos autos (art. 162, § 1º), com a devida vênia, não podendo
ser sacrificado o direito de ampla defesa da parte em decorrência do próprio equívoco do
Judiciário. O princípio da singularidade, unicidade ou unirrecorribilidade dos recursos, significa que: ‘[...] para cada ato judicial recorrível há um único recurso previsto no ordenamento
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Tema que tem correlação muito próxima com este de que estamos
tratando (cf. item 1) diz respeito à concessão de tutela antecipada na
própria sentença. Nessa situação, qual seria a providência a ser tomada?
Agravo e apelação simultâneos? Medida cautelar? O que fazer?
Teresa Arruda Alvim Wambier entendia que, nessa hipótese, seriam
cabíveis simultaneamente agravo de instrumento e apelação, porém ela recentemente mudou de entendimento. “Solução que nos parecia correta era
a de que, embora pudesse o juiz conceder a antecipação de tutela na sentença, esta fosse considerada, para efeito de recurso, decisão híbrida, contendo uma interlocutória e uma sentença propriamente dita”.51
Outro autor que pensa assim é Cândido Rangel Dinamarco, para
quem, “em casos assim, não se trata de uma sentença de mérito e de uma
decisão interlocutória acoplada a ela, como às vezes se afirma. O ato proferido pelo juiz é um só, é a sentença; esse é o ato com que o procedimento
em 1º grau tem fim, pouco importando o conteúdo”.52 E finaliza asseverando que “nos casos extraordinários em que a tutela seja concedida na própria sentença que decide a causa, nem por isso se legitimaria o entendimento de que contra esse ato judicial único caberiam dois recursos, a saber,
apelação contra o julgamento de meritis e agravo contra a concessão da
antecipação tutelar”.53
jurídico, sendo vedada a interposição simultânea ou cumulativa de mais outro visando a
impugnação do mesmo ato judicial’ (NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios fundamentais:
teoria geral dos recursos. 5. ed. São Paulo: Editora RT, p. 93). Inexiste óbice legal para
interposição de recurso de agravo de instrumento contra ato que resolve questão incidental,
embora inserida indevidamente no contexto de outro ato judicial que extinguiu o processo,
pois a apelação simultaneamente interposta, in casu, não tem a finalidade de impugnar aquele
ato já atacado pelo agravo, observando rigorosamente o princípio da unirrecorribilidade.
Admitir o contrário, com a devida vênia, resultaria ofensa aos princípios constitucionais da
inafastabilidade do controle jurisdicional e ampla defesa (art. 5º, incisos XXXV e LV, da CF),
uma vez que a equivocada interpretação da legislação processual em vigor, impediria o reexame
do ato judicial interlocutório indevidamente inserido no contexto da sentença, suprimindo o
duplo grau de jurisdição.” (TJMG, 11ª C., AI 2.0000.00.406953-8/000, Rel. Des. Mauro
Soares de Freitas, j. 25/6/2003 – trecho do voto do 2º Vogal)
51
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro, p. 600. Outro autor que
também mudou de entendimento, assim como Teresa Wambier, é Cassio Scarpinella Bueno
(Tutela antecipada, p. 86-88)
52
DINAMARCO, Cândido Rangel Tutela de urgência. Revista Jurídica, p. 18-19.
53
DINAMARCO, Cândido Rangel Tutela de urgência. Revista Jurídica, p. 18-19.
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Athos Gusmão Carneiro é defensor desse mesmo ponto de vista:
Cândido Dinamarco, em recentíssimo estudo, sustenta, de
forma cabal, que o juiz pode deferir a antecipação de tutela
na própria sentença de mérito, como um de seus capítulos,
não sendo correto desdobrar o ato judicial como se contivesse uma sentença e uma decisão interlocutória; e essa premissa conceitual ‘repercute na determinação do recurso cabível contra a concessão de tutela cautelar no mesmo ato
que julga a causa, o qual será somente a apelação e jamais o
agravo’.54
José Miguel Garcia Medina também sustenta essa idéia. Segundo ele,
para se definir qual o recurso cabível, deve-se verificar a natureza jurídica da decisão. A concessão de tutela antecipatória
na sentença não lhe altera a natureza, pois se trata, a nosso
ver, de mais uma questão enfrentada pelo referido pronunciamento judicial. Observe-se, ademais, que a concessão de tutela antecipatória na sentença serve para, no mais
das vezes, para possibilitar a execução imediata da própria
sentença, afastando o efeito suspensivo do recurso de apelação que, eventualmente, venha a ser interposto.55
Noutro norte, ainda bem, está Luiz Guilherme Marinoni:
Há materialmente, em um mesmo instrumento, uma decisão
interlocutória e uma sentença, a primeira atacável por intermédio de agravo (que deve ser recebido no efeito devolutivo)
e a segunda por meio de apelação (que deve ser recebida no
efeito apenas devolutivo por ter confirmado a tutela
antecipatória – art. 520, VII, do CPC.56
54
55
56
CARNEIRO, Athos Gusmão. Da antecipação da tutela, p. 84.
MEDINA, José Miguel Garcia. Juízo de admissibilidade e juízo de mérito dos recursos na
nova sistemática recursal e sua compreensão jurisprudencial, de acordo com as Leis 9.756/98
e 9.800/99. In: ALVIM, Eduardo Pellegrini de Arruda; NERY JÜNIOR, Nelson; WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, p. 354.
MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação da tutela, p. 381.
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Outro não é o entendimento de Teori Albino Zavascki que, após
discorrer sobre o critério utilizado pelo CPC para definir a natureza do
pronunciamento judicial, inclusive citando Nelson Nery Júnior, afirma tranqüilamente que “sob esse aspecto, portanto, o recurso adequado deveria
ser, nas situações focadas, o de agravo de instrumento, a ser interposto
simultaneamente com o de apelação, se for o caso, notadamente nos casos
em que o juiz indefere medida antecipatória”.57
Coaduna com esses posicionamentos Edgard Antônio Lippmann
Júnior. Ele afirma: “Encontramos no caso concreto, portanto, a presença
de dois atos judiciais distintos (natureza híbrida) praticados simultaneamente, numa mesma peça processual: uma sentença definitiva e uma decisão
interlocutória”.58 E conclui garantindo que “diante de tão substanciosas
considerações, inclino-me pela conclusão quanto ao cabimento simultâneo
de apelação e agravo de instrumento em situações que tais, sem embargo,
por óbvio, dos relevantes fundamentos em sentido contrário”.59
Por fim, PauloAfonso Brum Vaz é outro autor que defende a interposição
simultânea de agravo de instrumento e de apelação. Segundo ele,
a solução que se impõe, e que não viola qualquer princípio ou
dispositivo legal do Código de Processo Civil, é a de se destacar no corpo da sentença duas espécies de decisão judicial:
uma, a decisão interlocutória que antecipou os efeitos da tutela,
ensejando a interposição de agravo de instrumento; outra,
que constitui o provimento definitivo, desafiando o recurso
de apelação.60
No meu ponto de vista, está perfeitamente correta a corrente que
aceita a interposição simultânea do agravo de instrumento e da apelação contra
a sentença que defere ou indefere tutela antecipada. E os fundamentos,
57
ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela, p. 127.
58
LIPPMANN JÚNIOR, Edgard Antônio. Aspectos do agravo de instrumento contra antecipação de tutela concedida em sentença definitiva. Revista de Processo, p. 34.
59
LIPPMANN JÚNIOR, Edgard Antônio. Aspectos do agravo de instrumento contra antecipação de tutela concedida em sentença definitiva. Revista de Processo, p. 36.
60
VAZ, Paulo Afonso Brum. Antecipação de tutela na sentença e a adequação recursal. Revista
de Processo, p. 197.
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para tanto, a meu ver, seriam quatro. O primeiro é que não existe vedação
no nosso ordenamento para a prolação de decisão interlocutória e sentença em um mesmo ato processual, muito embora eu ache isso extremamente
inconveniente. O segundo é que, conforme já exaustivamente demonstrado, não há violação do princípio da unirrecorribilidade. O terceiro, é que
os fundamentos contrários a essa tese, especialmente aqueles trazidos à
baila por Nelson Nery Júnior,61 com todo o respeito e sem embargo de sua
inconteste autoridade doutrinária, não podem prevalecer, pois desprovidos
de lógica e bom senso, s.m.j. E o quarto é que a não-aceitação dessa tese
dificultaria o acesso ao duplo grau de jurisdição, que sabidamente é uma
garantia constitucional.62
Para essa mesma hipótese seria viável a interposição do recurso de
apelação e, tendo em vista que será recebido apenas no seu efeito devolutivo
(art. 520, VII, do CPC), poderia o recorrente requerer a atribuição de
efeito suspensivo. Caso a decisão fosse negada, caberia, então, o agravo
de instrumento.63 Entretanto, segundo Luiz Guilherme Marinoni,64 existe
uma falha no inciso VII do art. 520 do CPC que não foi corrigida pelas
recentes reformas, especialmente a Lei n. 10.444/02. Observe-se que a
apelação não será recebida no efeito suspensivo quando a sentença confirmar a antecipação dos efeitos da tutela. Ora, assim, como a antecipação
da tutela deferida apenas no bojo da sentença não está sendo confirmada,
poderia ser a apelação recebida com os efeitos devolutivo e suspensivo.
Mas mesmo assim ainda creio que seja mais prudente aceitar a interposição
simultânea de apelação e agravo.
Na jurisprudência, o entendimento majoritário é no sentido de não
se admitir a interposição simultânea de agravo de instrumento e apelação
contra a decisão que concede a antecipação dos efeitos da tutela apenas
61
62
63
64
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos, p. 119-138 (especialmente p. 119-121).
Cf. item 2 deste trabalho.
Nesse sentido, confira as lições de José Miguel Garcia Medina [Juízo de admissibilidade e
juízo de mérito dos recursos na nova sistemática recursal e sua compreensão jurisprudencial,
de acordo com as Leis 9.756/98 e 9.800/99. In: ALVIM, Eduardo Pellegrini de Arruda; NERY
JÜNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais
dos recursos, p. 605-606].
Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação da tutela, p. 199-200.
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na sentença. “Se a tutela antecipada é concedida no próprio bojo da
sentença terminativa de mérito da ação ordinária, o recurso cabível para
impugná-la é a apelação, pelo princípio da unirrecorribilidade, achando-se correto o não-conhecimento do agravo de instrumento pelo Tribunal a quo”.65
Por outro lado, alguns julgados que aceitam a interposição de agravo de instrumento e apelação podem ser encontrados, como:
A escolha do recurso adequado à impugnação do ato, a parte
sucumbente não pode valer-se de qualquer um, mas apenas
daquele que seja específico para aquela decisão que se quer
recorrer. É decisão interlocutória a que concede a tutela antecipada e o simples fato desta ter sido concedida por ocasião
da sentença não tem o condão de retirar-lhe essa natureza,
pois num mesmo ato, ter-se-á duas decisões: uma interlocutória,
65
STJ, 4ª T., REsp. n. 645.921/MG, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 24/8/2004, DJ 14/2/2005,
p. 214. No mesmo sentido: STJ, 6ª T., AgRg no REsp. n. 456.633/MG, Rel. Min. Paulo
Medina, j. 2/5/2006, DJ 1º/8/2006, p. 560; STJ, 5ª T., AgRg no REsp. n. 511.315/PI, Rel.
Min. Gilson Dipp, j. 21/8/2003, DJ 29/9/2003, p. 338; STJ, 6ª T., REsp. 524.017/MG, Rel.
Min. Paulo Medina, j. 16/9/2003, DJ 6/10/2003, p. 347; STJ, 5ª T., REsp. 326.117/AL, Rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 6/6/2006, DJ 26/6/2006, p. 183. Confira também: “É inviável
a interposição de agravo de instrumento contra a sentença de primeiro grau que antecipa os
efeitos da tutela jurisdicional. Mirando-se no princípio da unirrecorribilidade ou singularidade recursal o único remédio cabível, no caso, é a apelação” (STJ, 6ª T., AgRg no Ag 517.887/SP,
Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 27/10/2005, DJ 21/11/2005, p. 315). Ou ainda: TJMG, 9ª
C., AI 1.0024.04.439049-0/001, Rel. Des. José Antônio Braga, j. 24.10.2006; TJMG, 9ª C.,
AI 2.0000.00.474297-8/000, Rel. Des. Pedro Bernardes, j. 3/5/2005; TJMG, 9ª C., AI
2.0000.00.463464-2/000, Rel. Des. Tarcisio Martins Costa, j. 14/12/2004; TJMG, 9ª, AI
1.0024.02.831268-4/001, Rel. Des. Silas Vieira, j. 20/5/2004; TJRS, 10ª C., AI 70013594700,
Rel. Des. Paulo Roberto Lessa Franz, j. 6/12/2005; TJRS, 7ª C., AI 70009983529, Rel. Des.
Maria Berenice Dias, j. 27/10/2004; TJRJ, 3ª C., AI 2006.002.19910, Rel. Des. Luiz Felipe
Haddad, j. 11.10.2006; TJRJ, 2ª C., AI 2005.002.21508, Rel. Desa. Elisabete Filizzola, j.
8/3/2006; TRF 1ª R., 4ª T., AI 2004.01.00.046053-9/PI, Rel. Juiz I’talo Fioravanti Sabo Mendes, j. 30/1/2006; TRF 2ª R., 4ª T., AI 2002.02.01.006432-5, Rel. Juiz Rogério Carvalho,
j. 26/11/2003; TRF 3ª R., 8ª T., AI 187022, Rel. Juíza Vera Jucivsky, j. 10/10/2005; TRF 4ª R.,
3ª T., AG no AI 2005.04.01.049202-0, Rel. Juíza Vânia Hack de Almeida, j. 24/10/2006; TRF
5ª R., 1ª T., AR no AI 2006.05.00053373001, Rel. Juiz José Maria Lucena, 14/12/2006. E por
fim: “Sentença que, julgando improcedente o pedido, revoga, expressamente, a tutela antecipada, apelável é. O princípio processual unirrecorribilidade torna insuscetível de cognição
agravo de instrumento interposto contra parte da sentença – sujeita a recurso de apelação, no
duplo efeito – que revogou a tutela antecipada. Recurso não conhecido”. (TRF 2ª R., 4ª T., AI
2002.02.01.006432-5, Rel. Juiz Rogério Carvalho, j. 26/11/2003)
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que desafia o recurso de agravo, e a outra, sentença, que põe
fim ao processo, podendo ser objeto de apelação.66
Concluindo, não tenho dúvidas da legalidade e constitucionalidade de se atacar a mesma sentença com dois recursos distintos e
simultâneos: agravo de instrumento contra a parte que negou a liminar no
mandado de segurança e apelação em face da decisão que extinguiu o processo. Entretanto, um alerta muito importante deve ser feito. Como é
notório que a jurisprudência majoritária é contra tal possibilidade, recomendo que se interponha, em primeiro lugar, o recurso de apelação e somente em
seguida, mesmo que apenas algumas horas depois, o de agravo de instrumento. Isso é para não se correr o risco de o tribunal, futuramente, vir a dizer
que se entrou com o recurso errado, pois o que contaria como válido é
aquele que primeiramente é proposto, muito embora não seja consenso na
doutrina.67 Portanto, tenho que se deva interpor o recurso de apelação e,
em seguida, o de agravo de instrumento, fazendo-se uma ressalva expressa,
66
TJMG, 11ª C., AI 2.0000.00.406953-8/000, Rel. Des. Mauro Soares de Freitas, j. 25/6/2003
– por maioria. Nesse sentido: “É cabível agravo de instrumento contra a decisão que, no corpo
da sentença, concede a tutela antecipada. A medida é exeqüível de imediato e se caracteriza
substancialmente como decisão interlocutória, pois não põe fim ao processo, em que pese
constar formalmente do corpo da sentença. A apelação não seria hábil para obstar os efeitos
da medida” (TRF 4ª R., 6ª T., AI 1998.04.01.046259-7, Rel. Juiz João Surreaux Chagas, j.
9/2/1999). Confira também: “O recurso cabível contra decisão interlocutória proferida no bojo
da sentença, sendo coincidente com o seu dispositivo, é o agravo de instrumento. Ausentandose o requisito da oportunidade temporal no manejo do recurso utilizado como sucedâneo
daquele adequado, é infactível a aplicação do princípio da fungibilidade recursal na espécie”
(TRF 4ª R., 4ª T., AI 2004.04.01.029821-0, Rel. Juiz Amaury Chaves de Athayde, j. 6/4/2005).
Ou ainda: “A antecipação dos efeitos da sentença pode ser concedida no bojo da própria
sentença, sendo o recurso cabível contra tal decisão o agravo de instrumento” (TRF 4ª R., 6ª T.,
AI 2001.04.01.025750-4, Rel. Juiz Luiz Fernando Wowk Penteado, j. 21/8/2001).
67
José Frederico Marques entende o seguinte: “Não nos parece que a parte que interpõe um
segundo recurso, tempestivamente, tenha necessidade de declarar expressamente que desiste do
anterior. A desistência, aí, está implícita. Como diz Pedro Batista Martins, ‘se o vencido
interpõe sucessivamente dois recursos, sem desistir expressamente do primeiro, entende-se que
é tácita a sua desistência, isto é, entende-se que ele usou da faculdade que a lei lhe concede de
variar de recurso. É que, segundo bem expôs o ministro Mário Guimarães, em toda manifestação
de vontade, o ato posterior, contrário ao primeiro, revoga-o implicitamente. Se, pois, a recorrente entrou com outro recurso, abandonou, ipso facto, o que precedentemente interpusera. Variou,
como lhe permitia a lei. Não usou ao mesmo tempo de dois recursos. O aparecimento de um
assinalou a cessação do outro”. (Instituições de direito processual civil, p. 62)
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neste último, que não se está desistindo do anterior, que é o de apelação. Até
porque, por razões óbvias, tenho que a juntada do recurso da cópia do recurso de apelação protocolizado seria peça essencial para o julgamento do
agravo e para a concessão da tutela antecipada recursal.
7 O EMPREGO DE UM OUTRO MANDADO DE SEGURANÇA
Uma última possibilidade para o problema explanado no item 1 seria
a impetração de outro mandado de segurança. Antes de adentrar no cerne
da questão, lembre-se de que a competência para julgar mandado de segurança contra ato de juízes de primeiro e segundo graus é do mesmo
tribunal competente para julgar os recursos de apelação e agravo, e, não,
do STJ, haja vista que esse tribunal tem a sua competência originária
previamente estabelecida pela CR/88, e o mandado de segurança contra
ato de desembargador, juízes federais e trabalhistas não está no rol do art.
105, I, da Carta Magna.68 No TJMG, v.g., a competência para julgar mandado de segurança contra ato de juízes de primeiro e segundo grau é da
Corte Superior do próprio tribunal.
Segundo o art. 5º, II, da Lei n. 1.533/51, não se dará mandado de
segurança quando se tratar de despacho ou decisão judicial, quando houver recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado pela via
da correição.
Nas palavras de Celso Agrícola Barbi,
excepcionalmente, porém, quando nem por recursos nem por
via de correição possa o ato ser modificado, o citado inciso
permite a utilização do mandado de segurança. Temos, então, mais um caso em que o ‘interesse de agir’, caracterizado pela ‘necessidade’ de amparo judicial, será a medida da
ação. Entende a lei que não existe esse interesse quando o
ato pode ser atacado por recurso ou correição.69
68
Súmula 41 do STJ: “O Superior Tribunal de Justiça não tem competência para processar e
julgar originariamente mandado de segurança contra ato de outros tribunais ou dos respectivos órgãos”. No mesmo sentido: STJ, 1ª Seção, AgRg no MS 9.233/MG, Rel. Min. Luiz Fux,
j. 26/2/2004, DJ 22/3/2004, p. 187.
69
BARBI, Celso Agrícola. Do mandado de segurança, p. 67. No mesmo sentido é a Súmula
267 do STF.
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Entretanto, a jurisprudência, já há algum tempo, mas apenas em
situações excepcionais, firmou entendimento abrandando o rigor da lei e
da Súmula 267 do STF, admitindo o manejo do mandamus nas hipóteses
de decisões teratológicas, abusivas ou flagrantemente ilegais.70
Arnoldo Wald lembra ainda que
a utilização do mandado de segurança contra ato judicial sofreu acentuadas mudanças pela evolução da jurisprudência no
trato do tema. O novo regime do agravo surgiu para restringir
o uso do mandado de segurança para dar efeito suspensivo a
recurso que, por lei, não o tem, bem como evitar sua utilização
como sucedâneo recursal.71
Na jurisprudência podemos colher os seguintes arestos:
Em face da ausência em nosso sistema processual de mecanismo que possibilite a suspensão dos efeitos do ato judicial, o
mandado de segurança, por construção da doutrina e da jurisprudência tem sido admitido para evitar a ocorrência de lesão
dificilmente reparável. Assumindo o mandamus a natureza
cautelar para assegurar o êxito e a eficácia do processo principal, além do fumus boni iuris se impõe ao impetrante a
demonstração do periculum in mora, fazendo a prova, de
plano, das suas alegações de probabilidade de dano de impossível ou difícil reparação. Além da demonstração de plano dos
fatos incontestáveis, sobre os quais deva incidir a norma jurídica, e dos pressupostos cautelares específicos, imperiosa, salvo casos excepcionais, a interposição do recurso próprio, para
que não se substitua esse pelo mandado de segurança nem e
se alargue o prazo legal do inconformismo da parte.72
STJ, Corte Especial, AgRg no MS 10.436/DF, Rel. Min. Felix Fischer, j. 7/6.2006, DJ
28/8/2006, p. 200; STJ, Corte Especial, AgRg no MS 11.851/RJ, Rel. Min. Gilson Dipp,
j. 16/8/2006, DJ 28/8/2006, p. 200; STJ, Corte Especial, AgRg no MS 10.252/DF, Rel. Min.
Hamilton Carvalhido, j. 3/8/2005, DJ 26/9/2005, p. 161; STJ, 5ª T., REsp. 564.234/MT, Rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 1º/3/2007, DJ 19/3/2007, p. 381; STJ, 2ª T., RMS 22.512/PR,
Rel. Mina. Eliana Calmon, j. 28/11/2006, DJ 11/12/2006, p. 335.
71
WALD, Arnoldo. Do mandado de segurança na prática judiciária, n. 69, p. 206.
72
STJ, 4ª T., RMS 1.624/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 29/11/1993, DJ
21/2/1994, p. 2.167. No mesmo sentido: STJ, 1ª T., MC 12.725/PE, Rel. Min. Luiz
Fux, j. 8/5/2007, DJ 21/5/2007, p. 544
70
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No entanto, existe acórdão que faz o exato contraponto ao acima
citado:
A jurisprudência consagrou a admissibilidade do mandado de
segurança para conferir efeito suspensivo a decisão, cujo recurso não no tem. Tecnicamente, adequada seria a ação cautelar.
O ato judicial, ainda que encerre erro de legalidade ou de justiça,
só por isso, não caracteriza ilegalidade ou abuso de poder. em
qualquer caso, porém, a liminar pleiteada deve guardar afinidade direta com a proteção do direito reclamado em juízo.73
Destarte, a meu ver, o grande problema de se impetrar o writ é
porque se corre o risco muito grande de o tribunal entender que haveria
recurso cabível, qual seja, o de apelação, e, logo, tal ação seria incabível.
Ou se poderia dizer ainda que seria hipótese de interposição de agravo de
instrumento e de apelação simultaneamente, ou, ainda, que, como não haveria ilegalidade ou abuso, mas, na verdade, quer-se verdadeira medida
cautelar, que se fizesse uso desta, e não do mandamus. Percebe-se, portanto, que existe um grande número de armadilhas para o jurisdicionado, o
que não é constitucional.
A meu ver, a questão resume-se no seguinte. Entendendo-se cabível
a interposição simultânea de agravo e apelação (item 6) ou apenas apelação (item 4), o mandado de segurança realmente não será cabível, pois
violaria o art. 5º, II, da Lei n. 1.533/51. Agora, não acredito que o argumento de que a impetração do writ necessariamente importaria o mesmo
que se requerer medida cautelar, ou seja, este não seria um fundamento
suficiente para rechaçar o mandamus. E, por fim, como é sabido, se a
decisão for teratológica, poderá a parte prejudicada fazer uso do remédio
heróico do mandado de segurança.
Dessa forma, como toda a matéria aqui discutida é bastante controvertida, não posso chegar a uma conclusão pacífica. O que posso dizer é
que as assertivas do parágrafo anterior estão corretas e que, no dia-a-dia,
não se tem feito o uso de mandado de segurança para os fins do problema
apresentado no item 1.
73
STJ, 2ª T., RMS 353/SP, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 31/10/1990, DJ 25/2/1991,
p. 1.455.
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8 SOLUÇÃO PARA O IMPASSE
Observe-se que não estou defendendo que o que se deva fazer é
manejar os recursos de agravo de instrumento e de apelação simultaneamente. Não, não é isso. O que estou querendo dizer é que alguma solução
deve ser tomada, e o mais rápido possível, para acabar com esta balburdia
que anda nos nossos tribunais. Isso porque há quatro correntes atualmente
que são perfeitamente sustentáveis do ponto de vista jurídico. São elas:
i) apenas apelação,74 ii) agravo de instrumento e apelação concomitantemente,75 iii) medida cautelar,76 e iv) mandado de segurança.77
Uma premissa, porém, precisa ficar muito clara e não se pode, sequer, pretender negá-la: o jurisdicionado tem o direito constitucional de
acessar a segunda instância (TJ ou TRF) imediatamente. Aliás, Dierle
José Coelho Nunes, calcado em doutrina italiana, lembra muito bem que
“deve ser assegurada à parte a possibilidade de reagir imediatamente a
qualquer atividade do juiz no curso do procedimento susceptível de prejudicála de modo direto ou indireto”.78
Ora, se a liminar em mandado de segurança que o jurisdicionado
necessita é urgente e foi negada pelo juiz de primeiro grau na sentença
terminativa, ao indeferir a inicial por ausência de direito líquido e certo, não
é possível sustentar que ele deva interpor recurso de apelação e ali requerer ao tribunal ad quem a atribuição de efeito ativo ou tutela antecipada
recursal para, apenas e quando o relator receber os autos do recurso, pensar se é ou não cabível o pleito.
Também não é correto sugerir que ele aguarde o juízo de
admissibilidade da apelação para, aí, sim, propor medida cautelar incidental
no tribunal ad quem, pois trata-se de requisito para tanto, segundo a jurisprudência pátria e inclusive sumulada do STF.79 É claro que surgirão vozes
lembrando que em casos excepcionais a jurisprudência aceita a cautelar,
74
Cf. item 4.
75
Cf. item 6.
76
Cf. item 5.
77
Cf. item 7.
78
NUNES, Dierle José Coelho. Direito constitucional ao recurso, p. 150.
79
CF. Súmulas 634 e 635 do STF.
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mesmo que não tenha ocorrido ainda o juízo de admissibilidade. No entanto, data venia, é um absurdo deixar na mão da magistratura o poder
de dizer quais são casos excepcionais e quais não são. Isso acarreta
insegurança jurídica. O princípio da segurança jurídica,80 que tem como
núcleo a previsibilidade, está previsto expressamente no art. 5º, caput,
da CR/88, sem falar que o Direito deve sempre buscar a efetivação e a
conservação dele.
Assim, a solução para esse impasse está em acolher alguma das idéias
apresentadas e torná-la como certa e absoluta para a solução da hipótese
apresentada no item 1. Assim, ou o legislador resolve esse empecilho de uma
vez por todas, ou, então, devem os tribunais começar a ser mais flexíveis e
efetivamente aplicar o princípio da fungibilidade. Isso quer dizer que se a
parte manejar a cautelar, mas o entendimento o tribunal é de que seria o caso
de agravo de instrumento, e vice-versa, que se aplique, então, o princípio da
fungibilidade das formas e preste a tutela jurisdicional, não se recusando a
julgar com base em filigranas processuais e formalismo exacerbado.
Com efeito, “é preciso abandonar o mito liberal do processo como
mera garantia de formas, indiferente à realidade social na qual se opera”.81
Em outras palavras, “o que não se pode é transformar o juiz e os sujeitos
parciais do processo em escravos da sua forma. Sua observância deve ser
exigida se imprescindível à obtenção de resultados”.82 E importante salientar, aqui, que a aplicação dos princípios da instrumentalidade e da
fungibilidade não importam em desrespeito ao princípio do devido processo legal, muito pelo contrário.
Assim, a falha na legislação processual consiste na ausência de regra
clara, objetiva e célere que permita o acesso ao tribunal na hipótese de se
negar inferir petição inicial e se negar liminar em mandado de segurança,
tudo ao mesmo tempo e no mesmo ato processual, qual seja, a sentença. A
não-concessão de liminar pode implicar prejuízos muito graves ao impetrante,
razão pela qual urge seja tomada alguma medida para acabar com esse
problema.
80
CF. item 3.
81
MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação da tutela, p. 389.
82
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, p. 100.
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Portanto, a meu ver, manter essa celeuma que acabei de narrar significa, sem a menor sombra de dúvidas, perda de tempo absurda, sem falar
no enorme desrespeito ao cidadão e aos princípios basilares do Estado
Democrático de Direito, quais sejam, o da ampla defesa, o do devido processo legal, o do duplo grau de jurisdição, o da segurança jurídica, o da
inafastabilidade e o da razoabilidade.
9 CONCLUSÃO
A conclusão é muito simples, porém, sua efetivação é difícil. Assim,
numa sentença em sede de mandado de segurança que, ao mesmo tempo,
nega a liminar requerida pelo impetrante e, ainda, extingue o processo sem
a resolução do mérito, deve-se admitir a interposição de agravo de instrumento contra a parte da sentença que indefere a liminar e apelação contra
a parte da decisão que extinguiu o processo, uma vez que não haverá violação do princípio da unirrecorribilidade.83
Tenho que esta seja a melhor solução para o problema apresentado
no item 1, pois permite o acesso imediato do jurisdicionado ao segundo
grau de jurisdição, efetivando, dessa forma, os princípios constitucionais
do duplo grau de jurisdição, da ampla defesa e da inafastabilidade.
Corroborando esse entendimento, estar-se-á prestigiando também
o princípio constitucional da segurança jurídica, que, como já visto, importa em última análise em previsibilidade, ou seja, é preciso que o jurisdicionado
saiba de antemão o que fazer, sendo inconstitucional a manutenção dessa
imprevisibilidade. A interposição de agravo de instrumento e apelação simultaneamente é mais salutar, é tecnicamente mais correta e traz maior
efetividade do que o manejo de medida cautelar, de mandado de segurança ou de interposição apenas do recurso de apelação e aguardar o julgamento pelo tribunal.84
Por fim, tenho plena consciência de que a tese que defendi é rechaçada
pela maioria da doutrina e, principalmente, pela jurisprudência. Também
83
84
Conforme já asseverado no início deste trabalho, essa idéia também pode ser aplicada para os
processos de cognição nos quais a tutela antecipada é deferida ou indeferida apenas na
própria sentença.
Cf. itens 5, 7 e 4.
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gostaria de deixar claro que, longe de mim, achar que sou o dono da verdade. Entretanto, insisto veementemente que é preciso refletir profundamente sobre o assunto. E essa questão não se trata de mero capricho ou
“processualite aguda”, mas, sim, de tema muito sério e relevante para o
bom caminhar da prestação jurisdicional no nosso país.
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O TRABALHO HUMANO NA HISTÓRIA E O
NASCIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO
Lorena Vasconcelos Porto*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. O trabalho humano na história. 1.1 Escravismo.
1.2. Feudalismo. 1.3. Capitalismo. 1.3.1 O liberalismo e a
desigualdade fática. 1.3.2. O surgimento do Direito do
Trabalho. 2. Referências.
1 O TRABALHO HUMANO NA HISTÓRIA
No decorrer da história, as sociedades humanas se organizaram de
formas diferentes para produzir os bens e serviços necessários ao atendimento das suas necessidades. Nesse sentido, surgiram relações de trabalho
– que consistem no modo como os homens se relacionam para propiciar a
modificação da natureza pelo seu engenho – também diversas. O trabalho,
portanto, sempre esteve presente nas sociedades humanas organizadas, embora a sua forma de articulação tenha variado ao longo do tempo.1
Quatro sistemas econômicos ou modos de produção que marcaram
a evolução da civilização ocidental podem ser identificados: o comunismo
primitivo, o escravismo, o feudalismo e o capitalismo.2 Em cada um deles,
os homens se relacionavam de modo diferente para viabilizar a produção,
*
Lorena Vasconcelos Porto é Mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Especialista e
Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma II. Bacharel em Direito pela
UFMG. Advogada.
1
“A atividade laborativa constitui coeficiente imprescindível de todo tipo de organização
social. Das sociedades mais antigas e elementares às mais complexas e evoluídas, o desenvolvimento do consórcio humano viu como fator constante e determinante, exatamente, o trabalho [...]. No curso da evolução histórica [...] mudam as estruturas sociais nas quais o trabalho
foi inserido e as funções que ele concretamente assumiu; de modo correlato, mudaram a
disciplina jurídica das relações de trabalho e a qualificação dos seus sujeitos”. (PERONE,
Giancarlo. Lineamenti di diritto del lavoro: evoluzione e partizione della materia, tipologie
lavorative e fonti, p. 9-10. Tradução nossa
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havendo distinções quanto à propriedade dos meios de produção e à repartição dos frutos advindos do trabalho. Em linhas gerais, pode-se dizer
que no comunismo primitivo a propriedade de tais meios (terras, utensílios,
ferramentas) pertencia a toda a sociedade, todos os seus membros trabalhavam e tinham acesso aos frutos produzidos.
1.1 Escravismo
No escravismo, houve a apropriação dos meios de produção por
uma classe – os senhores – que exploravam o trabalho de outra classe –
os escravos –, apropriando-se, também, dos frutos produzidos. O escravo era considerado, juridicamente, não como pessoa, mas, sim, como
coisa, razão pela qual não era tutelado pelo ordenamento jurídico; tratava-se de um mero objeto de propriedade do senhor, que com ele mantinha uma relação de direito real. Não sendo um sujeito de direitos, o
escravo não podia prestar o consentimento contratual (e, conseqüentemente, contrair obrigações), sendo até mesmo destituído do direito à vida
e ao tratamento digno, embora o senhor estivesse sujeito a sanções penais se o matasse sem motivo.3
A condição de escravo podia derivar de várias situações, como a de
nascer de mãe escrava, de ser prisioneiro de guerra, de sofrer condenação
penal, de descumprir obrigações tributárias, de desertar do exército.4 A
escravidão, entre os egípcios, os gregos e os romanos, atingiu grandes proporções. Na Roma e na Grécia antigas, cerca de 80% da população era
composta por escravos. De fato, com a passagem da República para o
Império, no mundo romano, a escravidão tornou-se a principal forma de
trabalho. Os escravos executavam todo o labor manual, bem como grande
parte das atividades clericais, burocráticas e artísticas5. Na Grécia havia
fábricas de flautas, de facas, de ferramentas agrícolas e de móveis, onde
2
A identificação dos quatro diferentes modos de produção, cuja sucessão marcou a evolução da
civilização européia, foi feita por Karl Marx. (Cf. HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J.
História do pensamento econômico, p. 93)
3
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho, p. 51.
4
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho, p. 50.
5
VIANA, Márcio Túlio. Poder Diretivo e Sindicato: entre a opressão e a resistência. Caderno
Jurídico, p. 20-21.
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todos os trabalhadores eram escravos. Em Roma, os grandes senhores
tinham escravos de várias classes: desde pastores até gladiadores, músicos, filósofos e poetas6. Em troca dos serviços prestados, os escravos
recebiam alimentação e vestuário suficientes para sobreviverem.
A economia era predominantemente agrícola e os senhores apropriavam-se do excedente produzido por seus escravos. Nessa época, foram
escritas algumas obras que procuravam justificar a escravidão. Platão e
Aristóteles, dentre outros filósofos, afirmavam que esse era um fenômeno
“natural”, isto é, o único sistema possível, e que existiria para sempre. Com
efeito, para o estagirita, a escravidão cumpria um papel essencial, era justa
e necessária, pois deixava os homens livres do labor para a as atividades
intelectuais, filosóficas e políticas.7 De fato, as atividades laborativas de
caráter prevalentemente manual, assim como os sujeitos nela empenhados,
eram desvalorizados socialmente.
O crescimento da população e da complexidade das relações sociais fez com que os senhores começassem a utilizar a mão-de-obra de
escravos alheios, cujo serviço arrendavam. Progressivamente, os homens
livres e de baixa renda passaram também a arrendar os seus serviços. As
condições desse contrato, do mesmo modo que as do escravo, eram regidas
pela locação de coisas, cuja denominação genérica era locatio conductio,
a qual surgiu, no mundo romano, por volta dos séculos VII e VI a.C.
Havia três espécies de locatio conductio: a locatio rei (em que uma
parte concedia à outra o uso e gozo de uma coisa em troca de uma retribuição); a locatio operis faciendi (essa figura, pela qual uma pessoa se obrigava a executar uma determinada obra e entregá-la à outra, mediante um
preço e assumindo os riscos, corresponde à atual empreitada); locatio
operarum (na qual uma parte, em troca de remuneração fixada tendo em
vista o tempo gasto na execução, prestava serviços à outra, a qual assumia
6
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas, TEIXEIRA FILHO,
João de Lima. Instituições de direito do trabalho, v. 1, p. 27.
7
HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento económico, p. 11. Segundo
Aristóteles, “há escravos e homens livres pela própria obra da natureza [...] essa distinção
subsiste em alguns seres, sempre que igualmente pareça útil e justo para alguém ser escravo,
para outrem mandar; pois é preciso que aquele obedeça e este ordene, segundo o seu direito
natural, isto é, com uma autoridade absoluta”. (ARISTÓTELES. A política. Livro I, p. 28-29,
apud DELGADO, Mauricio Godinho. O poder empregatício, p. 30.
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os riscos daí advindos). Importa notar que, na Antigüidade Clássica, a locação de obras e de serviços era escassa, se comparada ao trabalho escravo.8
Embora a escravidão tenha permitido a construção de algumas obras
públicas grandiosas e propiciado certa evolução da ciência e da cultura, tais
avanços não são tão significativos, caso se considere que o regime vigorou
durante milênios. Além disso, ele apresenta manifestamente vários problemas. Em primeiro lugar, podemos citar o óbice moral, hoje instransponível,
de justificar a plena degradação da pessoa humana por um sistema social e
de poder. Em segundo lugar, temos a circunstância de esse regime exigir uma
estrutura altamente repressiva para a sua manutenção. Em terceiro lugar, podemos apontar a sua notória ineficiência do ponto de vista organizativo, técnico, cultural, social e político. Finalmente, um grave defeito desse regime é
ter dado origem à idéia de que todo trabalho é indigno, o que desestimulou a
atividade inventiva e, no período romano, limitou o progresso tecnológico,
contribuindo para a estagnação da economia.
O último grande império ocidental caracterizado pelo regime
escravocrata foi o romano, cuja queda, no Ocidente, ocorreu no século V
d.C., ocasionando o surgimento de um novo sistema: o feudalismo.9
1.2 Feudalismo
No feudalismo, os meios de produção também pertenciam apenas a
alguns membros da sociedade: os senhores feudais. Aqueles que não detinham tais meios – os servos da gleba – trabalhavam para o senhor em troca
de proteção. O servo não era livre, pois estava preso à terra e seguia a
sorte desta. De fato, embora não tivesse a condição jurídica do escravo,
pois era considerado como sujeito de direitos, o servo não dispunha de sua
liberdade, uma vez que estava sujeito às mais severas restrições, até mesmo de deslocamento.10
8
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. p. 52-53.
9
HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento económico, p. 11. O Império
Romano do Oriente, por sua vez, prosseguiu até o século XV.
10
Segadas Vianna observa que havia muitas semelhanças entre a servidão e a escravidão. Como
exemplo cita o fato de que o senhor da terra podia mobilizar os servos obrigatoriamente para
a guerra e, sob contrato, cedê-los aos donos das pequenas oficinas existentes na época. (Apud
SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. p. 30)
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A sociedade feudal era estamental, organizada com base em uma
rígida e praticamente imóvel hierarquia: o camponês (servo da gleba) recebia a proteção do senhor feudal, o qual, por sua vez, devia lealdade e era
protegido por um senhor mais poderoso, e assim sucessivamente, até culminar no rei, figura máxima na escala hierárquica. Os fortes protegiam os
fracos, mas em troca de um preço elevado. Os senhores concediam a seus
vassalos o feudo (direito hereditário de usar a terra) em troca de pagamentos em dinheiro, alimentos, trabalho ou lealdade militar. Na base da pirâmide hierárquica estava o servo, que cultivava a terra.
Como não havia uma autoridade central forte para impor um sistema
de leis, as relações sociais eram regidas pelos costumes e tradições do
feudo, os quais tinham grande influência na determinação do modo de viver
e de pensar das populações medievais. Ilustrativamente, na Inglaterra, “um
senhor podia impor sanções a outro que, como vassalo seu, houvesse violado repetidamente os costumes no tratamento dispensado aos servos”.11
O termo “servo” origina-se da palavra latina servus, que significa
“escravo”. Todavia, a servidão apresentava diferenças importantes em relação à escravidão. O escravo, como vimos, era uma propriedade do senhor, passível de ser comprado e vendido à revelia de sua vontade; o servo, ao contrário, não podia ser separado de sua família ou da terra. Quando o senhor transferia a posse do feudo, o servo era com ela transferido,
passando a se submeter ao novo senhor.
Todavia, o servo também estava sujeito, em graus variáveis, a obrigações por vezes pesadas e, assim, estava longe de ser livre. Cumpre notar
que a Igreja Católica foi, durante a Idade Média, a maior proprietária de
terras na Europa Ocidental, divididas em feudos, nos quais era mantido o
mesmo sistema acima descrito.
Havia também uma grande quantidade de cidades dispersas pela Europa, muitas das quais se destacavam como importantes centros
manufatureiros. Os bens produzidos eram vendidos aos feudos ou negociados no comércio distante. A identidade de profissão, como força de aproximação entre os homens, levou-os a se unirem, para assegurar direitos e
prerrogativas, surgindo as corporações de ofício, também denominadas
11
HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento económico, p. 13.
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LORENA VASCONCELOS PORTO
“associações de artes e misteres” ou guildas. Eram corporações de artesões, comerciantes e outros ofícios, sendo as instituições econômicas dominantes nas cidades e cuja origem remonta ao Império Romano.12 Para
produzir ou vender determinado bem ou serviço, era necessário estar filiado
a uma guilda, a qual regulamentava minuciosamente tais atividades econômicas.13
Um dos preceitos morais mais importantes na época medieval, por
influência da ética cristã, era que os comerciantes tinham de vender suas
mercadorias pelo chamado “justo preço”, isto é, um preço que compensasse os esforços relativos ao transporte do produto e à busca do comprador, suficiente apenas para manter a sua condição tradicional e costumeira.
Assim, o objetivo deveria ser a reprodução das condições de vida, e não a
acumulação de riqueza, condenada com severidade.
Outro preceito importante, no sentido também de inibir a acumulação, era a proibição da usura, isto é, do empréstimo de dinheiro a juros.
Na Inglaterra, ilustrativamente, foi promulgada uma lei proibindo a usura,
sob pena de prisão.14 A Igreja a considerava uma infração das mais condenáveis, pois naquela época se recorria ao empréstimo por motivo de
necessidade e sobrevivência, e não para investir, obter lucros e acumular riqueza.15 Tais valores, subjacentes ao sistema feudal, são opostos
aos que, mais tarde, prevaleceriam no capitalismo: “O desejo de maximizar
os ganhos monetários, acumular riquezas materiais, progredir social e
12
Dentre os romanos, em paralelo ao trabalho escravo – que era o predominante –, havia
aqueles que exerciam uma atividade laborativa com autonomia, em regime de liberdade, como
os artesãos. Suas associações, denominadas colégios (collegia), com finalidade religiosa e de
socorro mútuo, provavelmente foram fundadas por Numa Pompílio. (C. BARROS, Alice
Monteiro de. Curso de direito do trabalho, p. 52). De tais colégios se originaram as
posteriores corporações de ofício medievais.
13
HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento económico, p. 14, e
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho, p. 55.
14
15
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem, p. 46.
HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento económico, p. 20, e VIANA,
Márcio Túlio. Poder diretivo e sindicato: entre a opressão e a resistência. Caderno Jurídico,
p. 26. Com o tempo, esse espírito e essas práticas foram se modificando profundamente. De
acordo com as novas religiões protestantes – luteranismo – e, sobretudo, com o calvinismo –
, o que era pecado (juros, acumulação, cobiça), tornou-se um sinal da graça divina e de virtude.
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economicamente através de um comportamento aquisitivo haveria de se
tornar a força motriz dominante no sistema capitalista”.16
1.3 Capitalismo
Mas o modo de produção que nos interessa é o capitalismo, instaurado definitivamente a partir da Revolução Industrial nos séculos XVIII e
XIX.17 A invenção da máquina – como a de fiar, o tear mecânico e a máquina a vapor – e sua aplicação à indústria provocaram uma revolução nos
métodos de trabalho e, conseqüentemente, nas relações entre patrões e
trabalhadores. O centro produtivo foi deslocado do campo para a cidade,
da produção agrária para a indústria. Mas não adiantava à nova classe
dominante – a burguesia – ser proprietária das fábricas e equipamentos,
dos meios de produção; ela necessitava do trabalho humano, para, articulando-o com as máquinas, transformar as matérias-primas nos produtos a
serem ofertados ao mercado, em crescente expansão.
1.3.1 O liberalismo e a desigualdade fática
Havia nas cidades um grande contingente de trabalhadores livres:
libertos das imposições feudais, mas também dos meios necessários à sobrevivência deles. Para utilizar essa mão-de-obra abundante, mas sob a
aparência de total liberdade, engendrou-se o trabalho assalariado. O excamponês ou ex-artesão podia se tornar um operário, trabalhando nas nascentes fábricas em troca de uma remuneração, com a qual poderia adquirir
no mercado os bens e serviços necessários à sua subsistência. Se à primeira vista o novo sistema conferia uma liberdade muito maior do que os anteriores – pois o escravo e o servo eram obrigados a trabalhar para os seus
senhores –, na verdade, essa liberdade era mais aparente do que real. Sem
a terra para cultivar e sem as ferramentas do trabalho artesanal, a escolha
consistia em trabalhar como operário ou morrer de fome.
16
17
HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento económico, p. 18-20.
“Na segunda metade do século XVIII, teve início, na Inglaterra, um processo de desenvolvimento
industrial que recebeu o nome de ‘Revolução Industrial’ [...]. A mudança revolucionária é, na
realidade, a instalação, de forma definitiva, do modo de produção capitalista.” (FARIA, Ricardo de
Moura; MARQUES, Adhemar Martins; BERUTTI, Flávio Costa. História, v. 3, p. 142)
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Mas o operário não enfrentava apenas a ausência real de liberdade;
trabalhando jornadas longuíssimas, sem descansos ou repousos, expondo
a risco, muitas vezes, a vida e a integridade física, recebia em troca uma
remuneração insuficiente (ou no limite mínimo da suficiência) para proverlhe a subsistência e a de sua família. Crianças e mulheres eram exploradas
ainda mais. O trecho abaixo, sobre a situação da classe operária na Inglaterra, revela claramente as condições de trabalho e de vida naquela época:
Mais desagradável ainda do que o próprio advento da fábrica foram as condições humanas que esse advento acarretou. O trabalho, por exemplo, era habitual e, às vezes, começava aos quatro anos de idade; o horário de trabalho
se estendia do amanhecer ao anoitecer, e abusos de toda
natureza eram por demais freqüentes. Uma comissão parlamentar designada em 1832 para examinar tais condições,
obteve o seguinte depoimento do administrador de uma fábrica: ‘P: A que horas da manhã, com tempo bom, essas
moças chegam à fábrica? R: Com tempo bom, durante cerca de seis semanas, chegam às três da manhã e saem às
dez ou dez e meia da noite. P: Que intervalos existem durante essas dezenove horas de trabalho para alimentação e
descanso? R: Quinze minutos, respectivamente para almoço, lanche e jantar. P: Alguns desses intervalos são utilizados
para a limpeza das máquinas? R: Quase sempre as moças
são obrigadas a fazer o que chama de ‘pausa seca’; às vezes a limpeza toma todo o intervalo do almoço ou do
lanche. P: Não há dificuldades para acordar essas jovens
depois de um trabalho exaustivo como esse? R: Há sim; de
madrugada, é preciso sacudi-las para que acordem.
P: Tem havido acidentes com elas em conseqüência desse trabalho? R: Sim, minha filha mais velha esmagou o dedo
na engrenagem. P: Perdeu o dedo? R: Teve que ser cortado
na segunda falange. P: Ela recebeu pagamento durante o
acidente? R: No dia em que aconteceu o acidente, o pagamento foi suspenso’. Tempos sombrios aqueles... . 18
18
HEILBRONER, H. A formação da sociedade econômica, p. 108-109, apud FARIA, Ricardo
de Moura; MARQUES, Adhemar Martins; BERUTTI, Flávio Costa. História, p. 148, grifos
nossos.
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Mesmo admitindo-se que o operário detinha maior liberdade do que
o escravo ou o servo – o que é discutível –, suas condições de trabalho e
de vida talvez fossem até piores. Com efeito, como o escravo compunha
parte valiosa do patrimônio do senhor, este tinha interesse na preservação
da sua saúde e integridade física. Ao contrário, o industrial explorava ao
máximo o operário e, depois, simplesmente o “descartava”, tratando-o como
se “fungível” fosse, pois a substituição dele não lhe causava prejuízos. Na
Grécia, ao menos em teoria, os escravos eram bem mais valorizados do
que os excluídos de hoje, uma vez que proviam a subsistência dos cidadãos, libertando-os para a vida política e filosófica. Assim, ao invés de
redundantes, eram vistos como necessários, imprescindíveis.19
Na Idade Média, como observa Márcio Túlio Viana, o servo da gleba
contava com a proteção das “redes primárias de solidariedade” então vigentes e com a relação de cunho “paternal” existente entre ele e o senhor do
castelo.20 De fato, Giovanni Boccaccio, célebre escritor italiano do século
XIV, utilizava o termo “familiares” para designar os servos.21 Com efeito, se
os servos não podiam deixar a terra, eles também não podiam ser dela retirados; depositavam o próprio destino nas mãos do senhor, o qual estava comprometido a protegê-lo, bem como a sua família, durante toda a vida. Tratava-se, assim, de uma verdadeira segurança de subsistência, com a qual não
contavam os operários das fábricas capitalistas.
O mesmo ocorria nas cidades medievais, no âmbito das corporações
de ofício, pois que nelas se fazia presente “um impulso de solidariedade,
que permeia o espírito medieval e leva artesãos e comerciantes a cultivarem de forma associativa, ao lado das revigoradas e ampliadas, atividades
19
VIANA, Márcio Túlio. Poder diretivo e sindicato: entre a opressão e a resistência. Caderno
Jurídico, p. 21-22.
20
VIANA, Márcio Túlio. Poder diretivo e sindicato: entre a opressão e a resistência. Caderno
Jurídico, p. 20-27.
21
BOCCACCIO. Cinque novell, p. 8. Hunt e Sherman observam que os senhores necessitavam de uma ideologia que legitimasse o statu quo feudal. Tal ideologia foi a versão medieval da
tradição judeu-cristã, um código moral denominado por vezes ética de corporação cristã,
chamado pelos autores de ética paternalista cristã. Esta compara a sociedade a uma família: os
homens que têm poder e riqueza assemelham-se aos pais, tendo obrigações para com os
homens comuns, os filhos. Estes deveriam aceitar o seu lugar na sociedade, submetendo-se à
liderança dos poderosos, do mesmo modo como um filho aceita a autoridade do pai.
(Cf. HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento económico, p. 14-15)
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econômicas, deveres de assistência”.22 De fato, ilustrativamente, na hipótese de invalidez ou morte do artesão, as corporações os amparavam ou às
famílias deles, respectivamente.23
Por tais razões, talvez o trabalho nunca tenha feito tanto jus à sua
origem etimológica do que nos primórdios da Revolução Industrial. Acredita-se que a palavra “trabalho” derive do latim vulgar tripaliare, que significa “martirizar com o tripalium”, um instrumento de tortura composto
de três paus.24 Em várias línguas, a palavra “trabalho” contém o sentido do
esforço, da fatiga, da pena à qual a pessoa se sujeita para conseguir o
resultado econômico desejado. Como assinala Rúbia Zanotelli de Alvarenga,
“a palavra ‘trabalho’ sempre foi considerada, do ponto de vista etimológico,
desde os primórdios da humanidade, portadora de uma história existencial
recheada de culturas e pensamentos ligados à tortura e ao castigo”.25
Muitos afirmam que, no sistema capitalista, a relação de trabalho
sofreu uma mudança radical em relação à escravidão e à servidão, pois se
fundamenta na idéia de contrato, no acordo de vontades entre dois sujeitos
livres. O escravo e o servo, ao contrário, prestam o trabalho contra a sua
vontade, sendo vinculados por razões diversas do seu consentimento (v.g.,
nascimento, guerra, condenação penal, etc.). Não são livres juridicamente,
não cumprindo a sua vontade qualquer papel na formação e reprodução da
relação produtiva. No contrato de trabalho, embora mediado pelo homem,
o poder incide apenas sobre a atividade dele, ao passo que na escravidão
e na servidão incide sobre o ser humano. Nesse sentido, liberdade e vontade são traços distintivos entre a relação de produção contemporânea, antigas e medieval.
A nosso ver, todavia, a grande diferença é que na escravidão e na
servidão o poder jurídico incidia sobre a pessoa, ao passo que na relação
22
PERONE, Giancarlo. Lineamenti di diritto del lavoro. p. 12, tradução nossa.
23
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho, p. 56, e VIANA, Márcio Túlio.
Poder diretivo e sindicato: entre a opressão e a resistência. Caderno Jurídico, p. 25.
24
CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa, p.
779, apud BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho, p. 49.
25
ALVARENGA, Rúbia Zanotelli. As funções do direito do trabalho em face do novo inciso I do
art. 114 da Constituição da República de 1988. In: DELGADO, Mauricio Godinho;
THEODORO, Maria Cecília Máximo; PEREIRA, Vanessa dos Reis (Coord.). Relação de
trabalho: fundamentos interpretativos para a nova competência da Justiça do Trabalho, p. 58.
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de trabalho isso não ocorre, pois o trabalhador é juridicamente livre e
igual ao seu patrão. Mas essa incidência ocorre de fato. No entanto, ela
é dissimulada – e, assim, legitimada – pela idéia de trabalho livre. Não
deixa de se fazer presente um discurso ideológico, para legitimar e manter o sistema. Com efeito, enquanto o escravo e o servo tinham consciência de que não eram livres e, assim, lutavam pela liberdade, o empregado
é convencido de que é livre – quando de fato não é, pois que, despossuído
dos meios de produção, não tem outra escolha – para não lutar pela sua
liberdade real.
Destarte, se à primeira vista esse discurso parece ser humanitário e
democrático – não é a pessoa, e sim sua energia que sofre a sujeição – é
em verdade um discurso conservador, que cumpre uma função ideológica
de manutenção do statu quo, mascarando a realidade.26 Por isso alguns
autores observam que “o poder de sujeição jurídica nessa relação (de trabalho) resta mascarado, oculto, por detrás do véu da invenção do contrato
individual de trabalho”.27 O capitalismo obteve, assim, um resultado mais
profundo e eficiente e sob uma aparência totalmente diversa, quando confrontado com a escravidão e a servidão; e talvez, por isso mesmo, mais
duradouro, ao contrário do que previa – e esperava – Karl Marx.
Por outro lado, o reconhecimento da liberdade e da vontade abre
um caminho muito relevante para a democratização do exercício do poder
na relação empregatícia na sociedade contemporânea. Assim, embora a
liberdade seja extremamente reduzida, sua possibilidade jurídica, formal, já
26
Por isso, alguns autores afirmam que “não se pode contratar um braço. O homem vem junto
com ele” (Russomano); “não sendo possível separar-se a pessoa do trabalhador do trabalho
a que se obrigou a realizar, o subordinado, no cumprimento de sua obrigação de trabalhar,
também é pessoalmente atingido” (Catharino); “dizer que o poder ‘recai sobre a atividade’ é
apenas afirmar que não pode extrapolar o campo de trabalho. Mas não significa que – nesse
campo – deixe de incidir sobre o homem. Não há como separá-lo de sua própria força motriz”
(Márcio Túlio Viana) (VIANA, Márcio Túlio. Poder diretivo e sindicato: entre a opressão e
a resistência. Caderno Jurídico, p. 18, e CATHARINO, José Martins. Compêndio universitário de direito do trabalho, v. I, p. 252). Alain Supiot observou que “não ver que a dominação
adquirida sobre os trabalhadores na relação de emprego é antes de tudo uma dominação física
é não ver o nariz no meio do rosto”. (SUPIOT, Alain. Critique du droit du travail, p. 56,
tradução nossa)
27
LASTRA LASTRA, J. M. La fuerza de una relación jurídica débil. In: VILLALOBOS, P.;
KURCZYN, P.; PUIG HERNÁNDEZ, C. A. (Coord.). Estudios jurídicos en homenaje al
doctor Néstor De Buen Lozano, p. 460, tradução nossa.
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é um avanço, em comparação com os sistemas produtivos anteriores, pois
permite a busca da sua existência real, para a qual é imprescindível a atuação coletiva dos trabalhadores. É possível lutar pelo ideal da “conquista
democrática da empresa”, nas palavras de Mauricio Godinho Delgado,
para a qual o ser coletivo obreiro é protagonista decisivo.28 E, caso a empresa se torne de fato democrática, “a subordinação será realmente transformada em cooperação ou colaboração e o trabalhador será mais livre”,
acrescenta Catharino.29
A Revolução Francesa varreu os últimos vestígios da servidão. Em
seu contexto foi editada, em 17 de junho de 1791, a Lei “Le Chapelier”
(que deve seu nome ao seu propositor), que proibia todo tipo de associação de indivíduos de mesma profissão, como as corporações de ofício.
Esse diploma – em plena consonância com o espírito liberal, afirmado pela
Revolução –, visava impedir a existência de corpos intermediários, com
seus respectivos poderes normativos entre o indivíduo e o Estado. De fato,
como observa Luiz Otávio Linhares Renault, os revolucionários vitoriosos,
nos calorosos debates perante a Assembléia nacional, diziam: “Deixai o
homem livre diante de suas necessidades e ele fará prodígios”.30
Consagra-se o princípio de que em uma sociedade (supostamente)
livre, igual e soberana, os interesses dos indivíduos, inclusive aqueles profissionais, podem ser tutelados apenas por meio da liberdade contratual.
Na verdade, como apontam vários autores, o objetivo maior do diploma
não foi propriamente abolir as corporações de ofício (já em crise e em vias
28
29
30
O sistema do trabalho assalariado dispensa a coerção para alcançar os seus objetivos econômicos, sendo esta a sua diferença qualitativa fundamental com relação aos sistemas produtivos anteriores. É por tal razão que somente o sistema atual é permeável ao avanço democrático (DELGADO, Mauricio Godinho. O poder empregatício, p. 195). O professor alemão
Ulrich Mückenberger observa que “a relação de emprego deve ser baseada nos princípios do
diálogo e da igualdade de direitos, não mais na autoridade do empregador e na dependência
pessoal”. Ele procura demonstrar que os “direitos de cidadania na empresa” geram efeitos
positivos não apenas para os trabalhadores envolvidos, mas também em relação à produtividade, o que beneficia a própria empresa e a sociedade como um todo. (Apud
MÜCKENBERGER, Ulrich. Towards a new definition of the employment relationship.
International Labour Review, p. 685 e 692-693)
CATHARINO, José Martins. Compêndio universitário de direito do trabalho, p. 262.
RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Antecedentes históricos do contrato de trabalho. In:
______; DIAS, Fernanda Melazo; VIANA, Márcio Túlio (Coord.). O novo contrato a
prazo, p. 81.
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de desaparecimento na época), mas, sim, proibir as novas tentativas dos
trabalhadores de se organizarem em sindicatos.31 Tal proibição foi adotada
também por diversos outros países.32
Karl Marx e Friedrich Engels observam que, além de causar desigualdades gritantes, o capitalismo impede os homens de desenvolverem
suas potencialidades, de se realizarem do ponto de vista emocional e intelectual. Nos sistemas econômicos anteriores, como o feudalismo, apesar
de assentados também na exploração, o homem foi capaz de obter a autorealização no processo de trabalho. De fato, este não representava apenas
um meio de obter dinheiro, pois as relações sociais, embora envolvessem a
exploração, possuíam também caráter pessoal e paternalista. O capitalismo suprimiu essa possibilidade, retirando a dimensão ética das relações de
trabalho e deixando tão-somente a dimensão econômica.33
Os trabalhadores, livres do status que, no sistema corporativo, havia impedido as relações profissionais de se fundarem na liberdade contratual,
no período da legislação liberal, inaugurado pelas revoluções burguesas,
continuaram sem a capacidade efetiva de determinação negocial das condições de trabalho, como a jornada laborativa e a remuneração. De fato,
as previsões formais do legislador não correspondiam à realidade concreta. O obreiro, ainda que desvinculado da regulamentação heterônoma ditada pelas corporações e do aparato sancionatório que a reforçava no plano
penal, não se tornou realmente livre, nem igual, em relação à outra parte do
contrato, isto é, ao patrão. Ao contrário, ele permaneceu abandonado ao
domínio do poder econômico e, conseqüentemente, do poder contratual
do empregador, o que resultou, obviamente, no aviltamento das condições
de trabalho.
De fato, a liberdade econômica sem limites conduziu à opressão dos
mais fracos, gerando, segundo alguns autores, uma nova forma (talvez mais
31
Nesse sentido, cf. CATHARINO, José Martins. Tratado elementar de direito sindical, p. 15-16.
32
PERONE, Giancarlo. Lineamenti di diritto del lavoro, p. 17.
33
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista, p. 70-71. Marx procurou demonstrar que o novo sistema conduziu à completa alienação do trabalhador. O próprio
Adam Smith, grande idelizador do liberalismo econômico, observou que “o homem que
dedica toda sua vida à execução de algumas poucas operações simples [...] chega aos limites
da estupidez e da ignorância de que é capaz uma criatura humana”. (SMITH, Adam. The
wealth of nations, p. 80)
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perversa) de escravidão.34 É o que nos revela a célebre frase de Lacordaire:
“Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza,
é a lei que liberta”.35
Com a divisão de tarefas operada dentro das fábricas, a prestação
laborativa se tornou bem mais simples, consistindo, basicamente, na execução de atos elementares e repetitivos, ao contrário da complexidade e
engenho exigidos dos artesãos medievais que realizavam todo o produto,
do início ao fim.36 Assim, a prestação laborativa perde em qualidade, o que
torna os trabalhadores facilmente “fungíveis”, substituíveis. Isso permite ao
industrial decidir quem irá empregar, podendo, na ausência de limitações
normativas, aplicar o critério do menor custo salarial, pois não precisava
levar em conta o grau e a especificidade da qualificação do trabalhador e
suportar as respectivas exigências remuneratórias. Nesse contexto, passou
a ser intensamente explorado o trabalho de mulheres e crianças (denominadas “meias-forças de trabalho dóceis”), uma vez que aceitavam salários
menores e ofereciam menor resistência à exploração ilimitada, o que ocasionava, como conseqüência, o rebaixamento do salário masculino adulto.37
Diante dessa situação, o Estado Liberal portava-se como mero espectador, pois, seguindo os dogmas do liberalismo econômico, sintetizados na fórmula de Vicent Gournay – laissez-faire, laissez-passer –, sua
função seria apenas garantir a ordem social e política, com um aparato
coercitivo organizado, conferindo aos particulares ampla liberdade de ação
econômica e atuando como forte instrumento de repressão para garantir a
34
Segadas Vianna observa que a garantia da igualdade formal não impediu que “o cidadãoproletário, politicamente soberano no Estado, acabasse, economicamente, escravo na fábrica”. (Apud SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho, p. 34, 36)
35
LIBÉRALISME politique. Wikipédia: l’encyclopédie libre. Disponível em: <http://
fr.wikipedia.org/wiki/Lib%C3%A9ralisme_politique>. Acesso em: 14 nov. 2006.
36
André Gorz se refere ao capitalismo como “barbárie da fábrica, divisão hierárquica, parcelar,
do trabalho militarizado”. (GORZ, André. O despotismo da fábrica e seu futuro. [GORZ,
André (Coord.). Divisão social do trabalho e modo de produção capitalista, p. 92]
37
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho, p. 59. Marx e Engels notaram que
“quanto menos habilidade e dispêndio de força o trabalho moderno exige, isto é, quanto mais a
indústria moderna se desenvolve, tanto mais o trabalho dos homens é suplantado pelo das
mulheres e crianças. Diferenças de sexo e de idade já não têm qualquer validade social para a
classe operária. Há apenas instrumentos de trabalho que, segunda a idade e o sexo, têm custos
diferentes.” (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista, p. 75)
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ordem vigente. Assim, ele intervinha apenas para assegurar a propriedade
privada e reprimir as revoltas sociais.
O absenteísmo estatal se refletia na legislação da época, de inspiração liberal, como o Código Civil Napoleônico de 1804, que previa apenas
dois dispositivos sobre o contrato de locação de serviços: o art. 1780, que
proibia o contrato por toda a vida, e o art. 1781, que estabelecia que, em
caso de controvérsia quanto ao salário, as afirmações do patrão seriam
consideradas verdadeiras.38 O segundo dispositivo, na verdade, revela que
a lei não se limitava a consagrar a igualdade formal no tratamento das partes – empregado e empregador –, mas, em alguns pontos, tratava-as desigualmente em benefício do patrão, aprofundando ainda mais a supremacia
fática desse último.
1.3.2 O surgimento do Direito do Trabalho
A opressão e exploração vivenciadas pelos operários, reunidos nas
fábricas, convivendo lado a lado, fez surgir uma maior solidariedade e
união entre eles, o que resultou na formação dos sindicatos e nas duras
lutas por estes empreendidas. Na Inglaterra, as palavras de ordem passaram a ser eight hours to work, eight hours to play, eight hours to
sleep, eight shillings a day, revelando as reivindicações obreiras, relativas, sobretudo, à duração do trabalho (jornada e descansos) e à remuneração.39
Essa pressão crescente – unida a outros fatores, como os de natureza ideológica (v.g., anarquismo, socialismo marxista, doutrina social da
Igreja Católica, na qual se destaca a Encíclica “Rerum Novarum”, de
1891, do Papa Leão XIII) – resultou na mudança de postura por parte
do Estado, que abandonou a posição de inércia e passou a intervir nas
relações de trabalho. De fato, “o trabalho, libertado pelas Revoluções liberais, exige ser protegido pelo Estado, o qual é impelido a fazê-lo diante da
38
RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Antecedentes históricos do contrato de trabalho. In:
RENAULT, Luiz Otávio Linhares; DIAS, Fernanda Melazo; VIANA, Márcio Túlio (Coord.).
O novo contrato a prazo, p. 81.
39
RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Antecedentes históricos do contrato de trabalho. In:
RENAULT, Luiz Otávio Linhares; DIAS, Fernanda Melazo; VIANA, Márcio Túlio (Coord.).
O novo contrato a prazo, p. 83.
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expansão dos conflitos sociais; e o trabalho se atribui, além disso, uma tutela
autônoma, graças ao uso de instrumentos de disciplina coletiva”.40
A ordem jurídica não podia continuar tratando igualmente empregado e empregador, quando a realidade demonstrava a enorme desigualdade, continuamente aprofundada. Sendo o Estado uma força suprema, acima de grupos e interesses, é a ele que cabe o imprescindível papel de
mediação e de equilíbrio. Deve intervir como representante dos interesses
gerais para conter os interesses individuais, relativizando-os e limitando-lhe
o exercício.
É essa a postura estatal exigida pelas Constituições sociais, que buscam a igualdade substancial, em clara oposição à ordem jurídica liberal,
que assegurava apenas a igualdade formal. Esta apenas tendia a agravar as
desigualdades sociais já existentes, aumentando ainda mais o fosso que
separava os mais abastados dos mais desfavorecidos. Tratava-se de um
modelo, como observou ironicamente Anatole France, que consagrava “a
majestosa igualdade das leis que proíbe tanto o rico como o pobre de
dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de furtar um pão”.41 Somente
com a intervenção do Estado, estabelecendo até mesmo diferenças de tratamento em benefício dos setores sociais mais fracos, seria possível corrigir
tais situações de intolerável desigualdade fática entre os homens para se
alcançar maior justiça social.
O Estado deve atuar, assim, positivamente e ampliar suas atribuições, seja regulamentando a iniciativa privada, seja fomentando-a e vigiando-a, seja substituindo-a em benefício do interesse público. Somente desse modo é possível alcançar melhor repartição da riqueza e do poder, bem
como maior justiça social, que estão na base do bem-estar da sociedade. É
nesse sentido que deve ser compreendida a criação do Direito do Trabalho. O surgimento desse ramo jurídico marca a transição do Estado Liberal
para o Estado Social de Direito, o qual visa alcançar a igualdade real ou
substancial.
40
41
PERONE, Giancarlo. Lineamenti di diritto del lavoro, p. 22, tradução nossa. Para manter o
sistema vigente, ameaçado pelos conflitos que agitavam a sociedade, era necessário fazer
concessões: era preferível perder os anéis do que os próprios dedos.
FRANCE, Anatole. Le lys rouge, p. 118, tradução nossa.
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Destarte, tornou-se clara a essencialidade da ação interventiva do
Estado, como ressalta Ripert:
Cabe ao Estado intervir para proteger os fracos. O dever
que cada particular não cumpre em relação ao próximo, e a
que, em todo o caso, a lei não pode obrigá-lo, pertence ao
Estado cumpri-lo em nome de todos e, quando passa a ser
um dever do Estado, torna-se um direito para quem se beneficia dele.42
Nesse sentido, observa Cesarino Júnior que “o fim imediato das leis
sociais é a proteção aos fracos – concordamos. Mas, não é o único. Por
intermédio dessa proteção o que o Estado realmente visa é assegurar a paz
social, o interesse geral, o bem comum”.43
Sinteticamente, Evaristo de Moraes Filho aponta como principais
causas para o surgimento do Direito do Trabalho, no contexto mundial: os
problemas e respectivas conseqüências do liberalismo econômico e político; o maquinismo; a concentração de capitais e de massas humanas; as
lutas de classes e as conseqüentes rebeliões sociais, com destaque para o
Ludismo e o Cartismo na Inglaterra; as Revoluções de 1848 e 1871, na
França, e de 1848, na Alemanha; os acordos entre grupos profissionais e
econômicos que regulavam as relações entre operários e patrões, cuja força normativa, posteriormente, foi reconhecida pelo Estado; a Encíclica
Rerum Novarum; a I Guerra Mundial (1914-1918), cujo fim conferiu ao
Direito do Trabalho posição definitiva nos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais.44 Nesse sentido, destacam-se o Tratado de Versalhes
(1919), que criou a Organização Internacional do Trabalho (OIT), e as
Constituições Mexicana (1917) e Alemã de Weimar (1919), que foram as
primeiras Cartas Constitucionais no mundo que previram institutos de
Direito do Trabalho.
42
43
44
SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho, p. 38.
CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. Direito social brasileiro, v. I, p. 38. Nesse sentido
é que se observa o caráter ambíguo do Direito do Trabalho: proteger os trabalhadores e
assegurar a vigência e a funcionalidade do sistema capitalista.
MORAES FILHO, Evaristo de. Tratado elementar de direito do trabalho, v. I, p. 47.
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Desse modo, seja por meio da atividade estatal, seja por meio da
negociação coletiva, foram surgindo normas destinadas e reger as relações
de trabalho, estabelecendo condições mínimas (e.g., salário, jornada, repousos semanais, férias, proibição do trabalho infantil) que deveriam ser
respeitadas nas relações individuais. Esse conjunto normativo veio a ser
denominado “Direito do Trabalho”. Este nasce, assim, em um contexto no
qual o trabalho é tratado pelo ordenamento jurídico como se fosse uma
mercadoria qualquer colocada no mercado para reagir a essa concepção
puramente economicista.
O Direito do Trabalho surgiu em um contexto marcado pela desigualdade econômica e social para conferir proteção aos operários, garantindolhes condições mínimas de trabalho e de vida, por meio de normas imperativas, de força cogente, insuscetível de renúncia pelas partes. Com efeito, a
realidade havia comprovado que sem a intervenção normativa, ou seja, se
permitida a livre negociação pelas partes do contrato, o trabalhador não teria
acesso a tais condições. A existência de um “exército de reserva de mão-deobra” permitia ao capitalista – caso estivesse livre de qualquer coerção
normativa – impor ao operário condições miseráveis e indignas.
O Direito do Trabalho nasceu, portanto, para tutelar os trabalhadores hipossuficientes, que necessitavam da sua proteção normativa para alcançar um nível de vida digno. De fato, como observa João José Abrantes,
a essência, a função social, os valores subjacentes ao Direito do Trabalho
visam “à garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana”.45
2 REFERÊNCIAS
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do novo inciso I do art. 114 da Constituição da República de 1988. In: DELGADO, Mauricio Godinho; THEODORO, Maria Cecília Máximo; PEREIRA, Vanessa dos Reis (Coord.). Relação de trabalho: fundamentos
interpretativos para a nova competência da Justiça do Trabalho. São Paulo:
LTr, 2006.
45
ABRANTES, José João. Contrato de trabalho e direitos fundamentais, p. 255-256.
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O TRABALHO HUMANO NA HISTÓRIA E O NASCIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO
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AS GUELTAS E A PROVA DIABÓLICA NO
DIREITO DO TRABALHO
Bernardo Giusti Werneck Côrtes*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Introdução. 2. Salário. 2.1. Gueltas: definição.
2.2. Composição das gueltas no salário. 3. As provas no
direito do trabalho. 3.1. Prova diabólica: definição.
4. Conclusão. 5. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O Contrato de Trabalho, instituto trabalhista de grande importância
nas relações entre empregado e empregador, certamente traz incontáveis
discussões sobre seus efeitos, parcelas integrantes, conseqüências de seus
termos e da maneira como é celebrado, e muitas vezes cria novos conceitos de modo a se adaptar às constantes evoluções.
O contrato de trabalho, conforme a CLT (art. 442 e 443), é o acordo de vontades, correspondente à relação de emprego, seja ele verbal ou
por escrito, expresso ou até mesmo tácito, apresenta inúmeras particularidades e inovações, requerendo sejam a todo o momento acompanhadas
pelas mudanças legais e pelos estudos dos doutrinadores.
Algumas dessas inovações surgidas no mundo jurídico foram a prova diabólica e as chamadas gueltas, que têm sido praticadas constantemente no mercado de trabalho pelos principais fabricantes de bens de consumo, como meio de “incentivo” às vendas de seus produtos. O fato de ser
raramente abordado pela doutrina e pela jurisprudência torna difícil o esgotamento do tema e o estudo pacífico de suas conseqüências.
Importante, dessa forma, determinar os reflexos de tal prática, principalmente no contrato de trabalho e no salário. Nessa esteira, passaremos
*
Advogado.
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a uma rápida conceituação de contrato de trabalho, salário e remuneração,
a fim de que possa se evoluir no tema.
O art. 442 da CLT define o conceito de contrato de trabalho da
seguinte maneira: “contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”. Seu objeto é a prestação
de serviço subordinado e não eventual do empregado ao empregador,
mediante o pagamento de salário. Seus requisitos principais são: que o
trabalho seja prestado com habitualidade, fazendo com que aquele que
presta serviços apenas eventualmente não seja configurado na relação e
emprego; a existência de subordinação – o obreiro exerce sua atividade
com dependência ao empregador, por quem é dirigido; a onerosidade, na
medida em que não é gratuito, e o empregado recebe salário pelos serviços
prestados ao empregador, como contraprestação; a pessoalidade, por ser
intuitu personae, ou seja, realizado com certa e determinada pessoa, não
podendo o Empregado fazer-se substituir por outra pessoa, sob pena do
vínculo se formar com a última. Como características deste instituto, o contrato de trabalho é bilateral, consensual, oneroso, comutativo e de trato
sucessivo. Não é um pacto solene, pois independe de quaisquer formalidades, podendo ser ajustado verbalmente ou por escrito (art. 443 CLT).
A definição de contrato de trabalho foi bem direta e sucinta no seguinte artigo:
O contrato de trabalho poderá ocorrer de forma escrita, verbal ou tácita (não expresso, subentendido). O contrato escrito normalmente se dá na própria carteira de trabalho do empregador (CTPS), conforme exigido pela lei trabalhista. Também é muito comum sua adoção na hipótese de contratos de
trabalho com características próprias e específicas, como é o
caso dos firmados com artistas ou atletas profissionais por prazo
determinado. Nesses casos, por haver situações que fogem
ao padrão comumente adotado e tendo em vista as características típicas de execução do trabalho, como tempo, horário e
prazo, é feito também em documento separado, além do registro na CTPS, para estabelecer tais peculiaridades.
O contrato verbal é freqüentemente utilizado nos contratos
por prazo indeterminado em que não há estipulação de condições especiais a ser observadas pelas partes, ficando a
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relação contratual regida pela legislação trabalhista e,
eventualmente, por regulamentos internos da contratante. Na
prática, essa forma de contratação é muito comum, mas traz
riscos, pois não se cumpre a lei trabalhista. Empregador e empregado combinam previamente a execução dos serviços, salário e horário, porém não se efetiva o registro em carteira.
Será tácito ou consensual (pelo silêncio ou falta de manifestação) quando houver a prática evidente de reiterados atos
que façam entender que o contrato de trabalho está sendo
cumprido. Por exemplo: um sujeito aparece na empresa faz
um trabalho hoje, outro amanhã, continua comparecendo na
empresa e vai prestando seus serviços. O dono da empresa
sabe, mas nada diz. Às vezes ele até dá algumas diretrizes
de como o trabalhador deve conduzir o trabalho. Essa é uma
situação típica em que surge o contrato tácito de trabalho.
Isto é, o trabalhador apareceu e foi cumprindo horário e tarefas, sem qualquer objeção por parte do empregador, que,
pelo contrário, chegou até a incentivá-lo. Evidentemente se
trata de um contrato irregular, pois também não há o registro
do empregado.1
Existindo o contrato de trabalho, essencial que se estabeleçam as
conseqüências da prestação do trabalho em termos de salário. Nesse sentido, passaremos à conceituação de salário e remuneração e a situação das
gueltas em meio a tal instituto.
2 SALÁRIO
O termo “salário” tem origem no latim salarium argentum, “pagamento em sal” – forma primária de pagamento oferecida aos soldados do
Império romano. Pode ser definido como o conjunto de vantagens habitualmente atribuídas aos empregados, em contraprestação de serviços ao
empregador, em quantia suficiente para satisfazer as necessidades próprias e da família.
1
MELCHOR, Paulo. SAIBA mais – Sebrae – Contratos de trabalho – Aspectos legais. Disponível em: http://www.sebraemg.com.br/arquivos/parasuaempresa/saibamais/
contrato_trabalho_2.pdf. Acesso em: 31 out. 2007, p. 1.
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Como ensina Maurício Godinho Delgado, “salário é o conjunto de
parcelas contraprestrativas pagas pelo empregador ao empregado em função do contrato de trabalho”.2
Ou seja, o salário é pago em contrapartida (contraprestação), mediante a realização de um trabalho contratado (prestação), que advém da
relação de emprego.
A Consolidação das Leis do Trabalho, por sua vez, complementa a
definição de salário, em seus arts. 3o, 76 e 457, respectivamente:
Art. 3º Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a
dependência deste e mediante salário.
Parágrafo único. Não haverá distinções relativas à espécie
de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.
Art. 76. Salário mínimo é a contraprestação mínima devida
e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem distinção de sexo, por dia
normal de serviço, e capaz de satisfazer, em determinada
época e região do País, as suas necessidades normais de
alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte.
Art. 457. Compreendem-se na remuneração do empregado,
para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago
diretamente pelo empregador, como contraprestação do
serviço, as gorjetas que receber.
§ 1º Integram o salário não só a importância fixa estipulada, como também as comissões, percentagens, gratificações ajustadas, diárias para viagens e abonos pagos
pelo empregador.
§ 2º Não se incluem nos salários as ajudas de custo, assim
como as diárias para viagem que não excedam de 50% (cinqüenta por cento) do salário percebido pelo empregado.
§ 3º Considera-se gorjeta não só a importância espontaneamente dada pelo cliente ao empregado, como também aquela
2
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho, p. 681.
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que for cobrada pela empresa ao cliente, como adicional nas
contas, a qualquer título, e destinada a distribuição aos empregados. (Grifos nossos.)
Segundo Giovanna Real Serra,
além de contraprestação ao trabalho ajustado, são características do salário: ser condição essencial do contrato de
emprego; satisfazer as necessidades normais de alimentação, moradia, vestuário, higiene e transporte do trabalhador
(caráter alimentar); ser pago pelo trabalho em determinado
intervalo de tempo (habitualmente, periodicamente) e integrar a remuneração do trabalhador.
Não podemos deixar de observar que, ainda que o trabalhador não tenha efetivamente trabalhado, mas apenas ficado à
disposição do seu empregador, situação diferente da interrupção do contrato de emprego, vista acima, faz jus, igualmente, ao salário. É que este tempo não pôde ser utilizado
livremente pelo empregado, teve o mesmo que ficar aguardando ordens e, se as mesmas não vieram, não foi por escolha sua. Portanto, este período é considerado como tempo
efetivo de trabalho, ou simplesmente tempo à disposição. Por
fim, como também se vê dos arrestos acima colacionados,
concluímos que somente o empregador paga salário, diferentemente do tomador de serviços.3
Além do salário básico (parcela fixa), o salário é composto por comissões, percentagens, gratificações habituais, abonos, prêmios, 13o salário. Dessa forma, não se confunde o salário básico com o salário
complessivo, que é o salário pago sem discriminação das prestações que
estão sendo pagas e que estão incluídas no valor. Segundo Valentin Carrion,
Salário complessivo ou ‘completivo’, como prefere Barata Silva, consiste na fixação de uma importância fixa ou proporcional ao ganho básico, com a finalidade de remunerar
3
SERRA, Giovanna Real. A natureza jurídica das gueltas e seu impacto no contrato de
emprego, p. 9.
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vários institutos adicionais, sem possibilidade de verificar-se
se a remuneração cobre todos os direitos e suas naturais oscilações: por exemplo, trabalho extraordinário, horário noturno,
descanso remunerado, etc. Os fundamentos da nulidade são:
a) falta de nexo causa-efeito e transação com direitos futuros;
b)descumprimento do mandamento constitucional de hora noturna superior à diurna; c) renúncia pelo empregado a horas
extras; d) descumprimento do pagamento de descanso semanal (Genro. LTr 39/620). A jurisprudência condena tal estipulação, com freqüência. Há necessidade do exame de cada
hipótese em concreto, pois em algumas delas a inexistência de
prejuízo e fraude é evidente; os que entendem que a nulidade
deve ser decretada, por princípio, determinando a apuração
dos débitos, estão aceitando a eficácia do procedimento se se
verificar a inexistência de prejuízo.4
No entendimento de Giovanna Real Serra,
são incluídas no salário também as diárias para viagem que
ultrapassem 50% do valor do salário-dia devido ao empregado e aquelas outras parcelas advindas de fraudes praticadas
pelo empregador, tais como as horas extras habituais.
A esta altura, importante mencionar o salário-utilidade legalmente previsto, as prestações pagas in natura, que são o vestuário, a alimentação e a habitação, desde que fornecidas,
repita-se, em contraprestação ao trabalho do empregado, pelo
empregador, por força de contrato e segundo as limitações
legais. Observamos que estas parcelas normalmente fazem
parte do salário básico do obreiro. No entanto, nada impede que sejam pagas em periodicidade diferente da mensal,
como anual, por exemplo. Nesses casos, não deixam de ser
habituais, mas deixam de fazer parte do salário básico.5
O salário é a quantia fixada para o pagamento do empregado. O
princípio do art. 444 da CLT é o da “autonomia da vontade”, segundo o
4
CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis do trabalho, p. 320.
5
SERRA, Giovanna Real. A natureza jurídica das gueltas e seu impacto no contrato de
emprego, p. 9.
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qual as relações do trabalho podem ser objeto de livre negociação entre
as partes envolvidas, desde que não sejam contrariadas as disposições
de proteção ao trabalho, as convenções coletivas de trabalho e as decisões judiciais. Existem três maneiras que permitem que o salário seja
pago: a) por tempo de trabalho – o valor é fixo; b) por produção – é
variável e depende exclusivamente do funcionário; c) por tarefa (comissão) – misto, o empregado recebe um valor fixo + um valor por vendas,
por exemplo.
Sobre as utilidades, ensinam Arnaldo Süssekind et al.:
O fornecimento de utilidades ao trabalhador, como
contrapres-tação de serviços prestados, caracterizou a forma primitiva da remuneração do trabalho; mas, com o
surgimento de normas de tutela do trabalho, advieram restrições ao seu uso, motivo pelo qual somente é admitido
como complemento da parte do salário paga em dinheiro.
Todavia, a prestação in natura representa, igualmente salário, desde que, como salienta a lei brasileira, seja fornecida
‘habitualmente ao empregado’, ‘por força do contrato ou
costume’ (art. 458 as CLT).6
Após o exposto, facilmente se percebe que tudo o que for pago pelo
empregador pelo serviço prestado pelo empregado, habitualmente, em razão de um contrato ajustado entre ambos, é salário.
Importante ressaltar que salário é diferente de remuneração:
Remuneração é o conjunto formado pelo salário devido pelo
empregador ao empregado e as gorjetas. Segundo alguns
juristas, a diferença entre os termos salário e remuneração,
está no fato do primeiro dizer respeito apenas ao pagamento
em dinheiro, e o segundo engloba também as utilidades, ou
benefícios, como alimentação, moradia, vestuário, e outras
prestações in natura.7
6
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA FILHO,
João de Lima. Instituições de direito do trabalho, p. 367.
7
SALÁRIO. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sal%C3%A1rio.
Acesso em: 12 dez. 2007a, p. 1
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Não obstante, como vimos, a definição de salário é mais restrita,
específica, e a própria Lei (art. 457 da CLT, já citado) faz a distinção, ao
dizer que além do salário, compreendem-se na remuneração do trabalhador as gorjetas.
Arnaldo Süssekind et al., inferindo-se da Lei, definem a remuneração: “[... ]é a resultante da soma do salário percebido em virtude do contrato de trabalho e dos proventos auferidos por terceiros, habitualmente,
pelos serviços executados por força do mesmo contrato”.8
No entanto, sabe-se que a Súmula 354 do Tribunal Superior do Tra9
balho confirma o entendimento de Arnaldo Süssekind et al. como majoritário, entendendo que as gorjetas não servem de base de cálculo para as
parcelas de aviso prévio, adicional noturno, horas extras e repouso semanal remunerado. Ou seja, as gorjetas não refletem em parcelas salariais,
mas fazem parte da remuneração.
Dessa forma, deduz-se que salário é diferente de remuneração. Desta
feita, por exclusão concluímos que as gorjetas são consideradas apenas
para os depósitos do FGTS, para o cálculo da multa fundiária na dispensa
injusta, para o cálculo das férias, 13o salário e para o cálculo das contribuições previdenciárias.
Para Amauri Mascaro, salário “é a totalidade das percepções econômicas dos trabalhadores, qualquer que seja a forma ou meio de pagamento, quer retribuam o trabalho efetivo, os períodos de interrupção do
contrato e os descansos computáveis na jornada de trabalho”.10
Como conceito básico, pode-se dizer que é a retribuição pelo trabalho prestado paga diretamente pelo empregador. Conceito básico traduz o
que é salário no ordenamento jurídico brasileiro e suas principais características: salário é somente aquilo que é pago pelo empregador e somente
8
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA FILHO,
João de Lima. Instituições de direito do trabalho, p. 353.
9
“Súmula 354. Gorjeta – Base de cálculo – Aviso prévio, adicional noturno, horas extras e
repouso semanal Remunerado. As gorjetas, cobradas pelo empregador na nota de serviço ou
oferecidas espontaneamente pelos clientes integram a remuneração do empregado, não servindo de base de cálculo para as parcelas de aviso-prévio, adicional noturno, horas extras e
repouso semanal remunerado.”
10
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho, p. 717.
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aquilo que corresponder a uma contribuição que represente um acréscimo
patrimonial por uma prestação de serviço.
Infere-se, com isso, a concepção bastante ampla do conceito de ‘salário’, de modo a abranger não apenas a remuneração fixa e ajustada recebida pelo empregado no exercício
das obrigações estipuladas no âmbito de um contrato de trabalho, mas também outros ganhos que se possa auferir em
decorrência desse vínculo empregatício, como as gorjetas,
comissões, percentagens e gratificações ajustadas mencionadas no referido art. 457 da Consolidação das Leis do Trabalho. Entretanto, há remunerações que, a despeito de receberem, pelo uso, designação distinta de um dos termos
elencados no art. 457, podem ser qualificadas como uma daquelas modalidades de pagamento, ou seja, como espécie do
gênero ‘gorjeta’, ou ‘comissão’ ou ‘gratificação’, por exemplo. Nesses casos, caberá ao aplicador do Direito (para citar,
o juiz, o agente de fiscalização do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, o advogado, o jurista, entre outros) realizar essa tarefa de qualificação, sendo certo que a significação atribuída a essa dada remuneração pode nem sempre
amoldar-se adequadamente ao gênero para o qual foi classificada. Um bom exemplo dessa circunstância, segundo nosso entendimento, refere-se ao vocábulo ‘guelta’, encontrado
em textos relacionados ao Direito do Trabalho e
Previdenciário, inclusive em inúmeros julgados proferidos
pelos Tribunais Trabalhistas, mas não previsto nos maiores
dicionários de nossa Língua Portuguesa. 11
Assim, o salário se diferencia da remuneração, uma vez que a
remuneração, no ordenamento jurídico brasileiro, corresponde à totalidade de bens fornecidos (utilidades) ou devidos aos empregados pelo
serviço prestado, inclusive parcela a cargo de terceiros (gorjetas). Importante, nesse momento, conceituar comissões, gorjetas, diárias, gratificações e prêmios.
11
FREGONESI JÚNIOR, Maucir. Aspectos fiscais-previdenciários do marketing de incentivo, p. 1.
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De fato, analisando-se a comissão como outra forma de remuneração catalogada no art. 457 da Consolidação das Leis do Trabalho, tem-se
que esta, de acordo com lição de Arnaldo Süssekind,
constitui modalidade de retribuição condicionada ao serviço
realizado pelo trabalhador; é, assim, ‘uma feição especial de
remuneração por unidade de obra’. Conforme Orlando Gomes, assim citado pelo Autor: correspondendo, normalmente, a uma percentagem ajustada sobre o valor do serviço ou
negócio executado ou encaminhado pelo trabalhador.12
Segundo o conceito disponibilizado pela Wikipédia:
Comissão é o valor pago ao empregado vendedor, em termos
percentuais, podendo ser variável, porém irredutível. As comissões não podem ser usadas pelo empregador para complementar o salário mínimo. O Direito é adquirido na aceitação do negócio pelo empregador, e deve ser pago mesmo que este não se
concretize. Caso haja a rescisão do contrato de trabalho, as
comissões geradas no período contratual devem ser pagas.13
Por meio de comissão pode ser remunerado o trabalho do empregado (contrato de emprego ou de trabalho subordinado) ou do trabalhador autônomo (contrato de prestação de serviços). Exsurge, destarte,
que o pagamento de comissões pressupõe ajuste prévio entre as partes,
e prevê critérios objetivos de apuração do montante que será pago ao
beneficiário pela execução de determinada atividade, em geral relacionada à venda de produtos.
Sobre as diárias e as gorjetas, podem ser definidas da seguinte maneira:
Diárias são provisões em dinheiro ou em gênero destinados
à viagem. São valores atribuídos ao empregado, destinados a
12
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA FILHO,
João de Lima. Instituições de direito do trabalho, p. 394.
13
SALÁRIO no Brasil. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Sal%C3%A1rio_no_Brasil. Acesso em: 12 dez. 2007b, p. 1.
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compensar despesas de viagem e os desconfortos dela derivadas. Distinção: a) diárias próprias: caráter compensatório,
não integrando a remuneração; b) diárias impróprias: rendimento adicional; integrando a remuneração. Critério distinto:
diárias próprias são aqueles não excedentes a 50% do valor
do salário; Média: Súmula 101 do TST: Integram o salário,
pelo seu valor total e para os efeitos indenizatórios, as diárias
de viagem que excluem a cinqüenta por cento do salário do
empregado.14
Gorjetas é a quantia paga ao empregado, pelo cliente do empregador, pelo reconhecimento ao bom serviço prestado por
aquele. A gorjeta é prevista nas convenções e acordos coletivos das categorias aonde ela é usada com habitualidade,
como por exemplo, hotéis e restaurantes que cobram taxa de
serviço. A gorjeta não pode ser usada para complementar o
salário mínimo ou piso, não substituindo assim o salário.15
Nessa senda, é importante ter em mente que “gorjeta” é “pequena
gratificação em dinheiro a quem prestou algum serviço”.16 Já vimos que a
própria Lei difere as gorjetas do salário, pelo simples fato das mesmas não
serem pagas pelo empregador ao seu empregado, mas por terceiros. A
jurisprudência também já se firmou neste sentido, como podemos confirmar abaixo:
RECURSO DE REVISTA. GORJETA. INTEGRAÇÃO. O Tribunal Superior do Trabalho já firmou entendimento jurisprudencial, no
sentido de que as gorjetas, sejam elas espontâneas ou compulsórias, não obstante integrarem a remuneração do empregado, não compõem a base de cálculo do aviso prévio, do
adicional noturno, das horas extras e do repouso semanal
remunerado (Enunciado n. 354/TST). Nesse sentido, há que
14
SALÁRIO no Brasil. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Sal%C3%A1rio_no_Brasil. Acesso em: 12 dez. 2007b, b, 2007, p. 1.
15
SALÁRIO no Brasil. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Sal%C3%A1rio_no_Brasil. Acesso em: 12 dez. 2007b, p. 1.
16
GORJETA. In: INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário Antônio Houaiss da Língua Portuguesa, p. 1.468.
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se dar parcial provimento ao apelo para extirpar da condenação o pagamento das diferenças de aviso prévio, mantendose a condenação sobre as férias, FGTS e gratificação natalina, porquanto as gorjetas não integram a base de cálculo do
aviso prévio. Recurso de revista parcialmente conhecido e
parcialmente provido.17
REPERCUSSÃO DAS GORJETAS NO AVISO PRÉVIO. NATUREZA JURÍDICA
DE VERBA REMUNERATÓRIA. NÃO-CABIMENTO. Consoante entendimento prevalecente fulcrado na natureza jurídica da gorjeta, e
pela falta de previsão legal, não há porque repercutir essa verba em outra de natureza salarial. Como ensina valentin carrion,
‘a lei afirma que as gorjetas se compreendem na remuneração (art. 457); não diz o mesmo quanto ao salário.18
Na melhor definição, de Arnaldo Süssekind et al., “gorjeta é a retribuição voluntariamente paga por aqueles que se utilizam dos serviços das
empresas, aos empregados que os executam”.19
A integração das gorjetas à remuneração está ainda tratada pela
Súmula 354 do TST, a qual permite concluir que se computam as gorjetas,
para efeito de 13º salários, férias + 1/3, depósitos de FGTS e recolhimentos de INSS.
Assim, se a principal distinção entre a gorjeta e o salário é o fato de
a gorjeta não ser paga pelo empregador, mas por terceiro e sobressaindo, hipoteticamente, a tese de Martins Catharino,20 segundo a qual a
gorjeta, que tem seu pagamento intermediado pelo estabelecimento patronal é salário, existiria uma figura polêmica à discussão, que seria a
chamada “gorjeta salário”.
Nessa esteira, em razão do fato da gorjeta ser paga por um terceiro
estranho ao contrato de trabalho, entendemos que não é correto que receba tratamento de parcela salarial, onerando ainda mais o empregador.
17
TST, RR 754732, 1ª T., Rel. Min. Conv. Guilherme Bastos, DJU 6/2/2004.
18
TRT-8ª R., 2ª T., RO 01495-2003-009-08-00-9 (7974/2003), Rel. Juiz Herbert Tadeu Pereira de Matos, j. 3/3/2004.
19
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA FILHO,
João de Lima. Instituições de direito do trabalho, p. 395.
20
CATHARINO, José Martins. Tratado jurídico do salário, p. 554-555.
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No entanto, existe uma hipótese em que a gorjeta poderá ser considerada salário, como no caso em que tal condição se encontra expressamente prevista em contrato, mesmo tacitamente, ou ainda na ocorrência de fraude. Sendo as gorjetas em muito superiores ao salário, podem
confundir-se com o mesmo e até configurar fraude. O julgado a seguir
segue tal entendimento:
GORJETA. Repercussão. Gorjetas. Integração. As gorjetas integram a base remuneratória para o cálculo das demais verbas contratuais quando recebidas habitualmente, com ciência e consentimento da ré, além de serem expressivamente
superiores ao salário fixo. A supressão dessa rubrica no
cálculo dos demais títulos importa redução salarial que é expressamente vedada em nosso ordenamento (art. 7º, VI, da
CF/88).21
Entendendo a necessidade de conceituação rápida das outras figuras de remuneração, passamos a um breve relato de tais institutos.
Gratificação:
É o pagamento pelo empregador ao empregado, como forma
de prêmio ou incentivo. Se a gratificação for habitual, passa a
integrar o salário. Quanto a periodicidade, ela pode ser de
mensal, bimensal, trimestral, semestral ou anual. Podem ser
divididas em gratificação de função, quando o empregado exerce determinada função (podendo deixar de receber, quando
deixa-la); gratificação no balanço, cuja causa são os lucros
auferidos, pagos em mês de salarial, percentual, etc.; gratificação de festa, como o 13o salário; gratificação de tempo de
serviço, que integra inclusive, as horas extras. Podem ainda
ser previstas em convenções e acordos coletivos ou por livre
arbítrio do empregador.22
21
TRT-2ª R., 6ª T., RO 11868200290202000 (20030026622), Rel. Juiz Rafael E. Pugliese
Ribeiro, DOESP 14/2/2003.
22
SALÁRIO no Brasil. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Sal%C3%A1rio_no_Brasil. Acesso em: 12 dez. 2007b, p. 1.
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A “gratificação”, por sua vez, é comumente utilizada na seara trabalhista para designar “liberalidades do empregador que pretende obsequiar o empregado por ocasião das festas de fim de ano”.23
Entretanto, deve-se ter em conta que há pagamento de ‘gratificação’ sem ajuste prévio, segundo discricionariedade da
empresa, para agraciar o trabalhador, pela conclusão de uma
tarefa específica, em geral não diretamente vinculada às obrigações decorrentes de seu contrato de trabalho. Pode ser, por
exemplo, o pagamento de uma determinada remuneração à
recepcionista de uma concessionária pela venda de um veículo, tendo em conta que, no exercício regular de suas funções
de atender a recepção, diretamente relacionadas ao seu contrato de trabalho, não está certamente a concretização de venda
de veículos. Trata-se de ato unilateral do empregador que,
quando desprovido de habitualidade, não possui natureza salarial. Percebe-se, portanto, as dificuldades que se pode ter na
devida qualificação de uma remuneração paga por uma pessoa jurídica à pessoa física, com ou sem vínculo empregatício.
Tal dificuldade revela-se ainda maior no caso da promessa de
pagamento futuro existente nas campanhas de marketing de
incentivo, tarefa à qual nos ocuparemos a seguir.24
Sobre prêmios:
Muito embora não previstos na legislação brasileira, os prêmios são pagos com habitualidade, sendo um salário vinculado a fatores de ordem pessoal do trabalhador, como produção, eficiência, pontualidade, assiduidade, não podendo
ser forma única de pagamento. Quando o prêmio é eventual
não integra o salário, mas ao contrário, se for habitual.
Muito embora não se confunda com participação nos lucros, que paga um percentual sobre o lucro do empregador, contém as regras para o programa de participação
23
24
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho, p. 769.
FREGONESI JÚNIOR, Maucir. Aspectos fiscais-previdenciários do marketing de incentivo, p. 1.
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nos resultados, que leva significativas vantagens para as
partes sobre o primeiro.25
Dessa forma, após tais conceituações, importante definir o termo
gueltas, para que este possa ser devidamente situado no universo jurídico.
2.1 Gueltas: definição
A princípio, pode-se conceituar a guelta como uma bonificação ou
premiação, que os fabricantes dos produtos dão aos vendedores, como
“prêmio” pela venda ou pelo favorecimento da sua marca em detrimento
de outras ou de outros produtos. Portanto, a idéia que se tem é de incentivo de vendas.
No entanto, diversas polêmicas hão de ser levantadas e respondidas,
para que seja entendida a natureza de tal transação e suas conseqüências.
Por exemplo: Se não é o empregador que paga tal quantia, ela terá reflexo no
contrato de trabalho? Ela deveria integrar o contrato caso se assemelhe à
comissão? Se tal valor for pago em todos os meses, ele fará parte do salário?
Se não for pago pelo fabricante, dará ensejo à cobrança diretamente do
empregador? Existe vínculo entre o fabricante e o vendedor?
No entanto, a questão que mais aflige o empresariado é saber se a
guelta integra ou não a remuneração do trabalhador para todos os efeitos.
Dessa forma, importante a definição e o estudo de tal instituto, assim como
a diferenciação de outros institutos, para melhor entendê-lo.
O assunto não é novo no Judiciário Trabalhista, sendo tratado sob o rótulo de ‘guelta’, corruptela da palavra ‘Geld’, que,
em alemão, precedida do prenome ‘Wechsel’, significa troco
(‘Wechselgeld’). A prática da ‘guelta’ nasceu no mercado
farmacêutico na década de 60, também conhecida vulgar e
pejorativamente como ‘BO’, medicamentos bonificados indicados pelo balconista e, por isso mesmo, tidos como ‘bom
25
SALÁRIO no Brasil. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Sal%C3%A1rio_no_Brasil. Acesso em: 12 dez. 2007b, p. 1.
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para otário’. Em geral, os balconistas recebiam uma comissão do laboratório farmacêutico por quantidade do remédio
vendido e, para provar o volume alcançado, retiravam uma
lingüeta que vinha afixada na embalagem e a entregavam ao
representante do laboratório. Quando o balconista sugeria
um medicamento em substituição a outro, cujo nome fantasia constasse da receita, normalmente estava recebendo comissão pela venda.
A prática se alastrou para outros ramos e, hoje, é usual no
comércio de eletrodomésticos; em postos de gasolina sem
bandeira fixa, que podem vender aditivos e lubrificantes de
várias marcas; em empresas de cartão de crédito e bancos
parceiros; no setor de hotelaria e turismo etc. A idéia por trás
do procedimento é sempre a de o fabricante/parceiro incentivar a venda de seus produtos pelos vendedores de outrem.
Os empregados das grandes redes de eletrodomésticos, por
exemplo, passam a receber um ‘prêmio’ de determinada
marca de televisor, cada vez que sugerem a um cliente a
escolha daquele produto em detrimento ao do concorrente,
também exposto na mesma loja empregadora. O mesmo
ocorre com o gerente do banco que indica ao correntista
uma bandeira de cartão de crédito ao invés de outra; o
frentista que recomenda o uso de um aditivo de determinada
empresa e assim por diante.
No setor de hotelaria e turismo, muitas vezes é o gerente do
hotel quem recebe diretamente dos restaurantes e lojas
indicadas por seus empregados (mensageiros, recepcionistas, etc.) o valor total do prêmio a ser repartido e o nome
daqueles que mais se sobressaíram no ‘envio’ de turistas –
quem nunca foi abordado no hall de um hotel com a distribuição daquelas ‘filipetas’ de restaurantes, bares, shows, com
direito a um coquetel brinde e coisas parecidas? – Com isso,
o gerente calcula quanto cada um vai receber e paga, seja
por cheque, dinheiro, depósito em conta, o ‘prêmio’ individual.
Esses ‘prêmios’ advindos de terceiros na relação de emprego são as ‘gueltas’.26
26
DUARTE, Juliana Bracks. A prática das gueltas e sua repercussão no contrato de trabalho, p. 1.
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E mais:
É verdade que, a despeito do aparente lapso lingüístico, poder-se-ia ainda assim atribuir a noção de ‘gorjeta’ à prática
conhecida como ‘guelta’, levando-se em consideração menos a função sintática da linguagem (voltada à relação entre
os termos, ou signos), e mais sua função pragmática, isto é, a
relação entre o ato que se convencionou chamar de ‘gorjeta’
e a prática desenvolvida sob a denominação de ‘guelta’. De
qualquer forma, é certo que o uso indiscriminado de ‘guelta’,
como idéia de ‘gorjeta’, pode ocultar ou dificultar a verdadeira natureza e peculiaridade intrínseca existente no pagamento feito no decorrer da relação que se estabelece entre o
fabricante ou distribuidor de um produto, e o empregado de
uma loja, por exemplo.
A prática da ‘guelta’, por sua vez, representa o pagamento
de uma soma pecuniária por fabricante ou distribuidor de um
determinado produto, como retribuição direta pelas vendas
realizadas por uma pessoa física, empregada de um estabelecimento, ponto de venda desse produto (no caso do medicamento, o funcionário da farmácia). Assim, esse caráter de
retribuição condicional (de acordo com as vendas feitas daquele produto) afasta, segundo entendemos, a natureza de
gorjeta do pagamento efetuado pelo fabricante ou distribuidor ao vendedor de um determinado produto.
Com isso, somos da posição que a chamada ‘guelta’ pode-se
aproximar muito mais de uma ‘comissão’ que, como é cediço,
constitui remuneração paga independentemente da existência de relação de emprego entre a fonte pagadora (no caso o
fabricante do produto ou distribuidor) e o beneficiário.27
Iniciaremos o tema com a sua conceituação, segundo os poucos
doutrinadores que se arriscaram a tratar do assunto. Primeiramente, ensina
Alice Monteiro de Barros:
27
FREGONESI JÚNIOR, Maucir. Aspectos fiscais-previdenciários do marketing de incentivo, p. 1.
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As chamadas gueltas, pagas ao empregado com habitualidade
a título de incentivo, têm feição retributiva, ainda que pagas
por terceiro. A onerosidade reside na oportunidade que o
empregador concede ao empregado para auferi-la, à semelhança do que ocorre com as gorjetas. Em conseqüência,
integra a remuneração do trabalhador, por aplicação analógica
do art. 457, caput e §3º da CLT, como também da Súmula n.
354 do TST.
Vertente jurisprudencial contrária nega a integração da verba à remuneração do empregado, por falta de previsão legal
e por não ser paga diretamente pelo empregador.28
Já o mestre Valentin Carrion assim define o termo
São gratificações ou prêmios oferecidos por terceiros a empregado pela produção, beneficiando estes terceiros; ex.: empresa de cartão de crédito que ofereça ‘gueltas’ a empregados de certo banco pelas operações realizadas para os produtos daquela primeira; não influem na relação empregatícia.29
Ou seja, para Alice Monteiro de Barros, como visto, possuem a
mesma natureza das gorjetas. Integram a remuneração do empregado,
mas não o salário. Já segundo se infere do posicionamento esposado por
Valentin Carrion, também acima, não são salário nem remuneração. Simplesmente não interferem de modo algum na relação empregatícia. Uma
figura jurídica totalmente nova e estranha ao contrato de emprego e ao
Direito do Trabalho:
Alguns ainda argumentam que as gueltas são espécie de
parcela salarial, e, como tal, devem sofrer a incidência e incidir
sobre todas as demais verbas salariais, arcando o empregador com todos os ônus fiscais e previdenciários daí advindos,
mesmo que não seja ele a fonte do pagamento das mesmas
a seus empregados, ou mesmo que ele não se beneficie do
trabalho diferenciado de seus empregados no sentido de
28
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho, p. 744.
29
CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis do trabalho, p. 314.
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vender maior quantidade de determinado produto ou serviço.
Os que pensam assim justificam seu posicionamento ao argumento de que o empregador é o beneficiário do trabalho
exercido pelo seu empregado, de qualquer forma. Em outras
palavras, se o empregado vende mais determinado produto,
quem sai lucrando é o empregador.
Não concordamos com este posicionamento. E se o produto que o
empregado está buscando vender mais, em detrimento de outros, acreditando na promessa do fornecedor de ganhar as gueltas, for aquele
que dê o menor lucro para o empregador? Nesta situação, quem, na
realidade, está ganhando com a maior venda? Certamente apenas o fornecedor está se beneficiando. Sabemos que muitas empresas multimarcas
trabalham com alguns produtos concorrentes até mesmo ‘no prejuízo’, só
para ter opção a oferecer para seus clientes finais e não perder a venda.
É importante desde logo ressaltar que no Direito do Trabalho e, portanto, com reflexos na seara previdenciária, é comum nos depararmos,
além do salário, com outras remunerações do trabalho, designadas como
“gratificações”, “comissões”, “gorjetas” e até “gueltas”, sem que a utilização deste ou daquele termo esteja especificamente vinculada à devida natureza do pagamento feito. Reside aí um risco para a empresa, nesse caso
aquela que se vale do marketing de incentivo, máxime tendo em conta a
dicção do art. 457 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.30
Os julgados em sentido contrário entendem:
EMENTA: GUELTAS. NATUREZA JURÍDICA. A parcela denominada ‘guelta’ não tem natureza salarial quando a prova dos
autos sinaliza que era quitada pelos fornecedores no intuito
de fomentar as vendas de seus produtos comercializados
no estabelecimento comercial da reclamada através do incentivo pecuniário aos vendedores que privilegiavam determinada marca em detrimento das demais quando da oferta aos clientes. Destarte, na forma do disposto no artigo 457
30
FREGONESI JÚNIOR, Maucir. Aspectos fiscais-previdenciários do marketing de incentivo, p. 1.
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da CLT, não se compreende na remuneração o pagamento
de prêmios e vantagens, mesmo que habituais, que não eram
quitados diretamente pelo empregador. [...]
‘GUELTAS’. INTEGRAÇÃO. Insurge-se a recorrente contra o pagamento de diferença salarial decorrente da integração da
parcela denominada ‘guelta’ ao salário de recorrido. Argumenta que embora pagas pela recorrente, as ‘gueltas’ eram
prêmios ofertados pelas empresas fornecedoras e não por
ela, que atuava como mera intermediária, eis que apenas repassava os respectivos valores. Se mantida a decisão, afirma que por ser prêmio, não deve repercutir sobre as horas
extras e adicionais. Assiste-lhe a razão. Para se decidir sobre a integração ou não do valor das denominadas ‘gueltas’
na remuneração dos empregado, necessário perquirir sobre
o ônus de tal pagamento, se do empregador ou dos fornecedores dos produtos comercializados no estabelecimento.
Conforme afirmou o recorrido no depoimento pessoal à fl.
348, ‘as gueltas representam premiação em dinheiro ou
em produto repassadas pelos fornecedores à Casa Bahia
e esta, através dos Gerentes, aos vendedores...’, evidenciando que a responsabilidade pelo pagamento era dos fornecedores dos produtos comercializados na reclamada. A
situação está também retratada através dos documentos trazidos à colação pelo próprio recorrido às fls. 38/51, nos quais
consta o nome do respectivo fornecedor, deixando claro que
os mencionados prêmios intitulados ‘gueltas’ eram fornecidos por terceiros. O fato de o pagamento ser efetuado em
dinheiro, na boca do caixa (documentos de fls. 52/60), não é
bastante para lhe outorgar natureza salarial. Desse modo,
restando provado que os valores percebidos pelo reclamante
a título de ‘gueltas’ não eram pagos pela recorrente, mas sim
valores repassados pelos próprios fornecedores, não há como
lhe conferir natureza salarial. Dou provimento ao apelo para
excluir da condenação a integração das ‘gueltas’ na remuneração do reclamante.31
31
TRT-3ª Região, 7ª T. RO/16159/2002, Rel. Juiz Manoel Barbosa da Silva, DJMG 18/2/2003,
p. 14, Casas Bahia Comercial Ltda. e Carlos Antonio de Melo.
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INTEGRAÇÃO DOS PRÊMIOS ‘GUELTAS’. Busca a reclamada sua
absolvição da integração de valores ‘extra folha’ nos repousos semanais remunerados, 13º salário, férias, acrescidas de
1/3, aviso prévio e FGTS com a multa de 40%, afirmando
que as verbas denominadas ‘gueltas’ são valores repassados
pelos fornecedores da recorrente aos vendedores que se destacaram na comercialização de algumas mercadorias. Dá
ênfase à alegação de que era mera repassadora dessas importâncias, sem qualquer ingerência na forma e critérios de
pagamento, não devendo ser integradas na remuneração da
reclamante. O juízo de primeiro grau considerou irrelevante
o fato de serem incentivos dos fabricantes, porque a maior
beneficiada era a própria reclamada, com aumento das vendas e dos lucros e que, na negociação direta com os fabricantes, os riscos devem ser suportados pela empregadora.
Diante da habitualidade da parcela, adquire natureza salarial,
devendo ser integrados os valores na remuneração, para todos os efeitos legais. Diverge-se da sentença. Não se trata
esses valores ‘extra folha’, como referem as razões recursais,
de fracionamento da remuneração, em que uma parte é documentada, sujeita a todos os encargos sociais do empregador, e outra paga aos empregados de maneira informal e ilegal, no procedimento popularmente conhecido como pagamento ‘por fora’. É incontroverso que se tratam de prêmios
de iniciativa dos fabricantes dos produtos expostos para venda no estabelecimento comercial da reclamada, pagos aos
empregados desta, como reconhecimento do sucesso das
vendas e para estimular seu incremento, na complementação
do processo industrial, situado no setor secundário da economia, e que tem seqüência no setor terciário, até atingir o consumidor final. Não é irrelevante examinar se incentivos eram
impulsionados pelos fabricantes. Esta é uma circunstância
essencial para definir ou refutar a natureza salarial das denominadas ‘gueltas’. É inquestionável que não foram verbas
pagas pela empregadora, pela sua posição de simples intermediária, que apenas praticava o ato de dar ou entregar a
seus empregados os valores originados das empresas fabricantes dos produtos vendidos. Algumas vezes as importâncias
pagas por terceiros possuem natureza salarial, como as gorjetas (art. 457 da CLT). Estas são conceituadas pelo § 3º do
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mesmo dispositivo legal como as importâncias espontaneamente dadas pelo cliente ao empregado (pela satisfação proporcionada após a prestação do serviço) ou cobrada pela
empresa do cliente, como adicional, para distribuição aos
empregados, prática consagrada em quase todo o mundo
ocidental. As ‘gueltas’ não eram pagas pelos clientes do estabelecimento comercial, mas pelos fabricantes das mercadorias adquiridas. Por isso, em hipótese alguma poderiam
compor a remuneração da autora, pois não possuem natureza salarial, mas de um incentivo espontâneo do setor industrial, de modo que seus produtos obtivessem sucesso perante
o público consumidor, graças à colaboração de trabalhadores que não eram seus empregados, mas do setor comercial.
No depoimento pessoal (fl. 158), a autora declara lisamente
que esses prêmios sempre foram pagos corretamente, não
havendo direito a qualquer integração porque destituídos do
caráter salarial.32
Juliana Bracks entende que
a empresa empregadora que não quer correr esse risco deve
evitar essa prática de gueltas, fazendo constar, inclusive, uma
proibição expressa de que os seus empregados recebam qualquer bonificação/gratificação/prêmio oriundos de terceiro, a
que título for. Nesta hipótese, qualquer valor auferido de fabricantes ou parceiros, além de não caracterizar parcela
remuneratória do contrato de trabalho, já que expressamente vedada, ainda poderá ensejar a rescisão do pacto por justa
causa, pelo descumprimento de uma regra interna.
Todavia, se a guelta for comercialmente interessante para a empresa,
a ponto de os ganhos superarem eventuais riscos trabalhistas, recomendo
que a empregadora se mantenha o mais afastado possível do procedimento, evitando repassar informações sobre os critérios de premiação do fabricante/parceiro, sem encaminhar listas de controle das vendas efetuadas,
sem presenciar a entrega dos ‘prêmios’, muito menos saber o valor que
32
TRT-4ª Região, RO n. 00599.402/98-9, 1998.
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cada empregado seu recebe, sem fazer sequer a intermediação entre as
duas pontas. Todo o contato deve ser travado diretamente entre o vendedor e o terceiro, sem qualquer participação daquela. Com essas cautelas,
será mais difícil a prova de que a empresa empregadora era partícipe do
processo e se beneficiava de sua prática.33
2.2 Composição das gueltas no salário
O primeiro entendimento a que se tem acesso, é o da comparação
das Gueltas com as gorjetas, a saber:
INTEGRAÇÃO SALARIAL ‘GUELTAS’. INTEGRAÇÃO À REMUNERAÇÃO.
Tratando-se as ‘gueltas’ de típica contraprestação pelo labor
realizado, assemelhando-se às gorjetas, pois consistiam num
incentivo pelas vendas realizadas de determinado produto
comercializado pela empregadora, independentemente de
serem pagas por terceiros (fornecedores) já que repassadas
pela própria empregadora, devem integrar o salário do empregado, em razão da aplicação analógica do artigo 457, caput,
§ 3º do Texto Consolidado e no entendimento consubstanciado
no Enunciado n. 264 do C. TST.34
José Martins Catharino, quando trata de gorjetas, o faz da seguinte
maneira:
O trabalhador quando se emprega tem certeza de sua remuneração, pouco lhe importando que seja paga pelos clientes
do estabelecimento. Ainda mais: sabe que o valor das gorjetas que irá receber estará em função da classe do estabelecimento de seu empregador; que dependerá da freguesia e
dos preços cobrados. Por outro lado, a empresa levando em
conta tais fatores ao admitir o trabalhador, com ele estipula
condições menos dispendiosas. [...] Alguns autores, partindo
da existência de onerosidade, procuram demonstrar que o
empregador delega ao cliente a obrigação de pagar o salário.
33
DUARTE, Juliana Bracks. A prática das gueltas e sua repercussão no contrato de trabalho, p. 1.
34
TRT-3ª Região, 6ª T., RO/3680/03, Rel. Juíza Lucilde D’Ajuda Lyra de Almeida, DJMG
15/5/2003, p. 13.
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Seria, como diz Botija, delegante o empresário, delegado o
cliente e o empregado delegatário. A gorjeta seria substitutiva
em relação à remuneração direta que a empresa não paga.35
No entanto, tal corrente não está pacificada e há defensores de que
a guelta não teria natureza remuneratória, razão pela qual não integraria o
salário para todos os fins:
Gueltas: são gratificações ou prêmios oferecidos por terceiros
a empregado pela produção, beneficiando estes terceiros; ex:
empresa de cartão de crédito que ofereça gueltas a empregados de certo banco pelas operações realizadas para os produtos daquela primeira; não influem na relação empregatícia.36
A seguir, trecho de uma decisão muito recente do Tribunal Regional
do Trabalho da 3a Região:
GUELTAS. RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO. INTEGRAÇÃO À REMUNERAÇÃO. Comprovado que a referida verba era paga pela
empregadora, e não pelos fornecedores, em virtude da atuação do trabalhador, como um incentivo ao desempenho do
empregado pela venda de produtos, não merece reparo a
decisão de origem que determinou a integração da parcela à
remuneração do reclamante, para fins de reflexos nos demais direitos trabalhistas. Vistos os autos, relatados e discutidos os presentes Recursos Ordinários, DECIDE-SE: RELATÓRIO
[...] VOTO ADMISSIBILIDADE Satisfeitos os pressupostos de
admissibilidade, conheço dos recursos interpostos, bem como
das contra-razões, regular e tempestivamente apresentadas.
DO RECURSO DA RECLAMADA DAS GUELTAS A recorrente não se
conforma com a decisão de origem que a condenou ao pagamento de incidências decorrentes da integração dos valores
quitados, a título de gueltas, à remuneração do recorrido. Alega que as gueltas eram um incentivo à saída de produtos de
certos fornecedores e que eram pagas, em dinheiro, através
da reclamada e não por ela. Insiste que as gueltas eram pagas
35
CATHARINO, José Martins. Tratado jurídico do salário, p. 554-555.
36
CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis do trabalho, p. 314.
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por terceiro, diretamente ao empregado, em nada se relacionando com o vínculo empregatício, sendo contrato paralelo e
alheio, não integrando o salário do empregado. Cita doutrina.
Aduz que a única hipótese legal de inclusão na remuneração
de valor pago ao empregado por terceiro, estranho à relação
de emprego, é a gorjeta em razão de específica determinação de lei. Examina-se. A testemunha Soraia Fernandes do
Carmo disse à fl. 183: ‘[...] que é vendedora; que recebe, em
média, 100 reais por mês a título de gueltas; que essas gueltas
são pagas diretamente pela reclamada e não pelo fornecedor
[...]’. As gueltas são pagas pela venda de produtos de determinada marca. Entretanto, verifica-se que, no presente caso,
a referida verba era quitada diretamente pela empregadora e
não pelos fornecedores. Acrescente-se, ainda, que as gueltas
são um incentivo ao desempenho do empregado, o que traz,
sem dúvidas, benefícios ao empregador. Portanto, não se trata
de contrato paralelo e alheio como quer fazer crer a reclamada, mas de verba paga pela venda de produtos, que é a função
essencial do reclamante. Assim, não merece reparo a decisão
de origem que, com fulcro no artigo 457 da CLT, condenou a
reclamada a integrar os valores quitados, a título de gueltas, à
remuneração do empregado, deferindo-lhe ainda os reflexos
nas demais verbas salariais. Desprovejo.37
Entende Giovanna Real Serra:
Já em relação às gueltas, quem paga é o fornecedor do
empregador, aquele que, ao contrário do cliente final, tem todo
interesse em que o seu produto se sobressaia em relação aos
concorrentes no mercado. Na situação das gorjetas, o cliente
satisfeito voltará ao estabelecimento no qual foi bem atendido,
beneficiando o seu proprietário – o empregador – enquanto
que nas das gueltas, o fornecedor insatisfeito não trará nenhuma conseqüência negativa ao empregador, a não ser dar piores condições de compra ou cortar o crédito, por exemplo.38
37
Processo 01663-2005-025-03-00-4 RO, 5ª T., Rel. Juiz Rogerio Valle Ferreira, DJMG
22/7/2006.
38
SERRA, Giovanna Real. A natureza jurídica das gueltas e seu impacto no contrato de
emprego, p. 12.
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Também nesse sentido:
GUELTAS NATUREZA JURÍDICA. A parcela denominada ‘guelta’
não tem natureza salarial quando a prova dos autos sinaliza
que era quitada pelos fornecedores no intuito de fomentar as
vendas de seus produtos comercializados no estabelecimento comercial da reclamada através do incentivo pecuniário
aos vendedores que privilegiavam determinada marca em
detrimento das demais quando da oferta aos clientes.
Destarte, na forma do disposto no artigo 457 da CLT, não se
compreende na remuneração o pagamento de prêmios e vantagens, mesmo que habituais, que não eram quitados diretamente pelo empregador.39
O entendimento majoritário é pela integração das gueltas à remuneração do trabalhador:
‘GUELTAS’. INTEGRAÇÃO À REMUNERAÇÃO. Tratando-se as ‘gueltas’
de típica contraprestação pelo labor realizado, assemelhandose às gorjetas, pois consistiam num incentivo pelas vendas
realizadas de determinado produto comercializado pela empregadora, independentemente de serem pagas por terceiros
(fornecedores), já que repassadas pela própria empregadora,
devem integrar o salário do empregado, em razão da aplicação analógica do artigo 457, caput, § 3º, do Texto Consolidado
e no entendimento consubstanciado no Enunciado n. 264 do
C. TST. Inconforma-se a recorrente com a integração da verba denominada ‘gueltas’ paga ao recorrido. Aduz que as
‘gueltas’ são incentivos pagos por terceiros decorrentes da
saída de certos produtos que não têm muita procura, ou dos
produtos de certos vendedores, independentemente do sucesso ou não das vendas. Diz, também, que não constituem
objeto do contrato de trabalho, já que são pagas por mera
liberalidade dos fornecedores e são pagas ‘por fora’, não
possuindo natureza salarial. Não merece prosperar o recurso da recorrente. As gueltas são, contrariamente ao aduzido
39
TRT-3ª Região, RO 00837-2002-022-03-00 7ª T., Rel. Juiz Manoel Barbosa da Silva, DJMG
18/2/2003, p. 14; Recorrentes e Recorridos: Casa Bahia Comercial Ltda. e Carlos Antonio de Melo.
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pela recorrente, valores concedidos habitualmente ao empregado pelos fabricantes dos produtos vendidos pelo empregador, com natureza salarial, pois decorriam da prestação
de serviços realizados pelo empregado, durante a jornada de
trabalho e decorrentes do contrato de trabalho, mormente
porque eram repassadas pelo próprio empregador. Neste
contexto, eram típica contraprestação pelo labor realizado,
assemelhando-se às gorjetas, pois como acertadamente concluiu o Juiz de primeiro grau, tratava-se de ‘um incentivo, um
estímulo, um prêmio pelas vendas de determinados produtos
comercializados pela reclamada’ (fl. 291), tendo como objetivo remunerar exatamente a realização da atividade-fim da
empresa e do reclamante na prestação de seus serviços, atingindo a meta comum das partes, qual seja, a venda. Destarte,
irrelevante o fato de as gueltas serem pagas por terceiros
(fornecedores), vez que ocorriam por intermédio da recorrente, o que não constitui óbice à sua integração ao salário,
em razão da aplicação analógica do artigo 457, caput, § 3º
do Texto Consolidado e no entendimento consubstanciado
no Enunciado n. 264 do C. TST. Assim, comprovado o pagamento da parcela com habitualidade, conforme prova oral e
afirmado pela própria reclamada, entendo devida a integração
nas férias acrescidas do terço constitucional, 13ºs salários,
FGTS acrescido de 40%, conforme reconhecido no decisum
de primeiro grau. Portanto, deve ser mantida a decisão de
primeiro grau, pelo seus próprios fundamentos.’40
EMENTA: ‘GUELTAS’. NATUREZA. INTEGRAÇÃO AO SALÁRIO. As chamadas ‘gueltas’ têm natureza salarial, especialmente quando
comprovado que recebidas habitualmente pelo empregado,
como incentivo, um estímulo, um prêmio. É irrelevante que
sejam pagas por terceiros, como os fornecedores, desde que
isso se dê por intermédio da empregadora. Não há óbice à
integração da verba, porquanto tal hipótese é semelhante à
gorjeta.[...] É irrelevante o fato das gueltas serem pagas por
terceiros (fornecedores), já que isso se dava por intermédio da
reclamada, o que não constitui óbice à integração da verba,
40
TRT-3ª Região, 6ª T., RO/3680/03, Rel. Juíza Lucilde D’Ajuda Lyra de Almeida, DJMG
15/5/2003, p. 13, Casas Bahia Comercial Ltda e Jose Redelvino Paraguay.
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porquanto tal hipótese é semelhante à gorjeta, cujo conteúdo
oneroso se funda na oportunidade concedida ao reclamante
para fazer jus a ela. Diante de tais fatos, é devida a integração
das gueltas no salário do reclamante, merecendo ser mantida
a v. sentença nesse aspecto. 41
INTEGRAÇÃO SALARIAL ‘GUELTAS’. INTEGRAÇÃO À REMUNERAÇÃO.
Tratando-se as ‘gueltas’ de típica contraprestação pelo labor
realizado, assemelhando-se às gorjetas, pois consistiam num
incentivo pelas vendas realizadas de determinado produto
comercializado pela empregadora, independentemente de
serem pagas por terceiros (fornecedores) já que repassadas
pela própria empregadora, devem integrar o salário do empregado, em razão da aplicação analógica do artigo 457, caput,
§ 3º do Texto Consolidado e no entendimento consubstanciado
no Enunciado n. 264 do C. TST.42
GUELTAS. REFLEXOS. O fato de ser realizado pagamento habitual das gueltas e provir de terceiro e não do empregador
não desnatura a feição salarial-contraprestativa da verba.
Guardando a mesma feição de prêmios por metas alcançadas,
remunera o empregado que atingiu a meta comum das três
partes, que é vender. Devido à sua natureza nitidamente salarial reflete no repouso semanal remunerado, aviso prévio,
férias acrescidas de 1/3, 13o. salário, FGTS e indenização de
40% do FGTS.43
GUELTAS – NATUREZA SALARIAL. Não se concebe falar em negociação de metas com vendedor de loja, sabidamente popular, sem a correspondente comissão, fruto de seu maior ou
menor desempenho. A circunstância de parte das gueltas ser
paga por terceiros – mas por intermédio da ré, não constitui
óbice à sua integração, pois a hipótese assemelha-se à gorjeta,
41
TRT-3ª Região, 6ª T., RO 16550/2001, Rel. Juíza Maria de Lourdes Gonçalves Chaves,
DJMG 8/3/2002, p. 11, Casas Bahia Comercial Ltda. e Antonio Jesus Castelan.
42
TRT-3ª Região, 6ª T., RO/3680/03, Rel. Juíza Lucilde D’Ajuda Lyra de Almeida, DJMG
15/5/2003, p. 13. Disponível em: http://listas.cev.org.br/pipermail/cevleis/2006-December/
022619.html.
43
TRT-3ª Região – 3ª T., RO 13317/2001, Rel. Juiz Milton Vasques Thibau de Almeida,
DJMG 18/12/2001, p. 10, Arapuã Comercial S/A e Guilherme Rocha de Souza.
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cujo conteúdo oneroso está no fato de ter sido dada oportunidade ao autor para a ela fazer jus. [...] MÉRITO. INTEGRAÇÃO
DAS ‘GUELTAS’ NO SALÁRIO. INCIDÊNCIAS. Sustenta a ré que a
verba denominada ‘gueltas’, paga ao autor, tanto por ela quanto por terceiros fornecedores, constitui incentivo à saída de
certos produtos que não têm muita procura, ou dos produtos
de certos vendedores, independentemente do sucesso ou não
nas vendas. Aduz, ainda, que as ‘gueltas’ pagas pelos fornecedores são fruto de mera liberalidade, e, portanto, não constituem objeto do contrato de trabalho, até porque, reconheceu a decisão, foram pagas ‘por fora’ (sic). Em síntese, entende a ré que ela não possui natureza salarial. Sem razão. É
incontroversa a existência de uma verba, recebida tanto pelo
autor, quanto pelos demais vendedores comissionistas, denominada ‘guelta’, sendo igualmente incontroverso sua motivação era a venda de determinados produtos, com ou pouca
saída. Esclareça-se, porque oportuno, que a ré não se insurgiu contra o valor de R$ 200,00 mensais, pago a tal título.
Matéria livremente passada em julgado, portanto. A busca
de sua natureza salarial ou indenizatória, ao meu sentir, passa pela verificação de sua habitualidade e de quem as pagava, se somente a ré ou se havia o concurso de terceiros. E
esse último aspecto é relevante para o desate da demanda.
Registre-se que a decisão atribui natureza jurídica de prêmio
às ‘gueltas’, pelo sucesso nas vendas. Sobre o assunto, a
preposta, ao ser interrogada, informou, à fl. 262: ‘que existem pagamentos de gueltas, conforme estipulação por fornecedores e também pela recda.; que as gueltas pagas e estipuladas pela RECDA. são lançadas no recibo; que as gueltas
estipuladas pelos fornecedores são pagas por intermédio da
recda., mas sem lançamento nos recibos; que essa forma de
pagamento, ao que sabe, é a mesma em todas as lojas; que a
negociação de metas com os fornecedores tanto é feita diretamente na matriz quanto eventualmente nas lojas com os
vendedores; que era necessária a apresentação da relação
de mercadorias para que se pudesse auferir se o empregado
tinha ou não direito às gueltas; ‘Ora, teriam as ‘gueltas’ natureza de prêmio se tivessem sido pagas exclusivamente por
terceiros, o que incorreu na hipótese. É o que se pode extrair
do conceito acerca delas, dado por Valentin Carrion e já
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citado por razões recursais. Assim, não se duvida que as
gueltas constituem típica comissão, incidente sobre as vendas dos produtos ofertados pela ré, e pagas habitualmente
por ela ou por seu intermédio, e, como tal, devem ser consideradas como parte integrante de remuneração, para efeito das incidências pleiteadas e deferidas. Não se concebe
falar em negociação de metas com vendedor de loja,
sabidamente popular, sem a correspondente comissão, fruto de seu maior ou menor desempenho. A circunstância de
parte das gueltas ter sido paga por terceiros – mas por intermédio da ré, não constitui óbice à sua integração, pois a
hipótese assemelha-se à gorjeta, cujo conteúdo oneroso está
no fato de ter sido dada oportunidade ao autor para a ela
fazer jus. Nego provimento ao recurso, ficando, em conseqüência, mantida a decisão, mas por outro fundamento.44
GUELTAS. INTEGRAÇÕES. A reclamada postula a reforma do
julgado no que respeita ao deferimento de integrações da
parcela denominada ‘guelta’, vez que, no seu entendimento, revestida de natureza indenizatória e não, como
propugnado na sentença, salarial. Sem razão. A primeira
testemunha da reclamada esclarece que ‘as gueltas constituíam em incentivo às vendas’ (fl. 224, carmim), o que restou corroborado pelos esclarecimentos contábeis da fl. 207,
carmim (quesito 2), dos quais deprenende-se que a vantagem era ‘prêmio de venda’. No mesmo sentido o depoimento da segunda testemunha da reclamada, ao afirmar
que ‘gueltas são incentivos de vendas que são pagos pela
loja e pelo fornecedor’ (também na fl. 224, carmim). Patente, assim, a natureza salarial da vantagem, vez que decorrente diretamente do exercício da atividade contratada
(vendedor), em razão do que faz jus o reclamante à
integração dos valores respectivos em repousos semanais
remunerados, férias, 13º salários e FGTS, bem deferidas
na origem.45
44
45
TRT-3ª Região, 3ª T., RO 6857/2000, Rel. Juiz Paulo Maurício Ribeiro Pires, DJMG 10/10/2000,
p. 11, Casas Bahia Comercial Ltda. e Daniel Pereira de Sales.
TRT- 4ª Região, RO 00816.903/98-6, 1998.
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A jurisprudência, nesse sentido, não se definiu pacificamente sobre o
tema, não existindo um consenso total. Muitos Tribunais afirmam que as
gueltas possuem natureza jurídica de salário; já outros as consideraram
parte da remuneração, como as gorjetas. Algumas vezes, porém, talvez
por mera confusão ou por assumirem a corrente que considera remuneração e salário a mesma coisa, comparando com a gorjeta, os magistrados
afirmam terem as gueltas natureza salarial. Alguns as comparam, inclusive,
com as comissões e prêmios.
Vejamos a seguir alguns exemplos:
GUELTAS. NATUREZA JURÍDICA. COMISSÕES. As denominadas
‘gueltas’, pagas por terceiros, e não pelo empregador, constituem-se verdadeiras comissões. A simples alegação de que
o autor recebia as ‘gueltas’ de terceiros não minimiza a responsabilidade do real empregador, pois o pagamento decorre
da venda de veículos financiados dentro do seu próprio estabelecimento, atividade essa diretamente vinculada aos fins
da empresa.46
GUELTA. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA. Gueltas são valores pagos habitualmente aos empregados de determinada empresa
pelos fabricantes dos produtos por ela vendidos. Conquanto se
trate de valores pagos por terceiro, como as gorjetas, têm natureza salarial, pois decorrem da prestação dos serviços.47
GUELTAS. NATUREZA JURÍDICA. INTEGRAÇÃO AO SALÁRIO. A parcela denominada guelta tem natureza salarial, especialmente
quando comprovado que recebidas habitualmente pelo empregado, como incentivo, um estímulo, um prêmio. É
irrelevante que sejam pagas por terceiros, como os fornecedores, desde que isso se dê por intermédio da empregadora.
Não há óbice à integração da verba, porquanto tal hipótese é
semelhante à gorjeta.48
46
TRT-12ª Região, RO V 00819-2004-008-12-00-4, 12742/2005, Florianópolis, 1ª T., Rel.
Juiz Edson Mendes de Oliveira, j. 7/10/2005, grifo nosso.
47
TRT-15ª Região, RO 00193-2003-032-15-00-2, 56785/2005, 2ª T., Relª Juíza Maria Ines
Correa de Cerqueira Cesar Targa, DOESP 18/11/2005, grifamos
48
TRT-3ª Região, RO 01515-2002-017-03-00-2, 3ª T., Relª Juíza Maria Lúcia Cardoso Magalhães, DJMG 23/8/2003 – p. 6, grifos nossos.
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GUELTAS. NATUREZA SALARIAL. Quando a empregadora paga
ao empregado a guelta, que exprime retribuição ao laborista
da comissão, ou prêmio, por venda(s) de mercadoria(s), pouco importa que o montante distribuído provenha de fornecedor, ou distribuidor, do(s) bem(ns) colocado(s) para ser(em)
mercantilizado(s). Trata-se de retribuição pela atividade de
venda, que ainda que seja um plus aos ganhos do empregado, integra sua remuneração, e ou salário, nem que
seja pela aplicação analógica da previsão contida na CLT
acerca de gorjetas.49
GUELTAS PAGAS COM HABITUALIDADE. NATUREZA JURÍDICA – As
gueltas pagas com habitualidade têm natureza salarial. Ainda que quitadas pelos fornecedores, com a intermediação do
empregador, não perdem o caráter contraprestativo, vez que
o dono do estabelecimento também se beneficia com as vendas que lhes deram origem.50
GUELTAS INTEGRAÇÃO À REMUNERAÇÃO. As ‘gueltas’ integram-se
à remuneração, nos parâmetros do art. 457, da CLT, possuindo o mesmo aspecto de prêmios por metas atingidas, embora pagas por terceiro. Diante do pagamento habitual da
verba, deve a mesma refletir sobre as férias + 1/3, 13os. Salários, FGTS acrescido de 40%, horas extras e aviso prévio.51
Para fins de exemplificação, faremos um breve resumo das principais opiniões, já tendo sido explicitada a que defendemos.
Juliana Bracks Duarte entende que as gueltas refletem, sim, no contrato de trabalho:
Uma vez que o empregador que, além de participar ativamente do procedimento das gueltas, tem ganhos, diretos ou
indiretos, com a ‘premiação’ de seus vendedores, dividindo
49
TRT-3ª Região, RO 01707-2002-001-03-00-3 – 2ª T., Rel. Juiz Antônio Fernando Guimarães, DJMG 13/8/2003, p. 25, grifo nosso.
50
TRT-3ª Região, RO 4173/03, 2ª T., Rel. Juiz Fernando Antônio de Menezes Lopes, DJMG
7/5/2003, p. 12, grifo nosso.
51
TRT 3ª Região, 8ª T., RO 3528/03, Relª Juíza Maria Cecília Alves Pinto, DJMG 10/5/2003,
p. 24, JCLT 457, grifo nosso.
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com terceiros a obrigação contratual e exclusiva de remunerar
sua mão-de-obra, deve sofrer o ônus dessa ‘delegação’. Entendo, inclusive, que se o parceiro deixar de quitar a guelta acordada, o empregado pode cobrá-la da empresa empregadora, que,
se for o caso, exercerá seu direito de regresso em futuro.52
Em sentido oposto, há quem defenda a não caracterização da natureza
remuneratória da guelta, especial e unicamente pelo fato de ser quitada por
terceiro alheio à relação empregatícia. Segundo Giovanna Real Serra,
acreditamos que a tendência da doutrina, assim como da jurisprudência majoritária é firmar o entendimento no qual gueltas
equiparam-se às gorjetas, sendo, portanto, parte da remuneração do trabalhador [...]Por todo o exposto, embora as gueltas
se assemelhem muito às gorjetas em alguns aspectos, pelo
fato de ambas serem pagas por terceiros, estranhos à relação
de emprego, com habitualidade (no caso das gueltas pode haver habitualidade ou não) e como contraprestação por determinado serviço exercido pelo empregado, ambas são completamente diferentes em suas finalidades e em seus efeitos.
Ambos os institutos não se confundem. Ainda que o empregador participe do repasse das gueltas – repita-se. Neste caso,
ele figura como mero intermediário [...]Estamos certos de que
nosso posicionamento acerca do tema encontra-se evidenciado. Tal como cogitamos na hipótese preliminar ao presente
trabalho, entendemos que as gueltas definitivamente não são
salário. Também não são remuneração. Não devem, portanto,
incidir, refletir, sobre qualquer parcela salarial, fundiária ou
previdenciária. Como bem apontou Valentin Carrion, em outras palavras, as gueltas nem mesmo interferem na relação de
emprego. Na pior das hipóteses, considerando certa relação
das gueltas com a atividade desempenhada pelo empregado,
poderíamos afirmar que as gueltas possuem natureza jurídica
de gratificação não ajustada, não incidindo em qualquer parcela salarial ou remuneratória.53
52
DUARTE, Juliana Bracks. A prática das gueltas e sua repercussão no contrato de trabalho, p. 1.
53
SERRA, Giovanna Real. A natureza jurídica das gueltas e seu impacto no contrato de
emprego, p. 32.
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empregados de certo banco pelas operações realizadas para
os produtos daquela primeira; não influem na relação
empregatícia.54
Reforço, entretanto, que, ao meu sentir, para essa corrente prevalecer, a empregadora deve, realmente, estar afastada de toda
e qualquer negociação/acompanhamento/efetivação da
‘premiação’ de seus vendedores pelo fabricante. A dúvida consiste em saber se o mesmo tratamento pode ser aplicado às
gueltas, ainda não reguladas em lei, nem sumuladas pela orientação do Tribunal Superior do Trabalho. Não obstante, dos Tribunais Regionais inferiores já se extrai um posicionamento no
sentido de que, se a empresa empregadora participa do processo de ‘premiação’, consentindo com a prática, auxiliando na
demonstração de quem vendeu o quê, encaminhando listas e
controles ao fabricante, recebendo o dinheiro da ‘bonificação’ e
repassando ao seu trabalhador, então, a guelta pode ser considerada parte integrante da remuneração do empregado. Os juízes
que adotam esse raciocínio vão ainda além e argumentam que a
empresa empregadora é beneficiada com a guelta, pois o estímulo das vendas, mesmo que de determinadas marcas, acaba
sempre gerando lucro ao estabelecimento final, interessado na
‘premiação’ de seus vendedores.55
Marcelo Colapietro entende que as gueltas, se não houver participação da empregadora, não serão integradas à remuneração, conseqüentemente não refletirão no contrato de trabalho:
Com efeito, pelo que se pode concluir, após este estudo, é
que só haverá a integração das gueltas na remuneração do
empregado se a empregadora participar do processo/controle de pagamento das mesmas, bem como, mesmo que de
forma indireta, aufira algum tipo de benefício com tal atitude,
54
CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis do trabalho, p. 314.
55
DUARTE, Juliana Bracks. A prática das gueltas e sua repercussão no contrato de trabalho, p. 1.
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do contrário não há se falar em qualquer tipo de integração,
pois, tal parcela seria meramente indenizatória e paga por
terceiros, sem qualquer participação da real empregadora.56
Dessa forma, analisados todos os pormenores e detalhes do tema,
acreditamos que a corrente que melhor aborda o instituto das gueltas é a
que as trata como parte da remuneração, tendo reflexos, sim, no contrato
de trabalho. Para evolução do tema principal deste texto, passaremos à
prova diabólica.
3 AS PROVAS NO DIREITO DO TRABALHO
3.1 Prova diabólica: definição
À parte do chamativo nome, imperativo delimitar a importância da
Prova Diabólica em qualquer processo ou procedimento, seja administrativo ou judicial. Primeiramente, sabe-se que a prova diabólica é a chamada
prova negativa, ou prova negativa de fato. É a prova que se faz, com o
intuito de demonstrar que algum fato (ou alegação) não ocorreu. Dessa
forma, o pensamento inicial pode levar à conclusão de que para se provar
que um fato não ocorreu, basta comprovar que outro que exclua o primeiro, ocorreu. Mas nem sempre tal comprovação é possível.
O ônus da prova cabe a quem o alega, como regra principal. No latim,
onus significa carga, fardo, peso. Encontra-se referência ao sistema de distribuição do ônus da prova em textos romanos dos glosadores, traduzidos em
duas máximas: afirmanti non neganti incumbit probatio; negativa non
sunt probanda. As Ordenações Filipinas (Liv. III, Tít. 53 § 10) tinham como
regra que “a negativa não se pode provar”, mas já admitiam que tal afirmativa
teria suas exceções, porque bem se pode provar quando restringida a certo
período e lugar ou quando se resolve em afirmativa.
Os romanos já entendiam que a prova incumbe provar àquele que a
afirma e não a quem a nega. No entanto, sabe-se que se uma alegação não
é negada, presume-se verdadeira. Se negada, nasce a obrigação de comprovar a alegação: reus in exceptione actor est. Tal orientação construiu a
teoria clássica do ônus da prova: incumbe o ônus da prova àquela das
56
RODRIGUES, Marcelo Colapietro. Guelta. Informativo Jurídico, p. 1.
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partes que alega a existência ou inexistência de um fato do qual pretenda induzir uma relação de direito.
A regra do ônus da prova está contida no art. 333 do CPC:
Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo
ou extintivo do direito do autor.
Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:
I – recair sobre direito indisponível da parte;
II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do
direito.
Assim,
as proposições das partes, quando inconciliáveis, precisam
ser comprovadas, tratando-se de processo dispositivo. As
regras da produção da prova são estabelecidas em função
do interesse das partes. Primeiramente convém distinguir o
ônus da prova e o dever legal de se apresentar à Justiça a
veracidade dos fatos alegados.57
Nas palavras de Ísis de Almeida,
na verdade, como ônus ou como dever, a parte que não evidenciar o fato controverso – quando tal encargo lhe esteja
distribuído – não logrará êxito em sua pretensão, ocorrendo
aí, por conseqüência, a ´sanção´(ou o castigo) pela sua inércia. Descumprir uma obrigação ou não se desincumbir de
um ônus, dá no mesmo.58
O art. 339 do Código de Processo Civil afirma: “Ninguém se exime
do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da
57
58
MEDEIROS, Cristiano Carrilho S. de. Prova na ação trabalhista de dano moral. Universo Jurídico. Disponível em: http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/
default.asp?action=doutrina&iddoutrina=841. Acesso em: 12 dez. 2007, p. 1.
ALMEIDA, Ísis de. Manual de direito processual do trabalho, p. 124.
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verdade.” Tal dever se decompõe conforme o disposto nos arts. 14, 340 e
341 do Código de Processo Civil, que assim dispõem:
Art. 14. Compete às partes e aos seus procuradores:
I – expor os fatos em juízo conforme a verdade;
II – proceder com lealdade e boa-fé;
III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de
que são destituídas de fundamento;
IV – não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito.
Art. 340. Além dos deveres enumerados no art. 14, compete
à parte:
I – comparecer em juízo, respondendo ao que lhe for interrogado;
II – submeter-se à inspeção judicial, que for julgada necessária;
III – praticar o ato que lhe for determinado.
Art. 341. Compete ao terceiro, em relação a qualquer pleito:
I – informar ao juiz os fatos e as circunstâncias, de que tenha
conhecimento;
II – exibir coisa ou documento, que esteja em seu poder.
O ônus da prova, na CLT, segue a regra principal do Direito brasileiro e é tratado no art. 818, segundo o qual “a prova das alegações incumbe
à parte que as fizer”.
Tal dever, quando violado, reputa em sanções cominadas nos arts.
16, 17, 18 e 22 do referido diploma legal.
Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de
má-fé como autor, réu ou interveniente.
Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:
I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei
ou fato incontroverso;
II – alterar a verdade dos fatos;
III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou
ato do processo;
VI – provocar incidentes manifestamente infundados.
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Art. 18. O juiz, de ofício ou a requerimento, condenará o
litigante de má-fé a indenizar à parte contrária os prejuízos
que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e as despesas que efetuou.
§ 1º Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz
condenará cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para
lesar a parte contrária.
§ 2º O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz,
em quantia não superior a 20% (vinte por cento) sobre o
valor da causa, ou liquidado por arbitramento.
Art. 22. O réu que, por não argüir na sua resposta fato
impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, dilatar o julgamento da lide, será condenado nas custas a partir
do saneamento do processo e perderá, ainda que vencedor
na causa, o direito a haver do vencido honorários advocatícios.
O ônus da prova, dessa forma, consiste somente em um “encargo”,
não culminando em sanção, uma vez que inexiste punição para quem não
prova suas alegações em juízo, obviamente sem considerar a decisão desfavorável, que quase provavelmente ocorrerá, e excluindo os casos de prova
falsa ou litigância de má-fé.
A partir da instrução probatória, passa-se a incumbência ao juiz da
causa, que deverá apreciar e majorar as provas de acordo com o seu entendimento, com os fatos provados, seguindo obviamente a lei e utilizando
as fontes do Direito, se necessário.
Na fase de apreciação o juiz desenvolve seu trabalho intelectual, pesando e estimando as provas para extrair a verdade. As partes fornecerão subsídios para a avaliação, mas
cabe unicamente ao juiz a apreciação da prova. Evitando
que o trabalho intelectual do juiz seja arbitrário, basicamente,
são três os sistemas de apreciação da prova: o da prova legal,
em que a lei fixa em detalhes o valor a ser atribuído a cada
meio de prova; o da valoração secundum conscientiam, deixando ao juiz ampla liberdade de apreciação e do da persuasão racional, onde o juiz forma seu convencimento livremente obedecendo critérios racionais que devem ser
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indicados. [...] A persuasão racional, em sintonia com o devido processo legal representa o convencimento formado com
liberdade intelectual apoiado na prova constante dos autos e
a devida motivação do raciocínio desenvolvido pelo juiz que
conduziu a decisão proferida. A apreciação dos elementos
de prova é livre no sentido de que devem pesar as provas
produzidas submetidas aos rigores do raciocínio esclarecido,
formando a convicção, quanto à verdade daí surgida.59
Tal assertiva encontra respaldo no sistema da persuasão racional,
contido no Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos
fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não
alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os
motivos que lhe formaram o convencimento.
E mais:
Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente
legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a
ação ou a defesa.
Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo,
modificativo ou extintivo do direito do autor.
Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:
I – recair sobre direito indisponível da parte;
II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do
direito.
Art. 335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela
observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras
59
MEDEIROS, Cristiano Carrilho S. de. Prova na ação trabalhista de dano moral. Universo
Jurídico. Disponível em: http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?
action=doutrina&iddoutrina=841. Acesso em: 12 dez. 2007, p. 1.
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da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame
pericial.
Art. 339. Ninguém se exime do dever de colaborar com o
Poder Judiciário para o descobrimento da verdade.
Nas palavras de Moacyr Amaral Santos, o juiz
é livre porque, como investigador da verdade, não está sujeito de forma absoluta a seguir regras que atribuem valor
qualitativo aos meios de prova, mas, ao contrário, tem a
faculdade de atribuir-lhes a eficácia que resultar da influência que exercem em sua consciência. Mas a sua liberdade
na formação da convicção não vai ao arbítrio, pois deverá
exercê-la com respeito a condições que a lei lhe impõe.60
E mais:
Conforme a natureza do fato, os meios de prova poderão
variar e o mesmo fato pode ser provado de diferentes maneiras. A prova terá que produzir-se em sintonia com os princípios e normas processuais; para o juiz, aquilo que não se encontra no processo e conforme a disciplina processual, não
existe. – quod non est in actis non est in mundo. [...] A
prova diz respeito aos fatos. Mas não a todos os fatos: não
deve ser admitida a prova dos fatos notórios (conhecidos de
todos), dos impertinentes (estranhos à causa), dos irrelevantes
(que, embora pertençam à causa, não influem na decisão), dos
incontroversos (confessados ou admitidos por ambas as partes), dos que sejam cobertos por presunção legal de existência
ou veracidade (CPC art. 334) ou dos impossíveis (embora se
admita a prova dos fatos improváveis).61
No Procedimento Trabalhista inexiste audiência específica para a
fase probatória. Por sua vez, não há qualquer vedação para que o juiz a
60
61
SANTOS, Moacir Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, p. 383.
MEDEIROS, Cristiano Carrilho S. De. Prova na ação trabalhista de dano moral. Universo
Jurídico. Disponível em: http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&iddoutrina=841. Acesso em: 12 dez. 2007, p. 1.
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estabeleça. Entretanto, na praxe, freqüentemente ocorre a audiência de
instrução. Em relação à instrução da causa, a CLT estabelece o procedimento a ser seguido, devendo considerar a ordem estabelecida para efeito
de preclusão, estabelecendo a precedência das declarações do autor e da
oitiva de suas testemunhas.
Art. 848. Terminada a defesa, seguir-se-á a instrução do processo, podendo o presidente, ex-officio ou a requerimento de
qualquer juiz temporário, interrogar os litigantes. (Redação
dada ao caput pela Lei n. 9.022, de 5/4/95)
§ 1º Findo o interrogatório, poderá qualquer dos litigantes retirar-se, prosseguindo a instrução com o seu representante.
§ 2º Serão, a seguir, ouvidas as testemunhas, os peritos e os
técnicos, se houver.
Nessa esteira, tanto nos processos da Justiça Comum e da Justiça
do Trabalho, a necessidade das provas é urgente. Trata-se de todo o
embasamento do que se discute nos autos, sendo cediço que uma alegação
não provada e um fato não provado não existem no mundo jurídico.
Da mesma maneira, tão importante quanto provar que um fato ocorreu, ou que uma alegação é verdadeira, existe a necessidade de provar que
algum fato não ocorreu ou que alguma alegação é falsa. Para tanto, é usada
a “prova diabólica”, no intuito de fazer tal prova.
Na maioria das vezes, a prova diabólica é feita por meio de fatos que
são incompatíveis com o que fora alegado, tornando-o negativo por mera
dedução. No entanto, quando não há provas suficientes para negar um fato
ou alegação, nasce a necessidade de combater a prova com alegações
contrárias, provas diversas ou substitutivas. É aquela que abrange fatos
negativos cuja dificuldade é comumente reconhecida e aceita, onde há aceitação da inversão do seu ônus.
A dificuldade de produção de tal prova foi entendida no seguinte
julgado:
Caso se determinasse que autora deveria demonstrar que o
réu deixou de efetuar os pagamentos devidos, estar-se-ia
tentando obrigá-la a fazer prova de fato negativo, a qual, na
imensa maioria das vezes, e no caso em julgamento, em particular, é absolutamente impossível de se realizar, motivo pelo
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qual costuma ser caracterizada pela doutrina e pela jurisprudência como ‘diabólica’.62
A maior importância de tal prova, a princípio, é a de negar algo ruim
que tenha ocorrido, como a não-configuração de um dano moral, a nãoocorrência de justa causa. Resumindo, é a tentativa de provar que não é
culpado. “Agora exigem que o acusado prove que não é culpado, é a chamada prova diabólica”.63
Bem apropriada, nesse sentido, a decisão da 1ª Câmara Cível do
TARGS, citada por Helenilson Cunha Pontes:
[...] Seria exigir prova diabólica, querer que o autor demonstre
materialmente um dano que reside na sua alma e denota caráter subjetivo: dano moral. Suficientes os elementos dos autos
para presumir a existência do dano moral. O prudente arbítrio
judicial na fixação do dano moral leva em conta a gravidade...,
e as condições econômicas da vítima. Deferido dano moral.
Exige-se do contribuinte judicialmente a chamada prova diabólica, isto é, a prova de que não praticou qualquer ilicitude fiscal.
Os computadores oficiais apontam débitos originados de supostas ‘divergências’, as autoridades fiscais não conseguem explicálo de forma consistente e célere, nega-se ao contribuinte o direito de defesa administrativa quanto àqueles débitos, bem como a
emissão de CND, e, para concluir a via crucis do contribuinte, o
juiz ainda lhe exige a prova de que não deve aqueles débitos, os
quais sequer consegue compreender.64
a) o ônus da prova dos fatos constitutivos da pretensão penal
pertence com exclusividade à acusação, sem que se possa
exigir a produção por parte da defesa de provas referentes a
62
Agravo de Instrumento nº 0376586-6, 5ª Câmara Cível do TAMG, Rel. Mariné da Cunha. j.
20/2/2003.
63
NAVES, João. Acusações são relativas aos últimos 2 anos de gestão do ex-governador.
Disponível em: http://www.meujornal.com.br/ocb/jornal/materias/integra.aspx?id=25888.
Acesso em: 12 dez. 2007, p. 1.
64
TARGS, Ap. Cív. 194210266, Rel. Ari Darci Wachholz, pub. 8/4/1995, apud PONTES,
Helenilson Cunha. Ditadura da certidão negativa. Disponível em: http://www.soleis.adv.br/
artigocertidaonegativa.htm. Acesso em: 12 dez. 2007, p. 1.
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fatos negativos (prova diabólica); b) necessidade de colheita
de provas ou de repetição de provas já obtidas perante o
órgão judicial competente, mediante o devido processo legal,
contraditório e ampla defesa; c) absoluta independência funcional do magistrado na valoração livre das provas.65
A prova diabólica, a princípio, pode ser considerada como uma
prova extremamente difícil de se fazer, gerando discussões sobre a quem
cabe tal ônus, já que muitas vezes se baseia no próprio contraditório
incluído no procedimento judicial ou administrativo e a prova de fato diverso não excluí aquele que incumbe a uma das partes, provar que não
ocorreu. Tal fato, quando se trata de prova de difícil comprovação, acaba recaindo ao fornecedor, por ser parte “mais forte” da relação jurídica, considerando-se o consumidor ou o empregado como hipossuficiente.
Senão vejamos:
APELAÇÃO
CÍVEL.
AÇÃO
DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO CUMULADA
COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SERVIÇO NÃO CONTRATADO
– FATO NEGATIVO. PROVA DIABÓLICA. ÔNUS INVERSO QUE SE IMPÕE
AO FORNECEDOR. COBRANÇA INDEVIDA. RESTITUIÇÃO EM DOBRO
DOS VALORES. ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CDC. DEVER
INCONTESTE. DANOS À MORAL DO CONSUMIDOR. DEVER DE INDENIZAR INEXISTENTE. AUSÊNCIA DE PROVAS DO ABALO MORAL SOFRIDO.
COBRANÇA QUE NÃO ULTRAPASSOU A ESFERA DE CONHECIMENTO DO
PRÓPRIO APELANTE. VALORES ESTORNADOS. MERO DESCONFORTO.
REFORMA DA DECISÃO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. ‘A prova
da não-contratação alegada pelo consumidor é impossível,
conhecida também como ‘prova diabólica’, cabendo à editora
da revista fazer a prova da existência da contratação correspondente aos descontos efetuados diretamente na conta do
cartão de crédito. Não se pode impor que o agravante prove
que não contratou os serviços da empresa-jornalística, uma
vez que esta determinação se constituiria na denominada prova negativa. Precedentes do STJ’ (TJRS, rel. Des. Adão Sergio do Nascimento Cassiano). Logo, ausente qualquer dos
65
GARCIA, Flúvio Cardinelle Oliveira. Diretrizes constitucionais aplicadas no âmbito do
direito processual penal. Jus Navigandi, p. 1.
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pressupostos enumerados no art. 927 do Código Civil,
precipuamente a prova do dano moral, ônus que cabia à autora nos termos do art. 333, I, do CPC, não pode prosperar a
responsabilização civil do apelado pelo acontecimento descrito na exordial, conforme julgados abaixo: ‘’Em se tratando de
responsabilidade civil por ato ilícito, o ônus da prova, em regra,
cabe ao lesado, que deve demonstrar, além da existência do
dano, também a culpa do réu no evento, sob pena de ver
inacolhido o seu pleito’ (AC n. 1997.008460-9, Des. Eder Graf)’
(AC n. 2004.004421-6, deste relator). ‘Em se tratando de responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana (art. 159, CC/
1916 e art. 186, CC/2002), para que seja reconhecido o direito
à indenização, é necessária a efetiva demonstração do dano,
do comportamento ilícito (dolo ou culpa) do agente e do nexo
de causalidade entre ambos, ou seja, é imprescindível a comprovação de que o postulante da indenização sofreu prejuízo
diretamente ocasionado pela conduta indevida da outra parte’
(AC n. 2005.039539-9, Desª Salete Silva Sommariva). Por
fim, no que diz respeito ao pedido de condenação por litigância
de má-fé formulado pelo apelado em contra-razões, tem-se
que diante do provimento do recurso, resta prejudicada sua
análise. Ad argumentandum, registre-se que para que haja
tal condenação, faz-se necessário que esteja evidenciado o
dolo do litigante em prejudicar a parte contrária, o que não se
evidencia nos autos. Diante do exposto, vota-se no sentido de
dar provimento ao recurso, julgando improcedente o pedido,
invertendo-se os ônus sucumbenciais, fixando os honorários
advocatícios ao patrono do réu em R$ 600,00 (seiscentos reais), forte no art. 20, § 4°, do CPC.66
É, pois, direito básico do consumidor, entre outros, o privilégio
da inversão do ônus da prova, havendo verossimilhança na
sua alegação ou sendo ele hipossuficiente técnico ou econômico ou, simultaneamente, técnico e econômico. Ora, provar
o correntista que não foi ele quem efetuou saques indevidos
na sua conta-corrente é tese insustentável, por tratar-se
mesmo de ‘prova diabólica’, impossível de ser feita.67
66
67
Apelação Cível n. 2005.019153-3, de Blumenau, Publicação: DJSC Eletrônico n. 229, edição
de 20/6/2007, p. 152. Disponível em: http://www.cc2002.com.br/noticia.php?id=366.
GRINBERG, Rosana. STJ restaura direito do consumidor, p. 1.
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A doutrina chama a prova negativa de ‘prova diabólica’. Por
que isso? Um passageiro alega em Juízo que sua bagagem
continha isto ou aquilo. Independentemente da boa fé, isto
não pode fazer prova. Ainda que ele tenha ‘nota fiscal’,
‘comprovante’ etc., pois o tal objeto ‘comprado’ poderia estar
em outra bagagem. Não pode haver prova, nem mesmo presunção, de que tal objeto extraviado estaria de fato na bagagem extraviada. Por isto a limitação de indenização. É apenas
questão de bom senso! É por isto que os países ditos civilizados reconhecem a lei que assinaram e reconhecem a limitação em indenização de bagagem. Tratemos de um outro exemplo: uma pessoa alega que passou mal pelo sanduíche comido
em tal lanchonete. Como a lanchonete poderia provar que não
foi sua culpa? É, de novo, a chamada ‘prova diabólica’.’68
Podemos, assim, afirmar que o direito brasileiro tem exigido
uma postura diligente do agente que comunica e informa, e
não a comprovação da verdade dos fatos; o que, no nosso
entender, faz acertadamente, uma vez que tal exigência constituiria uma ‘prova diabólica’, com o que restariam seriamente
comprometidos os princípios constitucionais agasalhados nos
incisos IV, IX e XVI do artigo 5º e o artigo 220 da Constituição Federal Brasileira.69
Conforme salienta Luiz Roberto Barroso,
no mundo atual, no qual se exige que a informação circule cada
vez mais rapidamente, seria impossível pretender que apenas
verdades incontestáveis fossem divulgadas pela mídia. Em muitos casos, isso seria o mesmo que inviabilizar a liberdade de
informação, sobretudo de informação jornalística, marcada por
juízos de verossimilhança e probabilidade. Assim, o requisito da
verdade deve ser compreendido do ponto de vista subjetivo,
equiparando-se à diligência do informador, a quem incumbe apurar de forma séria os fatos que pretende tornar públicos.70
68
ALMEIDA, José Gabriel Assis de. Responsabilidade civil das empresas aéreas. Núcleo de
Estudos de Direito Aeronáutico (NEDA), p. 1.
69
SALOMÃO, Luis Felipe. A formação do juiz e as escolas de magistratura no Brasil, p. 1.
70
BARROSO, Luiz Roberto. Temas de direito constitucional, p. 110-111.
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Inibir a produção da prova é golpear o direito fundamental de
acesso à Justiça, como a medieval prova diabólica, expressão de supremo desprezo ao jurisdicionado, a tisnar indelevelmente a toga do julgador que se espera o oráculo do Direito aplicado ao caso concreto.
Derrogaram-se, desde 5 de outubro de 1988, os textos legais
condicionantes ou inibidores da prova, como, tomando por
exemplo o Código de Processo Civil, o que está no art. 401,
e até mesmo, os efeitos legais da prova, como a revelia do
art. 319, que chegou até mesmo a ser interpretada como
irracional meio de restrição do poder/dever judicial de convicção sobre a causa.
Sempre motivadamente – quer o mandamento constitucional
do art. 93, IX, garantir legitimidade e autoridade ao ato de
poder público – o juiz hoje está munido de amplos poderes
para a sempre difícil tarefa de apreensão histórica dos fatos
que interessam à causa.71
Junto julgado sobre a importância da prova negativa, prova diabólica, ou prova contrária no Direito do Trabalho:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SALÁRIO POR FORA. Provada pelo Reclamante a prática de pagamentos por fora, é da Reclamada o ônus da prova contrária. FÉRIAS. É do empregador o
dever de documentar a relação de emprego. No caso, a Reclamada, nem sequer juntou aos autos os recibos de pagamento de férias bem como os registros de horário respectivos, nos quais poderia ser verificada a concessão ou não de
férias nos meses alegados.72
AGRAVO
DE INSTRUMENTO.
AÇÃO
DE COBRANÇA DE PARCELAS DE
CONSÓRCIO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. CDC. CRITÉRIO DO JUIZ.
PROVA DE FATO NEGATIVO. IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO. ‘PROVA
DIABÓLICA’. APLICAÇÃO DO ART. 333, DO CPC. DEVEDOR QUE ALEGA QUITAÇÃO – ÔNUS DE DEMONSTRAR O PAGAMENTO. RECIBO. ARTS.
71
SLAIBI FILHO, Nagib. Tutela cautelar: política, direito e ética. Jus Navigandi, p. 1.
72
TST, AIRR, 1013/2005-371-04-40, DJ 7/12/2007.
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401 E 402, DO CPC. DÉBITO SUPERIOR A VINTE SALÁRIOS MÍNIMOS.
INADMISSIBILIDADE DE PROVA MERAMENTE TESTEMUNHAL. A inversão do ônus da prova foi introduzida no nosso ordenamento
jurídico, de forma expressa, pelo art. 6º, VIII, do CDC, que
institui como direito básico do consumidor ‘a facilitação da
defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da
prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do Juiz,
for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente,
segundo as regras ordinárias da experiência.’ Se o artigo deixa a critério do Julgador a decisão acerca da inversão, estabelecendo que leve ele em conta as regras da experiência, é
porque deverá ser verificado, em cada caso concreto, se, realmente, deve-se deixar de aplicar a regra geral de distribuição
do ônus probatório, contida do art. 333, do CPC. Embora a
relação em análise seja indubitavelmente de consumo, já que a
administradora de consórcio forneceu um serviço ao ora recorrente, não se pode, de maneira alguma, inverter o ônus da
prova, sob pena de se impossibilitar a defesa do direito pleiteado pela recorrida na inicial. Caso se determinasse que autora deveria demonstrar que o réu deixou de efetuar os
pagamentos devidos, estar-se-ia tentando obrigá-la a fazer prova de fato negativo, a qual, na imensa maioria das
vezes, e no caso em julgamento, em particular, é absolutamente impossível de se realizar, motivo pelo qual costuma
ser caracterizada pela doutrina e pela jurisprudência como
‘diabólica’. Tendo o réu alegado que efetuara os pagamentos devidos, cabia-lhe, nos termos do inciso II do art. 333, do
CPC, demonstrar que o fizera, através de recibo ou qualquer
outro documento hábil. A simples liberação do gravame que
incidia sobre o veículo não serve como prova de quitação das
prestações, a qual deve ser demonstrada através dos recibos,
que o devedor adimplente tem todo direito de exigir do credor.
Ainda que se admitisse a realização da prova testemunhal,
esta apenas poderia ter caráter acessório, complementar, em
relação à documentação que deveria ter sido apresentada, nos
termos dos arts. 401 e 402, do CPC, vez que o valor devido
ultrapassa, em muito, o equivalente a dez salários mínimos.73
73
TAMG, 5ª Câm. Cív., Agravo de Instrumento 0376586-6, Rel. Mariné da Cunha, j.
20/2/2003, unânime.
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INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. AQUISIÇÃO DO COMPUTADOR DO MILHÃO COM DEFEITO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. COBRANÇA DAS PRESTAÇÕES E INSCRIÇÃO DO NOME DA CONSUMIDORA NO CADASTRO DE MAUS PAGADORES, APÓS A RESCISÃO DO
CONTRATO. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DAS EMISSORAS DE
RÁDIO E TELEVISÃO PELA PROPAGANDA DO PRODUTO E DO BANCO.
NÃO-COMUNICAÇÃO DO DISTRATO. RESPONSABILIDADE DA FABRICANTE. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. INTELIGÊNCIA. SENTENÇA
FUNDAMENTADA. NULIDADE AFASTADA. QUANTUM DA REPARAÇÃO.
FIXAÇÃO EM SALÁRIOS MÍNIMOS. CRITÉRIO INCORRETO. REDUÇÃO.
RECURSO DA AUTORA DESPROVIDO. RECURSO DA RÉ PARCIALMENTE
PROVIDO. 1. O Código dispensou o consumidor da prova do
defeito do produto (art. 12, § 3º, II) ou do serviço (art. 14, §
3º, I), impondo ao fornecedor, para não ser responsabilizado,
a prova de que o defeito inexiste (Luiz Paulo da Silva Araújo
Filho Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Saraiva, n. 22), criando, assim, uma presunção legal de defeito
do produto ou do serviço, pelo que resta ao consumidor provar apenas o dano e o nexo causal e ao fornecedor a
inexistência do defeito. 2. A responsabilidade solidária preconizada no art. 7º, parágrafo único, da Lei 8.078/90, não é absoluta, sendo imprescindível a demonstração do nexo causal entre a conduta do agente e o dano experimentado pelo consumidor. 3. A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII,
da Lei 8.078/90, há de ser feita em determinados casos, e com
inteligência, não se podendo exigir que o fornecedor faça prova de fato negativo, a chamada prova diabólica, considerada impossível, como, por exemplo, de não ter recebido
determinada comunicação do consumidor, quando este
poderia perfeitamente ter demonstrado que procedeu a
tal comunicação, por outros meios. 4. Embora tolerada pela
jurisprudência, juridicamente incorreta a fixação de danos
morais em salários mínimos, pela vedação prevista no art. 7º,
inciso IV, da Constituição Federal e nas Leis n. 6.205/75 e
7.789/89, que proíbem a vinculação do salário mínimo para
qualquer fim, salvo os benefícios de prestação continuada pela
Previdência Social. 5. O valor do dano moral deve guardar
correlação direta com a reparação ou compensação à vítima
e o caráter punitivo ao responsável, a fim de se impedir a
reiteração do ato, considerando as circunstâncias factuais, a
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posição ocupada pela vítima e pelo ofensor, a gravidade e repercussão da ofensa. 6. Predomina na jurisprudência o entendimento de que o valor pleiteado na exordial de indenização,
por dano moral, é meramente estimativo, não servindo de base
para aferição do êxito da demanda, se o montante fixado for
inferior àquele inicialmente requerido.74
AGRAVO
DE INSTRUMENTO.
TUTELA ANTECIPADA. SUSPENSÃO DE
DÉBITO EM CARTÃO DE CRÉDITO. POSSIBILIDADE. ASSINATURA DE
REVISTA. NÃO RENOVAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO. ÔNUS DA PROVA. Sustentando o autor da ação que não renovou a assinatura da revista cujas parcelas estão sendo debitadas em seu
cartão de crédito, possível a concessão de antecipação de
tutela para suspender os pagamentos da assinatura. A prova
da não contratação alegada pelo consumidor é impossível, conhecida também como ‘prova diabólica’, cabendo
à editora da revista fazer a prova da existência da
contratação correspondente aos descontos efetuados
diretamente na conta do cartão de crédito. Não se pode
impor que o agravante prove que não contratou os serviços
da empresa jornalística, uma vez que esta determinação se
constituiria na denominada prova negativa. Precedentes do
STJ. Descabe na fase inicial da demanda a determinação de
devolução dos valores já descontados, sendo tais quantias
abrangidas por eventual condenação da ré ao pagamento dos
danos materiais. Agravo parcialmente provido.75
Portanto, entende-se extremamente importante, tal como a prova
positiva, a prova diabólica. No entanto, extremamente difícil de fazer. A
maior importância de tal prova, a princípio, é a de negar ou combater alegação ou fato que não ocorreu, mas que tal prova não pode ser feita pela
comprovação nos autos, como a não-configuração de um dano moral, a
não-ocorrência de justa causa, o não-pagamento de verbas “por fora”, e
assim por diante.
74
TJPR, Curitiba, 6ª Câm. Cív., Ap. Cív. 145920-1, Rel. Des. Airvaldo Stela Alves, j.
10/12/2003, unânime.
75
TJRS, Porto Alegre, 9ª Câm. Cív. Agravo de Instrumento 70008217226, Rel. Des. Adão
Sérgio do Nascimento Cassiano, j. 26/5/2004, unânime.
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No entanto, quando de difícil comprovação, ou quando se basear
unicamente em prova testemunhal, que é a mais fraca das provas, cabe ao
juiz analisar toda a comprovação probatória juntada, para exarar a melhor
e mais justa decisão.
4 CONCLUSÃO
Analisando todas as correntes, sem menoscabo da valiosa opinião daqueles que defendem as correntes diversas, é nosso entendimento que a corrente que mais sensatamente aborda o tema das gueltas é a que a trata como
parte integrante da remuneração, devendo refletir no contrato de trabalho.
No mesmo sentido decidiu a 5ª Turma de Juízes do TRT de Minas,
rejeitando a tese da defesa de que a verba era paga “através” da empresa
reclamada, mas como algo à parte do contrato de trabalho. Afinal, como
consta na decisão, a bonificação é um incentivo ao desempenho do empregado, o que, em reflexo, beneficia em primeiro lugar a empregadora. Segundo o relator, juiz Rogério Valle Ferreira, ficou comprovado, no caso,
que a empresa pagava os valores das gueltas diretamente aos seus empregados, sem participação visível do fabricante do produto.76
Portanto, seguindo a tendência majoritária e o entendimento dos melhores doutrinadores que abordam tal assunto, entendo que as gueltas pagas pela
empregadora integram a remuneração e geram efeitos no contrato de trabalho.
Se a bonificação concedida ao vendedor como incentivo pela venda de determinada marca ou produto (conhecida como guelta) é paga pela própria empregadora, e não pelos seus fornecedores, a parcela integra a remuneração do
empregado, devendo refletir nos demais direitos trabalhistas.
A respeito da prova diabólica, acreditamos que seu instituto, apesar
do nome polêmico, é de suma importância no Direito, uma vez que trata de
uma essencial estratégia de defesa, na qual se prova que determinado fato
não ocorreu, como no caso de justa causa, dano moral, etc. Apesar de sua
difícil comprovação, na maioria absoluta não é prova impossível, como
entende grande parte de julgados e de acordo com a opinião de autores
citados e deve ser respeitada quando requerida.
76
TRTMG-3ª Região RO 01663-2005-025-03-00-4. Disponível em: http://www.calvo.pro.br/
noticias/2006/29jul06_gueltas.htm.
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DIREITO DE EX-CÔNJUGE À PENSÃO POR
MORTE DE SEGURADO VINCULADO AO
REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL
DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Leonardo Fulgêncio Júnior*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Considerações preliminares. 2. Benefício previdenciário da pensão por morte. 3. Legislação aplicável à
concessão de pensão por morte devida ao ex-cônjuge
de segurado. 4. Inconstitucionalidade e ilegalidade do
Decreto Mineiro n. 42.758/02. 5. Pensão por morte vs.
pensão alimentícia. 6. Adoção do instituto jurídico alemão da Compensação de Amparo no ordenamento jurídico brasileiro. 7. Conclusão. 8. Referências.
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Conforme preceitua a Constituição Federal de 1988,1 o Direito
Previdenciário abrange os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Trata-se de indiscutível ramo autônomo da Ciência do
Direito, com princípios, regras e valores próprios, que trata não somente
da previdência social em si, mas alcança também a saúde e a assistência
social. Ou seja, apesar da denominação “Direito Previdenciário”,2 esse
segmento legal cuida de toda a seguridade social.
A previdência social tem por finalidade precípua assegurar aos seus
beneficiários (segurados e seus dependentes) os meios indispensáveis de
*
Advogado.
1
“Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos
Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à
previdência e à assistência social.”
2
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário, p. 108.
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uma sobrevivência digna, protegendo-os na eventual ocorrência de determinados eventos sociais, tais como incapacidade, tempo de serviço, velhice, desemprego involuntário, maternidade, prisão ou morte. O Estado,
diante das conseqüências desses eventos, deve regular a matéria, sobretudo indicando critérios de incidência da norma previdenciária,3 para melhor
amparar os cidadãos necessitados. Mister que esse dever de amparo do
Estado tenha suporte em um regramento jurídico suficientemente claro e
justo, para que se possa assegurar os meios indispensáveis de manutenção
daqueles que sofrem os efeitos de determinados riscos sociais.
Para Dâmares Ferreira, os benefícios previdenciários advindos da
seguridade social são indispensáveis para garantir a dignidade da pessoa
humana, já que viabilizam as condições mínimas de sua sobrevivência, assegurando o bem-estar material, moral e espiritual do segurado e de seus
dependentes.4 Assim, contra o risco social morte, instituiu-se o benefício
da pensão por morte em favor dos dependentes do segurado falecido.
Trata-se de um direito social dos cidadãos brasileiros, cuja função maior é
viabilizar, senão perpetuar, uma vida digna daqueles que perderam seu suporte financeiro. De fato, trata-se de um direito fundamental criado para
proteger e promover a vida digna dos beneficiários.
Não obstante a nobre razão de ser desse instituto jurídico devidamente alinhado com o objetivo fundamental da República em constituir uma
sociedade solidária,5 seu regramento normativo no âmbito do Estado de
Minas Gerais6 tem causado algumas injustiças que, pela gravidade e flagrante desrespeito à unidade do ordenamento jurídico vigente, merece profunda reflexão do operador do Direito e amplo debate da sociedade.
De fato, conforme analisado adiante, algumas normas que regulam
o Regime Próprio de Previdência e Assistência Social dos Servidores
3
COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro, p. 133.
4
FERREIRA, Dâmares. O princípio da dignidade da pessoa humana e os benefícios
previdenciários. Revista de Previdência Social, p. 130.
5
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
6
Cf. Lei Complementar n. 64, de 25 de março de 2002, que institui o Regime Próprio de
Previdência e Assistência Social dos Servidores Públicos do Estado de Minas Gerais; e o
Decreto n. 42.758, de 17 de julho de 2002, que regulamenta as disposições da Lei Complementar n. 64/02.
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.”
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Públicos do Estado de Minas Gerais não estão em consonância com o
ordenamento jurídico vigente, agredindo seu caráter unitário.7 Sua elaboração não foi formulada segundo as regras estabelecidas pelas normas hierarquicamente superiores, mormente no que toca ao benefício previdenciário
da pensão por morte.
Assim, com este estudo tem-se por escopo abordar as distorções
oriundas da legislação previdenciária do Estado de Minas Gerais com relação ao benefício da pensão por morte devida ao ex-cônjuge do segurado.
Para tanto, buscou-se delimitar os contornos legais da matéria apresentando um enfoque jurisprudencial e doutrinário acerca de alguns aspectos polêmicos a ela relacionados.
Além disso, esta análise também visa indicar novos caminhos jurídicos para que a atual problemática alcance uma solução justa, sempre levando em consideração não somente os relevantes princípios e regras específicas em que se arrima o Direito Previdenciário, mas também os princípios constitucionais da solidariedade e, especialmente, o da dignidade da
pessoa humana, que é valor supremo, verdadeiro núcleo axiológico da
Constituição Cidadã.
2 BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO DA PENSÃO POR
MORTE
A pensão por morte é espécie de benefício previdenciário, de feição tipicamente familiar8 e de prestação continuada, devido ao cônjuge
7
Sobre o tema, confira arguta lição de Norberto Bobbio: “Aceitamos aqui a teoria da construção
escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação
da unidade de um ordenamento jurídico complexo. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento
não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem
das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma
norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade
do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental. Cada ordenamento tem uma norma
fundamental. É essa norma fundamental que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das
normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado de
ordenamento.” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 49)
8
Para Guilherme Calmon Nogueira da Gama, a pensão por morte “é o benefício securitário mais
importante no que diz respeito à proteção da família, e tem como fundamento o desamparo a
que estão sujeitos os dependentes do segurado, diante do evento morte de seu provedor, ou de
importante contribuinte para a renda familiar”. (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A
Constituição de 1988 e as pensões securitárias no direito brasileiro, p. 121-122)
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(marido ou esposa), companheiro(a) e dependentes (presumidos ou comprovados) do segurado falecido, segundo reza o art. 201, inciso V, da
Constituição Federal de 1988.9
Do texto constitucional, podem-se extrair dois requisitos básicos
para que alguém se torne titular do direito subjetivo ao benefício da
pensão por morte. São eles: a) qualidade de segurado na data do evento morte; e, b) condição de dependência perante o segurado.
No tocante ao primeiro elemento, a perda da qualidade de segurado, em regra, inviabiliza a concessão do benefício em face de
seus dependentes. Wladimir Novaes Martinez conceitua qualidade de
segurado como um “atributo jurídico próprio do filiado, dito segurado, ou seja, característica obtida ao se instaurar a relação jurídica
entre o titular e o órgão gestor das obrigações e direitos desse
beneficiário”.10 No momento em que houve a perda da qualidade de
segurado, em regra, ocorre simultaneamente o rompimento da relação
jurídico-previdenciária.
Isso ocorre porque a Constituição da República de 1988, em
norma inserida no já mencionado art. 201, inciso V, estabelece que os
planos de previdência social atenderão à cobertura do evento morte,
mediante contribuições e observando-se os critérios que prescrevem o
equilíbrio financeiro e atuarial. Tais características também encontram
guarida no Regime Próprio de Previdência Social dos servidores titulares de cargos públicos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme disposto no art. 40 da Carta Magna,
9
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter
contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
[...];
V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.
[...].
§ 2º Nenhum benefício que substitua o salário contribuição ou o rendimento do trabalho do
segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo.
10
MARTINEZ, Wladimir Novaes. Comentários à lei básica da previdência social, t. II,
p. 124.
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com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 41, de 19 de dezembro de 2003.11
Assim, em regra, aquele cidadão que não contribuiu para custear a
previdência social, ou seja, que não participou para tornar possível o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, não alcançará o status de segurado.
Em outras palavras, segurado é aquele que se vincula ao sistema de previdência social por exercer atividade que o coloca nessa posição ou por
pagar voluntariamente contribuições para o sistema. Tradicionalmente, em
razão de uma cultura machista que se infiltrou na sociedade brasileira, o
papel do segurado era exercido pelo homem. Contudo, atualmente, dada
evolução natural da sociedade, cabe ao casal escolher quem irá desempenhar a atividade laboral aquisitiva e quem irá realizar as obrigações inerentes do lar.
De qualquer modo, apesar de não ser absoluto o sinalagma no Direito Previdenciário,12 o pagamento das contribuições é fator preponderante
para a manutenção da situação de segurado. Ou seja, ainda que se entenda
que não haja uma correspondência direta entre o pagamento das contribuições e a pretensão aos benefícios, o regime previdenciário brasileiro agasalha, em regra, somente aqueles que estejam contribuindo para o sistema.
O adimplemento das contribuições não confere de imediato o direito ao
benefício previdenciário, mas é apenas fator indicativo da manutenção do
status de segurado. E essa condição de segurado quando do óbito é premissa para que seus dependentes façam jus à pensão por morte.
Essa condição legal está intimamente ligada ao princípio constitucional da contrapartida13 que, conforme noticia Uendel Domingues Ugatti,14
está consagrado no ordenamento jurídico nacional desde a promulgação
da Lei Orgânica da Previdência Social, Lei n. 3.807, de 26 de agosto de
11
“Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de
previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente
público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.”
12
COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro, p. 75.
13
JORGE, Tarsis Nametala. Elementos de direito previdenciário: custeio, p. 26-29.
14
UGATTI. Uendel Domingues. O princípio constitucional da contrapartida na seguridade
social, p. 75-76.
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1960, tendo sido implementado em sede constitucional por intermédio da
Emenda Constitucional n. 11, de 1965. Na Carta Magna vigente, esse princípio encontra guarida nos arts. 195, § 5º, e 201, caput.
Trata-se de uma norma dirigida ao legislador infraconstitucional a
fim de que, na criação, majoração ou alargamento dos benefícios, seja
observada a fonte de custeio do sistema. Tal princípio objetiva equilibrar as contas dos serviços da seguridade, evitando, assim, um colapso
financeiro geral, o que atentaria contra a ordem pública. Em outras palavras: o benefício previdenciário a ser recebido depende da contribuição realizada.
De fato, é notório que a existência de um sistema de seguridade
social sustentado pressupõe um plano de custeio, já que deve haver, necessariamente, uma correspondência adequada entre as despesas (prestações previdenciárias) e os recursos financeiros destinados à sua cobertura.
Sem a contrapartida, o sistema de seguridade social não estaria, jamais,
apto a proporcionar proteção social desejada. Portanto, o custeio é de
vital importância para o progresso de qualquer sistema de seguridade social. Nesse ponto, mister invocar a seguinte lição doutrinária:
A precedência do custeio é condição jurídica sine qua non
para a subsistência do próprio sistema. Daí sua caracterização própria e exclusiva do Direito Previdenciário é sua premissa maior. Mais que um simples princípio técnico, a precedência do custeio é postulado constitucional, conforme se
depreende do estatuído no parágrafo 5 do art. 195, principalmente porque ‘nenhum benefício ou serviço da seguridade
social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total’.15
Mormente em face dessa característica, a previdência social possui
natureza jurídica de um seguro sui generis. Inafastável tal conclusão, já
que, em linhas gerais, a obrigatoriedade de o segurado contribuir para o
sistema somente se impõe em decorrência lógica da obrigação do ente
responsável em adimplir sua contraprestação: pagamento do benefício
previdenciário.
15
JULIÃO, Pedro Augusto Musa. Curso básico de direito previdenciário, p. 47.
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DIREITO DE EX-CÔNJUGE À PENSÃO POR MORTE DE SEGURADO VINCULADO....
Com efeito, não há como contestar o caráter sinalagmático da
relação jurídica previdenciária. Não obstante comportar exceções pontualmente consignadas na legislação de regência, o caráter bilateral do
sistema previdenciário brasileiro é a regra tanto para o regime geral,
quanto para o denominado regime próprio dos servidores titulares de
cargos efetivos.
Em acertada análise sobre o tema, José Leandro Monteiro de Macêdo
conclui que
[...] a obrigação de oferecer as prestações previdenciárias do
segurador decorre da obrigação de o segurado verter as contribuições previdenciárias. A obrigação de um sujeito corresponde
precisamente ao dever do outro. Da filiação decorre sempre a
obrigação de contribuir para o segurado e a obrigação de prover
as prestações para o segurador. Um mesmo fato faz nascer as
duas obrigações: o exercício de atividade remunerada.
Presente, portanto, o sinalagma genético.16
Portanto, o fim almejado da norma em eleger como requisito primeiro a qualidade de segurado na data do evento morte é a proteção do comando constitucional que obriga a observância dos critérios que prescrevem o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema. Essa conclusão é factível,
se considerarmos o seguinte raciocínio: a qualidade de segurado só é
alcançada, em regra, pela sua participação no custeio do sistema via pagamento de contribuições, e essa obrigação contributiva é preponderante para
assegurar um regime previdenciário sustentável.
O equilíbrio financeiro e atuarial é postulado que restou expresso no
texto constitucional desde a Emenda Constitucional n. 20/98, consubstanciado na relação entre custeio e pagamento de benefício previdenciário.
Trata-se de verdadeiro princípio constitucional aplicável tanto para o regime geral quanto para o regime próprio de previdência social. Isso implica
concluir que ambos os regimes devem ser estruturados de molde a haver
previsão a longo prazo das despesas correntes, bem como a previsão dos
meios necessários para garantir o custeio dos benefícios.
16
MACÊDO. José Leandro Monteiro de. Da relação jurídica previdenciária no âmbito do
regime geral de previdência social. Revista de Previdência Social, p. 988.
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Em outras palavras, as reservas financeiras efetivamente constituídas
devem ser suficientes para garantir o ônus das obrigações assumidas. Com
efeito, para assegurar o benefício da pensão por morte, nada mais coerente
do que condicionar esse pagamento ao efetivo e prévio cumprimento das
obrigações contributivas. Somente assim o indivíduo alcança o status de
segurado e, conseqüentemente, obtém a desejada proteção previdenciária
para si e seus dependentes.
No que se refere ao segundo aspecto, a condição de dependente do
segurado é essencial para justificar o benefício da pensão por morte. Analisando o tema, o Feijó Coimbra conceitua os dependentes da seguinte
forma:
Dependentes são beneficiários, ditos indiretos, relacionados
com o segurado por dependência econômica, vínculo mais
abrangente que aquele resultante dos laços de família civil,
critério que se adota em razão das finalidades da proteção
social. Precisamente porque as relações derivadas do Direito de Família são insuficientes para explicar todas as situações de dependência que a vida pode exibir, é que a lei
previdenciária cria direitos, dos quais aponta titulares nãoligados ao segurado por aquelas relações.17
A classe dos dependentes é espécie do gênero “beneficiários” da
previdência social. Assim, é correto afirmar que todo beneficiário é titular
do direito subjetivo de gozar das prestações contempladas pelo regime
previdenciário; podendo ser o próprio segurado ou seus dependentes.
Portanto, dependente para fins de pensão por morte é aquele
que está vinculado e, conseqüentemente, protegido pelo instituto de
previdência social de forma reflexa, em razão de seu vínculo com o
segurado.
Contudo, não obstante a vinculação entre o direito do dependente e
o do segurado falecido, preciosa a ressalva feita por Feijó Coimbra no
sentido de que o dependente goza de verdadeiro direito subjetivo próprio
à prestação previdenciária de pensão por morte. Confira:
17
COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro, p. 108.
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DIREITO DE EX-CÔNJUGE À PENSÃO POR MORTE DE SEGURADO VINCULADO....
[...] o direito do dependente não é, como se poderia pensar,
um direito transmitido pelo segurado. É ele, na realidade, ius
proprium, que pelo dependente pode ser exercido contra a
instituição, pois desde que se aperfeiçoem aquelas duas situações o dependente passa a ostentar esse direito subjetivo.18
Segundo as legislações, federal e estadual, mineiras vigentes, a dependência econômica não é o único critério para aferir quem serão os dependentes para fins previdenciários. O outro critério utilizado diz respeito
aos vínculos familiares firmados pelo segurado.
Com efeito, no regime geral de previdência social, de acordo com a
Lei n. 8.213/91,19 o cônjuge, o companheiro(a) e o filho(a) não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido são dependentes
econômicos presumidos do segurado. Idêntica regra também foi consignada no regime próprio de previdência social dos servidores públicos do
Estado de Minas Gerais, conforme previsão inserida na Lei Complementar
Estadual n. 64, de 25 de março de 2002.20 Essa opção legislativa se justifica em face dos vínculos de parentesco civil ou de relações jurídicas
estabelecidas no Direito de Família. Nesses casos, para gozar do referido
benefício previdenciário, despicienda a prova da dependência econômica,
bastando a comprovação do vínculo de parentesco.
Destarte, a dependência pode ir além das pessoas inseridas no núcleo familiar (cônjuge/companheiro e filhos), para também alcançar outros
indivíduos. Nessas hipóteses, deve-se levantar material probatório, no sentido de caracterizar-se a dependência econômica. Uma vez comprovado
18
COIMBRA, J. R. Feijó. Direito previdenciário brasileiro, p. 108.
19
“Art. 16. [...]:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado de qualquer condição,
menor de vinte e um anos ou inválido.
[...].
§ 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais
deve ser comprovada.”
20
“Art. 4 º São dependentes do segurado, para os fins desta lei:
I – o cônjuge ou companheiro e o filho não emancipado, menor de vinte e um anos ou inválido;
[...].
§ 1º Os dependentes de uma mesma classe concorrem em igualdade de condições.”
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esse elo, o dependente fará jus ao benefício da pensão por morte, vez que
a já citada norma constitucional (art. 201, inciso V) assegura o referido
benefício a todos os dependentes do segurado21.
Entre os indivíduos que necessitam comprovar o vínculo econômico
com o segurado para gozar do mencionado benefício previdenciário, está a
figura do ex-cônjuge. Como o vínculo matrimonial foi desfeito, o legislador
optou pela não-presunção de dependência. Nesse caso, deve-se averiguar
se o ex-cônjuge permaneceu dependendo financeiramente do segurado,
independentemente de fixação ou não de alimentos, já que a dependência
para fins previdenciários pode ser caracterizada em momento posterior à
separação judicial ou divórcio. Com efeito, importa destacar que a condição de dependência econômica deve ser contemporânea ao falecimento
do segurado.
Essa é uma leitura superficial desse instituto previdenciário. Para
melhor compreensão da situação jurídica do ex-cônjuge de segurado vinculado ao Regime Próprio de Previdência Social do Estado de Minas Gerais, indispensável proceder a uma análise minuciosa de todo o conjunto
normativo relativo à matéria.
3 LEGISLAÇÃO APLICÁVEL À CONCESSÃO DE PENSÃO
POR MORTE DEVIDA AO EX-CÔNJUGE DE
SEGURADO
Conforme reza a Constituição Federal de 1988, compete privativamente à União legislar sobre seguridade social.22 Preconiza também que,
especificamente sobre previdência social, a competência legislativa é concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal.23
21
22
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; SANTOS, Marisa Ferreira dos. Em busca do conceito constitucional de dependência. Revista de Direito Previdenciário, p. 375.
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[...];
XXIII – seguridade social.”
23
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente
sobre:
[...];
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde.”
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DIREITO DE EX-CÔNJUGE À PENSÃO POR MORTE DE SEGURADO VINCULADO....
Nessa modalidade de repartição de competência legislativa, cabe à
União estabelecer normas gerais de previdência social.24 A seu turno, resta
aos Estados e ao Distrito Federal a edição de normas específicas para
atender às suas peculiaridades.25
No âmbito do Regime Geral de Previdência Social, o legislador federal, dando cumprimento ao preceito constante do art. 59 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), editou as Leis n. 8.212
e n. 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, dispondo, respectivamente,
sobre o plano de custeio e os planos de benefícios da previdência social.
Essas leis foram regulamentadas, inicialmente, pelos Decretos n. 356 e
n. 357, de 7 de dezembro de 1991. Tais Decretos foram revogados logo
em seguida e substituídos pelos Decretos n. 611 e n. 612, de 21 de julho de
1992. Novos regulamentos foram aprovados pelos Decretos n. 2.172 e
n. 2.173, ambos de 5 de março de 1997. Apenas em 6 de maio de 1999,
o Presidente da República, cumprindo seu papel regulamentar e efetivando
a norma constitucional que lhe confere o art. 84, inciso IV,26 aprovou o
“Regulamento da Previdência Social”, qual seja, o Decreto n. 3.048/99,
unificando as partes de custeio e benefícios em um único regulamento.
De outro norte, com supedâneo no art. 40 da Constituição vigente, a
União instituiu o Regime Próprio de Previdência Social para os servidores
públicos federais titulares de cargo efetivo. Para tanto, adveio a Lei Federal n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
24
“Art. 24. [...].
§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer
normas gerais.
25
Esse é o desiderato da norma extraída via interpretação sistemática dos parágrafos 2º e 3º do
art. 24 da Constituição Federal. Confira:
[...].
“§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência
suplementar dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa
plena, para atender a suas peculiaridades.”
26
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
[...];
IV – sancionar, promulgar, e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos
para sua fiel execução.”
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Anos depois, em 27 de novembro de 1998, exercitando a prerrogativa que lhe confere o art. 24, § 1º, e, no intuito de veicular comandos
genéricos para a organização e funcionamento dos regimes próprios, a União
editou a Lei n. 9.717. Esse diploma legal revela ser verdadeira lei nacional,
uma vez que constitui uma norma geral que serve como diretriz legal para
cada unidade da Federação na implementação dos regimes próprios de
previdência social dos servidores públicos titulares de cargos efetivos.
O Estado de Minas Gerais, no exercício de sua competência legislativa
suplementar e, também, arrimado por norma constitucional estadual,27 editou a Lei Complementar n. 64, de 25 de março de 2002, instituindo o
Regime Próprio de Previdência e Assistência Social de seus servidores
públicos. Em julho do mesmo ano, o chefe do Executivo Estadual, no uso
da atribuição que lhe confere o art. 90, inciso VII, da Constituição Estadual
de Minas Gerais,28 regulamentou a referida Lei Complementar, editando o
famigerado Decreto n. 42.758/02.
Essa é a base legislativa em que se apóia o Regime Geral de Previdência Social e o Regime Próprio, tanto do servidor público federal quanto
do estadual mineiro.
No que se refere à pensão por morte de segurado filiado ao regime
geral, prescreve a Constituição da República que se trata de benefício
previdenciário devido ao cônjuge, companheiro e dependentes do segurado, observado o caráter contributivo da previdência social e os critérios
que prescrevem o equilíbrio financeiro e atuarial.
A Lei n. 8.213/91, que regula os planos de benefícios no regime
geral, estabeleceu que os dependentes do segurado são o cônjuge, a companheira e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21
anos ou inválido. Esse mesmo diploma legal reza, em ser art. 76, § 2º, que
27
“Art. 61. Cabe à Assembléia Legislativa, com sanção do Governador, não exigida esta para o
especificado no art. 62, dispor sobre as matérias de competência do Estado, especificamente:
[...];
XVIII – matéria de legislação concorrente, de que trata o art. 24 da Constituição da República.”
28
“Art. 90. Compete privativamente ao Governador do Estado:
[...];
VII – sancionar, promulgar, e fazer publicar as leis e, para sua fiel execução, expedir decretos
e regulamentos.”
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o cônjuge divorciado ou separado judicialmente ou de fato que recebia
pensão de alimentos concorrerá em igualdade de condições com os dependentes referidos no inciso I do art. 16.29 Vale dizer: a ex-esposa com
pensão alimentícia fixada em juízo gera presunção de dependência econômica, concorrendo na primeira classe a uma pensão previdenciária.
Recentemente, essa norma sofreu controle de legalidade pelo Superior Tribunal de Justiça, na oportunidade do julgamento dos Recursos Especiais n. 887.271/SP30 e n. 553.639/MG31. A conclusão do debate foi no
sentido de que “a ex-mulher divorciada que percebe pensão alimentícia
concorrerá em igualdade de condições com a esposa, companheira e o
filho menor não emancipado ou inválido do de cujus”.
O Decreto n. 3.048/99, como não poderia deixar de ser, dada sua
função meramente regulamentar, repetiu, em seus arts. 16, incisos I e 111,
a norma consagrada pela lei federal.32 O Chefe do Executivo Federal, nesse aspecto, não necessitava repetir tal regra no referido regulamento, já
que este serve para, primordialmente, conferir a fiel execução da Lei
29
“Art. 76. A concessão da pensão por morte não será protelada pela falta de habilitação de
outro possível dependente, e qualquer inscrição ou habilitação posterior que importe em
exclusão ou inclusão de dependente só produzirá efeito a contar da data da inscrição ou
habilitação.
[...].
§ 2º O cônjuge divorciado ou separado judicialmente ou de fato que recebia pensão de alimentos concorrerá em igualdade de condições com os dependentes referidos no inciso I do art. 16
desta Lei.”
30
STJ, 3ª T., REsp. n. 887.271/SP, Rel. Nancy Andrighi, DJ 18/9/2007.
31
STJ, 5ª T., REsp. n. 553.639/MG, Rel. Laurita Vaz, DJ 26/06/2007. No mesmo sentido,
destacam-se os seguintes acórdãos: STJ, RMS n. 19.274/MT; STJ, REsp. n. 362.743/PB e
544.803/RJ; STJ, AgRg no REsp. n. 554.432/RS; TRF-1ª Região, AC n. 94.01.00153-7/MG;
TRF-2ª Região, AC n. 2000.02.01.048933-9/RJ; TRF-3ª Região, AC 91.03.031878-8/SP; e
TRF-5ª Região, AC n. 96.05.25662-2/RN.
32
“Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado de qualquer condição,
menor de vinte e um anos ou inválido.”
[...].
“Art. 111. O cônjuge divorciado ou separado judicialmente ou de fato, que recebia pensão de
alimentos, receberá a pensão em igualdade de condições com os demais dependentes referidos
no inciso I do art. 16.
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n. 8.213/91,33 uma vez que, desde o seu nascer, já dispunha de forma clara
e completa com relação aos critérios de concessão da pensão por morte
de ex-cônjuge. Contudo, para não deixar margens de dúvida naquilo em
que já era óbvio, reafirmou a regra segundo a qual o ex-cônjuge que recebia pensão alimentícia concorreria em igualdade de condições com os demais dependentes preferenciais.
Já para fins de instituir o Regime Próprio de Previdência e Assistência Social dos Servidores Públicos do Estado de Minas Gerais, coube privativamente à Assembléia Legislativa Mineira o exercício dessa competência legislativa suplementar. Para tanto, conforme já assinalado, ingressou
no ordenamento jurídico estadual a Lei Complementar n. 64/02, estatuindo
que o cônjuge ou companheiro e o filho não emancipado, menor de 21
anos ou inválido são dependentes preferenciais do segurado e que concorrem em igualdade de condições. No que se refere ao ex-cônjuge com pensão alimentícia fixada em juízo, limitou-se a reconhecer a continuidade da
qualidade de dependente em relação ao segurado, conforme interpretação
a contrario sensu do art. 5º, inciso I, alínea “a”.34
Essa perpetuação da condição de dependente nada mais é do que a
natural continuidade daquela relação de dependência vivenciada na época
em que ainda eram casados. Assim, a norma estadual colocou o cônjuge e
o companheiro em situação de igualdade com o ex-cônjuge que percebe
alimentos. Ambos detêm o mesmo grau de dependência, uma vez que a
própria lei estipulou que o ex-cônjuge com pensão alimentícia não perde a
qualidade de dependente, e essa qualidade de dependência é exatamente a
mesma conferida ao cônjuge.
Esse entendimento foi confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça,
no recente julgamento do Recurso Especial n. 411.194/PR,35 cuja parte da
33
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
[...];
IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos
para sua fiel execução.”
34
“Art. 5. A perda da qualidade de dependente ocorre:
I – para o cônjuge:
a) pela separação judicial ou divórcio, enquanto não lhe for assegurada a prestação de alimentos.”
35
STJ, 6ª T., REsp. n. 411.194/PR, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 17/4/2007.
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ementa restou assim redigida: “O cônjuge supérstite goza de dependência
presumida, contudo, estando separado de fato e não percebendo pensão
alimentícia, essa dependência deverá ser comprovada”.
Em outras palavras, a decisão da Corte Superior foi no sentido de
que a dependência econômica é presumida quando há percepção de pensão alimentícia por parte do ex-cônjuge, isto é, independentemente da prova da necessidade econômica. Com efeito, basta provar a percepção de
alimentos para ingressar no rol daqueles dependentes presumidos da primeira classe, frise-se.
Contudo, alguns meses depois da publicação da Lei Complementar
n. 64/02, o Executivo estadual, no exercício de seu poder regulamentar e
visando à fiel execução da referida lei complementar, editou o Decreto n.
42.758/02. Esse regulamento, por sua vez, dispõe, em seu art. 23, § 5º,
que a cota-parte da pensão por morte devida ao ex-cônjuge ou ex-companheiro com direito à pensão alimentícia será no limite dessa e o restante
será rateado com os demais dependentes da primeira classe.36
Tal decreto estadual tem sido fonte de distorções e injustiças, mormente no que se refere ao direito social fundamental ao benefício da pensão por morte. Ademais, diga-se de passagem, o benefício da pensão por
morte constitui um direito próprio do ex-cônjuge que percebia pensão alimentícia do servidor público estadual vinculado ao respectivo sistema de
previdência social. Assim, no que se refere a esse benefício, os critérios de
concessão contidos no regime geral e no regime próprio do Estado de
Minas Gerais não são uniformes.
De fato, se o segurado estiver vinculado ao regime geral, haverá uma
concorrência em igualdades de condições, implicando um rateio igualitário
do benefício entre eles. Na falta de outros dependentes, a pensão por morte será integralmente concedida ao ex-cônjuge. Idêntica solução se impõe
no regime próprio de previdência dos servidores públicos federais.
36
“Art. 23. Por morte do segurado adquirem direito à pensão em cotas-parte, pela metade, o
cônjuge ou companheiro sobrevivente, e, pela outra metade, em partes iguais, os filhos.
[...].
§ 5º A cota-parte de ex-cônjuge ou ex-companheiro com direito a pensão alimentícia será no
valor dessa, que será deduzida do valor global da pensão por morte antes de se promover o
rateio, definido no caput deste artigo, do qual estará excluído.”
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Em contrapartida, se o segurado foi titular de cargo público efetivo
do Estado de Minas Gerais, não ocorrerá uma divisão equânime do benefício. Não obstante a Lei Complementar n. 64/02 reconhecer a continuidade da qualidade de dependente do ex-cônjuge que recebia pensão
alimentícia, o Decreto n. 42.758/02 limitou o valor do benefício
previdenciário a ele devido ao quantum do valor pago a título de alimentos. Ao estipular tal restrição, o referido decreto extrapolou seu poder
meramente regulamentar, trilhando o caminho da inconstitucionalidade e
ilegalidade, conforme demonstrado a seguir.
4 INCONSTITUCIONALIDADE E ILEGALIDADE DO
DECRETO MINEIRO N. 42.758/02
Consoante registrado alhures, no exercício de sua competência suplementar, o Estado de Minas Gerais instituiu o regime próprio de previdência dos servidores públicos mineiros. Assim, a Lei Complementar n.
64/02 dispôs sobre os critérios de concessão de benefícios previdenciários
a seus segurados e dependentes. Com efeito, a partir de seu ingresso no
ordenamento jurídico mineiro, em 25 de março de 2002, os critérios de
concessão da pensão por morte a ex-cônjuge de servidor público mineiro são por ela regulados.
Destarte, numa interpretação sistemática dos já citados arts. 4º,
inciso I, § 1º, e 5º, inciso I, alínea “a”, à luz das regras constitucionais
aplicáveis ao regime próprio dos Estados, conclui-se que o ex-cônjuge
que recebia pensão alimentos mantém a qualidade de dependente e, por
isso, se equipara em grau de dependência com o cônjuge. Essa situação
faz com que o ex-cônjuge concorra em igualdade de condições com os
demais dependentes preferenciais.
A referida lei complementar não contém dispositivo específico que
regule o valor da pensão por morte a que faz jus o ex-cônjuge. Contudo,
a nosso ver, a própria lei complementar traz, em seu bojo, um conjunto
de normas que, devidamente interpretadas, nos conduz ao mesmo critério utilizado no regime geral: o ex-cônjuge que percebe alimentos do segurado é seu dependente e, por isso, concorre em igualdade de condições com o cônjuge, companheiro e filho não emancipado, menor de 21
anos ou inválido.
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Com efeito, perfazendo uma leitura a contrario sensu do art. 5º,
inciso I, alínea “a”, extrai-se que o cônjuge divorciado ou separado judicialmente que percebia pensão alimentícia não perde a qualidade de dependente. Assim, não obstante o rompimento do vínculo matrimonial, perpetua-se o estado de dependência econômica se lhe restou assegurada a
prestação de alimentos. Essa obrigação alimentar é tão-somente um critério de natureza político-legislativa, verdadeira opção do legislador federal, para conferir a continuidade do estado de dependência criado pelo
elo familiar; não mais que isso.
Já para o cônjuge, o companheiro e o filho menor de 21 anos ou
inválido do segurado falecido, a lei assegura a presunção de dependência
econômica. Trata-se, igualmente, de uma opção do legislador federal.
Para eles, deve-se comprovar apenas o laço de parentesco, vez que o
vínculo econômico é apenas conseqüência daquele elo.
Para o ex-cônjuge, além de produzir prova no sentido de que já
fora casado com o segurado, deve suportar outro ônus: demonstrar a
dependência econômica via comprovação de percepção de alimentos.
Atendidas essas exigências, o ex-cônjuge alcança o mesmo status jurídico do cônjuge ou companheiro, já que todos são dependentes e outrora
constituíam uma família com o segurado falecido.
Assim, considerando que o cônjuge, o companheiro e o ex-cônjuge com pensão alimentícia fixada em juízo são dependentes do segurado
e que estão na mesma classe de beneficiários, impõe-se a incidência da
regra do art. 4º, § 1º da Lei Complementar n. 64/02, no sentido de que
os dependentes de uma mesma classe concorrem em igualdade de condições.
De fato, nesse tocante, o regramento da lei mineira não é de compreensão imediata, ante o pequeno esforço interpretativo exigido por causa
da inexistência de regra específica clara. Porém, esse fato não tem o
condão de conduzir o intérprete à solução jurídica diversa daquela adotada pelo regime geral. O próprio diploma complementar abriga mandamento que permite a aplicação subsidiária das regras do regime geral.
Para corroborar tal assertiva, invoca-se o comando do art. 65: “O regime próprio de previdência do Estado observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social”.
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Portanto, mesmo para aqueles que entendem que a Lei Complementar n. 64/02 não regulou o direito à pensão por morte de ex-cônjuge
com pensão alimentícia de forma completa, sendo lacunosa ou não compreensível nesse aspecto, deve-se recorrer aos requisitos próprios do regime geral, por força do comando normativo contido no art. 65. E, conforme
já exposto, o critério do regime geral de concessão de pensão por morte
de ex-cônjuge com pensão alimentícia fixada em juízo é no sentido de que
o mesmo é dependente do segurado e concorre em igualdade de condições com os demais dependentes da primeira classe.
Para colocar uma pá de cal nessa questão, traz-se à baila o § 12 do
art. 40 da Constituição, cuja redação foi dada pela Emenda Constitucional
n. 20/98.37 A norma contida nesse dispositivo constitucional revela idêntico
comando do mencionado art. 65 da lei complementar mineira, qual seja, a
aplicabilidade subsidiária dos critérios e requisitos fixados para o regime
geral ao regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo
efetivo.
Tanto o § 12 do art. 40 da Carta Cidadã quanto o art. 65 da Lei
Complementar n. 64/02 usam a expressão “no que couber”. É inequívoco
que tal fato revela a intenção do constituinte derivado em conferir o uso
subsidiário dos critérios e requisitos abrigados pelo regime geral no regime
próprio quando for possível a sua aplicação. Importa consignar que, em
matéria previdenciária, a aplicação subsidiária das normas do regime geral
sempre foi desejável, em razão da nítida e crescente convergência dos regimes previdenciários próprio e geral.
Engajados em harmonizar os critérios e requisitos entre os dois regimes e objetivando minimizar o impacto de eventuais disparidades sobre
o beneficiário, o Legislativo e o Executivo Federal se esforçaram para
aprovar a Lei n. 9.717/98. Esse diploma fez parte de um pacote de medidas reformadoras enviadas ao Congresso Nacional em 1998, que, conforme já registrado, constitui genuína lei nacional de normas gerais para a
37
“Art. 40. [...].
[...].
§ 12. Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos servidores públicos titulares
de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral
de previdência social.”
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DIREITO DE EX-CÔNJUGE À PENSÃO POR MORTE DE SEGURADO VINCULADO....
organização e funcionamento dos regimes próprios de previdência social
dos entes federativos. Anos depois, foi posteriormente alterada pelas Medidas Provisórias n. 2.187-13/01 e n. 167/04, sendo esta última convertida
na Lei n. 10.887/04.
Com a finalidade de demonstrar o desejo de se terem regras similares entre os dois regimes, transcreve-se trecho extraído de mensagem enviada ao Presidente da República, na qual o então Ministro de
Estado da Previdência Social, Amir Lando, expôs ao então Presidente
da República as razões de relevância e urgência que justificaram a edição da referida Medida Provisória n. 167/04. Confira excertos da exposição de motivos:
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
Temos a honra de submeter à elevada consideração de Vossa Excelência, nos termos do art. 62 da Constituição, a anexa proposta de medida provisória que estabelece normas para
aplicação de diversas disposições da Emenda Constitucional
n. 41, de 19 de dezembro de 2003, e dá outras providências.
[...].
2. A Emenda Constitucional n. 41, de 2003, que promoveu
profunda alteração nas regras do sistema de previdência social, possui diversos dispositivos que exigem a edição de lei
para sua aplicação, sem os quais não será possível tornar
efetivas as mudanças promovidas, em especial no que
concerne aos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos.
3. Em consonância com a proposta do Programa de Governo de Vossa Excelência, de estabelecer regime previdenciário
público, básico e universal para todos os trabalhadores, é
fundamental que, inicialmente, haja uma uniformização
de regras entre os regimes. Portanto, a edição de norma
geral pela União evitará que cada ente federativo edite
regras próprias e distintas, provocando disparidades
entre benefícios concedidos a segurados que se encontrem em situação semelhante.
[...].
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7. Diante disso, propomos a adoção, pelos regimes próprios,
de regra similar àquela adotada pelo Regime Geral de
Previdência Social, ou seja, que, no cálculo, seja considerada
a média das maiores remunerações utilizadas como base para
as contribuições do servidor a todos os regimes de previdência
a que esteve filiado, correspondente a 80% de todo o período
contributivo. A exemplo do Regime Geral, deverá ser levado
em conta o período decorrido desde a competência julho de
1994, quando houve maior estabilidade da moeda brasileira, o
que minimizará a ocorrência de distorções, ou a competência
do início da contribuição, se posterior àquela.
8. Atendendo à determinação do art. 40, § 17, da Constituição e visando a evitar tratamentos distintos entre os regimes, é sugerido que as remunerações consideradas para o
cálculo dos proventos tenham seus valores atualizados, mês
a mês, de acordo com a variação integral do Índice Nacional
de Preços ao Consumidor – INPC. Cabe destacar que esta
alteração do índice também está sendo proposta para os benefícios concedidos pelo Regime Geral de Previdência Social
nesta mesma Medida Provisória, o que também vai ao encontro do objetivo de maior aproximação entre os diferentes regimes de previdência social.
[...].
29. Essas, Excelentíssimo Senhor Presidente, são as razões
de relevância e urgência que envolvem a matéria e justificam a edição da medida provisória que ora submetemos à
elevada consideração de Vossa Excelência.38
Portanto, por uma leitura perfunctória do texto transcrito acima, em
especial dos trechos destacados em negrito, percebe-se facilmente a intenção do Executivo federal em uniformizar os critérios e requisitos para
concessão de benefícios previdenciários entre os regimes geral e próprio
dos Estados-Membros. Pelas próprias palavras do então Ministro, tal
38
EXPOSIÇÃO de motivos n. 8. Ministério da Previdência e Assistência Social. Disponível
em <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2004-2006/2004/Exm/EMI-8-MP-MPAS04.htm> Acesso em: 12 set. 2007, grifos nossos.
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preocupação é justificada pelo fato de que “a edição de norma geral pela
União evitará que cada ente federativo edite regras próprias e distintas,
provocando disparidades entre benefícios concedidos a segurados que se
encontrem em situação semelhante”.
Em igual sentir é o pensamento do constitucionalista Kildare Gonçalves Carvalho que, discorrendo sobre o tema, asseverou que “as normas
gerais se justificam pela necessidade de uniformização de determinadas
matérias, a fim de se evitar que excessiva diversificação normativa dos Estados-Membros comprometa o conjunto do país”.39
Outra demonstração induvidosa do desejo do constituinte derivado
em adotar parâmetros uniformes sobre questões previdenciárias se percebe na leitura do § 4º do art. 40 da Carta Cidadã, com a redação dada pela
Emenda Constitucional n. 47, de 5 de julho de 2005.40 Tal norma versa
sobre a proibição de instituição de regras diferenciadas para a concessão
de aposentadoria ao servidor abrangido pelo regime de previdência do
servidor público, excetuados os casos de servidores portadores de deficiência, que exerçam atividades que prejudiquem a sua saúde ou integridade física, ou de risco.
Dessa forma, é patente o desejo do Legislativo e do Executivo de
harmonizar as regras previdenciárias. Sobre o assunto, importa registrar o
comentário feito por Gleison Pereira de Souza:
A Lei 9.717/98 estabeleceu uma série de regras a serem seguidas pelos entes no que diz respeito à criação ou manutenção de regime de previdência para seus servidores e à instituição de fundos para a administração de recursos previdenciários.
39
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional didático, p. 250.
40
“Art. 40. [...].
[...].
§ 4º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados, nos termos definidos em
leis complementares, os casos de servidores:
I – portadores de deficiência;
II – que exerçam atividades de risco;
III – cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a
integridade física.”
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[...].
Com o advento da Lei 9.717/98, os critérios e condições por ela
trazidos passaram a ser de observância obrigatória para a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, iniciando um
rápido processo de uniformização de regras previdenciárias
entre os regimes próprios de previdência social.41
Assim numa interpretação histórica da Lei n. 9.717/98 e dos dispositivos constitucionais advindos pela reforma da previdência de 1998, percebe-se a intenção de uniformização das regras dos regimes geral e próprios
dos Estados.
Com efeito, ao se analisar qualquer legislação aplicável ao regime
próprio de previdência social, deve-se interpretá-la à luz dessa visão histórica, ou seja, a leitura de seus dispositivos deve ser feita sempre tentando
conciliar o uso subsidiário das regras do regime geral com o regramento
específico do regime próprio. A preocupação do intérprete deve ser no
sentido de buscar, nos casos em que se tenha alguma dificuldade de descobrir o verdadeiro objetivo da norma, a intenção histórica do legislador federal, procedendo, sempre que possível, a uma aplicação subsidiária dos
critérios e requisitos do regime geral.
Nesse contexto, concluindo, somos partidários da tese segundo a
qual as normas contidas no texto da Lei Complementar n. 64/02, especialmente os arts. 4º, inciso I, § 1º e 5º, inciso I, alínea “a”, traduzem o comando inequívoco de que o ex-cônjuge que percebe alimentos do segurado
concorre em igualdade de condições com os demais dependentes de primeira classe. Consoante já registrado, tendo como pano de fundo essa
visão histórica e perfazendo uma interpretação sistemática do referido texto legal, tem-se que o cônjuge separado ou divorciado que recebia pensão
alimentícia do segurado não perde a qualidade de dependente dele e, como
desdobramento lógico, ressai patente que possui o mesmo status de dependência do cônjuge ou companheiro.
Essa continuidade do estado de dependência decorrente dos laços
matrimoniais eleva o ex-cônjuge à mesma posição topográfica do cônjuge/
41
SOUZA, Gleison Pereira de. O regime de previdência dos servidores públicos: comentários
às emendas constitucionais n. 20/98 e n. 41/03, p. 160-161.
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companheiro do segurado, para fins previdenciários. Destarte, em razão
dessa equiparação – que é o fator preponderante para que essas figuras
sejam reconhecidas dependentes de uma mesma classe –, aplica-se a regra
do art. 4º, § 1º, no sentido de que os dependentes de uma mesma classe
concorrem em igualdade de condições.
E se, ao interpretar o diploma estadual em comento, o operador do
Direito não vislumbrar o caminho jurídico da igualdade de condições entre
a figura do ex-cônjuge que recebia alimentos com os demais dependentes
preferenciais? É exatamente nessa situação que se impõe a aplicação subsidiária dos critérios e requisitos do regime geral, por força de norma constitucional expressa (art. 40, § 12) e de regra da própria lei complementar
mineira (art. 65).
Assim, seria totalmente desarrazoado que o ex-cônjuge que recebesse alimentos do segurado vinculado ao regime próprio de previdência
de Minas Gerais não concorresse em igualdade de condições com os demais dependentes de primeira classe. De fato, quer por uma interpretação
sistemática dos arts. 4º, inciso I, § 1º, e 5º, inciso I, alínea “a” da lei estadual,
quer pela aplicação subsidiária dos requisitos e critérios do regime geral,
não se afigura razoável, tampouco admissível outra solução jurídica senão
a igualdade de condições.
Desse modo, desde a entrada em vigor da Lei Complementar n. 64,
em 25 de março de 2002, o beneficio da pensão por morte deveria ser
rateado de forma igualitária entre o ex-cônjuge com pensão alimentos fixada em juízo e os demais beneficiários de primeira classe, quais sejam, o
cônjuge, o companheiro e o filho não emancipado, menor de 21 anos ou
inválido. E, na falta desses beneficiários preferenciais, caberia ao ex-cônjuge a integralidade dos proventos do servidor, a título de pensão por morte.
Nesse mesmo compasso já trilhou a 1ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, na oportunidade do julgamento da Apelação Cível
n. 1.0024.03.988813-6/001, relatado pelo Desembargador Gouvêa Rios.
Nesse caso concreto, a ex-cônjuge era a única dependente do segurado,
vez que lhe foi assegurado o pagamento de pensão alimentícia na ocasião
da separação judicial. Após análise da situação fática e da legislação aplicável ao caso, restou definido que o pagamento da pensão por morte seria
adimplido na sua integralidade, e não na porcentagem acordada para fins
de pensão alimentos. Confira a ementa do referido decisório, in verbis:
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PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MULHER SEPARADA JUDICIALMENTE QUE RECEBE ALIMENTOS. DIREITO À INTEGRALIDADE DOS
VENCIMENTOS DO SERVIDOR FALECIDO.
Deve-se reconhecer o direito à pensão integral à ex-mulher do segurado falecido se, no ato da separação judicial, lhe foi assegurada prestação alimentícia, caracterizando dependência econômica. Dependência econômica, para a lei previdenciária, corresponde a um estado de
fato, não a uma decorrência puramente jurídica das relações entre parentes, na medida em que essas relações, tais
como aquelas disciplinadas na lei civil, estão muita vez,
sob esse aspecto, em divórcio com a realidade social. O §
7º do art. 40 da Constituição Federal é auto-aplicável, não violando o disposto no art. 195, § 5º, da Constituição Federal,
tampouco a Lei Complementar nº 101/2000. ‘O direito desses
dependentes, como dos demais, surge quando ocorrentes duas
situações, que devem coexistir: a existência de relação jurídica de vinculação entre o segurado e a instituição previdenciária
e a de dependência, tal como a lei a admitir, entre o segurado
e o pretendente da prestação. Entretanto, o direito do dependente não é, como se poderia pensar, um direito transmitido
pelo segurado. É ele, na realidade, ‘ins proprium’, que pelo
dependente pode ser exercido contra a instituição, pois desde
que se aperfeiçoem aquelas duas situações o dependente passa
a ostentar esse direito subjetivo’.42
Em seu brilhante voto, o Relator expõe, em seus argumentos, o
que o levou a decidir pelo pagamento integral da pensão. Registrou que a
fixação de alimentos na oportunidade da separação judicial é fator que
caracteriza a continuidade da qualidade de dependente. E essa dependência econômica, para fins de previdência, não tem correspondência
lógica com a dependência decorrente das relações disciplinadas pela lei
civil, vez que as relações derivadas do Direito de Família são suportadas
por princípios, regras e valores próprios da legislação civilista.
42
TJMG, 1ª Câmara Cível, AC n. 1.0024.03.988813-6/001, Rel. Dês. Gouvêa Rios, j. em 15/
6/2004, DJ 18/6/2004, grifos nossos.
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De outro norte, a relação jurídica previdenciária se espelha em carga
axiológica diversa. Portanto, tal fato importa em vedação da vinculação da
porcentagem da pensão alimentos com o quantum do valor pago a título
de pensão por morte. A seguir, pela importância do raciocínio jurídico
exarado pelo Relator, transcreve-se parte de seu voto:
A Lei Complementar n. 64/2002, que institui o regime próprio de previdência e assistência social dos servidores públicos do Estado de Minas Gerais, em seus artigos 4º e 5º, assim dispõe acerca da condição e perda da qualidade de dependente:
[...].
‘Art. 4º São dependentes do segurado, para os fins desta lei:
I – o cônjuge ou companheiro e o filho não emancipado, menor
de vinte e um anos ou inválido;
II – os pais;
III – o irmão não emancipado, menor de vinte e um anos ou
inválido.
Art. 5º A perda da qualidade de dependente ocorre:
I – para o cônjuge:
a) pela separação judicial ou divórcio, enquanto não lhe for
assegurada a prestação de alimentos’.
Destarte, o cônjuge é dependente do segurado, mesmo com
a separação judicial, desde que seja assegurada a prestação
de alimentos.
No caso em apreço, a Apelada se separou judicialmente do seu
marido, ficando acordado, entretanto, pagamento de pensão alimentícia, consoante item 8º do acordo de separação devidamente homologado e juntado a fls. 27, razão pela qual restou
satisfeito o requisito final da alínea ‘a’, inciso I, art. 5º, da LC 64/
2002, qual seja: ficar assegurada prestação de alimentos.
Nessa senda, improcede a alegação do Apelante no sentido de
que não houve a comprovação, pela Apelada, de recebimento
de prestação alimentícia, uma vez que tal requisito não está
previsto na legislação aplicável ao caso sub examine.
Dependência econômica, para a lei previdenciária, corresponde
a um estado de fato, não a uma decorrência puramente jurídica
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das relações entre parentes, na medida em que essas relações, tais como aquelas disciplinadas na lei civil, estão muita
vez, sob esse aspecto, em divórcio com a realidade social.
Pertinente a transcrição de trecho do recente voto do
Desembargador Alvim Soares que, ao apreciar sobre questão análoga, assim decidiu:
‘É fato incontroverso que ao se separarem firmaram acordo
perante o Juízo da Vara Cível da Comarca de Nova Lima,
ficando estipulado que ele pagaria uma pensão alimentícia a
ela. Ora, não se pode colocar em dúvida a dependência
econômica da autora em relação ao segurado e a vingar
a interpretação dada pelo Instituto, estar-se-ia colocando em desamparo o dependente do segurado, que contribuiu durante a sua vida, para que seus dependentes
não ficassem desamparados. Perceber, assim, que referida interpretação vai de encontro à própria razão de
ser do Instituto de Previdência’.
‘Realça-se que restou comprovado que a apelada era, na
época do falecimento do segurado, consignatária de alimentos por força de sentença de divórcio, encontrando-se, portanto, na condição de dependente do mesmo;...’ (TJMG, Apc.
Nº 1.0000.00.340320-1, 7ª C. Cível, DJ 14.08.2003).
No mesmo sentido foi a decisão proferida pelo TJMG, nos
autos da Apelação Cível nº 1.0000.00.210969-2/001, publicada
em 14.11.2002, cujo Relator foi o Desembargador Kildare
Carvalho.
Cumpre ressaltar os ensinamentos de Carlos Alberto Pereira
de Castro, acerca do benefício intitulado pensão por morte:
‘A pensão por morte é o benefício pago aos dependentes do
segurado, homem ou mulher, que falecer, aposentado ou não,
conforme previsão expressa do art. 201, V, da Constituição
Federal, regulamentada pelo art. 74 da lei RGPS. Trata-se
de prestação de pagamento continuado, substituidora da remuneração do segurado falecido. Em face disto, considerase direito irrenunciável dos benefícios que fazem jus à mesma’ (Manual de direito previdenciário. 3. ed. São Paulo,
LTr, 2002, p. 495).
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A pensão por morte, como a própria designação deixa entrever, tem natureza extremamente assistencialista, donde, por
isso mesmo, houve a excepcionalidade, para ela, do período
de carência (cf. art. 26, I, da Lei nº 8.213/91).
De forma cristalina Feijó Coimbra (Direito previdenciário
brasileiro. 10. ed. Edições Trabalhista, 1999, p. 97) enfocando
o dependente na Previdência Social, traz, verbis:
‘Precisamente porque as relações derivadas do Direito de
Família são insuficientes para explicar todas as situações de
dependência que a vida pode exibir, é que a lei previdenciária
cria direitos, dos quais aponta titulares não ligados ao segurado por aquelas relações.
O direito desses dependentes, como dos demais, surge quando
ocorrentes duas situações, que devem coexistir: a existência
de relação jurídica de vinculação entre o segurado e a instituição previdenciária e a de dependência, tal como a lei a admitir,
entre o segurado e o pretendente da prestação. Entretanto, o
direito do dependente não é, como se poderia pensar, um direito transmitido pelo segurado. É ele, na realidade, ‘ins proprium’,
que pelo dependente pode ser exercido contra a instituição,
pois desde que se aperfeiçoem aquelas duas situações o dependente passa a ostentar esse direito subjetivo’.
[...].
Assim, não há que se falar em violação ao art. 195, §5º, da
Carta Magna e da própria Lei de Responsabilidade Fiscal (LC
101/2000), uma vez que o Poder Judiciário não está criando
qualquer benefício, mas apenas certificando a existência do
direito da Apelada em receber os benefícios de seu ex-marido.
Ademais, a fonte de custeio do benefício concedido à Apelada decorreu das inúmeras contribuições previdenciárias
levadas a termo pelo ex-segurado, porquanto o mesmo era
aposentado pelo IPSEMG.
[...].
Correta, portanto, a decisão que determinou, a título de
pensão, o pagamento do valor integral dos proventos do
servidor se estivesse na ativa. (Grifos nossos)
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Assim, esse julgado revela de forma inconteste que, se a ex-cônjuge
recebia pensão alimentícia do segurado, caracterizando a continuidade do
estado de dependência, a ela será concedida pensão por morte em seu
valor integral. O recebimento de pensão alimentícia serve unicamente para
comprovar a dependência econômica, nunca podendo ser aplicada para
fixar o quantum dessa dependência. Essa é a grande questão! A pensão
por morte é regida por valores diversos da pensão alimentícia e, por isso,
esta não pode ser parâmetro para o pagamento daquela.
Nessa linha de pensamento, correta a análise de Antônio César
Bochenek:
É importante salientar que não há correlação direita e obrigatória entre os conceitos de dependência utilizados pelo direito civil, tributário e previdenciário. Em regra, o conceito
de dependência para fins previdenciários é mais elastecido
em relação aos outros ramos do direito, por conta da construção jurisprudencial sobre a dependência, por exemplo, na
proteção aos filhos ilegítimos, concubina e homossexuais.43
Desse modo, os membros da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça mineiro julgaram corretamente a questão ao conceder a pensão por
morte na sua integralidade, já que a ex-esposa, nesse caso, era a única
dependente do segurado. Se nos autos constasse a presença de outros
dependentes preferenciais e pela linha de raciocínio trilhada pelos
desembargadores, o referido benefício previdenciário seria rateado em
partes iguais por força do art. 4º, § 1º, da Lei Complementar n. 64/02.
Repita-se: essa é a mesma solução jurídica dada pelas Leis n. 8.213/91
(regime geral) e n. 8.112/90 (regime próprio dos servidores públicos federais). A razão de ser dessa norma é que todos eles estão no mesmo patamar, ou seja, ocupam a mesma posição na ordem de beneficiários: são
todos dependentes e integrantes da primeira classe.
A única diferença entre eles é com relação à prova do vínculo econômico: o ex-cônjuge deve demonstrar a percepção de alimentos ou a
43
BOCHENEK, Antônio César. Benefícios devidos aos dependentes do regime geral da previdência social. In: ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antônio (Coord.) Curso de
especialização em direito previdenciário, v. 2, p. 322.
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necessidade dela,44 enquanto os demais dependentes preferenciais tem o
único ônus de comprovar o vínculo de parentesco civil. Trata-se de uma
opção legislativa com clara preocupação na preservação da existência digna do núcleo familiar. No caso do ex-cônjuge com pensão alimentícia, a
dependência econômica não é presumida. Contudo, também por uma opção do legislador, a prova do elo econômico é feita com a demonstração
de que o vínculo de dependência não foi rompido; e essa demonstração é
realizada comprovando-se que o segurado falecido pagava alimentos ao
ex-cônjuge.
Percebe-se, por todo exposto e com a devida vênia, que passou
despercebido ao legislador mineiro a importância de regras específicas e
claras sobre a da concessão de pensão por morte devida ao ex-cônjuge.
Se o Parlamento mineiro endossou a norma constitucional da aplicação
subsidiária das regras do regime geral, razoável admitir que, por puro descuido, não foi expressamente consignado no regime próprio estadual o critério do art. 76, § 2º, da Lei n. 8.213/91, no sentido da concorrência em
igualdade de condições.
Importa registrar que a ampla maioria dos Estados da Federação,
ao instituir seus regimes próprios de previdência social, foi sensível em compreender a necessidade de harmonizar as regras entre os regimes próprios
e geral. Exatamente nesse contexto, mormente depois da reforma da previdência em 1998, que expressamente incorporou ao texto constitucional a
norma do art. 40, § 12, a maioria dos entes políticos, ao exercerem sua
44
Não obstante a legislação assegurar o direito à pensão por morte somente para o ex-cônjuge
divorciado ou separado judicialmente ou de fato que recebia pensão de alimentos, a jurisprudência é pacífica em admitir que o(a) ex-esposo(a) que não recebia pensão alimentos tem o
direito de ser beneficiário(a) da pensão por morte do(a) segurado(a) falecido(a), desde que
devidamente comprovada a sua necessidade. Esse é o entendimento consubstanciado na
Súmula 64 do extinto Tribunal Federal de Recursos, in verbis: “A mulher que dispensou, no
acordo do desquite, a prestação de alimentos, conserva, não obstante, o direito à pensão
decorrente do óbito do marido, desde que comprovada a necessidade do benefício”. Nesse
rastro, confira os seguintes julgados: STF, RExt. n. 100.350-2/RJ e 101.419-9/RJ; STJ, REsp.
n. 411.194/PR; TRF-1ª Região, AC n. 2002.01.99.043728-4/MG; TRF 2ª-Região AC n.
96.02.25062-3/RJ; TRF 4ª-Região, AC n. 89.04.19715-5/RS; TRF 5ª-Região, AC n.
97.05.09664-3/PE; e TRF 5ª-Região, AI n. 2004.05.00.031967-0/PE. Aqui, vale lembrar
também a Súmula 379 do Supremo Tribunal Federal: “No acordo do desquite não se admite
renúncia aos alimentos, que poderão ser pleiteados ulteriormente, verificados os pressupostos legais”.
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competência legislativa concorrente suplementar, inseriram de forma induvidosa
em seus ordenamentos jurídicos estaduais o mesmo critério contemplado na
Lei n. 8.213/91: o ex-cônjuge com pensão alimentícia concorre em igualdade
de condições com os demais dependentes da primeira classe.45
Ao não se proceder dessa maneira, entendemos, com as vênias de
estilo, que o Parlamento do Estado de Minas Gerais pecou por deixar margem de dúvida, em alguns juristas, no que tange à concessão de pensão por
morte de ex-cônjuge de segurado. Essa aparente obscuridade do diploma
complementar mineiro abriu caminho para que o Executivo editasse o
famigerado Decreto Estadual n. 42.758/02 que, conforme analisado a seguir,
trilhou o caminho tanto da inconstitucionalidade, quanto da ilegalidade.
Assim, alguns meses depois da edição da Lei Complementar n. 64/02,
precisamente em 17 de julho de 2002, adveio o já mencionado Decreto
Estadual n. 42.758 que, em seu art. 23, § 5º, estipulou regramento diverso
no que toca à pensão por morte devida ao ex-cônjuge que recebia pensão
alimentícia do segurado. Nesse dispositivo legal, restou definido que a cotaparte do benefício previdenciário devido seria limitada ao valor dos alimentos pagos, e o restante, objeto de rateio entre os demais dependentes preferenciais.
Esse decreto executivo, idealizado para regulamentar a Lei Complementar n. 64/02, ao estabelecer parâmetro diverso de concessão da pensão por morte ao dependente em gozo de pensão alimentícia, flagrantemente extrapolou seu poder meramente regulamentar. O Executivo mineiro
expediu regulamento, mediante decreto, não compatível com a lei regulamentada, já que, inovando a ordem jurídica, impôs critério diverso daquele
fixado na norma complementar estadual e na Lei Federal n. 8.213/91, que
regula o regime geral.
45
Cf., nesse sentido, a legislação dos seguintes Estados: Santa Catarina (Lei Complementar n.
129/94, arts. 4 e 5); Rio Grande do Sul (Lei n. 7.672/82, arts. 9º, 10 e 14); Bahia (Lei n. 7.249/98,
arts. 9º, 10 e 21); Alagoas (Lei n. 6.288/02, arts. 9º e 16); Piauí (Lei Complementar n. 13/94, arts.
123 e 124); Sergipe (Lei Complementar n. 113/05, arts. 12, 17 e 53); Pernambuco (Lei Complementar n. 28/00, arts. 27 e 50; Decreto n. 29.299/06, art. 3º e 4º); Paraíba (Lei n. 8.185/07), Mato
Grosso do Sul (Lei n. 2.207/00, arts. 6º, 11 e 56); Mato Grosso (Lei Complementar
n. 127/03, arts. 4º e 5º); Goiás (Lei n. 13.903/01, arts. 3º, 38 e 39); Pará (Lei Complementar
n. 39/02, arts. 6 º, 14 e 29); Tocantins (Lei n. 72/89, arts. 10, 13, 35 e 36); Acre (Lei Complementar n. 154/05, art. 68); Rondônia (Lei Complementar n. 228/00, arts. 22, 23 e 52); Roraima
(Lei Complementar n. 54/01, arts. 12, 18 e 53); Amapá (Lei n. 448/99, arts. 23, 26 e 53).
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Insiste-se que, por força do art. 84, inciso IV, da Constituição da
República e, mormente do art. 90, inciso VII, da Constituição mineira,
cabe ao Governador do Estado tão-somente a edição de decretos regulamentares com a finalidade exclusiva de propiciar a fiel execução da lei regulamentada.
A ratio essendi dessa norma é exatamente impedir que, sob o rótulo
de regulamentar, o Executivo expeça disposições de caráter legislativo, isto
é, normas constitutivas de direitos e obrigações não previstas em lei. Em
nenhum momento, portanto, lhe é permitido criar obrigações novas,
tampouco restringir ou ampliar direitos, sob pena de restar caracterizado
abuso de poder regulamentar e verdadeira invasão de competência do Poder
Legislativo. O malfadado decreto mineiro entrou em descompasso com a
Lei Complementar n. 64/02, vindo o Executivo a atuar em campo reservado ao Legislativo.
Numa perfunctória interpretação dos arts. 24, inciso XII, da Carta
Republicana e 61, inciso XVIII, da Constituição Mineira, tem-se que cabe
à Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais legislar concorrentemente
sobre previdência social. Portanto, o Decreto n. 42.758/02 não poderia versar
sobre critérios de concessão e rateio de benefício previdenciário. Ao fazêlo, intromete-se no âmbito reservado ao Poder Legislativo, importando,
assim, em desprezo aos princípios da independência dos poderes e da
reserva legal.
Como o poder emana do povo, cabe somente a ele, por meio de
seus representantes legitimamente eleitos e observado o devido processo
legislativo, definir as regras de concessão e rateio de pensão por morte. E,
no que se refere ao procedimento legislativo relativo à produção de leis
ordinárias, é cediço que tal processo deve perseguir as seguintes fases:
iniciativa, discussão, votação, sanção ou veto, promulgação e vigência.
Com efeito, para que seja inovado o ordenamento jurídicoprevidenciário do Estado de Minas Gerais, mister que haja, obrigatoriamente, discussão sobre o tema, no qual cada Deputado Estadual discutirá
a necessidade ou não de estabelecer outros critérios de concessão de
benefícios previdenciários.
No caso em tela, evidentemente, a sociedade e seus representantes
legais não tiveram sequer a oportunidade de debater e amadurecer o assunto. O que ocorreu foi uma manifesta invasão do Poder Executivo mineiro em
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terreno próprio do Legislativo. Nesse caso, a decisão de inovar o sistema
previdenciário estadual coube tão-somente ao Governador do Estado que,
diga-se de passagem, não foi eleito pelo povo para atuar nessa função, mas
sim para administrar o Estado.
Importante, nesse sentido, relembrar a lição de Geraldo Ataliba ao
afirmar que a Constituição Federal não tolera “em princípio, que o Executivo exerça qualquer tipo de competência normativa inaugural, nem mesmo
em matéria administrativa. Essa seara foi categoricamente reservada aos
órgãos de representação popular”.46
Assim, o diploma normativo adequado para tratar sobre previdência
social no âmbito do Estado de Minas Gerais é a lei ordinária (art. 24, inciso
XII, da Carta Republicana combinado com o art. 61, inciso XVIII, da Constituição mineira). Portanto, no instante em que o Governador do Estado (agindo
unilateralmente e no intuito de se esquivar do referido comando constitucional
de submeter a matéria ao crivo do Parlamento) utiliza o Decreto n. 42.758/02
para alterar e inovar a sistemática previdenciária mineira, ele agride violentamente a Carta Estadual. Tal fato, por si só, revela de forma inconteste que
houve uma patente violação ao Princípio da Reserva Legal.
Num outro prisma, se o referido decreto extrapolou seu poder meramente regulamentar, restou também violado o comando normativo estadual constitucional segundo o qual compete ao Chefe do Poder Executivo
Estadual expedir decretos para a fiel execução da lei (art. 90, VII, da Constituição do Estado de Minas Gerais). Destarte, ressaem patentes os vícios de
inconstitucionalidade perante a Lei Maior do Estado de Minas Gerais.
Ademais, quando tal fato ocorre, a Assembléia Legislativa mineira pode (e deve), em sede de controle repressivo de constitucionalidade,
expedir um decreto legislativo para sustar o decreto do Governador
que exorbitou a lei regulamentada.47 Não obstante tal comando
normativo, o fato é que o Parlamento mineiro quedou-se omisso e nada
46
47
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, p. 133.
“Art. 62. Compete privativamente à Assembléia Legislativa:
[...];
XXX – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar
ou dos limites de delegação legislativa.”
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fez para combater o inconstitucional Decreto n. 42.758/02. Tal circunstância não impede, todavia, que o Poder Judiciário examine a questão.
Conforme já assinalado, o papel do Decreto Estadual n. 42.758/02
deveria ser o de assegurar a fiel aplicação da Lei Complementar Estadual n. 64/02. Contudo, no tocante ao dependente em gozo de pensão
alimentícia, a lei complementar não carece de nenhum dispositivo
regulamentador adicional. Conforme previamente analisado, a referida
norma complementar, desde sua origem, já detinha dispositivos
normativos que asseguravam uma solução jurídica inafastável e
induvidosa em relação à situação de ex-cônjuge com percepção de
alimentos, qual seja, a concorrência em igualdade de condições. Assim,
nesse tocante, o decreto quedou-se ilegal, já que extrapolou a função
constitucionalmente prevista, dispondo de forma manifestamente diversa da Lei Complementar n. 64/02.
Cumpre registrar, também, que, perante a nossa estrutura hierárquica normativa,48 o decreto regulamentar está sempre em situação inferior à
lei regulamentada. Nesse contexto, vale a sempre lúcida lição de Miguel
Reale, no sentido de que
não são leis os regulamentos ou decretos, porque estes não
podem ultrapassar os limites postos pela norma legal que
especificam ou a cuja execução se destinam. Tudo o que as
normas regulamentares ou executivas estejam em conflito
com o disposto ali não tem validade, e é suscetível de
impugnação por quem se sinta lesado.49
Dessa forma, o limite material do decreto é a essência normativa da
lei que o antecede. A norma a ser regulamentada fornece os parâmetros
com base nos quais pode atuar o decreto. Esses parâmetros, portanto,
constituem o limite material do regulamento. Cabe a este tão-somente estabelecer as regras orgânicas e processuais específicas para a fiel execução
48
49
Conforme assinala Hans Kelsen, “a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas
ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada
de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas”. (KELSEN, Hans. Teoria pura do
direito, p. 247)
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 163.
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da lei complementar. O decreto regulamentar é verdadeiro ato administrativo insuscetível de inovar, originalmente, a ordem jurídica.
Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, regulamento é
“expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais
uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande
atuação da Administração Pública”.50
Mister salientar que, ao expedir regulamentos, o Poder Executivo
utiliza um dos instrumentos – o poder normativo –, que lhe é constitucionalmente atribuído, para o melhor desempenho da atividade administrativa.
Por meio do regulamento, são instituídas regras de execução – e não de
legislação – desenvolvendo os comandos legislativos, dispondo as regras e
providências necessárias ao fiel cumprimento e aplicação da lei regulamentada. Com efeito, a missão do regulamento é preparar a execução das leis,
completando-as em seus detalhes, sem lhes alterar sua carga axiológica.
Embora a lei e o regulamento sejam normas, apenas a primeira tem o
condão de inovar originariamente o ordenamento jurídico (já que somente
o processo de produção de lei envolve a necessária discussão da matéria
pelos representantes do povo), revelando-se, assim, como uma fonte primária do Direito, cujo fundamento direto ou imediato de validade é a própria Constituição.
Já o regulamento é uma fonte secundária do Direito, porquanto encontra seu imediato fundamento de validade nos atos normativos primários. Exatamente por isso que o regulamento não pode alterar a lei, apenas
a desenvolve e a explica, atuando sempre intra legem. Cumpre registrar,
também, que os atos normativos secundários têm por fundamento indireto
ou mediato de validade a Constituição. Como ensina o constitucionalista
Luis Roberto Barroso, “[...] toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a
aplicação direta ou indireta da Lei Maior”.51
De fato, notória é a superioridade hierárquica da lei em face de seu
regulamento. O fundamento de validade do decreto está na lei. Tanto isso é
50
51
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 311.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=7547.
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verdade que o regulamento caduca quando a lei regulamentada é revogada.
Assim, o poder regulamentar consiste no exercício de atividade normativa
subordinada, é verdadeiro poder limitado. Esses limites, conforme assevera José Afonso da Silva, “situam-se no âmbito da competência executiva e
administrativa”.52 A inobservância desses limites vicia o regulamento, tornando-o ilegal.
Assim, nesse contexto, somente é permitido ao Chefe do Executivo
regulamentar secundum legem, nunca contra legem ou praeter legem.
Trata-se de um espaço de proteção do povo e seu Parlamento, contra
possíveis atos autoritários do Executivo. A concepção de Estado Democrático de Direito sujeita a Administração Pública a um sistema hierárquico
de normas, em cujo ápice se encontra a Constituição da República.
Nesse ponto, imprescindível invocar o pensamento de Hans Kelsen
que, em sua obra clássica, assevera:
uma norma para ser válida é preciso que busque seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim, por
diante, de tal forma que todas as normas cuja validade pode
ser reconduzida a uma mesma norma fundamental forma
um sistema de normas, uma ordem normativa.53
Essa matéria tem sido objeto de debate nos Tribunais Superiores do
País. É pacífico o entendimento no sentido de que nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de invadir espaço
destinado à atuação do Parlamento que, via edição de diploma normativo
próprio – a lei em sentido formal –, tem por função maior a regulação da
vida em sociedade. E essa regulação somente se afigura legítima se for
previamente submetida à discussão pelos representantes do povo e pela
sociedade.
Sobre o tema, cumpre registrar um excerto da ementa prolatada em
sessão plenária na ocasião do recente julgamento da Questão de Ordem
em Agravo Regimental na Ação Cautelar n. 1.033-1,54 cuja função de relator
52
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 425.
53
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 269.
54
STF, AC n. 1.033-1 AgR-QO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/5/2006. No mesmo sentido,
o RExt. n. 318.873, grifos nossos.
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coube ao Ministro Celso de Mello. Nessa ação, os membros da Corte
Constitucional, por unanimidade, entenderam:
A RESERVA
DE LEI EM SENTIDO FORMAL QUALIFICA-SE COMO INS-
TRUMENTO CONSTITUCIONAL DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DE
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS.
– O princípio da reserva de lei atua como expressiva
limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de
suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir
ou criar obrigações.
Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir
direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal.
– O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos
em que o Estado atua ‘contra legem’ ou ‘praeter legem’, não
só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas
viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento
governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da
competência extraordinária que lhe confere o art. 49, inciso
V, da Constituição da República e que lhe permite ‘sustar os
atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder
regulamentar’ [...].
Importa colocar em relevo trecho do inteiro teor do Acórdão
supramencionado, de lavra do relator Celso de Mello que, citando José
Antônio Pimenta Bueno, rememora que o abuso do poder regulamentar
pelo Executivo já era objeto de reprimenda pela doutrina imperial. A seguir,
veja a transcrição in verbis:
[...] Do que temos exposto, e do princípio também incontestável, que o executivo tem por atribuição executar, e não
fazer a lei, nem de maneira alguma alterá-la, segue-se evidentemente que ele cometeria grave abuso em qualquer das
hipóteses seguintes:
1º) Em criar direitos, ou obrigações novas, não estabelecidos
pela lei, porquanto seria uma inovação exorbitante de suas
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atribuições, uma usurpação do poder legislativo, que só poderá ser tolerada por câmaras desmoralizadas [...].
[...].
O governo não deve por título algum falsear a divisão dos poderes políticos, exceder suas próprias atribuições, ou usurpar o
poder legislativo.
Toda e qualquer irrupção fora destes limites é fatal, tanto às
liberdades públicas, como ao próprio poder.
[...].
Desde que o regulamento excede seus limites constitucionais, desde que ofende a lei, fica certamente sem autoridade
porquanto é ele mesmo quem estabelece o dilema ou de respeitar-se a autoridade legítima e soberana da lei, ou violá-la
para preferir o abuso do poder executivo.
Conclui, o Ministro asseverando que o postulado da reserva legal traduz verdadeira limitação constitucional ao exercício da atividade
estatal. Assim, compete ao Executivo submeter-se aos comandos fundados em norma legal, sendo vedado, pois, intervenções que estipulem
critérios próprios ou autônomos de decisão.
É de se notar, portanto, que, se o Decreto n. 42.758/02 ingressou no ordenamento jurídico com o escopo de regulamentar a Lei Complementar n. 64/02, isto é, foi editado com a finalidade de propiciar
facilidades para que a lei seja fielmente executada, ressai patente que o
limite material do referido regulamento é o substrato normativo contido
na lei regulamentada.
A 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas
Gerais teve a oportunidade de julgar uma ação na qual restou questionada a validade de determinado dispositivo do Decreto Regulamentar
n. 42.758/02. À unanimidade de votos, restou entendido que, se o regulamento extrapolou os limites legais da norma regulamentada, isto é,
se ele inovou a ordem jurídica criando regra inexistente na norma que
regulamenta, tal decreto incorreria em inconstitucionalidade e ilegalidade. Conseqüentemente, a parte do Decreto que extrapolou seu poder
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regulamentar padeceria de invalidade, não podendo ser aplicada no caso
concreto. Confira, a seguir, a ementa que encimou o Acórdão:
Remessa oficial e apelações cíveis voluntárias. Ação
declaratória. Servidor. Afastamento do cargo. Contribuição
previdenciária. Contribuições devidas há mais de cinco anos.
Decadência consumada. Exercício de mandato eletivo.
Inexistência de regime próprio de previdência. Filiação obrigatória ao regime geral. Contribuição de natureza assistencial.
Exação devida. Alíquota de contribuição para o servidor licenciado. Decreto regulamentar que extrapola a lei. Invalidade.
Sentença parcialmente reformada.
1. A decadência decorre da inércia do titular de um direito
em exercitá-lo por um período de tempo determinado em lei
ou ajustado pelos interessados.
2. As contribuições devidas à autarquia previdenciária que
deixaram de ser cobradas no prazo de cinco anos tornam-se
inexigíveis pela decadência. Assim, não podem obstar o fornecimento de certidão negativa de débito.
3. O art. 40 da Constituição da República, com a redação
dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998, assegura
aos servidores públicos regime de previdência de caráter
contributivo. E o § 13, do mesmo art. 40 determina a sujeição do servidor ocupante de cargo em comissão ou de outro
cargo temporário ao regime geral de previdência.
4. O servidor que, ao tomar posse em cargo eletivo, não estiver vinculado a regime próprio de previdência, será filiado
ao regime geral, nos termos da Lei nº 8.212, de 1991.
5. O Decreto regulamentar visa dar operatividade à lei, e seu
conteúdo, nela encontra seus limites. Assim, não pode
desbordar dos limites legais sob pena de imediata ilegalidade
e mediata inconstitucionalidade, vale dizer, invalidade.
6. Remessa oficial e apelações cíveis conhecidas.
7. Sentença parcialmente reformada em reexame necessário, prejudicados os recursos voluntários.55
55
TJMG, 2ª Câmara Cível, AC n. 1.0024.03.894384-1/001, Rel. Des. Caetano Levi Lopes, j.
em 3/52005, DJ de 20/5/2005, grifos nossos.
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No voto condutor do referido Acórdão, o Desembargador Caetano Levi Lopes enfatizou que o Decreto Mineiro n. 42.758/02, ao criar
disposição inexistente na lei regulamentada, incorreu em imediata ilegalidade e mediata inconstitucionalidade. Pela importância, confira a seguinte passagem:
Por derradeiro, resta verificar qual alíquota deve incidir sobre a parcela referente à contribuição patronal nas contribuições cobradas a partir de julho de 2002.
A apelada, na petição inicial, invocou exceção temporal trazida
no Decreto estadual n. 42.758, de 2002, que regulamentou a
Lei Complementar estadual n. 64, de 2002, instituindo alíquota
patronal diferenciada para os servidores, cujo provimento no
cargo tenha ocorrido até 31/12/2001.
Realmente, o art. 6º, do Decreto estadual nº 42.758, de 2002,
dispõe:
‘Art. 6º A alíquota patronal do servidor efetivo, ativo e inativo,
cujo provimento no cargo tenha ocorrido até 31 de dezembro
de 2001, é de 2,4% (dois vírgula quatro por cento) incidente
sobre a remuneração de contribuição ou sobre o provento’.
O mencionado Decreto inovou, ainda, no art. 31, estabelecendo de maneira genérica o recolhimento de contribuição
patronal à base de 22%, enquanto a Lei Complementar n.
64, de 2002, cria distinções entre os servidores admitidos antes
e após 31/12/2001.
Aqui, o Decreto inovou, criando disposição inexistente na lei
que regulamenta.
A Constituição da República prescreve, no art. 84, IV,
que o Presidente da República expede decretos e regulamentos para fiel execução das leis. Porém, o Decreto
regulamentar visa apenas dar operatividade à lei e seu
conteúdo nela encontra seus limites. É o que ensina Michel
Temer na obra Elementos de direito constitucional. 17.
ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 156:
‘Tema controvertido é o que atina ao poder regulamentar
que a Constituição confere ao Presidente da República para
que estabeleça fórmulas que viabilizem a aplicação da lei.
Sua atividade, nesse passo, consiste em tornar operativa a
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lei, facilitando a sua execução e dispondo normas destinadas à Administração para a boa observância da
preceituação legal’.
É faculdade do Chefe do Poder Executivo haurida no Texto
Constitucional. Não pode o legislador restringir o exercício
desse poder. O conteúdo do regulamento, entretanto, é
predeterminado pela lei. Não pode, assim, desbordar dos
limites legais, sob pena de imediata ilegalidade e mediata
inconstitucionalidade.
Ora, não poderia o Decreto regulamentar criar exceções temporais que a lei não disciplinou. Logo, a exceção é ilegal e
não pode ser aplicada. Do mesmo modo, o art. 31, do Decreto que estabelece a alíquota de 22% para a contribuição patronal é ilegal. (Grifos nossos).
Embora o julgado comentado não verse especificadamente sobre
pensão por morte devida ao ex-cônjuge de segurado, extraem-se dele lições que podem ser aplicadas no deslinde do tema objeto desta análise.
O fato é que, a par do que ocorreu no referido julgado, o Decreto n.
42.758/02 também inovou a ordem jurídica estadual, ao dispor sobre critério de concessão de pensão por morte a que faz jus o ex-cônjuge (art.
23, § 5º). Tal fato também rotulou o regulamento de inconstitucionalidade e
ilegalidade, tornando-o inválido.
Consoante asseverado alhures, no que toca ao benefício previdenciário por morte de ex-cônjuge de segurado, a lei complementar consagrou
o mesmo enquadramento legal utilizado pelo regime geral. Dessa forma,
caberia ao Executivo mineiro tão-somente a expedição de regulamento com
o objetivo exclusivo de propiciar a fiel execução da lei regulamentada. De
outro norte, estaria vedada sua atuação legislativa, isto é, o EstadoMembro estaria proibido de criar direitos ou obrigações novos(as) não
previstos(as) pela lei complementar sobre concessão de pensão por morte
de ex-cônjuge de segurado.
Como a Lei Complementar n. 64/02 não é omissa quanto ao referido benefício previdenciário de ex-cônjuge, a atuação executiva deveria se
limitar à expedição de normas de caráter administrativo, ou seja, regras
orgânicas e processuais específicas para o devido cumprimento da norma
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regulamentada, cuja aplicação demande atuação da Administração Pública
direta ou indireta.
Contudo, lamentavelmente, não foi isso que ocorreu. O então Governador do Estado de Minas Gerais, invadindo a competência do Poder
Legislativo e fraudando o Estado Democrático de Direito ao legislar a despeito da vontade do Parlamento, alterou os critérios de concessão de pensão por morte de ex-cônjuge de segurado via decreto regulamentar. De
fato, a vinculação do valor da pensão alimentícia para fins de pagamento de
pensão por morte traduz critério inexistente na lei regulamentada.
É cediço que o Estado de Minas Gerais (como qualquer outro ente
federativo) está passando por dificuldades financeiras demandando um ajuste
entre sua receita e seus gastos. O Executivo mineiro tem se esforçado para
reduzir suas despesas, inclusive gastos previdenciários. Assim, o órgão estadual competente – IPSEMG – tem restringido ao máximo a concessão
de benefícios de pensão por morte. Ocorre que essa postura agressiva de
reduzir gastos previdenciários a todo custo tem prejudicado diversos cidadãos mineiros que assistem, perplexos, a seus direitos fundamentais serem
tolhidos arbitrariamente.
A inovação contida no famigerado decreto estadual teve um objetivo
específico: reduzir gastos previdenciários. Se o único dependente do segurado for sua ex-mulher, em vez de concedê-la integralmente a pensão por
morte, o Estado de Minas Gerais faz uma economia substancial, já que,
por intermédio de um decreto com resquícios ditatoriais, o valor da pensão
por morte fica restrito ao quantum recebido a título de alimentos.
Foi exatamente essa postura agressiva, objetivando a reduzir gastos
que culminou na alteração introduzida pelo Decreto mineiro, importando
verdadeira inovação na ordem jurídica, em flagrante desprezo à hierarquia
das normas, violando não só a unidade do ordenamento jurídico, como
também o princípio da reserva legal. De fato, pela teoria da construção
escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen, no ápice da
pirâmide das normas jurídicas está a Constituição Federal a que todos se
submetem, inclusive o legislador e o administrador local. E, nesse caso
específico, o referido regulamento não se submeteu à Constituição do Estado de Minas Gerais.
Trata-se de verdadeiro ato autoritário, que restringiu um direito fundamental ao dispor de forma incompatível em relação à lei regulamentada.
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Esse ato, no que se refere à pensão por morte devida ao ex-cônjuge,
extrapolou seu poder regulamentar, já que foi além do limite material imposto pela lei.
Frise-se: o decreto deve atuar estritamente nos limites impostos pela
lei regulamentada, sendo-lhe vedado alterar seu espírito, sua carga valorativa.
E o peso axiológico da Lei Complementar n. 64/02 é induvidoso. Consoante seus arts. 4º, inciso I, § 1º, 5º, inciso I, alínea “a” e 65, e, também, pelo
art. 40, § 12, da Lei Maior, percebe-se que o espírito da lei regulamentada
é no sentido de creditar ao ex-cônjuge que recebia pensa alimentícia o
carimbo de dependente. Essa dependência do segurado faz nascer o direito subjetivo ao recebimento do benefício. A pensão alimentos serve somente para atender ao requisito da dependência. Com relação ao valor do
benefício, uma vez que na lei regulamentada inexiste critério específico e
expresso em seu texto, recorre-se às regras do regime geral, por força dos
mencionados imperativos constitucional e infraconstitucional. E o critério
fixado pela Lei n. 8.213/91 objetiva a divisão igualitária do benefício entre
o ex-cônjuge e os demais dependentes preferenciais (art. 76, § 2º).
Esse é o substrato normativo da lei regulamentada, que deve ser
interpretando à luz dos princípios da solidariedade e da máxima eficácia
dos direitos fundamentais. Assim, o regulamento mineiro deveria inserir as
normas da lei complementar em seu texto, ou seja, repetir sua carga valorativa
em seu corpo e, a partir daí, estipular somente regras orgânicas e processuais específicas exclusivamente para assegurar a devida execução da lei,
sob pena de quedar-se ilegal.
Com efeito, o Decreto n. 42.758/02 inovou originalmente a ordem
jurídica, não respeitando a essência normativa da Lei Complementar n.
64/02, indo além dos parâmetros nela contidos, uma vez que limitou o
benefício à pensão por morte ao valor dos alimentos pagos (art. 23, § 5º).
Esse novo critério de divisão do benefício, por sua vez, restringiu de maneira substancial o direito social fundamental ao recebimento da pensão por
morte. Por isso, outra não é a conclusão senão no sentido da patente
inconstitucionalidade e ilegalidade incorrida pelo referido regulamento.
Em outras palavras, o Decreto Estadual n. 42.758/02 é
inconstitucional, porque viola de forma indireta ou mediata o art. 90, inciso
VII, da Constituição do Estado de Minas Gerais e porque também afronta
o princípio constitucional da reserva legal, frise-se. Também é ilegal, de
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modo imediato, porque traz em seu bojo norma restritiva de direito que
não está em consonância com o limite material da lei regulamentada. Tais
defeitos tornam o decreto mineiro inválido.
Nesse ponto, cumpre registrar a jurisprudência pacífica do Supremo
Tribunal Federal, no sentido de que se o regulamento contraria a lei, invadindo os limites constitucionais do poder regulamentar, seria típica hipótese
de ilegalidade. A Corte Maior tem decidido pela inadmissibilidade de aferir
na via do controle abstrato de constitucionalidade, a invalidez de regulamentos contrários à lei regulamentada, uma vez que a inconstitucionalidade
se revela de maneira mediata.
Com efeito, a situação de litigiosidade entre o regulamento e a lei
regulamentada não traduz hipótese caracterizadora de ofensa direita ao
texto constitucional. Assim, não se enquadra em situação de imediata
inconstitucionalidade, mas de mera ilegalidade, já que a ofensa se resume
ao plano do direito meramente local.
Sobre o tema, confira a ementa exarada pelo Supremo Tribunal Federal na ocasião do julgamento do Agravo Regimental na Ação Direita de
Inconstitucionalidade n. 2.618-6:
C ONSTITUCIONAL . A TO REGULAMENTAR . A ÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE.
I – Se o ato regulamentar vai além do conteúdo da lei, ou se
afasta dos limites que esta lhe traça, pratica ilegalidade e não
inconstitucionalidade, pelo que não se sujeita à jurisdição constitucional. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.
II – ADI não admitida. Agravo não provido.56
Por todo exposto, sendo o Decreto n. 42.758/02 ilegal, não se pode
dar aplicabilidade às regras nele contidas que extrapolam seu poder regulamentar. Por isso, é inválido o comando inserido em seu art. 23, § 5º, que,
limitando o quantum da pensão por morte ao valor da pensão alimentos,
restringiu o direito fundamental social de pensão por morte a que faz jus o
ex-cônjuge de segurado.
56
STF, Pleno, Ag. Reg. Adin n. 2.618-6, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 12/8/2004, DJ 4/82006. No
mesmo sentido: ADIs n. 536/DF; n. 589/DF; n. 311/DF; n. 708/DF; n. 392/DF; n. 1.347/DF,
1.866/DF.
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Assim, nesse tocante, por não ser aplicável o referido regulamento
carimbado de ilegalidade, aplicam-se integralmente os comando
normativos da Lei Complementar n. 64/02 que, conforme assinalado,
traz em seu contexto o mesmo regramento contido na lei federal de normas gerais (Lei Federal n. 8.213/91): ex-cônjuge com pensão alimentícia
fixada em juízo continua dependente do segurado e concorre em igualdade de condições com os demais dependentes do segurado.
Mister frisar, também, que a invalidade do decreto somado à norma constitucional do art. 40, § 12, e infraconstitucional do art. 65 da Lei
Complementar n. 64/02, conduz irremediavelmente ao caminho da igualdade de condições entre o ex-cônjuge e os demais dependentes de primeira classe, diante da aplicação subsidiária das regras do regime geral.
Por fim, como se não bastasse esses defeitos mencionados, entendemos que o decreto em comento também viola o núcleo axiológico da
Constituição de 1988. De fato, ao restringir o direito social fundamental
ao recebimento de pensão por morte, o regulamento agride a dignidade
do ex-cônjuge do segurado, uma vez que a função desse benefício
previdenciário é assegurar o bem-estar material, moral e espiritual do
dependente que uniu forças com o segurado para adimplir as contribuições visando a garantir uma velhice digna.
Em muitos casos concretos, a ex-mulher do segurado falecido tem
mais de 60 anos, sendo considerada idosa para fins legais. Exatamente
nesse período de sua vida, em que se faz necessária uma proteção especial por parte da sociedade, ela se encontra tolhida de seu direito fundamental a uma velhice digna. O Estatuto do Idoso – Lei Federal n. 10.741/03
–, não obstante trazer uma série de normais protetivas, em nada contribuiu para minimizar as injustiças perpetradas pela sistemática
previdenciária. Entende-se, assim, que a carga axiológica contida nesse
diploma deveria servir de substrato para uma interpretação mais adequada da legislação previdenciária.
Aliás, importa registrar que o denominado modelo positivistalegalista, no qual a interpretação é pautada unicamente no processo de
subsunção de um fato a uma norma, encontra-se superado pelo póspositivismo. Por esse modelo busca-se a concretização efetiva dos
princípios constitucionais, na perspectiva da realização dos direitos fundamentais.
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5 PENSÃO POR MORTE VS. PENSÃO ALIMENTÍCIA
A norma contida no art. 23, § 5º, do Decreto Estadual n. 42.758/02,
além de ilegal e inconstitucional, ao vincular o valor da pensão alimentícia
ao valor do benefício previdenciário deflagrado pelo evento morte, também merece outra reprimenda. Ora, são dois institutos jurídicos distintos e,
portanto, um não deve servir de parâmetro para o outro.
A pensão alimentícia é instituto agasalhado pelo Direito Civil, enquanto o benefício da pensão por morte é regido por um conjunto de
princípios jurídicos próprios do ramo do Direito Previdenciário. Como é
ramo autônomo da Ciência do Direito, também tem seus conceitos jurídicos exclusivos. Uma dessas singularidades é exatamente o instituto da
pensão por morte.
De fato, são relações jurídicas distintas57: a pensão alimentícia tem
natureza alimentar e é regrada pelas diretrizes do Direito de Família, mormente pelo trinômio necessidade/possibilidade/proporcionalidade; e a pensão por morte tem natureza assistencialista, com raízes fincadas nos pressupostos e requisitos específicos do Direito Previdenciário, em especial o
que se funda no equilíbrio financeiro e atuarial, na relação de custeio/benefício e na dependência econômica perante o segurado.
Discorrendo sobre a função protetiva do sistema previdenciário brasileiro, lúcida é a advertência feita por Daniel Machado da Rocha, no sentido de que a pensão por morte constitui um “elemento peculiar dessa técnica de proteção social, que difere substancialmente dos demais direitos
prestacionais, decorre do caráter contributivo da previdência social”.58
Com a morte da pessoa natural, a princípio, também cessa a obrigação de pagar alimentos. Ocorre, assim, o rompimento da relação
57
Marina Vasques Duarte adverte: “Não há correlação direta e obrigatória entre dependência
civil, tributária e previdenciária. Embora entenda que todas as situações possam ser denominadas de relações jurídicas porque ambas procedem da incidência de uma norma jurídica sobre
um suporte fático por ela descrito hipoteticamente, cada qual gera direitos diversos de acordo
com o ramo do direito a que digam respeito”. [DUARTE, Marina Vasques. Dependentes e
benefícios previstos no RGPS. In: TAVARES, Marcelo Leonardo (Org.) Direito
previdenciário, p. 72]
58
ROCHA, Daniel Machado da. O direito fundamental à previdência social na perspectiva
dos princípios constitucionais diretivos do sistema previdenciário brasileiro, p. 110.
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jurídica derivada do Direito de Família, ou seja, o elo alimentante/alimentado foi extinto.
Noutro norte, todavia, nasce uma relação jurídica nova que, desta
feita, tem natureza previdenciária. Nesse vínculo jurídico criado, têm-se atores (instituto previdenciário, segurado e seus dependentes) e regramento jurídico distintos. Vale dizer, o instituto de previdência social – seja ele federal
(INSS), mineiro (IPSEMG) ou de qualquer outro ente federativo – não paga
pensão alimentícia, e, sim, pensão previdenciária. Aquela é de obrigação do
alimentante, observada sua capacidade de pagar e a necessidade do alimentado; enquanto que esta é paga pelo instituto de previdência social no qual o
segurado esteja vinculado, respeitada as normas de ordem pública contidas
na legislação previdenciária e nos contornos valorativos constitucionais.
Discorrendo sobre o tema, Marina Vasques Duarte assevera: “A
elação jurídica de proteção previdenciária é diversa da de caráter privado,
tem fundamentos distintos, já que aquela tem por preocupação primordial
a preservação da vida, a dignidade da pessoa humana”.59 Essa distinção
impede que se recorra a conceitos e interpretações advindos do Direito de
Família para aplicá-los na seara do Direito Previdenciário.
Tanto isso é verdade que, embora o Código Civil de 2002 tenha reduzido a maioridade civil para 18 anos, quando a pessoa se torna plenamente
capaz para todos os atos da vida civil, permaneceu o limite de 21 anos para
fins de caracterização da dependência econômica. Com efeito, com o advento da nova legislação civil, passou-se a discutir se a redução do limite
etário para definição da capacidade civil importa na perda da qualidade de
dependente para fins previdenciários aos dezoito anos de idade.
Após amplo debate jurídico, o Conselho da Justiça Federal exarou
entendimento de que continuam a valer as regras previstas na Lei n. 8.213/91,
ou seja, é dependente quem tiver até 21 anos de idade, já que a lei
previdenciária é norma especial em face do Código Civil.
Outra situação que evidencia a distância jurídica entre o instituto da
pensão alimentícia da pensão por morte diz respeito a seus beneficiários.
Mais uma vez, recorre-se à lição da Juíza Federal Mariana Vasques Duarte:
59
DUARTE, Marina Vasques. Dependentes e benefícios previstos no RGPS. In: TAVARES,
Marcelo Leonardo (Org.) Direito previdenciário, p. 77.
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Sendo a relação jurídica previdenciária diversa da civil, não
previu a Lei n 8.213/91 a possibilidade de os netos, bisnetos,
avós ou bisavós serem enquadrados como dependentes do
segurado, em que pese a norma civil prescrever nos arts.
1.696 e 1.697 que o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes.
Na falta de ascendentes, caberá a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos
irmãos, assim germanos como unilaterais.60
O fato é que cada ramo do Direito, apesar de compor um ordenamento jurídico único, agasalha determinados princípios e requisitos específicos. A razão de ser da sistemática na qual se arrima o Direito de Família é
diversa daquela em que se funda o Direito Previdenciário. Um dos aspectos distintivos é o comando constitucional que prevê que nenhuma prestação previdenciária poderá ser criada, majorada ou estendida sem a necessária fonte de custeio.61
Esse tema já ganhou repercussão nos tribunais pátrios. Com efeito, a
2ª Turma do Egrégio Tribunal Regional Federal da Primeira Região teve a
oportunidade de analisar a matéria. Em diversos julgados consignou entendimento no sentido de que a relação previdenciária é distinta das relações
oriundas do Direito de Família e, por isso, não se pode estabelecer uma
co-relação entre o valor da pensão alimentícia e valor da pensão por morte. Nesse sentido, foram exaradas as seguintes ementas:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MILITAR. PENSÃO POR MORTE. VIÚVA E EX-ESPOSA DIVORCIADA COM DIREITO A ALIMENTOS.
FILHAS MAIORES.
1. Com a morte do alimentante, cessa o direito do alimentando à pensão alimentícia devida nos termos da
DUARTE, Marina Vasques. Dependentes e benefícios previstos no RGPS. In: TAVARES,
Marcelo Leonardo (Org.) Direito previdenciário, p. 75.
61
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta,
nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
[...].
§ 5º Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.”
60
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legislação civil, passando o benefíciário, se caso, a
fazer jus a novo pensionamento, de natureza
previdenciária, nos termos das normas legais que o
disciplinam.
2. A ex-esposa divorciada, com direito a pensionamento alimentício, é beneficiária da pensão previdenciária deixada por
seu ex-marido, militar, de quem continuou a depender economicamente mesmo após o divórcio, fazendo jus a cota-parte
igual à da viúva, em face dos termos da legislação militar.
3. [...]
4. Recursos de apelação e remessa oficial a que se dá parcial provimento.62
ADMINISTRATIVO. PENSÃO POR MORTE. VIÚVA E EX-ESPOSA, DIVORCIADA, COM PERCEPÇÃO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA. DIVISÃO DA
PENSÃO VITALÍCIA EM PARTES IGUAIS. LEI N. 12, DE 11 DE DEZEMBRO DE 1990, ARTIGOS 217, INCISO I, ALÍNEAS ‘A’ E ‘B’, E 218, § 1º.
1. Com o falecimento do alimentante, funcionário público federal, cessou a relação jurídica de que decorria o
direito da ex-esposa à percepção de pensão alimentícia
e nasceu, para ela, nova relação jurídica, de índole
previdenciária, em face da qualidade de dependente
outorgada pelo artigo 217, inciso I, alínea ‘b’, da Lei
8.112, de 11 de dezembro de 1990, sujeita, por isso mesmo, à disciplina das normas da legislação específica.
2. Expresso o parágrafo 1º do artigo 218 do citado diploma
legal no sentido de que, ocorrendo habilitação de vários titulares à pensão vitalícia, o respectivo valor será distribuído em
partes iguais entre os beneficiários habilitados, faz jus a viúva
a pensionamento no mesmo percentual a que tem direito a exesposa, divorciada, com percepção de pensão alimentícia.
3. Recursos de apelação e remessa oficial a que se dá provimento.63
62
TRF 1ª Região, 2ª T., AC n. 1999.01.00.044809-8/PI, Rel. Des. Fed. Carlos Moreira Alves,
j. em 14/92005, DJ de 26/1/2006, grifos nossos.
63
TRF-1ª Região, 2ª T., AC n. 2000.34.00.044041-4/DF, Rel. Des. Fed. Carlos Moreira Alves,
j. em 6/10/2004, DJ 18.10.04, grifos nossos.
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PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. FILHO UNIVERSITÁRIO, MAIOR
CESSAÇÃO DO DIREITO. LEI 8.213/91, ART.
77, § 2, INCISO II. EXTENSÃO DO BENEFÍCIO ATÉ 24 ANOS, PARA
ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS. IMPOSSIBILIDADE.
DE VINTE E UM ANOS.
I. A relação previdenciária se assenta em pressupostos
legais próprios, não permitindo se tome por empréstimo
interpretações relativas às prestações alimentares estrito
senso, derivadas do Direito de Família, para com base
nelas se deixar sem aplicação norma expressa do diploma legal que os estabelece.
II. [...];
III. Recurso de apelação a que se nega provimento.64
Assim, para a concessão de benefícios previdenciários, recorre-se à
legislação previdenciária, que deve conter regras específicas para qualificar
quem serão os beneficiários, os dependentes e os segurados e também
abrigar critérios justos de quantificação e divisão do referido benefício.
Não é à toa que a legislação previdenciária condicionou o pagamento do benefício da pensão por morte somente aos dependentes do segurado. Em regra, o segurado é aquela pessoa que, de uma forma ou de outra,
contribuiu para o custeio do sistema previdenciário ao qual restou vinculado. Assim, em regra, não é devida pensão por morte quando na data do
óbito tenha ocorrido a perda da qualidade de segurado. Destarte, pelas
regras do regime próprio de previdência social do Estado de Minas Gerais,
a concessão da pensão por morte fica condicionada ao adimplemento regular das contribuições65.
Como se percebe, o legislador previdenciário é sensível ao binômio
custeio/benefício ao estipular as regras do sistema previdenciário. Ele deve
64
65
TRF-1ª Região, 2ª T., AC n. 2002.33.01.000.969-2/BA, Rel. Des. Fed. Carlos Moreira Alves,
DJ de 2/9/2904, grifos nossos. No mesmo sentido, confira também: REsp. n. 827.143/DF.
Lei Complementar n. 64/02:
“Art. 41. A concessão dos benefícios fica condicionada:
I – à regularidade da contribuição do segurado, quando lhe couber o recolhimento das contribuições;
II – à quitação do débito, na forma do regulamento, em caso de inadimplência do segurado.”
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levar em consideração a fonte de custeio do sistema previdenciário, sob
pena de aumentar ainda mais o rombo orçamentário.
Assim, tendo em vista essas características singulares do Direito
Previdenciário, o critério de concessão da pensão por morte de ex-cônjuge
do segurado contido no Decreto Mineiro n. 42.758/02, no sentido de vincular o valor do benefício previdenciário da pensão por morte ao quantum
pago a título de alimentos é flagrantemente injusto.
Acompanhe o seguinte exemplo: um servidor público mineiro titular
de cargo efetivo e, portanto, vinculado obrigatoriamente ao regime próprio
de previdência social do Estado de Minas Gerais, foi casado durante vinte
e cinco anos com uma mulher que exercia funções domésticas. Durante o
matrimônio, tiveram dois filhos que foram criados e educados pelo esforço
comum do casal: o pai era o provedor material e a mãe cuidava das crianças e do lar. Nesse contexto, é razoável admitir que a esposa ajudava o
marido a contribuir financeiramente para sustentar o sistema, uma vez
que eles formam um único núcleo familiar. Após 25 anos de assistência
mútua, o casal se separou e restou acordado o pagamento de alimentos
no importe de 20% de seu rendimento. Anos depois, o ex-marido se
casou novamente (ou mantinha união estável com outra mulher), vindo a
falecer cinco anos depois.
Nesse exemplo, considerando-se que os filhos do segurado são capazes e maiores de 21 anos, a cota-parte da pensão por morte devida ao excônjuge é vinculada ao importe pago a título de alimentos, ou seja, 20% do
salário do segurado. À outra dependente da mesma classe (cônjuge ou companheira), seria concedido o restante do valor global da pensão por morte.
Assim, para efeitos previdenciários, criar-se-ia uma situação completamente desastrada, de forma tal que teríamos a cônjuge/companheira recebendo a maior parte do benefício, apesar de a ex-esposa ter contribuído por
mais tempo para sustentar o sistema. Exatamente no momento em que a excônjuge precisaria da contrapartida do seguro previdenciário para assegurar
uma velhice digna, é-lhe tolhido esse direito fundamental, violando sua dignidade. Tudo o que ela e o segurado amealharam durante a vida em comum,
mormente o pagamento das contribuições previdenciárias, foi ignorado.
Nesse mesmo exemplo, pelas regras do regime geral que, consoante
previamente analisado, deveria ser o critério a ser aplicado, a disparidade
seria menor, uma vez que o valor global da pensão por morte seria rateado
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de forma igualitária entre a ex-esposa e a posterior cônjuge/companheira.
E esse critério, conforme já exposto, apesar de ser a solução juridicamente
adequada, tendo em vista a sistemática do ordenamento jurídico vigente,
está longe de ser o critério mais justo.
6 ADOÇÃO DO INSTITUTO JURÍDICO ALEMÃO DA
COMPENSAÇÃO DE AMPARO NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO
No que se refere ao denominado “Regime Próprio de Previdência
Social”, a legislação brasileira vigente estipula que o vínculo jurídico entre o
segurado e a instituição previdenciária nasce com a titularidade de cargo
público efetivo, gerando deveres e obrigações para ambas as partes. O
segurado deve pagar obrigatoriamente contribuições para a manutenção
do sistema e, em contrapartida, ele ou seus dependentes farão jus ao gozo
dos benefícios previdenciários previstos em lei.
Na hipótese de o segurado ser casado, o adimplemento dessas contribuições previdenciárias durante o matrimônio é evidente desdobramento
do esforço comum do casal. Se, no momento da separação, restou caracterizada a dependência econômica da mulher e, posteriormente, houve o
falecimento do segurado, a ex-esposa torna-se titular de um direito subjetivo próprio à percepção de pensão por morte. O valor desse benefício
deve ser calculado levando-se em conta a duração do casamento. Vale
dizer: o quantum a ser recebido pela ex-esposa deve ser proporcional ao
período em que ela, juntamente com o marido falecido, contribuíram para
financiar o sistema. Esse critério, por ser lógico, é o mais justo, pois valoriza o período em que a ex-cônjuge exerceu funções domésticas viabilizando
o pagamento das contribuições pelo outro cônjuge.
Conforme exposto, o sistema previdenciário brasileiro, em regra, vincula
a segurança social ao exercício de uma atividade laboral aquisitiva. Tradicionalmente, essa atividade é exercida preponderantemente pelo marido, de tal forma que ele contribui financeiramente para construir sua segurança social. À
esposa, caberia a importante tarefa de administrar o lar, cuidar e educar as
crianças, contribuindo para o bem estar tanto do casal, quanto da sociedade.
Contudo, com a evolução do tratamento igualitário entre homens e
mulheres, o trabalho da esposa passou a ser valorado na mesma proporção
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que aquele exercido pelo marido. Assim, nesse contexto, percebeu-se que
vários sistemas previdenciários, inclusive o brasileiro, incorrem em graves
injustiças para com a figura da mulher divorciada. Para corroborar tal
assertiva, no exemplo dado no item anterior, a segunda mulher (ou companheira) percebeu vantagem pessoal indevida, custeada em parte pela primeira mulher, ao receber 80% do benefício previdenciário e por ter ajudado somente a custear o sistema por um curto período de tempo (5 anos
contra os 25 anos da primeira esposa).
A conduta do Executivo mineiro em estabelecer a vinculação da pensão alimentos à pensão por morte, desconsiderando sua natureza
previdenciária e o esforço da primeira mulher em propiciar condições para
que, juntamente com o segurado, adimplisse as contribuições previdenciárias, fez com que a pensão por morte da segunda esposa (ou companheira) adquirisse um caráter de “prêmio” pela morte do segurado. Tal
postura contraria a própria razão de ser da previdência que, necessariamente, deve ser norteada pelo princípio da contrapartida.
Essa aberração jurídica ocorre porque, dentre outros motivos, a exesposa, pela sistemática atual, não obstante a administração do lar e a educação da prole durante o casamento, não teria direito a uma segurança
social independente, vez que não exerceu diretamente a atividade aquisitiva. Ocorre que, durante o matrimônio e considerando a reciprocidade de
direitos e obrigações, foi exatamente o exercício das atividades domésticas
exercidas pela esposa que possibilitou a atividade laboral do outro cônjuge. Essa premissa tem sido sistematicamente ignorada, causando
desequilíbrio econômico e moral nas relações familiares que sofrem ruptura, mormente no seu aspecto securitário.
O Direito alemão, ciente da ocorrência dessas anomalias e sensível
ao tratamento igualitário entre marido e mulher, desenvolveu, desde a
década de 1960, o instituto jurídico da Compensação de Amparo. Essa
doutrina tedesca foi objeto da tese de Doutorado de Miriam de Abreu
Machado e Campos,66 que abordou o universo jurídico do Direito de
Família germânico, esmiuçando os fundamentos e seus conseqüentes reflexos.
66
Cf. CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das
expectativas de aposentadoria entre cônjuges. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
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A Compensação de Amparo tem por finalidade precípua estabelecer
uma justiça prospectiva67 entre os cônjuges, concretizada pela criação de
uma segurança social independente a que faz jus a ex-mulher. Trata-se de um
mecanismo de reposição, tendo em vista a situação desigual do marido provedor material e da mulher administradora do lar e educadora dos filhos.
Consoante adverte a referida autora,
a Compensação de Amparo nesse ponto ameniza os efeitos
dessa discriminação por meio da compensação das expectativas, numa aplicação concreta dos princípios de justiça
social, [...]. É a constatação a posteriori dos prejuízos em
decorrência de determinadas circunstâncias, adquiridas por
um status, e que coloca os indivíduos em posições desiguais.68
E, em outra passagem, registra:
Não se pode esquecer que o objetivo da compensação de
amparo é favorecer aquele cônjuge que, por causa da administração do lar e educação dos filhos durante o período total
do casamento, não pode adquirir ou somente adquiriu expectativas mínimas de amparo, e a execução do amparo, por
ocasião do divórcio, melhorará a sua situação previdenciária
suavizando em parte os efeitos negativos do casamento.69
Conforme noticia a Dra. Miriam em seu trabalho, a Compensação
de Amparado é executada independentemente da necessidade material
dos cônjuges, uma vez que a pensão da viúva divorciada vinculada à noção
de substituição de alimentos tornou-se discutível no Direito alemão.70 Seu
objetivo é proporcionar uma segurança social adequada e digna ao cônjuge
67
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. 648.
68
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. 10-11.
69
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. 212.
70
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. 649.
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não ativo profissionalmente, compensando os “prejuízos” resultantes de
seus encargos domésticos. Esse instituto é norteado na equiparação do
trabalho doméstico com o trabalho profissional.
Esse critério também viabiliza a igualdade material entre os cônjuges,
eliminado as desvantagens existentes entre o papel do homem e da mulher
no matrimônio. Com efeito, somente serão computadas, para efeito de
compensação, as expectativas e pretensões incidentes exclusivamente no
período do casamento. Tal sistemática do direito tedesco tem por escopo
incentivar a formalização do casamento e sua eventual dissolução, em detrimento de uniões informais. Nesse contexto, há uma clara intenção do
legislador e da jurisprudência germânicos em conceder prevalência do casamento em desfavor da união estável.
Por ser uma orientação atual, entende-se que não pode ser ignorada
pelo legislador brasileiro. Deve haver uma profunda reflexão da doutrina e da
jurisprudência sobre a situação do cônjuge menos favorecido economicamente na ocasião da concessão da pensão por morte, já que a mulher divorciada é a que mais sofre por causa da estrutura funcional do nosso sistema
previdenciário. Isso se dá em virtude de o Direito brasileiro não conceber a
preferência da primeira esposa em relação à segunda (ou companheira), nem
adotar o critério da duração do casamento para fins de concessão de benefícios previdenciários. Nesse ponto, preciosa a lição da Dra. Miriam:
Nota-se, pois, uma profunda dificuldade da sociedade brasileira
em perceber o valor do respeito à lei e principalmente à segurança jurídica que ela oferece. O legislador, em vez de se preocupar
em regulamentar o concubinato, igualando a união estável ao casamento, deveria, pelo contrário, ter forjado uma lei do divórcio,
cuidando de aperfeiçoar as suas conseqüências, estabelecendo
critérios objetivos para a concessão da pensão alimentícia, e também da preferência da primeira esposa em relação à segunda,
quando o casamento da primeira fosse de longa duração. Aqui no
Brasil, se durante a separação de fato um dos cônjuges vive uma
relação concubinária, o cônjuge é preterido em direitos pelo outro
convivente. A separação de fato atua negativamente para o cônjuge e positivamente para o convivente.71
71
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. 557.
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Portanto, propõe-se a adoção do instituto da Compensação de
Amparo no ordenamento jurídico brasileiro como forma de garantir justiça
prospectiva entre os cônjuges, amparando aquele que é mais fraco economicamente. Trata-se de um critério que leva em conta a duração do casamento e, por isso, é pautado nos princípios da dignidade, igualdade e da
proteção da confiança. Nesse contexto, prestigia-se o trabalho doméstico
valorando-o economicamente. E essa valoração deve ser norteada, a fim
de se compensar a mulher que administra o lar e educa os filhos.
Importa consignar que a carga axiológica da sistemática da Compensação de Amparo encontrou guarida em diversos ordenamentos jurídicos de
outros Estados soberanos.72 Até em países islâmicos, percebeu-se a necessidade de melhorar a situação jurídica do cônjuge divorciado.73 Trata-se,
portanto, de uma concepção que tem sido explorada, desenvolvida, adaptada e aplicada em vários sistemas jurídicos espalhados pelo mundo, mormente por aqueles que prestigiam a real igualdade material entre os sexos.
No Brasil, a doutrina alemã da Compensação de Amparo ainda não
alcançou o devido lugar de destaque. Contudo, tramita no Senado Federal
uma proposta de emenda à Constituição que dispõe sobre a compensação
de expectativas e das previsões de aposentadoria entre cônjuges por ocasião do divórcio. Trata-se da PEC n. 93, de 3 de dezembro de 2003, de
autoria do Senador Augusto Botelho (PT-RR), que acrescenta o § 9º ao
art. 226. Por essa proposta, o novo parágrafo teria a seguinte redação:
§ 9º Por ocasião do divórcio, será assegurada a compensação entre cônjuges das expectativas e das previsões de aposentadoria por idade e por redução da capacidade profissional, adquiridas e mantidas total ou parcialmente com o auxílio do trabalho ou do patrimônio de um deles ou de ambos,
durante o período de duração do casamento.
No discurso de encaminhamento da referida proposta de emenda à
Constituição, colhe-se o seguinte trecho das justificações exaradas pelo
Senador Augusto Botelho:
72
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. 337-511.
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Busca-se, em última instância, inserir na Constituição, regra
que sirva de fundamento de validade a uma justiça
desbordante da estreita visão de compensação do cônjuge
não-ativo e divorciado, baseada unicamente na tradicional
prestação alimentícia ou na mera divisão de bens, circunstância que põe a coberto várias situações de desigualdade na
seara das relações conjugais.
De fato, a efetiva aplicação do princípio da igualdade entre
os sexos (art. 5º e inciso I), no interior do casamento, ou até
mesmo depois de sua dissolução pelo divórcio, tem sido objeto de intensos debates por parte de legisladores e da comunidade jurídica de vários países desenvolvidos. No âmbito desse debate insere-se, pelo grau de refinamento jurídico que
atingiu, o Instituto da Compensação de Amparo (CA).74
Essa PEC n. 93/03 está aguardando a designação de um Relator e
atualmente tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal. O fato é que, independentemente de sua aprovação ou não,
essa proposta de alteração da Constituição é o primeiro sinal de que o legislador brasileiro está desejoso em aprimorar a situação jurídica do cônjuge
divorciado. Entende-se que a aplicação da Compensação de Amparo é o
melhor caminho para alcançar esse fim, uma vez que tal sistemática é pautada
em princípios de justiça social, mormente o da igualdade entre os sexos.
Até que a sociedade brasileira e seus legítimos representantes entendam a importância de se reestruturar o ordenamento jurídico nesse aspecto, deve-se acionar o Poder Judiciário, a fim de combater as injustiças
decorrentes da legislação em vigor, especialmente do Estado de Minas
Gerais.
Com efeito, o critério imposto pelo Executivo mineiro ao vincular o
valor da pensão por morte aos alimentos pagos pelo segurado na ocasião
do divórcio, além de inconstitucional e ilegal, também não é satisfatório. Tal
regra não oferece amparo adequado ao cônjuge economicamente mais fraco.
73
74
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. 339.
Cf. DIÁRIO DO SENADO FEDERAL, p. 39.854-39.858.
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Certamente seria uma solução mais justa se o ordenamento jurídico brasileiro adotasse a mesma concepção alemã sobre pensão alimentícia. Consoante noticia Miriam de Abreu Machado e Campos, a diferença preponderante entre os dois sistemas é que o Direito tedesco valoriza,
para fins de quantificação da pensão alimentos, “o papel exercido pela
mãe educadora, sendo levado em consideração o tempo gasto com os
filhos e as oportunidades profissionais perdidas por motivo de dedicação
exclusiva ao lar”.75
Por outro lado, o critério adotado pelo regime geral, no sentido do
ex-cônjuge com pensão alimentícia concorrer em igualdade de condições
com os demais dependentes preferenciais, também não é justo. Não
obstante, consoante assinalado alhures, essa é a solução jurídica que deve
prevalecer levando-se em consideração o ordenamento jurídico brasileiro
vigente.
Contudo, tal caminho também pode ensejar graves injustiças. Basta
pensar no mesmo exemplo dado no item anterior. À primeira esposa caberia metade da pensão por morte, apesar de ela ter sido casada com o
segurado por um longo período, ajudando-o por anos a fio a custear o
sistema previdenciário. E à segunda esposa (ou companheira) caberia a
outra metade da pensão, não obstante ter-se relacionado com o segurado
por um curto período de tempo. Confira a interpretação dada pelo Direito
grmânico ao denominado casamento de curta duração:
Outra diferença gritante entre o Direito alemão e o brasileiro
é a interpretação que se dá ao casamento de curta duração,
pois nesse caso não existe direito a alimentos. No entanto,
para obrigar os cônjuges a formalizarem tanto a união como
a falência do casamento, a lei alemã entende como de uma
grosseira injustiça a pretensão de alimentos quando o casamento foi de curta duração, e também conta o período de
casamento de uma forma diametralmente diferente daquela
aplicada no Brasil.76
75
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. 644.
76
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. 644.
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De fato, se o Direito brasileiro adotasse a concepção transcrita acima, evitar-se-iam notórias fraudes perpetradas por pessoas que se casam
com segurados que estão no leito da morte... Em alguns casos, o casamento dura poucas semanas e a viúva, agindo com patente má-fé, passa a
receber pensão por morte.
Concluindo, entende-se que o critério baseado na Compensação de
Amparo objetivando uma justiça prospectiva entre os cônjuges é o mais
adequado e justo. Tal fato se explica porque essa regra atende aos fins
sociais constitucionalmente protegidos e às exigências do bem comum, levando em conta a origem dos fatos e seus desdobramentos.
Se a mulher, durante todo o casamento, se privou, juntamente com o
marido, de melhores recursos, para suportar o ônus da contribuição
previdenciária, injusta é a solução que ignora tal premissa. Portanto, nesses
casos, enquanto não sobrevier uma mudança radical no Direito
Previdenciário brasileiro, deve o intérprete do Direito, ao analisar a legislação vigente, atender às exigências da justiça e da eqüidade, conduzindo a
um fim socialmente útil.
Por fim, não é demasiado repisar a necessidade de uma reformulação
de toda a sistemática jurídica brasileira, objetivando concretizar os valores
insculpidos na Constituição de 1988. Nos dizeres do jurista alemão que
apresentou a obra de Miriam de Abreu Machado e Campos, Hans-Joachim
Reinhard, “o número crescente de pessoas, principalmente de mulheres
divorciadas, sem segurança digna na velhice, deveria se tornar, para o legislador brasileiro, um dos maiores desafios nos próximos anos”.77
7 CONCLUSÃO
Ante o exposto, conclui-se:
• O Direito Previdenciário é ramo autônomo da Ciência do Direito,
com princípios regras e valores próprios que densificam sua carga
axiológica. A previdência social tem natureza jurídica de um seguro sui generis, dado seu caráter compulsório. Tal fato revela o
caráter sinalagmático da relação jurídica previdenciária. Além
77
CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. xi.
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dessa característica, a previdência social é norteada por vários princípios, notadamente os princípios do equilíbrio financeiro e atuarial
e o da contrapartida.
• O benefício da pensão por morte constitui verdadeiro direito fundamental que objetiva promover a dignidade da pessoa humana.
Para fazer jus a tal benefício, deve-se atender a dois requisitos:
a) qualidade de segurado na data do evento morte, e, b) condição
de dependência perante o segurado.
• Pelas regras do regime próprio de previdência social dos servidores públicos do Estado de Minas Gerais, o ex-cônjuge não perde a
qualidade de dependente do segurado, se lhe restou fixada pensão
de alimentos. Tal fato faz com que o ex-cônjuge alcance o mesmo
status de dependência do cônjuge ou companheiro. Assim, perfazendo uma interpretação sistemática da Lei Complementar n.
64/02, conclui-se que o ex-cônjuge concorre em igualdade de condições com os demais dependentes preferenciais.
• Mesmo que não se entenda dessa forma, uma vez que a referida lei
complementar é aparentemente omissa em relação às regras de
concessão de pensão por morte devida ao ex-cônjuge, impõe-se a
aplicação subsidiária dos requisitos e critérios do regime geral de
previdência social, por força dos arts. 40, § 12, da Constituição de
1988 e 65 da Lei Complementar n. 64/02. E a solução jurídica do
regime geral é também pela concorrência em igualdade de condições (Lei Federal n. 8.213/91, art. 76, § 2º).
• O Decreto mineiro n. 42.758/02 padece de vício de inconstitucionalidade e ilegalidade, uma vez que, ao inovar a ordem jurídica
impondo critério de concessão de pensão por morte não existente
na lei regulamentada, extrapolou sua função meramente regulamentar. Ademais, trata-se de típica hipótese de invasão do Poder Executivo na seara do Poder Legislativo, já que cabe à Assembléia
Legislativa mineira legislar sobre previdência social (art. 61, inciso
XVIII, da Constituição Mineira c/c art. 24, inciso XII, da Constituição Federal), importando em violação ao princípio da reserva
legal. Caberia ao Executivo tão-somente expedir regras orgânicas
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e processuais, objetivando à fiel execução da lei regulamentada; ou
submeter a matéria ao crivo do Parlamento mineiro, conforme obriga
a Lei Maior do Estado de Minas Gerais.
• Como se não bastassem esses defeitos mencionados, o critério
eleito pelo Decreto Estadual n. 42.758/02 também viola o princípio
maior da Carta Cidadã. Esse diploma normativo restringiu o direito
social fundamental a uma velhice digna, via recebimento de pensão
por morte. Esse benefício tem por escopo assegurar o bem-estar
material, moral e espiritual do dependente que uniu forças com o
segurado para adimplir as contribuições previdenciárias.
• Esses vícios tornam o Decreto mineiro inválido, ensejando a
inaplicabilidade da regra pelo qual se vincula o quantum devido a
título de pensão por morte ao valor dos alimentos. Com efeito, não
se dá aplicabilidade ao art. 23, § 5º, do regulamento estadual em
comento. Nesse compasso, se o decreto é inválido, utiliza-se o
critério da igualdade de condições previsto no regime geral, já que,
nesse caso, é perfeitamente cabível a aplicação subsidiária da Lei
n. 8.213/02 (arts. 40, § 12, da Constituição de 1988 e 65 da Lei
Complementar n. 64/02).
• O instituto da pensão alimentícia não pode servir de parâmetro
para a fixação do valor da pensão por morte a que fazem jus os
dependentes do segurado. Trata-se de dois institutos jurídicos distintos, com raízes fincadas em princípios, valores, e regras próprios. As
partes e os fundamentos que norteiam a relação jurídica
previdenciária não são os mesmos da relação privada. A concepção de dependência para fins previdenciários deve ser mais ampla
do que a visão restrita do vínculo alimentar. Aquela deve ser aquilatada considerando-se o caráter contributivo do sistema
previdenciário, enquanto que esta deve ser norteada levando-se
em conta o trinômio da necessidade/possibilidade/proporcionalidade. Com efeito, se a relação jurídica previdenciária se
assenta em pressupostos legais próprios e diversos da relação
jurídica alimentar, não se pode tomar por empréstimo conceitos e
interpretações derivados do Direito de Família, sob pena de se
promover uma injustiça social.
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• O ordenamento jurídico brasileiro não oferece uma solução suficientemente justa no que se refere à concessão de pensão por morte ao
cônjuge divorciado ou separado judicialmente do segurado. Tanto
o critério eleito pelo regime geral (concorrência em igualdade de
condições com os demais dependentes preferenciais) quanto o caminho imposto pelo decreto estadual de Minas Gerais (cota-parte
da pensão por morte no valor dos alimentos pagos) são insuficientes para promover uma igualdade material entre os dependentes.
Ambos os critérios incorrem em graves injustiças. Desse modo,
propõe-se a adoção do instituto jurídico alemão da Compensação
de Amparo como forma de amenizar as anomalias causadas pela
sistemática previdenciária brasileira. Essa doutrina foi profundamente
analisada na obra citada da doutrinadora mineira Miriam de Abreu
Machado e Campo. Em breve síntese, tal critério nada mais é do
que um mecanismo de reposição que objetiva compensar o cônjuge economicamente mais fraco das desvantagens resultantes da ruptura do matrimônio. Desse modo, valoriza-se o trabalho doméstico
desempenhado preponderantemente pela mulher, uma vez que tal
função viabilizou o pagamento das contribuições previdenciárias. É
um critério mais equânime, uma vez que leva em consideração o
importante papel da mulher na administração do lar e na educação
dos filhos, além da duração do casamento para fixar o montante a
ser compensado. A Compensação de Amparo visa concretizar uma
segurança social independente para a ex-mulher, realizando uma
justiça prospectiva entre os cônjuges. Conforme adverte o jurista
tedesco Hans-Joachim Reinhard, “a Compensação de Amparo significa o ponto de intersecção entre o Direito de Família e o Direito
Social”.78
78
Apud CAMPOS, Miriam de Abreu Machado e. Família no direito comparado: divisão das
expectativas de aposentadoria entre cônjuges, p. ix.
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O CONTRATO DE SEGURO E O NOVO CÓDIGO
CIVIL – REFLEXOS NO ÂMBITO DO DIREITO
MATERIAL E PROCESSUAL
Welington Luzia Teixeira*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Introdução. 2. O contrato de seguro no Código Civil de
1916 e no de 2002. 2.1. Diferenças teóricas e práticas no
direito material e processual. 3. Conclusão. 4. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Várias foram as alterações trazidas pelo Código Civil de 2002 em
relação ao contrato de seguro quando o comparamos com o Código de
1916. Neste artigo não analisaremos todas as alterações, o que será objeto dos nossos estudos em outra e breve oportunidade.
Aqui nos dedicaremos, apenas e tão-somente, à relevante novidade
trazida pelo art. 757 do novel Código, já que como advogado atuante,
também, na área de responsabilidade civil, temos notado que muitos dos
nossos colegas, por desinformação ou insegurança, não têm aplicado a
novidade trazida com aquele dispositivo legal.
2 O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 1916
E NO DE 2002
O contrato de seguro no Código Civil de 1916, por meio do seu art.
1.432, tinha esta conceituação: “Considera-se contrato de seguro aquele
pelo qual uma das partes se obriga para com a outra, mediante a paga de
um prêmio, a indenizá-la do prejuízo resultante de riscos futuros, previstos
no contrato”.
*
Advogado. Mestre e doutorando em Processo (DI) pela PUC Minas. Professor Universitário.
Membro do IBDP e Diretor do IAMG.
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WELINGTON LUZIA TEIXEIRA
O Código Civil de 2002, assim passou a conceituar e definir o que é
contrato de seguro no art. 757: “Pelo contrato de seguro, o segurador se
obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do
segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”.
Esta nova conceituação do que seja contrato de seguro traz enormes
e vantajosas diferenciações no âmbito do direito material e processual,
conforme passaremos a discorrer no próximo tópico.
2.1 Diferenças teóricas e práticas no direito material e processual
Já vimos que quando vigia o Código Civil de1916, o contrato de
seguro era aquele por meio do qual a seguradora se obrigava para com a
outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizá-la do prejuízo resultante
de riscos futuros, previstos no contrato.
Assim, o segurado, na vigência daquele diploma legal, tinha o direito
de ser indenizado pela seguradora quando acionado, judicialmente ou não,
do prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato assinado entre elas. Percebe-se, então, que a posição assumida pela seguradora era a
de pagar ao segurado os prejuízos que ele tivesse. Isso na vigência do
Código Civil de 1916. Em outras palavras, mas no mesmo sentido: o segurado tinha direito de regresso contra a seguradora, em virtude do contrato
assinado.
Assim, uma vez acionado judicialmente, o segurado denunciava a
lide à seguradora, que vinha compô-la para garantir, em direito de regresso, o pagamento do prejuízo que o seu segurado pudesse vir a ter, conforme determina o inciso III do art. 70, do Código de Processo Civil.
No nosso entendimento, as relações de direito material e processual
entre seguradora e segurado, acima descritas, perduraram até a entrada
em vigor do novo Código Civil de 2002. Após sua vigência, essas relações
sofreram profundas e importantes modificações, conforme passaremos a
demonstrar.
Primeiramente, devemos observar que a conceituação de contrato
de seguro foi alterada pelo Código Civil de 2002, conforme vimos no tópico 2, retro. Pelo simples confronto do antigo art. 1.432 com o novel art.
757, podemos concluir que o contrato de seguro deixou de ser garantia de
ressarcimento de prejuízos de riscos futuros para ocupar a figura de garantia direta do segurado, o que transfere para a seguradora a responsabilidade de devedora principal do prejuízo sofrido pelo seu segurado e não mais
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O CONTRATO DE SEGURO E O NOVO CÓDIGO CIVIL – REFLEXOS NO ÂMBITO...
garantidora daquele pagamento. Destarte, passa a seguradora, com o novo
Código, a responder diretamente pelo prejuízo e não mais em ação regressiva. Em arrimo a esse pensamento encontra-se:
O atual código civil, entretanto, modificou o conceito de seguro, passando a defini-lo como o contrato pelo qual o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir
interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa
contra riscos predeterminados (art. 757).
Ou seja, deixa o seguro de ser garantia de ressarcimento dos
prejuízos sofridos por riscos futuros – o que pressupõe sua
natureza regressiva – para ser garantia de interesse legítimo
do segurado, expressão muito mais abrangente.
Daí por que não me parece haver dúvida ser plenamente possível o ajuizamento da ação pelo terceiro lesado diretamente
contra a seguradora, pois é interesse legítimo do segurado que
a contratada – que no novo regime também é responsável
pela indenização – repare o dano diretamente ao lesado.1
Assim entendemos, também e principalmente, quando deparamos
com os ditames do art. 788 do Código Civil de 2002, que determina à
seguradora o pagamento da indenização diretamente ao terceiro prejudicado, ou seja, a seguradora atua como devedora principal e não mais garantidora de direito de regresso. Essa conclusão, a nosso ver, acentua-se
ainda mais quando o parágrafo único do artigo acima citado proíbe a seguradora, quando demandada diretamente pela vítima do dano, opor exceção de contrato não cumprido pelo segurado, sem promover a citação
deste para integrar a lide.
Conclusão a que se pode chegar: a seguradora passou a ser devedora
principal. Se o seu segurado, por algum motivo, não cumpriu o contrato com
ela – por exemplo, falta de pagamento do preço –, não poderá ela alegar tal
fato em contestação, sem antes e concomitantemente requerer a citação do
1
GAJARDONI, Fernando da Fonseca Anotações sobre três novas (e discutíveis) hipóteses de
intervenção de terceiros previstas no Código Civil de 2002. In: ASSIS, Araken de; NERY
JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim (Coord.). Direito civil e processo:
estudos em homenagem ao Prof. Arruda Alvim, p. 440.
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LEONARDO FULGÊNCIO JÚNIOR
seu segurado inadimplente. A seguradora permanece como ré e só irá desvencilhar-se dessa situação após provar a inadimplência contratual do seu
segurado, já que é dela a obrigação direta de fazer o pagamento, conforme
acima informado.
Apesar de pensarmos que a seguradora passou a ser a devedora
principal, após o Código Civil de 2002, entendemos que tem o terceiro
prejudicado a faculdade de dirigir a ação diretamente contra ela ou não
(existem situações onde não sabemos se o causador do dano possui ou
não seguro), podendo fazê-lo diretamente contra o segurado que denunciará a lide àquela, se possuir o seguro. Dirigida a ação contra a seguradora, apenas, esta irá responder pelo prejuízo diretamente, desde que
prove a inadimplência contratual do seu segurado, conforme alhures
aduzido.
3 CONCLUSÃO
Destarte, não há mais razão para que as ações de ressarcimento
sejam dirigidas contra o segurado – quando sabemos da existência do
seguro –, como ainda vem acontecendo, causando com essa prática o
aumento na lentidão da entrega da prestação jurisdicional, quando o legislador já autorizou acionar diretamente a seguradora que passou a ser
devedora principal – garantidora do pagamento –, e não mais na cômoda
posição de resguardar direito de regresso.
4 REFERÊNCIA
GAJARDONI, Fernando da Fonseca Anotações sobre três novas (e discutíveis) hipóteses de intervenção de terceiros previstas no Código Civil de 2002.
In: ASSIS, Araken de; NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda
Alvim (Coord.). Direito civil e processo: estudos em homenagem ao Prof.
Arruda Alvim. São Paulo: Ed. RT, 2008.
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A CRIANÇA, O LEGISLADOR E O PODER NA
FAMILIA DESESTRUTURADA
Bruno Terra Dias*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Introdução. 2. Édipo: uma tragédia. 3. Parentesco e
família. 3.1. Parentesco. 3.2. Família. 3.3. A criança e a vida
da família européia da Idade Média. 3.4. A família brasileira. 4. Pequena história da criança brasileira. 4.1. Crianças
embarcadas. 4.2. Crianças escravizadas. 4.3. Crianças no
início do século XX: caso de polícia. 4.4 Constituição de
1988: nova realidade. 5. Pais e filhos. 6. O direito e a
criança. 7. Perda do poder familiar. 8. Encerrando.
9. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A proposta de um enfoque sobre o tema da criança à luz do entendimento do legislador, na perspectiva do poder familiar, vem a propósito dos
18 anos (alguns diriam “maioridade” da legislação) do Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). Diante da carga dramática que o tema
comporta, dividiremos a abordagem em momentos, de forma a possibilitar
uma visão de largo espectro do que motiva esta empreitada. Proponho,
portanto, a pertinência de uma abordagem pela ótica da arte dramática por
excelência, o teatro, seguida de noções históricas e antropológicas sobre
parentesco e família, uma brevíssima referência à história da criança brasileira (não necessariamente a criança assim considerada pela Lei n. 8.069/90,
mas a criança revelada histórica e antropologicamente, que alcança aqueles que na terminologia de meados do século XX foram classificados como
adolescentes), uma passagem em sobrevôo raso pelos quadrantes do relacionamento entre pais e filhos à luz da psicanálise e, por fim, aplicar tais
idéias à compreensão do momento final, em que se frustra a tentativa de
*
Juiz de Direito da Comarca de Belo Horizonte. Vice-Presidente da AMAGIS.
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reestruturação familiar e abre-se ensejo à destituição do poder familiar,
permitindo a colocação permanente da criança em família substituta, tornando-a elegível à adoção. Tudo, ao fim e ao cabo, são indagações do que
acontece com a família contemporânea, cujos paradigmas alteraram-se radicalmente em curtíssimo tempo, rompendo com autênticos pilares vigentes até a primeira metade do século XX e demandando um esforço de
reconhecimento da necessidade de sua reinvenção.1
Inteiramente a propósito a observação de John Gassner, que colhemos como suficientemente significativa para justificar a forma de abordagem aqui utilizada:
Como tudo que existe, o drama tem um início. Contudo, o primeiro drama é também o derradeiro drama. Num certo sentido, é o drama contemporâneo. Ainda está sendo praticado
pelas raças primitivas que sobreviveram dentro de nosso próprio século, ainda existe nos instintos básicos e reações do
homem moderno, seus elementos cardeais ainda prevalecem,
e sem sombra de dúvida sempre prevalecerão, no teatro.2
Afinal, a partir do momento em que o homem se afirmou como tal na
face da terra nenhum idílio confirmou-se verdadeiro em sua existência, pontuada pelos tormentosos acontecimentos típicos da busca pela sobrevivência própria, do grupo e da família. Nesse sentido a representação teatral
sempre revelará os dramas cotidianos, com maior ou menor profundidade
psicológica.
A psicanálise buscou em Édipo, personagem central que sofre as
agruras do destino revelado em um oráculo, na célebre tragédia de Sófocles,
a inspiração para representação do complexo estruturante que recebe o
mesmo nome, definidor das relações psíquicas na família humana.3 É bem
verdade, a inspiração não significou transporte puro e simples do Édipo
sofocleano para a psicanálise; Freud introduziu compreensíveis alterações
no caráter do mito trágico.
1
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem, p. 199.
2
GASSNER, John. Mestres do teatro I, p. 1.
3
LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de
uma função em psicologia, p. 41-42.
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2 ÉDIPO: UMA TRAGÉDIA
Esboça-se, a propósito, uma relembrança do mito de Édipo, com
valoração de sua função identificadora dos conflitos próprios da vida familiar, para extrair da tragédia elementos que comecem a formar um quadro
de desestruturação, preocupação do legislador na disciplina do poder familiar, seu exercício, suspensão e destituição.
A tragédia desenrola-se a partir do enlace de Cadmo e Harmonia,
tendo o rei gerado Polidoro, que por sua vez gerou Labdaco.4 Labdaco
gerou Laio, falecendo quando o filho contava apenas um ano de idade.
Laio foi, então, criado pelo rei Pélops e, na idade adulta, vulnerando as
regras da hospitalidade, violou Crisipo, filho do rei, que veio a suicidar-se.
O fato levou Pélops a amaldiçoar a todos os herdeiros do sangue de
Labdaco, condenando-os à extinção.
Criadas as condições necessárias ao desenrolar da tragédia, Laio
casou-se com Jocasta, igualmente descendente do rei Cadmo. Advertido
por um oráculo do templo de Apolo, em Delfos, de que seria morto pelo
filho que gerasse, e que esse mesmo filho se deitaria com a própria mãe, o
rei de Tebas sodomizou sua rainha, com o fito de evitar prole. Entretanto,
em uma oportunidade o rei cedeu à paixão e engravidou Jocasta.
Nascida a criança e sendo do sexo masculino, Laio, receoso da realização do oráculo, determinou que se realizasse o sacrifício dela por meio
de exposição no monte Citeron. O pastor a quem foi confiada a tarefa,
amarrando os tornozelos da criança para expô-la suspensa, não conseguiu
levar a cabo e entregou a criança a um criado do rei de Corinto, Pólibo.
Pólibo e Mérope, que era estéril, acolheram a criança como filho próprio,
apelidando-a Édipo, por ter os pés inchados (conseqüência de terem sido
os tornozelos amarrados).
Criado como filho sangüíneo por Pólibo e Mérope, ignorando sua
condição de adotivo, Édipo, então jovem adulto, viu-se afrontado em um
banquete por um homem que o chamou de “filho suposto”. Mesmo diante
da negativa dos monarcas de Corinto, abalado com o que ouvira, decidiu
4
Importante lembrar que à época de Sófocles o homem era considerado o gerador, enquanto à
mulher se reconhecia a condição secundária de portadora e nutriz da semente depositada em
seu ventre pelo homem.
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consultar o templo de Apolo, em Delfos, recebendo o oráculo segundo o
qual haveria de matar o próprio pai e deitar-se com sua mãe, gerando uma
prole abominável.
Atormentado, Édipo retirou-se de Delfos e, em sua caminhada, defrontou-se com um pequeno grupo, que o agrediu. Ele revidou matando o
agressor e os acompanhantes dele.
Seguindo seu caminho, afastando-se de Corinto por horror de se
cumprir o oráculo, Édipo chegou a Tebas, que passava por tempos difíceis,
vitimada por um monstro, a Esfinge, que devorava a todos com quem confrontava, por não decifrarem o enigma: Qual animal tem, pela manhã, quatro pés, à tarde dois e à noite três? O herói dramático, respondendo corretamente ser o homem tal animal (quando na mais tenra infância arrasta-se
de quatro; adulto, anda com suas duas pernas; na velhice, apoiado por um
bastão, deslocava-se sobre três apoios), não apenas livrou Tebas dos males que a afligiam, mas motivou o suicídio da própria Esfinge.
Como prêmio pela façanha, Édipo recebe a mão da própria rainha,
Jocasta, insciente de que se tratava da própria mãe, com ela deitou-se e
teve quatro filhos: Etéocles e Polinices, Antígona e Ismênia.
Abatendo-se sobre Tebas novo flagelo, que a interpretação de um
oráculo do templo de Apolo, em Delfos, sugeriu ter origem na falta de
punição do responsável pela morte de Laio, Édipo, monarca já consagrado por sua sabedoria, resolveu, então, encetar investigação com a seguinte
determinação:
Seja quem for o culpado, proíbo a todos, neste país onde
tenho o trono e o poder, que o recebam, que lhe falem, que o
associem às preces e aos sacrifícios, que lhe dêem a menor
gota de água lustral. Quero que todos, ao contrário, o lancem
para fora de suas casas, como a imundície de nosso país...
Nas investigações, ouvido o vidente Tirésias, tudo se esclareceu. Édipo
tomou ciência de sua condição de parricida e companheiro incestuoso da
própria mãe, Jocasta, que resolveu encerrar a própria vida enforcando-se.
Diante do corpo sem vida da própria mãe e mulher, Édipo não se conteve
e retirou-lhe das vestes colchetes, que cravou nos olhos, exilando-se cego
do trono e do país que governou.
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A tragédia Antígona relata o triste fim dos quatro filhos do infeliz
monarca e a extinção de todos os herdeiros do sangue de Labdaco.
Aí está, na versão teatral que atravessou milênios, o drama da
formação e da destruição da família, que se repete, com nuances
diversificadas, até nossos tempos. Em verdade, o mito de Édipo, anterior à peça de Sófocles, impregna desde tempos imemoriais a cultura
ocidental de tal forma que nos é impossível dele desapegar. O mito
entrou na composição do imaginário comum aos povos, dando sentido
e valor à vida.5
O drama nos mostra uma família universal, como ainda hoje se vê
comumente, composta de pai, mãe e filhos. No caso, trata-se de um núcleo
familiar estruturador do próprio reino de Tebas e preordenado a perpetuar o Estado, que traz em sua origem o germe da destruição pela violação de alguns dos interditos máximos da cultura ocidental, tais como o
parricídio (Édipo matou Laio, seu pai); o incesto (Édipo deitou-se com
Jocasta, sua mãe, e com ela teve filhos); e o fratricídio (Etéocles e Polinices
enfrentaram-se diretamente e tombaram mortos).
No plano simbólico, a violação aos interditos mostra a completa
desestruturação da família, que se desintegrou, sendo necessário a Tebas
desfazer-se do modelo que não mais lhe servia para reconstruir-se com
base em uma nova concepção de família que, multiplicada, servisse de estrutura a um novo Estado, purificado dos vícios que o levaram à crise e à
beira da destruição.
3 PARENTESCO E FAMÍLIA
3.1 Parentesco
Sobremaneira importantes, as relações de parentesco perpassam nossa vida sem que percebamos sua influência cotidiana, trate-se
de sociedade de pequena escala (em que tal influência revela-se mais
ostensiva, seja nos ambientes econômico, político ou religioso) ou de
5
Sobre o mito, seu significado e evolução, veja-se a interessante obra de Karen Armstrong: Breve
história do mito (Tradução de Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005).
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sociedade de larga escala (em que a percepção dilui-se num emaranhado de relacionamentos sociais que vão dos amigos ao patrão). Seja
como for, as relações de parentesco encontram-se em todos os modelos de sociedades já estudadas e formam um núcleo indispensável na
vida humana.
Na consideração dos laços de parentesco, importam-nos, no sentido antropológico (no sentido jurídico não há inteira coincidência da
abrangência do vocábulo parentesco) aqueles ditos sangüíneos (descendência), por afinidade (casamento) e muito especialmente os ditos fictícios
(por adoção).
Sobre as relações de parentesco fundadas em laços de
consangüinidade, discorre Luiz Gonzaga de Mello:
Descendência. Refere-se aos laços ou relações do indivíduo com os seus parentes de sangue. Note-se que, embora o
critério dessa relação seja biológico, a descendência é cultural. Tanto é verdade que, como se sabe, todo mundo é filho
de pai e mãe, contudo, em muitas sociedades, leva-se em
consideração apenas a descendência unilateral, seja patrilinear
ou matrilinear. Nas sociedades modernas a descendência é
bilateral, consideram-se como ancestrais tanto os parentes
paternos como os maternos.6
Não se discute em nosso país, atualmente, se a família é matrilinear
ou patrilinear, matriarcal ou patriarcal; indubitavelmente temos família bilateral, comportando laços de consangüinidade, de afinidade e, algumas tantas vezes, por adoção.
No caso específico dos laços por adoção, a ausência de consangüinidade não impede que a ancestralidade do adotante, a ancestralidade
do adotado e a descendência do adotado sejam consideradas descendência do adotante. Rompem-se os laços que ligavam o adotado à família
original, por consangüinidade, para ficticiamente considerá-lo membro da
família do adotante. Preservam-se, entretanto, para evitar violação de interdições, informações sobre a família biológica de origem.
6
MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia cultural: iniciação, teoria e temas, p. 317.
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3.2 Família
A família, tal como a conhecemos e conceituamos, grupo de pessoas
descendentes de um mesmo tronco ancestral, nem sempre teve o mesmo
significado. Desde a mais remota época, múltiplos significados permearam
culturas e civilizações. Câmara Cascudo faz breve digressão sobre a origem da palavra família:
O latim ‘família’ manteve-se no famille, familie, family,
neolatinos e germânicos, provindo de famulus, farnel, criado, servo, fâmulo, serviçal, doméstico, com a raiz de faama,
do sânscrito d’bãman, casa, morada, residência, do radical
dbã, pôr, pousar, assentar. Seria, visivelmente, o conjunto das
pessoas sob o mesmo teto, obedientes e dependentes da
mesma autoridade e proteção.7
Desde nossos parentes ancestrais, as pesquisas antropológicas comprovam ter sempre havido uma organização da vida em comunidade, sendo comuns as funções provedor, caçador e guerreiro ao macho e de nutriz,
colaboradora e cuidadora da prole à fêmea. Eis o quadro comum aos nossos parentes extintos que vicejou igualmente na humanidade por longo tempo,
mesmo em povos da atualidade.
Essa unidade social que denominamos família, na qual ocorrem as
relações humanas mais marcantes de nossa vida – os amores do casal, a
dedicação aos filhos, os conflitos entre gerações, os projetos de vida com
suas realizações e frustrações – mudou de funções ao longo da história; já
foi unidade econômica praticamente auto-suficiente, ambiente de completa
educação da descendência, instrumento de alianças entre grupos e povos
etc. A ela reservam-se atualmente papéis mais restritos, embora de ampla
significação na formação das novas gerações.
3.3 A criança e a vida da família européia da Idade Média
Não há como entender a formação da família brasileira sem antes
proceder ao esforço, ainda que breve, de um percurso que nos incursione
7
CASCUDO, Luis da Câmara. Civilização e cultura: pesquisas e notas de etnografia geral, p. 668.
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pela família européia do medievo. Afinal, é dessa família que se originou a
família lusitana e, posteriormente, a brasileira.
Philippe Áriès8 discorre sobre a criança e a vida em família durante
as Idades Média e Moderna, na Europa, particularmente em França, demonstrando que o amor romântico não era necessário à formação da entidade familiar e que as crianças não desfrutavam a consideração que começaram a alcançar somente ao final do século XVIII.
A família ocupava-se de missões outras que não incluíam o cuidado
amoroso com os filhos e a respectiva educação para ingresso no mundo
adulto. As crianças tinham, quando muito, o aprendizado das ruas da vizinhança, assimilando, por imitação, o quanto necessário à convivência em
um mundo que não era delas. Não havia preocupação em satisfazer-lhes as
necessidades de afeto.
O infanticídio, embora condenado, era praticado com certo
desassombro, como atualmente se praticam determinadas condutas
violadoras sem grande receio de aplicação da sanção prevista, uma vez que
os violadores contavam com a tolerância e a complacência da sociedade.
Este o ambiente geral da família e da criança em uma Europa que
partia rumo ao descobrimento e colonização de novas terras. Desse ambiente, em que a vida da criança pouco significava,9 partiu a ambição de
conquista de riquezas que aportou em terras brasileiras para formar nossa
sociedade.
3.4 A família brasileira
A família brasileira existe em múltiplos moldes: não apenas a
idealização européia típica que herdamos de Portugal, mas numa variedade
de formações normalmente não pensadas pela pessoa comum, que não se
apercebe da realidade muito maior do meio em que vive, como se estivesse
adestrado a somente reconhecer certo modelo apregoado no curso de sua
8
Cf. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman.
2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006
9
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família, prefácio, p. X: “[...] As pessoas se
divertiam com a criança pequena como com um animalzinho, um macaquinho impudico. Se
ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra
geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria”.
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educação, ignorando ou taxando de anormalidade tudo quanto seja diverso do que subliminarmente lhe é posto e que, inconscientemente, assume
como verdade pessoal indiscutível.
Traçando um interessante corte no tema, Gislene Neder e Gisálio
Cerqueira Filho afirmam:
Neste trabalho abordamos a história das famílias no Brasil,
com ênfase no aspecto de sua constituição, tendo em vista a
multiplicidade étnico-cultural que embasa a composição
demográfica brasileira. O tema merece, portanto, um tratamento especial que leve em conta aspectos históricos e culturas presentes na formação social. Trabalhamos o mapeamento
das concepções hegemônicas sobre família na formação histórica brasileira, com destaque para aquelas ligadas à cultura
ocidental: de um lado, localizamos o pólo de produção fundado
na cultura ibérica de orientação católico-romana e, de outro,
as atualizações históricas formuladas no bojo do processo de
passagem à modernidade burguesa. Ambos os acentos aqui
referidos encaminham processos de disciplinamento social e
sexual, enquanto expressões específicas, antagônicas e complementares.10
Se é verdade que se pode traçar uma idéia de família brasileira com
base nas classes dominantes, e nesse aspecto teríamos a considerar como
brasileira somente a família que se adequasse aos moldes da burguesia
beneficiária do regime instalado, não se pode negligenciar o fato de que a
população brasileira se formou e se forma da reunião de pessoas provenientes das mais diversas partes do globo, cada qual com sua cultura, o
que significa múltiplos modelos de família. A pluralidade, que deve ser reconhecida e não pode ser ignorada ou simplesmente taxada de anormalidade, merece tolerância dentro dos limites que a todos sejam estabelecidos nas regras gerais e abstratas de direito impostas à coletividade.
Tudo isso demanda a superação dos preconceitos, seja de que ordem for, tais como de classe social ou de cunho racial (é certo que descabe
10
NEDER, Gislene. Família, poder e controle social: concepções sobre a família no Brasil na
passagem à modernidade. In:______; CERQUEIRA FILHO, Gisálio (Coord.). Idéias jurídicas e autoridade na família, p. 9.
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inteiramente, no plano científico, a classificação da humanidade por raças,
pois a humanidade é una, mas é iniludível que o racismo ainda é uma praga
socialmente instalada em nosso país). Reconhecer, respeitar e tolerar a diversidade, dentro das múltiplas possibilidades agasalhadas pela ordem vigente, é exercício de civilidade e cidadania que se impõe a todos, permitindo que uma evolução se processe sem exclusões e afastamentos explicáveis tão-somente pela sede de afirmação de uma possível superioridade de
uma classe ou grupo sobre os demais.
Novamente, vem a talhe o pensamento de Gislene Neder e Gisálio
Cerqueira Filho:
As políticas públicas para as áreas de assistência social e
educação têm operado sem levar em conta as diferenças
étnico-culturais: as ‘famílias-padrão’ (quer se tome por base
a família tradicional, patriarcal, extensa, de origem ibérica,
quer então o modelo higienista e moralista da família burguesa de inspiração cientificista, introduzido no país a partir do
processo de urbanização/industrialização nos primeiros anos
do século XX) convivem no acontecer social com outras famílias, até há algum tempo bem pouco conhecidas, de várias
origens, indígenas ou africanas (matrilineares, patrilineares,
poligâmicas/islamizadas, etc.). O que nos leva a enfatizar
várias formas de organização das famílias no Brasil, tal como
André Burguière e François Lebrun se referem às ‘mil e
uma famílias da Europa’, ao trabalharem a enorme diversidade presente no continente europeu, a tal ponto que não se
pode fazer, na ótica desses autores, um estudo de caráter
geral para o tema.11
A partir do entendimento da inexistência de um modelo familiar a ser
a todos imposto, devemos admitir a pluralidade, com ela conviver e permitir que ela evolua conforme as necessidades de cada tempo e de cada
grupo formador da imensa coletividade chamada Brasil. Não há, necessariamente, de se reproduzir o modelo ibérico, nitidamente patriarcal, como,
11
NEDER, Gislene. Família, poder e controle social: concepções sobre a família no Brasil na
passagem à modernidade. In:______; CERQUEIRA FILHO, Gisálio (Coord.). Idéias jurídicas e autoridade na família, p. 10.
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aliás, não acontece com grande parte das famílias brasileiras em que um
número cada vez maior de mulheres assume o papel de provedora das
necessidades morais, religiosas e materiais do grupo que forma com sua
descendência.
Uma idéia, ainda que pálida, da família no período colonial e estendendo-se ao império, pode ser dada pela visualização do que ocorrida no
Nordeste, em São Paulo e entre escravos. A docilidade e a submissão da
sinhazinha no Nordeste, num regime de economia que voltava suas atenções para os afazeres domésticos, deixando ao homem a tarefa de administração da propriedade e provisão das necessidades, contrastava com a
mulher administradora, que chefiava fazendas e ordenava atividades de
produção enquanto o homem dedicava-se a explorações em bandeiras
sertões afora.
Já a infâmia da escravidão, com toda sua carga racista, sob argumentos de inumanidade, inferioridade racial e impureza religiosa, determinou uma visão de animalidade e promiscuidade sexual que recusou o
reconhecimento de família propriamente às uniões dos infelicitados. Equiparados a animais de força, homens, mulheres e crianças submetidos à
escravidão podiam ser vendidos separadamente, afastando-os do convívio a qualquer momento da curta e sofrida vida.
Com o advento da República, novos tempos no campo político e
afirmação do poder burguês não refrearam práticas sociais e preconceitos
há muito estabelecidos, sobretudo com a valorização de um modelo familiar compatível com as pretensões positivistas dos novos donos do poder e
a continuidade da exclusão do que parecesse diverso, especialmente a situação dos ex-escravos, cuja “inferioridade biológica” os condenava à inaptidão para a civilização.
No seguimento da vida republicana, o Estado Novo não se mostrou
sensível à realidade múltipla da formação da sociedade brasileira, pretendendo tudo adequar a um modelo, mesmo no campo familiar, estabelecido
como ideal para o desenvolvimento nacional. Novamente, vem a talhe transcrever Gislene Neder e Gisálio Cerqueira Filho:
No período do Estado Novo, esboçaram-se as incursões do
Estado no que se refere à realização de políticas públicas na
área da família e da educação. Ênfase especial passou a ser
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dada à idéia de ‘família regular’, ‘saudável’, suportada na
eugenia, com desdobramento no racismo assimilacionista,
que, por sua vez, apostava no branqueamento da sociedade
brasileira.12
Mais recentemente, a preocupação inclusiva, especialmente da população afro-descendente (essa população tão sofrida e injustiçada historicamente neste país e em tantos outros), permitiu alguma mudança e
acena com novos ares. Mas muito ainda há por fazer pelo respeito à
diversidade e o afastamento de estigmas excludentes da maioria da população brasileira, que nasce, se cria e morre em meio a modelos familiares
freqüentemente taxados de irregulares. Irregular, para a consideração de
uma família, será apenas aquela (patriarcal, matriarcal, patrilinear,
matrilinear, bilateral, monoparental, etc.) incapaz de prover aos seus o
quanto necessário para desenvolver-se e ser feliz.
4 PEQUENA HISTÓRIA DA CRIANÇA BRASILEIRA
A construção de uma história das crianças no Brasil esbarra numa
dificuldade que consiste na falta de relatórios sobre tema até o século
XX. A história contada tem por personagens quase que exclusivamente
os adultos, na perspectiva de sua participação nos destinos do país, de
uma região ou município, sendo mencionadas as crianças apenas
incidentalmente, em poucas passagens de textos a elas não dedicados.
Sabe-se, entretanto, com segurança, que sempre foram exploradas, de
uma maneira ou de outra. A tarefa que nos propomos é a de tracejar
referências históricas da presença da criança em terras brasileiras a partir
do descobrimento lusitano. O enfoque, a partir do século XVI, não despreza a vida das populações locais em séculos anteriores, apenas ressalta um
momento de importância para o modelo de sociedade em que vivemos
atualmente.
De registrar que aqui, ao mencionar crianças, não o fazemos nos
termos da legislação vigente, que classifica os não-adultos em crianças e
12
NEDER, Gislene. Família, poder e controle social: concepções sobre a família no Brasil na
passagem à modernidade. In:______; CERQUEIRA FILHO, Gisálio (Coord.). Idéias jurídicas e autoridade na família, p. 16.
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adolescentes. Efetivamente, a figura do adolescente somente obteve reconhecimento na segunda metade do século XX. Assim, numa perspectiva
histórica que começa no século XVI seria impróprio utilizar de um vocabulário incompatível com o tratamento dispensado por mais de quatro
centenas de anos. Portanto, nesta abordagem, o vocábulo “criança” identificará os não-adultos, mesmo que com idade superior a 12 anos.
4.1 Crianças embarcadas
Nossa breve história começa nas embarcações lusitanas, a partir das
viagens de 1530. Além do contingente de muitos homens e bem poucas
mulheres, um significativo número de crianças, alistadas como grumetes e
pajens, com idade normalmente variando de 9 a 14 anos, correspondendo
a aproximadamente 18% das tripulações, participou das incertezas da travessia atlântica.13
A fome e a miséria por que passava o povo português à época levava os pais a alistar seus filhos, recebendo o soldo respectivo, mesmo cientes de que a taxa de mortalidade alcançava os atordoantes 39% durante a
travessia atlântica, sem contar os inúmeros infortúnios e os sérios riscos à
vida dos que alcançassem terras brasileiras.
O índice de mortalidade em terras portuguesas, por fome e doença,
era semelhante ao risco de morte no mar. Fome, miséria, doenças e morte
eram destinos comuns.
Dormir ao relento em embarcações inseguras, submeter-se a alimentos estragados, trabalhar nas tarefas mais arriscadas e que os marinheiros adultos recusavam, ver a infância esvair-se nas sevícias tão comuns em ambientes de raras mulheres e prostituir-se para obter algum
favor que minorasse suas dores. Assim, muitos morriam e poucos sobreviviam.
Chegados às terras da colônia, os jovens sobreviventes da travessia
atlântica tinham destinos diversos, conforme sua origem, mas todos os destinos eram incertos e crivados de infelicidades.
13
A respeito da dura realidade enfrentada pelas crianças nessas aventuras transatlânticas, cf.:
RAMOS, Fábio Pestana. História trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil,
p. 19 et seq.
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4.2 Crianças escravizadas
Crianças escravas tinham baixo valor no mercado, sendo encaminhadas ao trabalho a partir dos 7 anos de idade e consideradas formadas,
com significativo aumento de valor como mercadoria, a partir dos 12 anos
de idade, para uma vida que dificilmente chegava aos 50 anos.
Nas vilas e povoados das Minas Gerais, caminhavam as crianças
pelas ruas, sem atividades próprias, sujeitando-se aos riscos de lugares
ermos e ao duro aprendizado de uma sociedade a ela não voltada.
Da vida nas senzalas dessas terras de história tão peculiar, distantes
do litoral, disserta Julita Scarano:
Nas senzalas, viviam os escravos de um mesmo proprietário e
as crianças andavam por todos os lugares, freqüentando inclusive, as habitações de seus donos, sobretudo quando suas mães
ali trabalhavam. As obras de Debret e de Rugendas nos mostram muitas vezes crianças negras no mesmo ambiente que os
filhos de seus proprietários, confraternizando com eles e mesmo se relacionando com suas donas. Esses e outros autores
contam que estas acarinhavam e aceitavam as crianças negras que não tivessem ainda atingido os sete anos, sobretudo
as menores e, a partir daí, segundo Debret, eram entregues à
tirania dos outros escravos. As pequenas crianças negras eram
consideradas graciosas e serviam de distração para as mulheres brancas que viviam reclusas, em uma vida monótona. Eram
como que brinquedos, elas as agradavam, riam de suas cambalhotas e brincadeiras, lhes davam doces e biscoitos, deixavam que, enquanto pequenos, participassem da vida de seus
filhos. Alguns dos viajantes que percorreram o país no século
XIX comentavam tais questões, quase sempre com certo escândalo, alguns julgavam tratar-se de promiscuidade.14
O comércio escravista não considerava as uniões dos infortunados
como famílias; vendiam-se separadamente homens, mulheres e crianças. A
gravidez de uma escrava normalmente não era vista como fato interessante
14
SCARANO, Julita. Criança esquecida das Minas Gerais. In: DEL PRIORE, Mary (Org.).
História das crianças no Brasil, p. 111.
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em termos de multiplicação da mão-de-obra disponível, mas como oportunidade para ter-se uma ama-de-leite disponível.
Uma tabela de nascimentos e mortes do Serro Frio (atual Serro),
de 1776,15 bem ilustra a situação crítica das pessoas de origem africana
ou afro-descendentes, registrando: a) para pessoas consideradas brancas, 475 nascimentos e 246 óbitos; b) para pessoas consideradas pardas, cabras e mestiças, 717 nascimentos e 239 mortes; c) para pessoas
consideradas pretas ou crioulas, 544 nascimentos e 596 mortes. Tais
dados mostram o interesse em permitir o crescimento das populações
branca e parda, assim como o interesse em impedir o crescimento da
população africana ou afro-descendente, podendo-se imaginar o impacto na expectativa de sobrevivência das crianças escravizadas.
4.3 Crianças no início do século XX: caso de polícia
Com o advento da República, o tratamento dispensado às crianças, sobremaneira àquelas desafortunadas que orientação não encontravam no lar ou por parte dos órgãos públicos, foi o de autêntico caso de
polícia. A impropriedade do pensamento então vigorante é hoje de fácil
reconhecimento.
O Código Penal de 1890, por tantos considerado o pior já editado
em todos os tempos (não me refiro somente à legislação brasileira, mas a
um contexto mundial), dadas suas notórias imperfeições, e que vigorou até
o advento do Código Penal de 1940, considerava imputáveis os maiores
de 14 anos, mas também admitia imputabilidade ao maior de 9 e menor de
14 anos que se conduzisse na senda do crime “com discernimento”. Absolutamente inimputáveis somente os menores de 9 anos de idade!!!
A respeito da legislação criminal de época, discorrem Marcos César
Alvares, Fernando Salla e Luis Antônio F. Souza:
O Código de 1890 previa a pena de prisão celular para a quase
totalidade dos crimes. Juntamente com esta modalidade de
encarceramento, estabelecia ainda três outras, porém de uso
muito restrito: a reclusão, a prisão com trabalho obrigatório e a
15
SCARANO, Julita. Criança esquecida das Minas Gerais. In: DEL PRIORE, Mary (Org.).
História das crianças no Brasil, p. 116.
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prisão disciplinar. De acordo com o artigo 47 do Código, a
pena de reclusão deveria ser cumprida ‘em fortalezas, praças
de guerra, ou estabelecimentos militares’. Sua aplicação era
prevista para os crimes políticos, para os que atentavam contra a Constituição política da República, contra o funcionamento dos poderes, ou ainda para aqueles que promoviam uma
conspiração. A pena de prisão com trabalho seria cumprida
‘em penitenciárias agrícolas para esse fim destinadas, ou em
presídios militares’. Estava prevista para poucas circunstâncias, dentre elas a de ‘mendigar, fingindo enfermidade’ (art.
393). E a prisão disciplinar que, segundo o artigo 49, deveria
ser cumprida em ‘estabelecimentos industriais especiais, onde
serão recolhidos os menores até a idade de 21 anos’. O alvo
desta pena eram os maiores de 14 e menores de 21 anos que
eram considerados vadios (art.399).16
Embora já existentes, particularmente em São Paulo, instituições
privadas dedicadas ao recolhimento de crianças ditas infratoras, mormente
por iniciativa de entidades religiosas, em 1902 surgiu a Lei n. 844, do Estado de São Paulo, autorizando a criação de um instituto disciplinar para
infratores menores de 21 anos de idade, sobre o que leciona Marco Antônio Cabral dos Santos:
[...] A Colônia Correcional destinava-se ao enclausuramento
e correção, pelo trabalho, ‘dos vadios e vagabundos’ condenados com base nos artigos 375, 399 e 400 do Código Penal, e o
Instituto Disciplinar se destinaria não só a todos os criminosos
menores de 21 anos, como também aos ‘pequenos mendigos,
vadios, viciosos, abandonados, maiores de nove e menores de
14 anos’ que lá deveriam ficar até completarem 21 anos.
O ingresso dos jovens no Instituto Disciplinar dava-se sempre por sentença do juiz de Direito, que determinava o tempo
de permanência dos sentenciados.17
16
ALVARES, Marcos César; SALLA, Fernando; SOUZA, Luis Antônio F. A sociedade e a lei:
o código penal de 1890 e as novas tendências penais na primeira república. Disponível em:
http://www.nevusp.org/downloads/down113.pdf. Acesso em: 6 mar. 2008.
17
SANTOS, Marco Antônio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: DEL
PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil, p. 224.
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O que se vê, ainda hoje, é o ressurgimento de idéias que tais, com
roupagem nova, como se a forma tivesse o condão de dar ao conteúdo
nova e reanimadora essência.
4.4 Constituição de 1988: nova realidade
Indigente esta nação, tantos séculos negligenciando suas crianças,
como se fosse feita apenas para adultos, como se adultos jamais tivessem
vivido peculiaridades da infância.
Felizmente, em 1988, nova realidade se descortinou, ainda que
tardiamente, com a superação de velhos preconceitos e a emergência da
melhor compreensão da existência e das necessidades do mundo das
crianças (agora tratadas com a distinção entre crianças e adolescentes).
Pela primeira vez projeta-se a criança como opção preferencial,
busca-se afastar o estigma do caso de polícia e tem-se a impressão de
que algo de proveitoso se pode fazer com um conhecimento de causa
que ultrapassa o habitual “achismo” dos agentes da segurança pública,
que teimavam (e ainda há saudosistas de um tal proceder) em combater a
vítima (a criança com todo o histórico de abandono e descaso que vimos)
sem atentar para o imenso débito social acumulado e sem se preocupar com
o núcleo familiar que a gerou.
5 PAIS E FILHOS
Nesta grande família brasileira malformada, vemos as figuras dos pais
e dos filhos desconhecerem-se, como se a sociedade existisse apenas para
adultos e não também para crianças. Vemos igualmente os pais desconhecerem sua importância na história de vida, na formação dos seus filhos.
Antes de tudo, porém, convém estabelecer se paternidade e maternidade são conceitos puramente biológicos ou se são conceitos que podem
ser estabelecidos socialmente.
Rodrigo da Cunha Pereira, conhecido pelo seu trabalho
interdisciplinar, fundando uma visão psicanalítica do direito e em especial
do direito de família, adverte:
Por mais que as leis jurídicas queiram trazer garantias da
paternidade através dos registros cartoriais, de investigações
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de paternidade etc., por mais que seja importante para o filho
saber sua origem genética, não há como assegurar, pela via
apenas jurídica, a verdadeira paternidade. Esta, como já dito,
é muito mais da ordem da cultura que propriamente da biologia ou genética. ‘A paternidade não é apenas um ‘dado’: a
paternidade se faz’, já disse o grande jurista contemporâneo,
Luis Edson Fachin em seu trabalho ‘A tríplice paternidade
dos filhos imaginários’.
Em outras palavras, é o que se aprende da teoria psicanalítica, ou seja, paternidade só existe se for exercida. É uma
função. E é o ‘lugar do pai’, isto é, a função paterna, para
além do genitor e do nome, que poderá oferecer, e que dará
ao filho, biológico ou não, um lugar de sujeito.18
Tal posição vem suficientemente sustentada na teoria psicanalítica,
de modo a ser validamente transposta para o campo do direito. Efetivamente, disserta Lacan:
Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel
primordial na transmissão da cultura. Se as tradições espirituais, a manutenção do rito e dos costumes, a conservação
das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação,
na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada materna. Com isso, ela preside os processos
fundamentais do desenvolvimento psíquico, preside esta organização das emoções segundo tipos condicionados pelo meio
ambiente, que é a base dos sentimentos, segundo Shand; mais
amplamente, ela transmite estruturas de comportamento e de
representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência.19
É a família, tal como a criança descobrirá, que vai atuar nos processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, não importando se os laços
18
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai, por que me abandonaste? In: GROENINGA, Giselle
Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de família e psicanálise: rumo a uma
nova epistemologia, p. 227.
19
LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de
uma função em psicologia, p. 13.
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estabelecidos são genéticos ou sociais. A paternidade e a maternidade revelam-se instâncias culturais que dominam as naturais, atuando na formação moral da criança.20
Cientes ou não, os pais têm participação fundamental na estruturação
psicológica do filho. Tal a importância da percepção das funções materna
e paterna para o filho que esta ficará impressa indelevelmente no adulto
em que se transformará; a sensibilidade e a humanidade, a frieza ou a
crueldade, tudo marcará a criança nas relações familiares e afetará sua
compreensão do mundo.
6 O DIREITO E A CRIANÇA
Na longa evolução histórica do direito, a criança somente veio a ocupar lugar de destaque muito recentemente. De uma trajetória em que direitos
eram reservados apenas a quem ostentasse determinado status, à sociedade
estamental, com sua ordenação rígida, até a superação de um tal modelo por
outro que consagrasse o ser humano como sujeito de direitos independentemente de sua condição religiosa, sua nacionalidade, etnia, sexo ou posição
social, milênios se passaram,21 mas a criança continuou a merecer consideração apenas marginal pela sociedade e, conseqüentemente, do legislador.
O contrato social, pensado por Rousseau, não contemplava a criança como centro das atenções, digno de um microssistema de normas que
privilegiasse sua boa formação na busca da plenitude da realização e da
felicidade. Não há, em Rousseau,22 uma única linha dedicada à criança
como sujeito partícipe da sociedade e integrante do pacto social. Mesmo
quando discorre sobre a família como a mais antiga de todas as sociedades, o faz apenas afirmando uma situação de submissão dos filhos ao pai,
sem qualquer reconhecimento.
20
LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de
uma função em psicologia, p. 12.
21
Cf. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I, p. 24: “[...] Ao final do século XVIII, com a
dissolução da ordem estamental, o homem, em sua personalidade abstrata, torna-se detentor do
direito, ‘por que ele é um ser humano, e não por ser judeu, católico, protestante, alemão, italiano
etc... Desta forma desaparece a vinculação da repartição do direito a uma estrutura social prescrita
de forma demasiado concreta. O novo instrumento distributivo denomina-se contrato’.”
22
Cf. ROUSSEUAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político.
Curitiba: Hemus, [s.d.].
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Não descurando a imensa importância da obra do eminente autor
suíço, que bem reflete as necessidades de sua época, sua influência não se
fez sentir ostensiva e imediatamente em favor dos que não compunham o
universo das causas adultas. Mas a evolução da sociedade e do direito haveriam de, em algum momento, desembocar no surgimento de uma normatividade
específica dedicada ao trato das crianças e em consideração às especificidades
da vida que desabrocha e ainda não se faz dotada de autonomia.
Mantendo a importante noção do pacto ou contrato social, que permite a identificação proveitosa de um sistema social, mas ampliando o seu
alcance, pensando no amadurecimento das questões sociais e de uma abordagem sociológica do direito, o desenvolvimento de novas idéias trouxe a
necessidade de concepções do direito que, compreendida a natureza complexa da sociedade moderna (alguns afirmam ser a sociedade atual
hipercomplexa), dessem guarida a uma constante atualização do conteúdo
do direito.
Não se está conjecturando com suposta necessidade de edição sucessiva de novas normas derrogativas ou ab-rogativas da legislação, mas,
sim, afirmando a imprescindibilidade de uma nova compreensão da própria
sociedade e da adoção de um plexo conceitual ensejador de uma
hermenêutica apta a satisfazer uma heterogeneidade de situações, influenciando decisivamente no reconhecimento do papel desempenhado pelos
tribunais diante dos casos concretos.
No caso especial de um ramo do direito voltado à realidade das
crianças, deve-se identificar, como fundo das disposições normativas, a
adoção de conceitos abrangentes das múltiplas realidades sociais, em
constante evoluir, de tal forma a permitir certa estabilidade ao direito escrito e constante atualização de sua prática ou vivência, motivando um
melhor conteúdo de justiça por ocasião de decisões administrativas e/ou
judiciais23.
7 PERDA DO PODER FAMILIAR
O poder familiar, que até a Constituição de 1988 denominava-se
pátrio poder, é o conjunto de direitos e deveres reconhecidos pela ordem
23
Cf. novamente LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I, p. 15.
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jurídica aos pais, relativamente aos filhos e respectivo patrimônio, que perdura desde o nascimento até a maioridade, se por algum motivo não for
suspenso ou declarado perdido por decisão judicial. Tal poder, que já foi
prerrogativa paterna, atualmente é exercido conjuntamente pelos pais, independentemente da condição de casados, solteiros, separados, divorciados ou conviventes em união estável, não havendo preferência de exercício
estabelecida em lei.
Como não nos interessa, nesta oportunidade, os casos de suspensão do poder familiar, mas apenas alguns dos casos de perda, a eles nos
ateremos. A matéria encontra-se disciplinada nos arts. 1.635 e 1.638 do
Código Civil de 2002 (correspondentes aos arts. 392, 394 e 395 do
Código Civil de 1916). De todas as hipóteses disciplinadas, destacam-se
a morte dos pais, a adoção, o castigo imoderado, o abandono, a prática
de atos contrários à moral e aos bons costumes bem como a reiteração
em faltas que ensejam a suspensão do poder familiar, nos moldes do art.
1.637 do Código Civil de 2002 (correspondente ao art. 394 do Código
Civil de 1916), quais sejam: o abuso de autoridade; a falta aos deveres
de pai ou de mãe; a dilapidação do patrimônio do filho; e a condenação,
por sentença irrecorrível, por crime cuja pena exceda dois anos de detenção ou reclusão.
A idéia central sobre a qual nos debruçaremos afasta as hipóteses de
morte dos pais e de consenso destes em entregar filhos à adoção. Importam-nos, sobretudo, as hipóteses de imputação aos pais de culpa no exercício do poder familiar, uma vez que são estas as pertinentes aos limites da
reestruturação familiar.
Se é certo que a criança, o quanto possível, deve ser mantida na
família de origem, somente nas hipóteses extremas de violação aos deveres
inerentes ao poder familiar teremos o ensejo de identificar a pertinência da
reestruturação familiar com a adoção.
Nessa ordem de idéias, verifica-se a preocupação do legislador, que
não apenas o de 2002, uma vez que assim já se manifestara o de 1916, na
formulação da culpa dos pais no que condiz com o patrimônio, a orientação moral e religiosa, o acolhimento e as condições morais dos pais para o
exercício do poder familiar. A uma violação, ou reiteração de violação, faz
corresponder uma sanção de supressão que torna o filho elegível à adoção,
para submeter-se à autoridade de uma família substituta.
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As hipóteses legais em consideração trazem à baila a idéia de monstro, tal como considerada por Foucault,24 embora sob outro ângulo de
visada. Interessa-nos a figura do monstro para identificar, no âmbito das
relações familiares, aqueles cuja conduta promova desordem turbadora
da formação psicológica da criança, comprometendo seu desenvolvimento
e frustrando a nova geração. Trata-se do monstro moral, o mesmo que
Foucault identifica como criminoso e que nós poderíamos identificar como
violador dos laços de família, tão bem caracterizado nesta descrição:
Porque, afinal de contas, o que é um criminoso? Um criminoso é aquele que rompe o pacto, que rompe o pacto de vez
em quando, quando precisa ou tem vontade, quando seu interesse manda, quando num momento de violência ou de cegueira ele faz prevalecer a razão do seu interesse, a despeito
do cálculo mais elementar da razão. Déspota transitório, déspota relâmpago, déspota por cegueira, por fantasia, por furor, pouco importa.25
A descrição transcrita bem se adapta às hipóteses de castigo
imoderado, abandono, prática de atos contrários à moral e aos bons costumes, bem como a reiteração em faltas que ensejam a suspensão do poder familiar, nos moldes do art. 1.637 do Código Civil de 2002 (correspondente ao art. 394 do Código Civil de 1916), quais sejam: o abuso de
autoridade; falta aos deveres de pai ou de mãe; dilapidação do patrimônio
do filho; e condenação, por sentença irrecorrível, por crime cuja pena exceda dois anos de detenção ou reclusão.
Diante de situações que tais, de rompimento do pacto com a sociedade, comprometendo o futuro e a segurança da nova geração, o remédio
jurídico necessário à salvaguarda dos superiores interesses da criança, como
prioridade social, será a destituição do poder familiar, de um ou de ambos
os pais, encerrando a busca pela manutenção dos laços de consangüinidade
por via da reestruturação familiar e permitindo a colocação da criança em
família substituta a título definitivo.
24
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no College de France, p. 78 et seq.
25
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no College de France, p. 117.
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Retomando o Édipo sofocleano e, neste passo, rogando a Foucault
permissão para utilização da inspiração da idéia do monstro social, é possível passar a tragédia pelo crivo foucaultiano para identificar o extremo do
rompimento das possibilidades de reestruturação familiar. Assim é que o
monstro social se identifica em Laio e Jocasta; o primeiro, pelos atos cometidos antes do casamento, pela sodomização da esposa e pela determinação da prática de um infanticídio para safar-se à realização do oráculo
revelador de sua morte pelas mãos do próprio filho; a segunda, por sua
opção de permanecer ao lado do monstro Laio, apesar de tudo e mesmo
da determinação de infanticídio, e ainda por haver tomado ciência do incesto praticado com Édipo, mesmo antes que este houvesse decifrado o
homicídio de Laio, mantendo-se silente enquanto lhe foi confortável.
A idéia do monstro social é interessante e coerente para fundamentar
a fronteira final da reestruturação da família, autorizando a colocação permanente da criança em família substituta e permitindo a adoção.
8 ENCERRANDO
Tomando conhecimento da realidade histórica da criança em nosso
país, é inevitável o surgimento de um plexo de sentimentos, que vão da
profunda tristeza à revolta com o descaso que durou quase cinco séculos e
do qual ainda não nos livramos inteiramente.
Nessa perspectiva, é sempre bom lembrar que a opção pela criança
como prioridade deve apontar para o caminho da realização dos melhores
valores da humanidade, legando à posteridade condições de uma vida verdadeiramente feliz e realizadora. Afinal, a sociedade não é apenas dos adultos
e para realização dos seus interesses.
De tudo nada restaria não houvesse, em cada um, alma branda e o
reconhecimento de que as fraquezas humanas contemplam indistintamente
a todos. De nada adianta a norma de perfeita elaboração se não houver
quem humanize seu significado diante dos fatos que temperam a vida, por
vezes com sabor amargo.
9 REFERÊNCIAS
ALVARES, Marcos César; SALLA, Fernando; SOUZA, Luis Antônio F. A
sociedade e a lei: o código penal de 1890 e as novas tendências penais na
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primeira república. Disponível em: http://www.nevusp.org/downloads/
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ROUSSEUAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito
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SCARANO, Julita. Criança esquecida das Minas Gerais. In: DEL PRIORE,
Mary (Org.). História das crianças no Brasil. 6. ed. São Paulo: Contexto,
2007.
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CONCORRÊNCIA DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS EM DIREITO DE FAMÍLIA –
CONFLITO ENTRE INTIMIDADE GENÉTICA
DO MENOR E INTERESSES FAMILIARES E CONFLITOS
REFERENTES À LIBERDADE RELIGIOSA
NO SEIO FAMILIAR*
Bruno Torquato de Oliveira Naves**
Maria de Fátima Freire de Sá***
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Introdução. 2. Situações jurídicas em conflito.
3. Axiologia e normatividade. 4. Conclusão. 5. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O Direito de Família talvez seja um dos ramos mais afetados pelas
mudanças sociais e culturais empreendidas na sociedade, nos últimos tempos. A tradicional família abre espaço para novas formas de entidades familiares. Se antes falávamos em igualdade nas relações patrimoniais, hoje,
o mesmo princípio se estende às relações pessoais entre cônjuges e entre
estes e sua prole ou à prole de cada um. Assistimos à “diminuição” da
autoridade parental e à crescente afirmação de que o poder parental deve
*
Palestra proferida por Maria de Fátima Freire de Sá no VI Congresso de Direito de Família,
organizado pelo IBDFAM, em novembro de 2007, na cidade de Belo Horizonte/MG.
**
Mestre e Doutor em Direito Privado pela PUC Minas. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Civil da PUC Minas. Professor dos Cursos de Graduação e Especialização
em Direito na PUC Minas.
***
Doutora em Direito pela UFMG. Coordenadora Adjunta do Mestrado e Doutorado em
Direito da PUC Minas. Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Civil da PUC
Minas. Professora dos cursos de Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado em
Direito na PUC Minas.
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BRUNO TORQUATO DE OLIVEIRA NAVES e MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ
se apresentar muito mais como uma função, exercida em benefício dos
filhos. E, por fim, mas não menos importante, deparamos com uma nova
visão da realidade do menor, visto, principalmente, como sujeito pleno de
direitos fundamentais, que busca autonomia através do discernimento, que
procura uma melhor inserção no seu núcleo familiar.
Essas poucas assertivas constituem material suficiente para que,
neste artigo, se discuta sobre a concorrência de direitos fundamentais no
Direito de Família. Fato é que o “mágico” princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado em todos ou quase todos os julgados que envolvem o Direito de Família, e a crítica que denunciamos é a aplicação muitas vezes inconsistente do mesmo princípio, disfarçado de princípio, mas
que, na realidade, traduz-se em valores do aplicador do Direito. Assim,
como trabalhar o princípio da dignidade da pessoa humana? Ele possui
um substrato axiológico, ou sua aplicação deve se dar por uma visão
procedimental?
No próximo item, trataremos de situações que envolvem a concorrência de direitos fundamentais, muitas vezes traduzidos em princípios/valores jurídicos, especialmente, o princípio da dignidade da pessoa humana.
2 SITUAÇÕES JURÍDICAS EM CONFLITO
O problema da “Concorrência de Direitos Fundamentais em Direito
de Família” pode ser vislumbrado em algumas questões polêmicas que,
para efeitos didáticos, serão divididas em três itens:
I. Uma primeira controvérsia se verifica quando do consentimento
de incapazes, especificamente em relação a pesquisas genéticas. A presunção de ausência de discernimento faz deles pessoas vulneráveis, mas não
deve afastar-lhes da partilha dos benefícios do diagnóstico e tratamento
genéticos.
Salientamos, todavia, que os benefícios da pesquisa genética não se
limitam ao pesquisado, podendo ser úteis à sua família, à sua comunidade
ou, até mesmo, à humanidade. Mas até onde um pretenso interesse familiar
ou coletivo poderia justificar a dispensabilidade do consentimento? Pesquisas genéticas que tragam benefícios a terceiros podem ser autorizadas
sem consentimento do pesquisado-incapaz?
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A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos
Humanos, aprovada pela UNESCO em 1997, trata do assunto, abordando a questão do consentimento, principalmente, na alínea “e” do art. 5º:
Art. 5º [...]:
[...];
e) Se, conforme a legislação, um indivíduo não for capaz de
manifestar seu consentimento, a pesquisa envolvendo seu
genoma apenas poderá ser realizada para benefício direto à
sua saúde, sujeita à autorização e às condições de proteção
estabelecidas pela legislação. Pesquisa sem perspectiva de
benefício direto à saúde apenas poderá ser efetuada em
caráter excepcional, com máxima restrição, expondo-se
o indivíduo a risco e incômodo mínimos e quando essa
pesquisa vise contribuir para o benefício à saúde de
outros indivíduos na mesma faixa de idade ou com a
mesma condição genética, sujeita às determinações da
legislação e desde que tal pesquisa seja compatível com
a proteção dos direitos humanos do indivíduo.1
Em um primeiro momento, parece-nos que existir uma preocupação
com o paciente, pois intromissões no material genético somente serão permitidas para beneficiá-lo, estando de acordo com o princípio da beneficência. No entanto, a mesma alínea “e” prossegue informando que o incapaz
poderá ser sujeito da pesquisa, independentemente de benefícios diretos
à sua saúde, desde que beneficie a saúde de outro indivíduo, e o mais
corriqueiro é que seja um familiar, com aspectos genéticos similares. Não
há aparente contra-senso em afirmar que os capazes de fornecer o consentimento só estarão sujeitos às pesquisas se assim entenderem conveniente e os incapazes poderão ser submetidos a pesquisas pela perspectiva de beneficiar terceiros?
Mais uma vez nos apresenta a questão de quem tem legitimidade para
determinar aquele que deve submeter-se à pesquisa em âmbito tão íntimo.
1
UNESCO. Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, grifos
nossos.
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Lembramos que referido artigo afirma que a pesquisa poderá ser realizada,
independentemente de benefícios ao incapaz que a ela se submeta.
O ser humano não deve ser “objeto” de experiência da ciência,
mas partícipe do processo de conhecimento, como ser racional que é,
capaz de fazer suas escolhas e determinar seus interesses. Poderíamos,
em nome do princípio da dignidade da pessoa humana, justificado no
benefício da pesquisa a familiares do incapaz, violar sua intimidade genética? Acaso o princípio da dignidade seria eleito apenas para benefício de
uma das partes, sob um pano de fundo de um típico Estado Social? Se
pensarmos a dignidade humana como a busca por iguais liberdades fundamentais jamais poderíamos concordar com tal escolha porque a saúde
de alguém não pode ser comprometida em nome de um interesse familiar.
Esta decisão não seria jurídica.
Ressalte-se, ainda, a possibilidade de aferição do discernimento, que
será melhor trabalhado no item III deste tópico.
II. Outro aspecto que podemos enfrentar é o relativo ao direito à
informação genética. Uma vez realizada a pesquisa com o consentimento
do sujeito ativo, o resultado desta deve ser-lhe disponibilizado. Mas, e se
houver recusa quanto à vontade de saber a verdade sobre os dados genéticos? O que fazer se o indivíduo se nega a conhecer o resultado da pesquisa e ainda não permite que se disponibilize a informação aos familiares que
poderiam se ver afetados?2
Determinadas análises genéticas podem gerar informações essenciais não só ao interessado, sujeito da pesquisa, mas também a terceiros,
como seus familiares. Sobre esse assunto Julio César Galán Cortés3 invoca o Convênio Europeu sobre Direitos Humanos e Biomedicina, e afirma que em casos assim, a informação deve ser passada aos familiares,
2
Carlos María Romeo Casabona comenta o art. 10 do Convênio Europeu sobre Direitos
Humanos e Biomedicina: Protección de la vida privada y derecho a la información (art. 10).
Supone el derecho de la persona a conocer toda la información que se haya obtenido respecto
a su salud, así como el derecho al respeto de la decisión de no ser informada (derecho de
saber y a no saber). (ROMEO CASABONA, Carlos María. Protección jurídica del genoma
humano en el derecho internacional: el Convenio Europeo sobre Derechos Humanos y
Biomedicina. In: ______ (Coord.). Genética y derecho, p. 315).
3
GALÁN CORTÉS, Julio César. Responsabilidad médica y consentimiento informado, p. 348.
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todavia, respeitando ao máximo o direito de não saber do sujeito da
pesquisa. Admite, como solução, notificação aos familiares que permita
impedir que padeçam de uma enfermidade grave, que, provavelmente, não
poderia ser evitada de outro modo.
O conflito não é fácil de ser resolvido. Nosso entendimento é no
sentido de que os dados genéticos obtidos do estudo do genoma de uma
pessoa, a ela pertencem e não aos seus familiares. Contudo, relembramos
o leitor de que o direito de acesso aos dados genéticos e o direito a intimidade não são absolutos, razão pela qual, no caso concreto, pode haver
razão para que, em via de exceção, a informação seja disponibilizada à
família. O modo melhor de manter equilíbrio entre interesses da pessoa que
participa da pesquisa, submetendo-se às provas, e os interesses dos familiares é através da persuasão, e quando necessário, enfatizando o conflito
de deveres, que se verifica quando o único modo de impedir um prejuízo
grave a terceiros é a comunicação da informação, mas, ainda assim, garantindo ao pesquisado o seu direito de não saber.
Na seara da identidade pessoal, caso emblemático é o ocorrido aqui
no Brasil, na cidade de Goiânia.4 Uma mulher de nome Vilma dizia ser mãe
de Roberta. Ocorre que ficou provado que a suposta filha era, na realidade, Aparecida, subtraída dos braços de sua verdadeira mãe de uma maternidade, quando do seu nascimento. O fato foi provado graças à atuação da
Polícia Civil de Goiás que procedeu a coleta do material genético de
Roberta, cuja finalidade era provar os laços de parentesco com a mãe
biológica.
A atitude seria corriqueira se um dado importante não estivesse em
cena: Roberta negou-se a ceder material para a realização do exame, porquanto não tinha interesse em comprovar sua verdadeira filiação. O exame
foi realizado sem o conhecimento dela, cujo material foi colhido da saliva
encontrada em guimba de cigarro consumido por Roberta, e jogado fora,
nas dependências do prédio da delegacia.
O caso levantou polêmica em relação aos métodos utilizados pelo
delegado. Contudo, sua justificativa foi no sentido de que, em momento
4
Nesse aspecto, expressamos parcial modificação no pensamento que traçamos inicialmente
no artigo “Direito à identidade genética”, publicado no livro Curso avançado de direito civil,
coordenado pelo Prof. César Fiuza (v. 2, p. 109-123).
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algum houve invasão à privacidade ou à intimidade de Roberta, eis que o
material foi coletado de objetos abandonados por ela própria.
Mas será que Roberta não deveria autorizar a coleta de material,
ainda que a guimba do cigarro tenha sido jogada, aleatoriamente, em um
cinzeiro da delegacia? Acaso ela não era vítima de uma situação? Pelo que
se sabe, contra ela não pairava qualquer tipo de acusação criminal. Por
outro lado, não se trataria de res derelictae? Certo é que já havia se instaurado inquérito policial para averiguação de crime. Isto, por si só, não justificaria o exame, mormente quando a mãe, usurpada do direito de criar a
filha, teria também direito fundamental a conhecer sua descendência? É
flagrante a concorrência de direitos fundamentais em direito de família.
Fato incontroverso é que houve um crime. Se por um lado não podemos permitir a invasão à intimidade e à privacidade das pessoas a qualquer custo, por outro, o Direito foi desrespeitado no momento em que
houve a prática de fato definido como crime e que precisa de solução. No
entanto, nem todos os meios de obtenção de provas são legitimados pela
ordem jurídica. O delegado não poderia valer-se de suas prerrogativas na
persecução criminal para obter provas ilícitas que atingem direitos de personalidade sem autorização judicial.
Um direito só pode ceder lugar a outro quando, no caso concreto, a
adequação ao sistema de direitos fundamentais se faz em um procedimento
jurisdicional e não em um procedimento axiológico de ponderação. Não
podemos tentar solucionar a questão pelo confronto de valores da mãe e
de valores de Roberta, senão incorreríamos no erro de buscar soluções
pela valoração de dores. Tentar perceber nuances subjetivas das partes
envolvidas não é tarefa para o Direito.
O material deixado por Roberta continha sua carga genética e, naquela circunstância, mesmo fora de seu corpo, dele fazia parte. Da forma
como procedeu o delegado, houve violação dos princípios da intimidade e
da privacidade, constitucionalmente assegurados. As provas processuais
não podem ser buscadas mediante procedimentos escusos, sob pena de
retornarmos a uma época na qual toda sorte de abusos acontecia, cujos
fatos gostaríamos de esquecer.
Por outro lado, a autorização judicial para a análise do material
coletado legitimaria o exame com preservação, ao menos temporária, do
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direito de não saber de Roberta. Se positiva a identificação familiar, caberia a Roberta escolher entre a filiação socioafetiva e a biológica. A mãe,
entretanto, só teria a similitude genética dos dados de ascendência, sem
implicação necessária em maternidade. Esse seria o efeito do fato criminoso, sem adentrar em questões axiológicas de justiça ou injustiça.
III. Por fim (III. 1), como abordar o conflito entre a liberdade religiosa
do filho perante autoridade parental que tenha como limite o princípio da
proteção integral do menor? (III. 2) E o contrário, podem os pais impor
aos filhos o seguimento religioso de sua preferência? Talvez, o que possamos trazer a debate é a questão da transfusão sangüínea em Testemunhas
de Jeová. Por fim (III. 3), a liberdade religiosa dos pais seria subjugada ao
exercício da autoridade parental? Professando a fé dos Testemunhas de
Jeová, ficariam os pais compelidos à transfusão de sangue em razão do
dever de cuidar dos filhos menores?
III. 1. A incapacidade influi no exercício de direitos e liberdades fundamentais, mas será que influi na titularidade deles? Claro que não. Sabemos, por outro lado, que aos pais cabe educar seus filhos, por meio de uma
formação integral, garantindo-lhes o livre desenvolvimento da personalidade.
Estamos diante de outro aparente conflito de direitos fundamentais. A questão que teremos de responder aqui é a seguinte: a obrigação de oferecer aos
filhos uma formação integral abrange, necessariamente, a obrigatoriedade de
educá-los em valores religiosos? Estaria abrangido no conteúdo da autoridade parenta, a possibilidade e, até, a necessidade de transmitir aos filhos a
própria educação religiosa, ou esta escolha é do próprio filho?
Asensio Sánchez defende a autoridade parental como função, o que
bem caracteriza o aspecto dúplice dessa situação jurídica:
El carácter de función de la patria potestad supone una
doble vertiente de deber/derecho, teniendo en cuenta que
el derecho se concede, exclusivamente, para facilitar el
cumplimiento del deber. El deber que impone la patria
potestad a sus titulares consiste en su ejercicio ‘en beneficio del hijo de acuerdo con su personalidad’ (art. 154
CC [de España]), es decir, teniendo en cuenta el interés
del menor. A su vez, la faceta de derecho, la menos importante por tener un carácter funcional subordinado
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al cumplimiento del deber, supone la facultad de los progenitores de ejercitar dicha potestad en relación con sus
hijos (art. 154 CC [de España]).5
Ora, o caráter funcional do direito fica subordinado à garantia do
livre desenvolvimento da personalidade do menor. Segundo Asensio Sánchez,
no es que el padre tenga la obligación legal de educar religiosamente a
sus hijos, sino que el precepto constituiría la cobertura legal para
proporcionársela sin lesionar sus derechos.6 A situação concreta revelará se houve desrespeito ao desenvolvimento do filho, diante da imposição
de uma religião, ou se tal educação contribuiu para a formação do caráter
do menor. O fato de existir, em um caso concreto, a opção pela educação
religiosa do filho não exclui ou impede a liberdade de formação da consciência religiosa do incapaz.
Uma vez mais ressaltamos a importância do discernimento. Se o incapaz possui discernimento, não vemos como falar em colisão ou concorrência de direitos fundamentais, sendo dele o direito de exercitar sua liberdade religiosa e, nesse contexto, extinguir-se-iam quaisquer direitos dos
pais de eleger a educação religiosa dos filhos. Não há que se falar em
supressão da vontade do incapaz mas, quando muito, em orientação dos
pais, sob pena de extrapolação da autoridade parental.
Outra seria a situação diante da falta de discernimento do incapaz.
Aí, a concorrência (ou conflito) se daria entre a liberdade religiosa do filho
e a possibilidade do livre desenvolvimento de sua personalidade ou
consciência religiosa e o direito de os pais escolherem, por sua conveniência, a educação religiosa dos seus filhos. Em princípio, como já dissemos,
não havendo discernimento, a escolha cabe aos pais, porém, não através de representação, porquanto a titularidade do direito é do filho,
mas pelo exercício da situação jurídica própria, qual seja, o poder
parental, traduzido na funcionalização do direito à liberdade religiosa
5
ASENSIO SÁNCHEZ, Miguel Ángel. La patria potestad y la libertad de conciencia del
menor: el interés del menor a la libre formación de su conciencia, p. 57-58.
6
ASENSIO SÁNCHEZ, Miguel Ángel. La patria potestad y la libertad de conciencia del
menor: el interés del menor a la libre formación de su conciencia, p. 101.
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dos pais. Assim, a religião não pode ser pensada como imposição,mas,
muito mais, como informação e formação do incapaz.
Asensio Sánchez refere-se a uma sentença da Corte de Cassação
espanhola, de 11 de junho de 1991, em que se discutiu a possibilidade de
uma menor mudar de religião sem o consentimento dos pais. Segundo o
autor, la sentencia consideró que la menor debía esperar a la mayoría
de edad para cambiar de religión al ser la elección de la religión del
hijo una facultad inherente a la patria potestad.7 Não obstante esse
caso específico, o autor afirma que, em Espanha, ao menor que, reconhecidamente, possua discernimento é-lhe dado a faculdade de trocar de religião, sem necessidade de consentimento dos pais.
Relata, ainda, caso emblemático cuja sentença foi proferida pelo Tribunal de Menores de Gênova, de 9 de fevereiro de 1959(!), que reconheceu o direito de liberdade religiosa da menor porque ela possuía maturidade e suficiente discernimento. A menor de 17 anos, desde o nascimento, foi
batizada na religião católica. Em razão de ter sua mãe se casado com um
judeu, aos 9 anos foi convertida ao judaísmo. Depois de sofrer maus tratos
do padrasto, saiu de casa e abraçou a religião católica, fato que o padrasto
tentou impedir sob a alegação de que a moça tinha formação judaica e era
essa a religião da família. A decisão do tribunal se baseou no seguinte:
La elección de la propia religión es una cuestión tan delicada y personal que nadie puede ni debe constreñir para
influir o modificarla. Ni siquiera a los padres está permitido usar medios coercitivos para inducir a los hijos a
practicar o seguir una fe religiosa no querida por ellos.
Podrán emplear medios de persuasión y de convicción,
pero el uso de la violencia física o moral no está permitido. Ello daría lugar a un exceso de poder y no tendría
ninguna justificación en la hipótesis en que el menor haya
elegido libremente, con pleno conocimiento, una religión
que no es contraria a la moral y a las buenas costumbres.8
7
ASENSIO SÁNCHEZ, Miguel Ángel. La patria potestad y la libertad de conciencia del
menor: el interés del menor a la libre formación de su conciencia, p. 105.
8
ASENSIO SÁNCHEZ, Miguel Ángel. La patria potestad y la libertad de conciencia del
menor: el interés del menor a la libre formación de su conciencia, p. 106.
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III. 2. No conflito entre a vontade dos pais e uma possível autonomia privada do menor, tormentosa é a questão de crianças cujos pais
professam religiões que proíbem transfusões de sangue. Nessas circunstâncias, não seria o caso de proteger uma autonomia futura da criança, e a
forma de fazê-lo seria garantindo-lhe a vida? Não se sabe se, no futuro, os
filhos seguirão a religião na qual foram criados. Cabe ao médico, portanto,
realizar os procedimentos que o caso requeira, com ampla liberdade e independência.
Países da Europa e América do Norte discutem o tema. França,
Portugal e Espanha entendem que no caso de oposição dos pais ao tratamento do filho menor, por razões de consciência, há que se proteger o
menor. Afirmam que este tem direito a especial proteção por parte da
sociedade e do Estado, contra todas as formas de discriminação e opressão, bem como contra o abuso de autoridade da família e de terceiros.
Segundo Carlos María Romeo Casabona,
es unánime la opinión de que el ejercicio de la patria
potestad no faculta a los padres para tomar decisiones
irreversibles que puedan poner en serio peligro la vida
de sus hijos menores al dar prioridad a otros intereses,
incluso aunque sean relevantes y pretendidamente en
favor del propio menor, por ejemplo, mantenerse tanto
los padres como al hijo, fieles al credo religioso profesado
por aquéllos y en el que previsiblemente habría sido – o
estaría siendo – educado su hijo.9
A Constituição italiana afirma, no art. 32,10 que a proteção da saúde
se insere no rol dos direitos fundamentais. O parágrafo segundo deste mesmo artigo assegura que ninguém poderá ser obrigado a determinado tratamento médico se não houver disposição legal. Diz ainda que a lei não
9
ROMEO CASABONA, Carlos María. Libertad de conciencia y actividad biomédica. In: SÁ,
Maria de Fátima Freire (Coord.). Biodireito, p. 30.
10
“Art. 32. La Repubblica tutela la salute come fondamentale diritto dell’individuo e interesse
della collettività, e garantisce cure gratuite agli indigenti. Nessuno può essere obbligato a un
determinato trattamento sanitario se non per disposizione di legge. La legge non può in
nessun caso violare i limiti imposti dal rispetto della persona umana.” (ITÁLIA. Constituição (1948). Costituzione della Repubblica Italiana)
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poderá, em nenhum caso, violar os limites impostos por respeito à pessoa
humana. Não obstante a construção legal, tratando-se de menores e incapazes, doutrina e jurisprudência vêm entendendo que se houver conflito
entre o direito à liberdade religiosa e o bem jurídico “vida” tal conflito deve
ser resolvido em favor do segundo.
Para ilustrar a questão, Julio César Galán Cortés traz à baila sentença da Corte de Casación de Cagliari, datada de 13 de dezembro de
1983, que condena os pais da menina Isabella Oneda, ambos Testemunhas de Jeová a três anos e oito meses de prisão, como responsáveis
pela morte dela. Restou demonstrado que os pais não concordaram com
a ordem médica de proceder transfusões de sangue na menina que sofria
de anemia grave, apesar da determinação do Tribunal Tutelar de Menores. Diante da demora na realização do procedimento, o falecimento foi
inevitável.11
Os tribunais estadunidenses trazem casos ricos sobre a recusa dos
pais a tratamento médico dos filhos, por professarem fé que não permite
a transfusão de sangue. No caso In re Sampson, a Suprema Corte de
Nova Iorque confirmou a autorização outorgada por juiz da vara de família para que Kevin Sampson, de 15 anos de idade, fosse operado para
correção de deformidade física que o afastou da escola desde os 9 anos
de idade. A mãe, Testemunha de Jeová, recusava-se a autorizar a cirurgia, que requeria transfusão de sangue.12 Mas sabemos bem que situações como essas não podem ser vistas de maneira tão simples. Será que
não poderíamos distinguir capacidade de discernimento? Parafraseando
o Professor João Baptista Villela, alguém dorme incapaz com 17 anos, e
no dia seguinte acorda capaz? Claro que por questões de política legislativa
precisamos determinar quando começa a capacidade plena do indivíduo.
Mas isso não quer dizer que seu discernimento deva ser sempre atrelado
11
GALÁN CORTÉS, Julio César. Responsabilidad médica y consentimiento informado, p.
258-259.
12
GALÁN CORTÉS, Julio César. Responsabilidad médica y consentimiento informado, p. 262263. Los Tribunales norteamericanos no mantienen una posición clara y unívoca ante estos
casos, en los que no existe una necesidad imperiosa y urgente de tratamiento, dando relevancia,
en unos supuestos, al ‘mejor interés’ del menor, mientras que en otros se otorga especial
preeminencia a la opinión del menor, si sus condiciones de madurez así lo aconsejan. (GALÁN
CORTÉS, Julio César. Responsabilidad médica y consentimiento informado, p. 262-263)
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à capacidade ditada pela norma, de forma a impossibilitar o exame de
questões polêmicas pelo Judiciário.13
Portanto, somos pela transfusão de sangue em menores no intuito
de garantir sua futura autonomia, mesmo que seus pais professem religiões que a proíbam. Entendemos, todavia, que há adolescentes que,
mesmo incapazes legalmente, têm discernimento suficiente para expressar vontade contrária ao tratamento médico preconizado. Em casos assim,
esgotadas as medidas de persuasão, a decisão final deverá ser proferida
pelo Judiciário, que deverá buscar a justiça para o caso concreto.
III. 3. Quanto ao último aspecto (liberdade religiosa dos pais subjugada
ao exercício da autoridade parental), questões intrincadas vêm sendo suscitadas pelos tribunais estadunidenses. A relevância da autoridade parental se
faz presente em alguns julgados. Para a jurisprudência dos Estados Unidos,
ante a recusa de tratamento médico pelo paciente, deve-se respeitar a oposição livremente expressa por ele, a não ser que a presença de um “interesse
público de maior importância” reclame intervenção judicial.
Assim, quando se tratar de adulto, capaz e sem filhos, os tribunais
norte-americanos sustentam a legitimidade da decisão pessoal. Nesse sentido é o caso Matter of Melideo. A Suprema Corte de Nova Iorque negou
pedido de autorização feito pelo hospital para transfusão de sangue em
Kathleen Melideo, casada, com 23 anos, que sofria hemorragia uterina em
conseqüência de cirurgia e que, por isso, precisava urgentemente do procedimento. Segundo a Corte, não se pode ordenar judicialmente transfusões de sangue contra os desejos de um adulto que as recusa em razão de
crença religiosa, se não for possível provar a existência de conflito de interesses que justifique a intromissão do Estado.14
Contudo, diante de situações que envolvam pacientes que tenham filhos incapazes, a jurisprudência estadunidense, por meio do compelling state
interest, toma para si a responsabilidade da tutela do bem-estar dos filhos
13
Leitura obrigatória é o artigo de Javier Sánchez-Caro no qual ensina, amparado na Convenção de
Oviedo, que la opinión del menor debe adquirir progresivamente más peso en la decisión final,
cuanto mayor sea su edad y capacidad de discernimiento. [SÁNCHEZ-CARO, Javier. El
consentimiento previo a la intervención y la protección de los incapaces. In: ROMEO CASABONA,
Carlos María (Coord.). El convenio de derechos humanos y biomedicina, p. 120]
14
GALÁN CORTÉS, Julio César. Responsabilidad médica y consentimiento informado, p. 248.
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menores ordenando a transfusão de sangue nos progenitores. Apesar de interessante o posicionamento ora relatado, imperioso deixar claro que tais
aspectos restam subjetivos. Poderíamos deparar com casos em que pais não
estivessem com a guarda dos filhos. E aí? Estaria, nesse caso, configurada a
ausência de interesse público? Ou melhor, quem definiria interesse público?
3 AXIOLOGIA E NORMATIVIDADE
Perdura, ainda, grande confusão sobre a interpretação e aplicação
jurídicas no pós-positivismo. Há certa unanimidade entre os teóricos contemporâneos em reconhecer o ordenamento jurídico como um sistema aberto, isto é, que não se fecha sobre si mesmo, com regras que pretendem
uma regulação precisa e auto-suficiente. No entanto, não convergem os
autores sobre qual a composição desse sistema jurídico aberto. Quais os
instrumentos desse sistema? Como aplicá-los?
Forte corrente formou-se sobre a doutrina da Jurisprudência dos
Valores15 e suas variações. Gustav Radbruch e Karl Larenz foram precursores de destaque nessa concepção, que hoje conta com Robert Alexy
entre seus mais influentes defensores.16
Para a Jurisprudência dos Valores, o Direito é produto cultural e,
portanto, incorpora elementos sociais, que devem ser levados em conta na
interpretação. Os valores participam do processo jurídico, que tem como
finalidade a conduta ética e a justiça.
Larenz chega a dizer que
‘compreender’ uma norma jurídica requer o desvendar da
valoração nela imposta e o seu alcance. A sua aplicação requer o valorar do caso a julgar em conformidade a ela, ou,
dito de outro modo, acolher de modo adequado a valoração
contida na norma ao julgar o ‘caso’.17
15
“[...] a jurisprudência é tanto no domínio prático (o da ‘aplicação do Direito’) como no
domínio teórico (o da ‘dogmática’), um pensamento em grande medida ‘orientado a valores’.”
(LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 299)
16
Embora nem todos estejam de acordo sobre a filiação de Robert Alexy, à Jurisprudência dos
Valores, seu método axiológico de interpretação e aplicação do Direito ligam-no a essa concepção, independentemente de rótulos e classificações.
17
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 298.
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Continua Karl Larenz afirmando que a aplicação jurídica pode decorrer desse procedimento de valoração ou pode advir de uma mera
subsunção. A subsunção ocorrerá quando houver suficiente previsão dos
termos fáticos da norma ou a situação fática apresentar a determinação de
todos seus elementos capazes de se amoldar ao conteúdo normativo.18
Logo, compreender não implica, sempre, interpretar, pois a interpretação é “uma actividade de mediação pela qual o intérprete compreende o sentido de um texto, que se lhe tinha deparado como problemático”.19
Se houver um “acesso imediato” ao sentido do discurso em razão de prévios conhecimentos, sua compreensão será irreflexiva e exigirá apenas uma
aplicação por subsunção.
Esse afastamento entre compreensão e interpretação não é mais a
posição dominante na Teoria do Direito. Como afirma Hans-Georg
Gadamer, “a interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementar à compreensão, porém, compreender é sempre interpretar, e,
por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão”.20
A busca pelo sentido do texto não é irreflexiva, por mais simples que ele
seja. Representa sempre um esforço de compreensão de signos e ordem,
bem como pressupõe um conhecimento prévio sobre o idioma e da linguagem utilizada.
A tese de que existem enunciados que dispensam a interpretação
pauta-se pela base ontológica de que a realidade pode ser descrita precisamente e, conseqüentemente, pode ser apreendida pela razão sem esforço interpretativo.
Não há como se considerar o mundo em si mesmo, pois não conseguimos atingir a essência ou substancialidade das coisas. Lida-se apenas
com a linguagem, e as palavras expressam sempre sentidos ambíguos.
A ambigüidade, como salienta Zygmunt Bauman, é inerente à linguagem:
A função nomeadora/classificadora da linguagem tem, de
modo ostensivo, a prevenção da ambivalência como seu
18
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 294-298.
19
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 283-284.
20
GADAMER, Hans-Georg. 1997, p. 459 [p. 312].
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propósito. O desempenho é medido pela clareza das divisões
entre classes, pela precisão de suas fronteiras definidoras e a
exatidão com que os objetos podem separar-se em classes. E,
no entanto, a aplicação de tais critérios e a própria atividade cujo
progresso devem monitorar são as fontes últimas de ambivalência
e as razões pelas quais é improvável que a ambivalência jamais
se extinga realmente, sejam quais forem a quantidade e o ardor
do esforço de estruturação/ordenação.21
Por isso, a doutrina atual majoritária rechaça o brocardo interpretatio
cessat in claris, dizendo que toda norma deve ser interpretada. Todavia,
mesmo os que reconhecem a necessária relação entre compreender e interpretar, às vezes recaem em posturas ontologizantes, especialmente quando
afirmam que há uma essência em dado instituto jurídico ou mesmo um conteúdo mínimo inderrogável.
A pressuposição de um conteúdo mínimo da norma jurídica prendese, ainda, à noção de que há algo que não precisa e não pode ser interpretado, sob pena de violar essa essência ou esse mínimo. O recurso a tais
artifícios remete o intérprete a um conteúdo imanente do Direito e, ainda
que involuntariamente, compreende o destinatário da norma como mero
observador e não como partícipe, já que não contribui para a construção
do Direito ou, pelo menos, não pode se libertar do que seja natural ou
ontológico na norma jurídica.
Dworkin também relata a experiência naturalizante do Direito quando expõe as teorias semânticas em O Império do Direito. Sob a expressão de teorias semânticas, o autor coloca desde as concepções que explicitamente ligam o Direito ao fato puro e simples – como se o Direito pudesse ser conhecido pela simples observação – quanto às concepções baseadas na Filosofia da Linguagem22 que defendem que a exposição do Direito
não se faria em termos de definição dos termos, mas de descrições dos
“usos” dos conceitos jurídicos. Assim, a verdade ou falsidade das proposições jurídicas dependeria do contexto histórico. No entanto, a História
não é ciência exata, capaz de apreender o conteúdo de eventos pretéritos.
21
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência, p. 10.
22
Essa crítica pode ser dirigida a Heidegger e a Gadamer.
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A História também é uma versão dos fatos, já que se expressa pela imperfeição lingüística.
Essas teorias positivistas, como são chamadas, sustentam o
ponto de vista do direito como simples questão de fato, aquele segundo a qual a verdadeira divergência sobre a natureza
do direito deve ser uma divergência empírica sobre a história
das instituições jurídicas.23
Volte-se à questão dos elementos jurídicos utilizados na aplicação jurídica.
Enquanto a maior parte dos seguidores da Jurisprudência dos Valores chega a afirmar que o ordenamento é composto por normas e valores
jurídicos, Robert Alexy afasta, pelo menos em um primeiro momento, esta
concepção, explicando que norma e valor não podem ser confundidos.
Diz, mesmo, que o juiz só aplica valores à medida que estão contidos em
normas jurídicas.24
Assim, à primeira vista, parece que Alexy aparta-se da Jurisprudência dos Valores, uma vez que diferencia a norma – em suas espécies de
regra jurídica e princípio jurídico – do valor. Aquela possui conteúdo
deontológico e este pertence ao campo axiológico. As normas podem possuir valores, sem, entretanto, com eles se identificar.
No entanto, a metodologia de aplicação normativa adotada por Alexy
é, sem dúvida, axiológica, o que o aproxima da Jurisprudência dos Valores.
Mesmo o sistema de “ponderação jurídica” que, segundo Alexy, é de normas e não de valores25 é a consideração da graduação axiológica em um
sistema definido por ele mesmo como não axiológico em sua aplicação.
Mas qual o problema em ser axiológico? A disseminação da ponderação na resolução dos conflitos fez crer normalidade em um procedimento
que é, normativamente, incoerente.
O valor possui sistema gradual de validade, isto é, é hierarquizado
absolutamente. Dito de outra forma, o valor encontra seu grau de aplicação
23
DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 41.
24
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales, p. 147.
25
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales, p. 147.
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na subjetividade do aplicador, que elege, aprioristicamente, uma gradação
dentro do sistema axiológico. E não podia deixar de ser diferente: a
prevalência do valor é particular e pressupõe estimativa.
André Lalandedá os seguintes sentidos ao vocábulo “valor”:
A. (subjetivamente). Característica das coisas que consiste
em serem elas mais ou menos estimadas ou desejadas por
um sujeito ou, mais comumente, por um grupo de sujeitos
determinados. [...]
B. (objetivamente e a título categórico). Característica das
coisas que consiste em merecerem elas mais ou menos estima. [...]
C. (objetivamente, mas a título hipotético). Característica das
coisas que consiste em satisfazerem ela certo fim [...]
D. (especialmente, do ponto de vista econômico). Característica das coisas que consiste no fato de, em determinado
grupo social e em determinado momento, serem trocadas
por uma quantidade determinada de uma mercadoria tomada como unidade. Valor, neste sentido, quer dizer preço
comumente praticado. [...]
E. (id.) Preço pelo qual se estima, do ponto de vista normativo,
que um objeto ou serviço devem ser pagos. [...]
F. Lóg. Ao falar de uma palavra ou de uma expressão, a sua
significação não só literal, mas efetiva ou implícita. [...]
G. Est. 1º: Na música, duração relativa das notas.
2º: Nas artes plásticas, claridade ou obscuridade relativa dos
tons. [...]
H. Mat. Expressão numérica, ou pelo menos algébrica, que
determina uma incógnita ou representa um estado de uma
variável.26
Em quase todos os sentidos destacados por Lalande, avulta a característica da estimativa, da quantidade. E mesmo nos sentidos classificados
como filosoficamente objetivos (“B” e “C”), destacam-se verbos como
“merecer” ou “satisfazer”, o que os liga à subjetividade. Além disso, há
26
LALANDE, André. Valor. In: _______. Vocabulário técnico e crítico da filosofia, p.11881190, grifos nossos.
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certo utilitarismo indisfarçável, pois se volta, sempre, ao cumprimento de
uma vontade, satisfação, estima ou desejo; ou, ainda, como em “C”, sua
valência existe enquanto “satisfizerem certo fim”.
Assim, o problema do procedimento axiológico de interpretação
e aplicação do Direito está na subjetividade e imprevisibilidade de sua
utilização. As tentativas de se estabelecer critérios objetivos para aplicação jurídica de valores não conseguem negar a fluidez subjetiva do
próprio elemento valorativo trabalhado. Ponderar valores é admissível
no campo da Moral, mas não no âmbito do Direito, pois qual o valor a
ser escolhido?
Se se responder que o ordenamento já escolheu e “positivou” o valor, volta-se à controvérsia: quais os valores definidos pelo ordenamento?
E no caso de valores concorrentes?
Pensando-se em hierarquização prévia, retorna-se ao sistema jurídico fechado. Deixando a hieraquização para o julgamento do caso concreto, não há como definir qual preponderará segundo critérios objetivos, pois
valores não são objetivos.
Da mesma forma que é impossível a aplicação jurídica de valores,
não é válido o procedimento de ponderação de princípios ou regras jurídicas. Nesse caso, estar-se-ia utilizando uma metodologia axiológica para
uma ordem que não a comporta, na aplicação.
O valor, como se viu nas definições de Lalande, é voltado à
persecução de fins específicos, isto é, volta-se a utilidades. Não valem em
si mesmos, mas segundo uma comparação; daí falar-se em ponderação.
A norma jurídica, em sua elaboração, recebe a influência de múltiplos valores, mas isso não a faz um valor nem permite que sua aplicação
siga o mesmo método dos valores. Daí a necessidade de distinguir-se o
plano da justificação do plano da aplicação normativa.27
27
Marcelo Cattoni explica que “os discursos de justificação jurídico-normativa se referem à
validade das normas, e se desenvolvem com o aporte de razões e formas de argumentação de
um amplo espectro (morais, éticas e pragmáticas), através das condições de institucionalização
de um processo legislativo estruturado constitucionalmente, à luz do princípio democrático
[...]. Já discursos de aplicação se referem à adequabilidade de normas válidas a um caso
concreto, nos termos do Princípio da Adequabilidade, sempre pressupondo um ‘pano de
fundo de visões paradigmáticas seletivas’ [...]”. (OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de.
Direito constitucional, p. 85)
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No Estado Democrático de Direito, as diversas forças sociais devem
ter acesso à elaboração legislativa, por meio da mídia, dos grupos de pressão, de seus representantes eleitos e outros meios. Nesse momento, a diversidade de opiniões e valores deve ser levada em conta. No momento da
aplicação, entretanto, permite-se que apenas os elementos normativos incidam.
Em Alexy, a impropriedade da valoração normativa fica clara na própria metodologia de aplicação do princípio jurídico. O princípio é definido
como mandado de otimização. Em caso de conflito entre princípios, será a
diferença de graus entre eles que resolverá qual vai prevalecer.28
Habermas29 critica Alexy30 dizendo que, apesar da diferenciação
empreendida entre norma e valor, a solução da tensão entre princípios na
teoria alexyana é um procedimento axiológico, pois,
se é possível uma aplicação gradual dos princípios, eles não
podem ser caracterizados como normas jurídicas. Uma vez
que as normas jurídicas se referem ao conceito de dever,
como pressupõe o próprio Alexy, então elas somente podem
ser cumpridas ou descumpridas.31
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales, p. 89-91.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, p. 314-323.
30
Ronald Dworkin também apresenta divergências sensíveis em relação à teoria de Alexy. Bernardo
Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron expressam muito bem essa polarização entre
deontologistas e axiologistas: “É importante esclarecer que a leitura que Dworkin faz dos
princípios jurídicos em nada se confunde com a leitura de Alexy. Dworkin, assumindo as
conseqüências do giro lingüístico, afirma que a diferença entre princípios e regas decorre simplesmente de uma ordem lógico-argumentativa e não morfológica, como, por exemplo, defende
Alexy (1988). Ou seja, é apenas na argumentação – e através dela – que podemos considerar se
estamos diante de uma regra ou de um princípio. Logo, não existem regras mágicas (semânticas)
como quer o jurista de Kiel. Outra informação fundamental é que para o Dworkin a aplicação
dos princípios jurídicos não se dá de maneira proporcional, nem demanda a construção de um
instrumental como a regra de proporcionalidade de Alexy; eles são aplicados através de uma
construção hermenêutica, que busca desenvolver para aquela comunidade uma idéia de direito
como um conjunto sistêmico e harmônico de princípios. Logo, não há que se falar em princípios
como mandamentos (ou comandos) de otimização, pois eles não se confundem com valores,
conservando a sua natureza binária típica do Direito. A questão toda deve ser resolvida na
dimensão da adequação do princípio (GÜNTHER, 1993) e não da ponderação.” (FERNANDES,
Bernardo Gonçalves; PEDRON, Flávio Quinaud. O Poder Judiciário e(m) crise: reflexões de
teoria da Constituição e teoria geral do processo sobre o acesso à justiça e as recentes reformas
do Poder Judiciário à luz de: Ronald Dworkin, Klaus Günther e Jürgen Habermas, p. 211-212)
31
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir
do pensamento de Habermas, p. 180.
28
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Haveria uma contradição entre a diferenciação norma/valor e o funcionamento dos princípios feitos por Alexy.
Habermas vê a diferenciação em três pontos: a) a norma jurídica
possui um agir obrigatório, enquanto no valor o agir é teleológico, pois
busca a adequação dos meios aos fins; b) a norma possui validade binária
e o valor validade gradual; c) a norma possui obrigatoriedade absoluta e o
valor obrigatoriedade relativa.32
Normas e princípios possuem uma força de justificação maior
do que a de valores, uma vez que podem pretender, além de
uma especial dignidade de preferência, uma obrigatoriedade
geral, devido ao seu sentido deontológico de validade; valores
têm que ser inseridos, caso a caso, numa ordem transitiva de
valores. E, uma vez que não há medidas racionais para isso, a
avaliação realiza-se de modo arbitrário ou irrefletido, seguindo
ordens de precedência e padrões consuetudinários.33
Otimizar princípio é estabelecer graus de valência típicos dos valores, e não da imperatividade típica da norma jurídica. Do mesmo lado, não
é legítima a aplicação de princípios bioéticos na solução de conflitos a que
o Direito é chamado a solucionar.
De forma semelhante, a utilização do “interesse público” para justificar o afastamento de um direito fundamental é razão política e moral.
O interesse é elemento utilitarista, ligado à teleologia de Jhering e preso a
elementos subjetivos e psicológicos, trazido ao âmbito do imanente e
universal.
Dessa forma, pode-se dizer que o ordenamento contém instrumentos para salvaguarda de vários interesses, mas estes não se constituem como
elementos legítimos na aplicação do Direito. A tensão entre validade e
faticidade demonstra bem que o Direito requer, em sua incidência, a utilização de elementos normativos. Esses elementos, porém, são formados por
discursos de justificação que não se afastam, e nem podem se afastar, da
faticidade.
32
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, p. 316-317.
33
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, p. 321.
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Interesses são valores, isto é, elementos sociais, econômicos, religiosos e políticos ligados à utilidade que desempenham na vida das pessoas. São fatos e não normas e, como tais, podem fazer parte do conteúdo
da norma jurídica, mas não são elementos jurídicos que podem incidir no
caso concreto.
4 CONCLUSÃO
No primeiro caso relatado, avalia-se se a intimidade genética do
menor cederia lugar ao interesse público ou familiar de conhecer seus dados genéticos. Assim, justificar-se-ia a pesquisa em menor, independentemente de sua vontade ou mesmo de seus representantes. Não há, verdadeiramente, colisão entre direitos fundamentais, tampouco entre normas
jurídicas. Revela-se um aparente conflito entre o direito fundamental de
intimidade genética do menor e o valor “interesse público”.
Dizer que interesses públicos são os “valores fundamentais” ou “primordiais” do ordenamento já demonstra muito bem sua localização no
mundo da Moral. Para que um dado valor seja primordial, ele deve prevalecer a priori sobre os demais valores. Assim, o ordenamento é tratado
como um conjunto de valores hierarquizados de antemão e aplicados segundo uma prevalência subjetiva, já que o ordenamento não deixa expresso essa ordem de predominância axiológica.34
Como afirmamos, a garantia de iguais direitos fundamentais impede
que, sob a justificativa da dignidade de alguns, se sacrifique a dignidade do
menor.
No segundo caso estamos diante de concorrência de direitos fundamentais, notadamente o direito de não saber (privacidade genética) e o
direito de conhecer as informações genéticas comuns. Como real conflito
de princípios jurídicos, não há que se falar, de antemão, em prevalência de
um sobre o outro e nem haverá consideração dos aspectos valorativos que
circundam a aplicação jurídica em cada caso.
34
Humberto Ávila afirma categoricamente “que o ‘princípio da supremacia do interesse público sobre o privado’ não é rigorosamente um princípio jurídico ou norma-princípio”. (ÁVILA,
Humberto. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”.
In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados:
desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público, p. 213)
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O exemplo do caso de investigação de ascendência genética de
Roberta não pode ser generalizado, porque construído como um esquema
hermenêutico com particularidades que refletem na esfera penal. Em princípio, e pelos dados colhidos, a revelação da similitude genética seria a
decisão que preserva a integridade do Direito, garantindo iguais liberdades
fundamentais.
Por fim, o caso da liberdade religiosa pode ser desmembrado em
conflito de liberdade religiosa do filho versus liberdade religiosa dos pais –
no qual encontramos concorrência principiológica – e liberdade religiosa
versus poder parental, situação em que não há propriamente uma concorrência principiológica, mas um direito fundamental do filho que encontra
obstáculo em uma situação jurídica de poder. No primeiro aspecto, vale a
consideração anterior no sentido de que, não podemos, aprioristicamente,
preencher o conteúdo do princípio, fora do procedimento.
De outra sorte, não vislumbramos conflito entre o poder parental e a
liberdade religiosa do filho, porque esta é protegida por aquele. Dito de
outra forma, o poder parental deve ser exercido na preservação dos direitos fundamentais do incapaz, inclusive de sua liberdade religiosa.
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de Estudios Constitucionales, 1993.
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conciencia. Madrid: Tecnos, 2006.
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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução de Marcus
Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves; PEDRON, Flávio Quinaud. O Poder
Judiciário e(m) crise: reflexões de teoria da Constituição e teoria geral do
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GADAMER, Hans-Georg. Os traços fundamentais de uma teoria da experiência hermenêutica. In: ______. Verdade e método: traços fundamentais
de uma hermenêutica filosófica. v. 1. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. 2ª parte,
Cap. 2, p. 400-556. (Pensamento Humano)
GALÁN CORTÉS, Julio César. Responsabilidad médica y consentimiento
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GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático
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Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997. v. 1 (Tempo Universitário)
ITÁLIA. Constituição (1948). Costituzione della Repubblica Italiana. Disponível em: <http://www.senato.it/documenti/repository/costituzione.pdf>.
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ENTRAVES À EFICÁCIA DA LEI DE
RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS EM CRISE.
COMO SUPERÁ-LOS?
Maria Celeste Morais Guimarães*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Introdução. 2. Breve histórico do Instituto. 3. Evolução do Instituto no Direito Brasileiro. 4. Do escopo da
nova lei. 5. Do processo de Recuperação Judicial de
Empresas. 6. Entraves à eficácia da lei de recuperação de
empresas. 6.1. A não-sujeição dos créditos tributários.
6.2. Exigência da certidão negativa de débitos fiscais.
6.3. Aprovação do plano de recuperação pelos credores. 6.4. Afastamento do devedor pela prática de atos
lesivos à recuperação. 7. Soluções para os entraves suscitados.
1 INTRODUÇÃO
Inicio este artigo com a notícia da aquisição do controle acionário da
VRG Linhas Aéreas S/A – companhia área que opera a marca Varig, em
recuperação judicial, pela GOL Linhas Aéreas, em uma bem-sucedida operação de salvamento de uma empresa em crise na economia brasileira.
Não se trata de uma empresa qualquer, mas da mais tradicional companhia
do setor aéreo nacional, com reconhecida excelência na prestação de seus
serviços, inclusive internacionalmente, constituindo-se uma referência no
seu segmento, a ponto de a mídia referir-se a ela como um verdadeiro
“patrimônio nacional”.
Tal operação provocou-me e, também, acredito, em todos aqueles
que acreditavam na importância da edição da nova lei de recuperação uma
*
Mestre e Doutoranda em Direito pela UFMG, Professora nas Faculdades de Direito da
UFMG e Milton Campos e Diretora do Departamento de Direito Empresarial do Instituto
dos Advogados de Minas Gerais.
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MARIA CELESTE MORAIS GUIMARÃES
sensação de conforto e de regozijo em verificar que a Lei n. 11.101/2005,
afinal, mostrou seus resultados.
“A eficácia de uma lei é questão de ordem sociológica”, ensinava
o Prof. Osmar Brina Corrêa-Lima,1 ao comentar a edição da Lei n.
6.404/76 – Lei da S/A. Infelizmente, o grau de eficácia das leis no
Brasil mostra-se abaixo do desejável. “Aqui, [diz o Professor] as leis
são como vacinas: umas pegam, outras não”. Não foi diferente com a
edição da Lei n. 11.101/2005, cercada de muita desconfiança e descrença sobre a eficácia dos seus resultados.
A pergunta que se fazia era: pode uma lei recuperar uma empresa? É
evidente que não. Uma norma não tem, por si só, esse condão, esse fetiche.
Contudo, para os defensores do então Projeto de Lei n. 4.376/93, dentre os
quais sempre me incluí, estava claro que a inadequação legislativa, traduzida
pelo Decreto-Lei n. 7.661/45, só agravava a situação de crise nas empresas, uma vez que não oferecia soluções técnicas necessárias para debelar
os graves efeitos que o desaparecimento de uma empresa acarreta à sociedade. E aí está a demonstração cabal dessa premissa. A solução da crise
econômico-financeira da Varig não seria possível se não estivesse em vigor
a Lei n. 11.101/2005. Ao tempo do decreto-lei revogado, ela já estaria falida.
Por grande período da História, a solução da insolvência das empresas ficou restrita ao círculo privado dos interesses do devedor e de seus
credores. A solução da crise econômica e financeira das empresas não
reclamava uma ingerência do Estado que, alheio, assistia ao desenrolar do
conflito. Os postulados do liberalismo reforçavam esta tendência. A eliminação da empresa seria o efeito seletivo das leis naturais da competência.
O empresário insolvente tem de ser eliminado do mercado porque a insolvência demonstrou a sua incapacidade. Nesse período, portanto, os procedimentos legais relativos à solução da insolvência das empresas eram
essencialmente liquidatários e solutórios, vale dizer, para a satisfação dos
créditos, se fosse preciso, chegaria-se à liquidação da sociedade com o
desaparecimento da unidade produtiva.
No decorrer do século XX, principalmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial, o interesse do Estado na conservação da empresa
1
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Breve histórico da legislação sobre sociedade anônima no
Brasil, Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, v. 6, p. 235.
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ENTRAVES À EFICÁCIA DA LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS EM CRISE...
adquire indubitável relevo. De um lado, porque a especialidade, característica do século passado, deixa espaço para uma potencial generalidade, no
sentido de que a conservação é legitimada pela dimensão da empresa –
pela sua importância quantitativa e qualitativa – e não simplesmente pelo
setor a que pertence. De outro, pela heterogeneidade de meios a que recorre o Poder Público para impedir a eliminação.
Nessa fase, ao interesse público, entendido como o interesse do
Estado, acrescentou-se um novo: os dos trabalhadores que entraram na
realidade da empresa. O interesse social adquire progressiva importância e
obriga a uma revisão do statu quo, uma vez que, direta ou indiretamente,
condiciona a solução da crise econômica da empresa.
À oposição entre interesse público e interesse dos credores, de um
lado, e entre esse e o interesse dos trabalhadores, de outro, agrega-se um
dado a que não se tinha por costume atentar, segundo Ángel Rojo
Fernández-Rio apud Guimarães:
É a ruptura da unidade dos próprios credores. No Direito
vigente, do princípio da par conditio creditorum apenas restou uma pequena sombra. Ao privilégio que desde as origens
da quebra se reconhecia aos créditos de natureza pública,
foram sendo acrescentados, em confuso tropel, muitos outros,
conforme a potência econômica de cada uma das categorias de credores. A história mostrou não só a proliferação
de privilégios, mas também a luta entre os créditos privilegiados.2
Essa circunstância ocasionou as mais baixas cotas de satisfação na
liquidação do patrimônio do devedor. Por todas essas razões, os próprios
credores começaram a compreender que a liquidação da empresa não era o
melhor modo de satisfazer as suas expectativas de receber os créditos.
Dessa forma, os interesses que gravitavam em torno da empresa –
os trabalhadores, fornecedores, prestadores de serviços e a própria comunidade, que são atingidos pela crise da empresa – passaram a ser
reconhecidos e tutelados pelo Poder Público, que assumiu, portanto,
2
GUIMARÃES, Maria Celeste Morais. Recuperação judicial de empresas, p. 161.
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MARIA CELESTE MORAIS GUIMARÃES
papel de relevância na solução do conflito, buscando a recuperação da
empresa e a manutenção da atividade empresarial.
Tal situação propiciou um nítido deslocamento da matéria, antes de
cunho eminentemente privatístico, para o campo publicístico. O Estado
passou a tutelar os interesses coletivos, reconhecendo a imprescindível
função social que a empresa tem na sociedade contemporânea, tornando
possível a introdução no direito concursal do instituto da recuperação de
empresas.
2 BREVE HISTÓRICO DO INSTITUTO
A partir do Chandler Act, de 1938, surgiu nos Estados Unidos um
novo instituto denominado corporate reorganization, cujo objetivo é
salvaguardar a empresa, operando na companhia que a explora a reorganização econômica e administrativa necessária ao superamento da crise.
O instituto, como o próprio nome indica, só se aplica às sociedades anônimas. Não se trata de procedimento substitutivo da concordata, ao arbítrio do devedor, mas de uma solução aplicável apenas nas hipóteses em
que a simples concordata (arrangement proceeding) se revele uma
medida insuficiente para conjurar a crise empresarial. Por isso mesmo,
em sua petição inicial de corporate reorganization, a companhia deve
demonstrar por que a concordata não se aplica ao seu caso.
O inovador procedimento preconiza a tentativa de salvamento da
empresa que demonstre ter viabilidade econômica, mas que passe por
graves dificuldades financeiras, evitando-se, com as medidas de reorganização empresarial, que ela seja levada à falência.
Com o New Bankruptcy Code, as normas foram aperfeiçoadas
em 1978, como nos dá notícia o Prof. Jorge Lobo,3 com a ampliação dos
poderes da Securities and Exchange Commission (SEC), representante do Governo Federal, incumbida de velar pela aplicação de sua política econômico-financeira no setor empresarial. A grande contribuição
da corporate reorganization, dentre outras, é a apresentação, pelo devedor, do “plano de reorganização da companhia”, que detalha as medidas a serem implementadas para o pagamento dos credores como as
3
LOBO, Jorge. Direito concursal, p. 26.
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alterações estatutárias julgadas necessárias a um melhor desempenho da
empresa.
Após essa exitosa experiência nos Estados Unidos, transformação análoga ocorreu na França, com a promulgação da Lei n. 67.563,
de 13/7/1967, e com a Ordenação n. 67.820, de 23 de setembro do
mesmo ano, que reformularam por completo o Direito Falimentar francês. A instituição do procedimento do réglement judiciaire, voltado para
a recuperação da empresa em crise, teve por características superar as
distinções entre processos de execução coletiva, fundadas em critérios
jurídico-formais, de modo a estender o procedimento também às pessoas
jurídicas não mercantis das propriamente mercantis.
A reforma empreendida no direito francês obedeceu a rigorosos
princípios. Dentre eles, o mais importante foi o reforço das prerrogativas
judiciais em detrimento dos poderes dos credores, instituindo uma tendência que passou a ser dominante nos países europeus, a partir de então, de restringir-se a chamada “democracia de credores” nos procedimentos concursais.
Grande influência, também, deve ser creditada, no aperfeiçoamento dos procedimentos de recuperação de empresas, à experiência da
legislação espanhola, hoje modelar na Europa. A Espanha reformou inteiramente o seu direito concursal por meio da “Ley Orgânica 8/2003”, de
9 de julho de 2003, que modificou a “Ley Orgânica 6/1985”, de 1º de
julho de 1985.
A legislação anterior vinha provocando grande insatisfação no meio
jurídico e econômico na Espanha, pois estava ancorada na inteligência de
que a função primária do concurso ou da quebra é a satisfação dos credores, por meio da liquidação dos bens do devedor. Na busca, pois, de
novas soluções para a patologia da empresa, a legislação espanhola passou a priorizar, utilizando uma metáfora médica, o “salvamento” da empresa, ou o “saneamento” dela, em detrimento da sua liquidação.
Das inovações introduzidas no direito espanhol, podemos destacar a
atenuação dos efeitos da declaração do concurso quanto à pessoa do
falido. Esses efeitos agora são fixados a critério do juiz, em face das
peculiaridades de cada concurso; da unificação do procedimento
concursal que foi estendido aos não-comerciantes; da declaração do
concurso, que também pode ser requerida pelo próprio devedor e não
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interrompe o exercício da sua atividade econômica, sem prejuízo dos
efeitos que são produzidos nos seus direitos patrimoniais; e da simplificação
dos órgãos concursais ao juiz e ao administrador concursal, uma vez que
a junta de credores será constituída por vontade desses últimos.
Destaque-se, ainda, que a solução do concurso passa pela apresentação pelo devedor de um acordo (convênio) acompanhado de um plano
de viabilidade da empresa, que demonstre a sua possibilidade de recuperação, como ocorre na lei brasileira.
3 EVOLUÇÃO DO INSTITUTO NO DIREITO BRASILEIRO
Não há melhor descrição para o contexto da legislação brasileira
sobre a solução da insolvência das empresas do que a expressão de
Fábio Konder Comparato: o dualismo pendular. Ora a legislação pendia para a tutela dos interesses dos credores, ora para a do devedor,
sem, contudo, levar em consideração os interesses sociais, absolutamente legítimos, que gravitam em torno da empresa. A legislação concursal
brasileira, antes da edição da Lei n. 11.101/2005, segundo Comparato:
“protegia alternadamente o insolvente, ou os seus credores, ao sabor da
conjuntura econômica e da filosofia política do momento”.4
O revogado Decreto-Lei n. 7.661/45 era um exemplo claro desse dualismo pendular. Várias alterações foram nele introduzidas, principalmente no que concerne ao instituto da concordata preventiva, ora
visando facilitar a sua impetração pelo devedor, ora dificultando o seu
cumprimento, como no caso da exigência da correção monetária para
os créditos tributários, antes mesmo de ela ser devida para os demais
credores. Some-se a isso a visão eminentemente processualista do instituto concordatário, que estabelecia os requisitos legais para a sua concessão sem que a questão da “viabilidade econômica” da empresa fosse apreciada.
O Prof. Nelson Abrão,5 que contribuiu enormemente para o aperfeiçoamento do então Projeto de Lei n. 4.376/93, que resultou na Lei n.
11.101/2005, sempre propugnou que o procedimento concursal não
4
COMPARATO, Fábio Konder. Aspectos jurídicos da macro-empresa, p. 97.
5
ABRÃO, Nelson. O novo direito falimentar, p. 28.
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pudesse constituir-se apenas em um favor legal ao devedor, mas em um
instrumento que estivesse voltado para “a salvaguarda da empresa, em
razão do valor e do interesse que ela representa para a economia regional ou nacional”.
A Constituição Federal de 1988 veio, finalmente, consagrar a função
social da empresa como corolária da função social da propriedade, prevista no inciso III do art. 170, que trata da Ordem Econômica e Financeira da
Nação. Faltava-nos, portanto, uma legislação infraconstitucional que pudesse dar cabo a esse tão reclamado princípio constitucional, o que foi
atendido com a edição da Lei n. 11.101/2005.
4 DO ESCOPO DA NOVA LEI
Pelo voto do Relator, Deputado Osvaldo Biolchi, verifica-se que o
projeto original do Poder Executivo espelhava a preocupação de oferecer ao nosso ordenamento jurídico uma lei consentânea com a atualidade, substituindo tanto o diploma legal de 1945 como as outras normas
que o alteraram ao longo de cinqüenta anos.
Vê-se que os princípios inspiradores da reforma da Lei n. 11.101/2005
foram a busca do crescimento econômico por meio da tutela do crédito
e da sua circulação, bem como a recuperação das empresas em crise,
em face da sua função social. O art. 47 da Lei n. 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 consagra tal inspiração quando define a recuperação judicial:
Art. 47. A ação destinada a viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo,
assim, a preservação da empresa, sua função social e o
estímulo à atividade econômica.
Erigido, assim, o instituto, à sombra da legislação americana e
dos novos procedimentos concursais europeus, como anteriormente assinalado, tem a recuperação judicial da legislação brasileira características próprias.
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O devedor deve atender a certos requisitos legais, conforme previstos no art. 48 e incisos,6 o que dá ao instituto um cunho formalista, tão
criticado no decreto-lei revogado, para a concessão do pedido. Isso é
injustificável, eis que a “empresa segue a sorte do empresário”. Essa expressão, cunhada por Adrián Piera Jiménez grande comercialista espanhol,
traduz a característica dos procedimentos concursais, então reinantes, impregnados de uma concepção primitiva, na qual “o homem e a empresa
quedam-se sujeitos à mesma sorte”.7
Lamentavelmente, a Lei n. 11.101/2005 insistiu nessa concepção
primitiva, quando condicionou a propositura do pedido de recuperação ao
empresário não estar incluído nos impedimentos arrolados nos incisos do
art. 48. Embora a empresa tenha “viabilidade econômica”, a recuperação
não poderá ser requerida. Por outro lado, se o empresário mantém-se inerte,
desinteressado na manutenção da atividade econômica, e não requer a
recuperação, a lei não previu que outros interessados possam fazê-lo, mitigando os relevantes interesses sociais que gravitam em torno da empresa
e que sofrerão os custos de sua liquidação.
Era de se admitir que os credores, empregados, ou mesmo o Ministério Público, na sua função institucional, pudessem requerê-la, vez
que o escopo da lei, como vimos, é a promoção da preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, nos termos
do citado art. 47.
Se a nova lei pecou por manter este formalismo injustificado, por
outro lado, deve-se aplaudir a iniciativa de se prever a apresentação do
plano de recuperação, pelo devedor, como condição para a concessão
6
“Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça
regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos, e que atenda aos seguintes requisitos,
cumulativamente:
I – não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado,
as responsabilidades daí decorrentes;
II – não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial;
III – não ter, há menos de 8 (oito) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no
plano especial de que trata a Seção V deste Capítulo;
IV – não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio-controlador, pessoa
condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei.”
7
Apud GUIMARÃES, Maria Celeste Morais. Recuperação judicial de empresas, p. 208.
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do pedido. O plano constitui, no nosso modo de ver, o rompimento com os
procedimentos concursais anteriores de cunho nitidamente liquidatáriosolutório. O devedor deverá demonstrar, no Plano de Recuperação, as
medidas a serem implementadas, visando à reorganização da sociedade, e
demonstrar sua viabilidade econômica, e não apenas a forma de satisfação
dos credores.
5 DO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Dentre as mais importantes inovações da nova lei, destaque-se o
abandono das características tradicionais dos concursos de credores, como
a cessação de pagamentos e a insolvência, entendida esta como a incapacidade patrimonial, conforme prevista no Régio Decreto n. 267 de 1942,
na Itália, como causa ensejadora do procedimento concursal.
As noções de insolvência, de impontualidade e de inadimplemento,
perfeitamente ajustadas no cenário concursal de concepção privatística
(relação devedor-credores), estão hoje superadas pela de crise econômica da empresa.
Já não se fala mais em insolvência, mas, sim, em situação de crise
econômica, conceito que, segundo Ángel Rojo Fernández-Río8 “é
metajurídico, aberto e cambiante”. A insolvência não esgota a patologia da
empresa moderna em crise e, em conseqüência, não pode ser o pressuposto único – ou principal – para a abertura do concurso. A insolvência,
como sempre foi considerada na doutrina italiana,9 deve ser entendida como
o último grau da patologia, uma vez que toda situação de insolvência constitui uma situação de crise econômica. a proposição inversa, porém, resulta
inexata. Daí se conclui que a insolvência passou a ser apenas o elo final da
corrente que se inicia com a “crise econômica da empresa”, que, por sua
vez, é resultante da ação concomitante de múltiplas causas – cujos efeitos
finais se concretizam no estado de insolvência – que se opera no momento
precedente ao da instauração dos procedimentos judiciais.
8
Apud GUIMARÃES, Maria Celeste Morais. Recuperação judicial de empresas, p. 167.
9
Nesse sentido, AZZOLINA, Umberto. Il fallimento e le altre procedure concorsuali, p. 231;
FERRARA, Francesco. Il fallimento, p. 76; e SATTA, Salvatore. Instituzione di diritto
fallimentare, p. 43.
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A partir, portanto, da inestimável contribuição do jurista espanhol
Angel Rojo, concebendo o “estado de crise econômica”, este, em boa
hora, acolhido pelo legislador brasileiro na Lei n. 11.101/2005, em seu
art. 51, I,10 a causa de pedir do processo de recuperação estará configurada na demonstração pelo devedor, na petição inicial, das causas concretas da sua situação patrimonial e das razões da crise econômicofinanceira. As razões da crise não estão definidas na norma. É um conceito, portanto, aberto, cambiante, que dependerá de caso a caso para a
sua caracterização.
Estando a documentação nos termos da lei, defere o juiz o
processamento do pedido de recuperação, por meio de despacho, nos
termos do art. 52, a partir do qual, vários efeitos serão produzidos no
processo.
Importante registrar a esse respeito os efeitos produzidos pelo deferimento do despacho em relação aos credores comerciais, trabalhistas e
tributários. Quanto aos créditos comerciais, o plano de recuperação deverá prever o seu pagamento, com os acréscimos legais, sem um prazo
limite para tanto, como ocorria ao tempo da concordata preventiva, que
era limitada a 24 meses (a dilatória). Além do que, a lei, de maneira inovadora, fez enumerar no art. 50 os meios de recuperação da empresa, proporcionando alternativas para o devedor debelar a crise. A concordata
preventiva, sabidamente, a esse respeito, era muito restrita, prevendo apenas, como solução do passivo, a remissão dos créditos ou a dilação dos
prazos, nos termos do então art. 156, parágrafo único, do Decreto-Lei n.
7.661, de 1945.
Em relação aos créditos trabalhistas, a lei determinou que o plano
não poderá prever prazo superior a um ano para o seu pagamento, além de
prever que os valores até cinco salários mínimos por trabalhador também
devam ser pagos até trinta dias, desde que vencidos nos três meses anteriores ao pedido de recuperação, como forma de tutelar os interesses dos
10
“Art. 51. A petição inicial de recuperação judicial será instruída com:
I – a exposição das causas concretas da situação patrimonial do devedor e das razões da crise
econômico-financeira;
[...].
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trabalhadores nos termos do art. 54.11 O grande entrave, e agora haveremos de adentrar tal questão, refere-se aos créditos tributários que ficaram
isentos do juízo da recuperação.
6 ENTRAVES À EFICÁCIA DA LEI DE RECUPERAÇÃO DE
EMPRESAS
Destacaremos, a seguir, os problemas que a aplicação da nova lei
tem suscitado.
6.1 A não-sujeição dos créditos tributários
Como assinalado, a execução dos créditos tributários não está sujeita à recuperação judicial, nos termos do § 7o, do art. 6o12 da nova lei,
cabendo às Fazendas Públicas e ao Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS) deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento dos créditos, em sede de recuperação judicial, como dispõe o art. 68.13
É lamentável que o novo instituto da recuperação, de tanta relevância social, possa não ter incluído os créditos tributários entre aqueles sujeitos à sua jurisdição. Como solucionar a situação de uma empresa em crise
se o seu passivo fiscal fica à margem do processo? Sabidamente, quando
o empresário se encontra em dificuldades financeiras, são exatamente os
tributos e encargos financeiros aqueles que primeiro deixam de ser pagos
ou recolhidos. Pretender resolver a crise da empresa sem que a Fazenda
Pública possa dar a sua contribuição é um retrocesso.
Se a empresa tem uma função social a ser preservada, o Estado
deve ser o primeiro interessado na manutenção da atividade produtiva, na
11
“Art. 54. O plano de recuperação judicial não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para
pagamento dos créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de
trabalho vencidos até a data do pedido de recuperação judicial.”
12
Art. 6o § 7o “As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário
Nacional e da legislação ordinária específica.”
13
“Art. 68. As Fazendas Públicas e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS poderão
deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos, em sede de recuperação judicial, de acordo com os parâmetros estabelecidos na Lei n. 5.172, de 25 de outubro
de 1966 – Código Tributário Nacional.”
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manutenção dos empregos e no aumento da arrecadação. É inconcebível
que o Fisco, além de não contribuir para a recuperação, frise-se, coloque
em risco o salvamento da empresa, caso o parcelamento, conforme previsto no art. 68, não seja deferido. Tal postura não coaduna com o Estado
moderno voltado para os interesses sociais.
6.2 Exigência da certidão negativa de débitos fiscais
Está aí outra exigência injustificável, a qual a lei prevê no art. 57,14
que é a apresentação das certidões negativas de débitos tributários pelo
devedor. Ora, como registrado anteriormente, não se concebe que o empresário em dificuldades financeiras possa estar em dia com as suas obrigações tributárias, de forma a poder atender a essa exigência legal. A intenção do legislador com tal dispositivo só pode ser uma: obrigar o devedor a
quitar suas dívidas antes do ajuizamento do pedido de recuperação ou,
pelo menos, providenciar o parcelamento delas. Ora, a solução dos créditos tributários deve ser buscada, como todos os demais, dentro de uma
solução global inserida no contexto do plano de recuperação, não podendo ser tratada de forma isolada, como quer impor o legislador.
6.3 Apreciação do plano de recuperação pelos credores
Outra questão da maior relevância é a previsão da nova lei de submeter a aprovação do plano de recuperação à deliberação da Assembléia
de Credores. A Lei n. 11.101/2005 instituiu um procedimento, antes previsto em leis anteriores, que é o de submeter a solução da crise do devedor
à vontade dos credores. Vimos no tópico relativo à evolução histórica do
instituto que os procedimentos concursais modernos, notadamente o norte-americano, o francês e o espanhol, primaram por restringir o voluntarismo
dos credores e o fortalecimento dos poderes jurisdicionais.
Na contramão dessa tendência, portanto, a Lei n. 11.101/2005 submete a aprovação do plano à Assembléia de Credores. Ora, se o instituto
14
“Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou
decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei n.
5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.”
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tem cunho social e o escopo da nova lei é exatamente o de privilegiar a
função social da empresa, não se justifica mitigar o interesse coletivo em
favor do interesse dos credores.
É bem verdade que a lei previu que o juiz convocará a assembléia de
credores se houver oposição por qualquer credor, nos termos do art. 56.15
Esse “qualquer credor” também nos incomoda. A Lei não teve o cuidado de
exigir que tal legitimidade devesse recair em um credor representativo do
passivo ou que detivesse um percentual significativo de créditos para oferecer a oposição ao plano. Por que nos preocupa tal questão? Exatamente
pelo fato de que um credor que não seja em nada relevante na solução do
passivo da sociedade possa tumultuar o processo e dificultar a solução da
recuperação. Não se pretende excluir a hipótese de manifestação dos credores, até porque são interessados na solução do conflito. Contudo, tal permissão a qualquer credor parece-nos muito benevolente e irrazoável.
Voltando à questão da Assembléia de Credores, registro que se, por
um lado, entendo conflitante o interesse coletivo a ser perseguido, entregue
ao voluntarismo dos credores, como fez a lei, por outro, é de se aplaudir a
iniciativa do legislador ao prever no § 1º do art. 58 que o juiz, nas condições ali previstas, poderá conceder a recuperação, com base em plano
que não obteve aprovação pela Assembléia de Credores.
Vê-se que o legislador não esqueceu de todo as lições dos demais
países nos quais o procedimento foi introduzido. A visão da recuperação
judicial como um grande contrato entre o devedor e credores para pagamento do passivo é um retrocesso diante da evolução histórica do direito
concursal contemporâneo, que legitimou a ingerência do Estado na solução
do conflito.
6.4 Afastamento do devedor pela prática de atos lesivos à
recuperação
A nova lei previu, no art. 64, a possibilidade de afastamento do
devedor ou de seus administradores no caso da prática dos atos ali enumerados. Nessa hipótese, o juiz convocará a assembléia de credores para
15
“Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz
convocará a assembléia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação.”
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deliberar sobre o nome do gestor judicial que assumirá a administração das
atividades do devedor nos termos do art. 65.16 Nesse particular, registrese a ainda nebulosa atuação desse gestor judicial, figura criada pela nova
lei que não se confunde com o administrador judicial, tampouco com o
Comitê de Credores. Se ao administrador judicial incumbe o assessoramento
ao juiz, a fiscalização da gestão do devedor, como também do cumprimento do plano, ao gestor judicial, competirá administrar a sociedade, gerir a
empresa durante o afastamento do devedor.
É de se concluir que sua função é eminentemente gerencial, devendo
ser buscado no mercado um profissional de experiência comprovada para
o exercício da função. Embora o nome que a lei lhe tenha dado seja gestor
judicial, não é ele nomeado pelo juiz, mas eleito pelos credores na Assembléia convocada para tanto.
O que me leva à perplexidade é a situação daquela sociedade em
recuperação que, gerida a contento pelo gestor judicial, saneada na sua
crise econômica, será novamente entregue ao devedor ou aos seus administradores, que de forma criticável ou mesmo fraudulenta levou a empresa
ao estado de crise econômica.
A legislação falimentar francesa17 deu a melhor solução ao problema, ao atribuir ao Poder Judiciário, em hipótese da insolvabilidade da empresa, o poder de compelir os empresários, “dirigentes de direito ou de
fato, aparentes ou ocultos, remunerados ou não”, a ceder suas ações ou
quotas de capital, podendo ainda destinar o produto dessa venda ao pagamento dos débitos sociais.
7 SOLUÇÕES PARA OS ENTRAVES SUSCITADOS
Com tantos entraves listados, o leitor há de pensar: como pode, então, a nova lei ser eficaz na solução da crise econômico-financeira das
empresas? As soluções existem e já estão sendo postas em prática.
16
“Art. 65. Quando do afastamento do devedor, nas hipóteses previstas no art. 64 desta Lei,
o juiz convocará a assembléia-geral de credores para deliberar sobre o nome do gestor judicial
que assumirá a administração das atividades do devedor, aplicando-se-lhe, no que couber,
todas as normas sobre deveres, impedimentos e remuneração do administrador judicial.”
17
Exposição de Motivos da Lei Francesa n. 67.820 de 23/9/67 e Ordenance n. 67.563, de 13/7/67.
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Quanto à não-submissão dos créditos tributários ao processo de
recuperação, os magistrados e demais operadores da lei estão dando o
exemplo. Os processos de recuperação da Varig e da Parmalat, já deferidos pelo Judiciário, são emblemáticos nesse sentido. No que concerne
ao da Parmalat, a Câmara de Recuperação Judicial e Falência do Tribunal de Justiça de São Paulo tem dado inegáveis demonstrações de como
os entraves podem e estão sendo superados. As recentes decisões daquela Câmara têm confirmado as decisões monocráticas que vêm dispensando os devedores da apresentação das certidões negativas de débitos
tributários, em uma clara demonstração de sensibilidade e compreensão
do escopo da nova lei.18
Igualmente quanto ao processo da Varig, as decisões monocráticas
proferidas foram no sentido da dispensabilidade do cumprimento do exigido no art. 57, confirmando essa compreensão pelo Judiciário da finalidade da norma. Do que se conclui que a solução para esse entrave da
nova lei, como para os demais aqui suscitados, está nas mãos dos
aplicadores da norma. Precisamos de uma mudança de mentalidade, no
exercício da atividade exegética, menos formalista e abstrata, especialmente no que diz respeito às normas de conteúdo econômico, como a
nova lei de recuperação de empresas. Os novos rumos do direito empresarial e os reclamos da sociedade pós-moderna exigem uma postura menos
formalista de seus operadores.
Como nos mostra o Prof. Osmar Brina Corrêa-Lima,19 lembrando
Roscoe Pound, “frequentemente, os princípios acabam escondidos e esquecidos atrás de uma montanha de regras deles deduzidas”. A nova lei,
acima de tudo, fixou princípios para que deles possam deduzir não regras,
18
19
“Parmalat Brasil S.A. – Indústria de Alimentos requereu, em 24/6/2005, a sua recuperação
judicial, nos termos da Lei n. 11.101/2005, obtendo o deferimento de seu processamento em
4/7/2005. Assim, requereu a empresa a concessão da recuperação judicial, com dispensa das
certidões negativas tributárias, apresentando suas razões para contrariar o determinado no
art. 57 da Lei n. 11.101/2005. Como amplamente demonstrado nos autos, a começar pela
petição da Parmalat Brasil S.A. – Indústria de Alimentos (f.), a exigência das certidões
negativas, como pressuposto de admissibilidade para concessão da recuperação judicial,
aprovada pelos credores a ela sujeita, não pode, portanto, prevalecer o óbice do art. 57 da Lei
n. 11.101/2005, pois afronta os princípios que regem o instituto da recuperação judicial,
regulado pela mesma lei, bem como a própria Constituição Federal.” (Grifos nossos)
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina, Sociedade limitada, p. 14.
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mas decisões. Para tanto, há que se exigir uma nova posição exegética pela
doutrina e pela jurisprudência.
Esse ajuste dos processos de hermenêutica evita a necessidade, sempre recorrente, de alterar a lei, quando se encontram obstáculos à sua melhor aplicação.
A Profa. Rachel Sztajn,20 respeitada mestre da USP, lembrou-nos,
em recente Seminário realizado em Belo Horizonte, de que há um custo na
reforma de uma lei, nesse caso, ainda tão recente, com um ano apenas de
vigência. Se há lacunas, omissões ou imperfeições na lei, e assim é de se
esperar, sendo ela uma obra humana, portanto, imperfeita, sua interpretação deve estar voltada para a persecução dos seus objetivos, privilegiando-se os valores maiores que devem ser tutelados.
O processo de recuperação da Varig e seu exitoso desfecho, que
inspirou a elaboração deste artigo, volta à minha mente para ilustrar e demonstrar que essa nova hermenêutica pretendida não é um sonho, mas uma
realidade, posta em prática, senão por todos os operadores do direito,
mas por grande parte daqueles que receberam a missão primordial de aplicar a nova lei de recuperação judicial.
A r. decisão judicial do ilustre juiz Luiz Roberto Ayoub,21 que
concedeu o pedido de recuperação da Varig, é o retrato fiel de como
se deve aplicar a nova lei. Com essa nova exegese, esta nova postura
20
Seminário de 1 Ano da nova Lei de Recuperação Judicial de Empresas, realizado pelo
Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG), nos dias 28 e 29 de agosto de 2006, no
Hotel Mercure, Belo Horizonte-MG.
21
Trata-se de requerimento de homologação do plano de recuperação judicial, aprovado em 19
de dezembro do corrente, formulado por Varig S.A. Viação Aérea Riograndense e demais
empresas submetidas ao regime da Lei n. 11.101/2005, conforme descrito a f. A situação das
empresas em regime de recuperação judicial, como cediço, é bastante delicada merecendo, por
óbvio, toda atenção do Poder Judiciário. Desde o início do processo, quando foi deferido o
processamento da recuperação judicial, o Poder Judiciário fluminense não mediu esforços. De
fato, nem poderia ser diferente na medida em que se está convivendo com milhares de
empregos de uma empresa mundialmente conhecida e que representa um verdadeiro patrimônio
nacional. A nova legislação editada sob o n. 11.101/2005, retrata uma norma principiológica
que objetiva a preservação da empresa, manutenção da unidade produtiva e, conseqüentemente, o emprego, a comunidade no recolhimento dos tributos, entre outros. Enfim, é uma
legislação rica, aos fins sociais a que as empresas se destinam.” (Luiz Roberto Ayoub, Juiz de
Direito, Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 2005)
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ENTRAVES À EFICÁCIA DA LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS EM CRISE...
diante da lei, aberta às transformações sociais, sem maniqueísmos, procurando sempre buscar o fim a que ela se propõe, o interesse coletivo
e social estará sempre tutelado. Que muitos outros magistrados sigam o
seu exemplo!
8 REFERÊNCIAS
ABRÃO, Nelson. O novo direito falimentar: São Paulo: Editora RT, 1985.
AZZOLINA, Umberto. Il fallimento e le altre procedure concorsuali.
Torino: UTET, 1953.
COMPARATO, Fábio Konder. Aspectos jurídicos da macro-empresa, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1970.
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Breve histórico da legislação sobre sociedade anônima no Brasil. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos,
v. 6, p. 235, 2001.
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade limitada. Rio de Janeiro:
Forense, 2006.
FERRARA, Francesco. Il fallimento. Milano: Dott A. Giufrè Editore, 1959.
GUIMARÃES, Maria Celeste Morais. Recuperação judicial de empresas. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
LOBO, Jorge. Direito concursal. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
SATTA, Salvatore. Instituzione di diritto fallimentare. Roma: Soc. Ed. del
Foro Italiano, 1957.
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A RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS NAS
SOCIEDADES DE ADVOGADOS
Euler da Cunha Peixoto*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Introdução. 2. Da responsabilidade dos sócios nas
sociedades de advogados. 3. Conclusão. 4. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Após expedida pelo Conselho Federal a Resolução n. 112/2006, as
seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) passaram a condicionar
o registro de sociedade de advogados ou qualquer alteração no contrato
social à inclusão da cláusula especificada no seu art. 2º, XI que dispõe:
XI – é imprescindível a adoção de cláusula com a previsão
expressa de que, além da sociedade, o sócio responde subsidiária e ilimitadamente pelos danos causados aos clientes,
por ação ou omissão, no exercício da advocacia, assim como
a previsão de que, se os bens da sociedade não cobrirem as
dívidas responderão os sócios pelo saldo, na proporção em
que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária;
Antes de mais nada, cumpre notar que transformar tal cláusula
em condição essencial ao registro do contrato social ou alteração, como
vem procedendo a OAB, é, data venia, na melhor das hipóteses, despropositado.
De fato, a primeira parte do dispositivo transcrito é inócua, uma vez
que corolário dos arts. 15, § 3º, e 17 da Lei n. 8.906/94 (EOAB), segundo
*
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Vice-Presidente
da Associação Comercial do Estado de Minas Gerais. Advogado militante.
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os quais, apesar de o serviço ser contratado pela sociedade, o exercício da
atividade profissional é privativa do profissional do direito, pessoa física,
de tal forma que o dolo, ou culpa causador do dano ao cliente decorre de
erro do advogado, sendo, portanto, dele a responsabilidade, embora, também, estendida à sociedade porque foi ela que contratou o serviço.
Também a segunda parte do dispositivo transcrito, ainda que se admita, para argumentar, deva a responsabilidade dos sócios na sociedade
de advogados ser sempre ilimitada, é irrelevante, eis que expresso ou omisso
o contrato a respeito, em nada será modificada a situação dos sócios perante terceiros.
Na verdade, a verdadeira discussão não se circunscreve à inclusão
ou não da cláusula prevista no inciso XI, transcrito – e daí o nosso
inconformismo com a intransigência da OAB –, mas, sim à extensão aos
demais sócios da responsabilidade pelo prejuízo sofrido pelo cliente em
decorrência de culpa ou dolo de um dos membros da sociedade, bem
como, se seria legítima cláusula excluindo a responsabilidade dos sócios,
mesmo subsidiária, pelos débitos sociais.
De conformidade com o disposto no art. 15 da Lei n. 8.906/94
(EOAB), a sociedade de advogados será civil.
Cumpre notar que essa lei é anterior ao atual Código Civil e,
naquela época, as sociedades eram classificadas em civis e comerciais,
sendo estas as que desenvolviam atividades consideradas pelo Código
Comercial ou leis específicas como mercantis. As demais seriam sociedades civis.
Segundo os doutrinadores, as atividades comerciais, distribuídas no
Código Comercial, haviam, em 1850 sido relacionadas no art. 19 do Regulamento n. 737. Além dessas, as Leis n. 4.068/62 e n. 6.019/74 incluíram as empresas de construção civil e as de prestação de serviços temporários como comerciais; as demais, repita-se, eram civis.
Por conseguinte, na vigência do Código Civil anterior, as sociedades
comerciais eram definidas por exceção.
O novo Código Civil, em primeiro lugar deixou expressa a distinção
ignorada pelo seu antecessor, mas já aceita pela doutrina, qual seja, a
diferença entre associação que resultaria da reunião de pessoas para exercício de atividade com fins não econômicos (art. 53) e sociedades nas
quais os interessados reciprocamente “se obrigam a contribuir com bens
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ou serviços para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si,
dos resultados” (art. 891, grifo nosso).
As sociedades, por sua vez, seriam empresárias e simples. Para uma
parte da doutrina, a distinção entre umas e outras seria determinada pela
maior organização daquelas, sendo-lhes exigidas, ao contrário da simples,
segundo alguns, a utilização de mão-de-obra de terceiros e para outros a
utilização de maior tecnologia. Discordamos desse ponto de vista e, conforme demonstramos em trabalho,1 a alteração introduzida pelo atual Código Civil foi apenas de enfoque. Enquanto anteriormente, as atividades
eram regra geral, civis, exceto as enumeradas como comerciais, atualmente, as atividades econômicas são normalmente exercidas sob a forma de
empresa, exceto as expressamente excluídas, que são civis. Por sua vez, as
sociedades que exercem as primeiras são empresárias e as que exercem as
segundas, simples.
Nesse contexto, sem dúvida, a sociedade de advogados será, independentemente da quantidade de sócios ou de empregados ou da qualidade da tecnologia empregada, sempre simples, uma vez que o art. 966 do
Código Civil considera a atividade intelectual – característica indubitável
da advocacia – como não empresária.
Portanto, sem a menor sombra de dúvida, a sociedade de advogados que, anteriormente, nos termos do art. 15 da Lei n. 8.906/94, era
definida como civil, atualmente é simples, regulada pelo disposto no Capítulo I, Subtítulo II, Título II, Livro II e outros dispositivos do Atual Código
Civil, com as exceções indicadas no Capítulo IV do Estatuto da OAB, o
qual, como lei especial, prevalece, nos termos do art. 2º, § 2º, da Lei n.
4.657/42 (Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro), em caso de conflito, sobre aquelas.
Dentre as exceções aplicáveis às sociedades de advogados, devem,
de imediato, ser destacadas três: a) elas, ao contrário das demais sociedades simples, só podem ter como objeto o exercício da advocacia, ou seja,
é-lhes vedado o duplo objeto; b) da mesma forma não se lhes aplica o disposto no art. 983 do Código Civil, uma vez que, a teor do art. 16 da Lei n.
8.906/94, elas não podem adotar forma própria de sociedades empresárias;
1
Publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n.
46, p. 95, 2005.
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c) finalmente, só podem adotar razão social, não lhes sendo lícito optarem por denominação, como permitido, implicitamente, pelo art. 1.155
às simples.
Com relação ao nome, uma das intransigências da OAB é no sentido
de não admitir conste dele a expressão “sociedade simples”, “s/s” ou outra
equivalente. É certo que tais acréscimos são irrelevantes, porquanto, presentes ou não no nome, a sociedade será simples, não constituindo, porém,
ilegalidade a sua presença no nome, pelo que a recusa do registro do contrato social, por esse motivo, caracteriza arbitrariedade da OAB, situação,
sem dúvida, absurda.
E, como sociedade simples, qual a responsabilidade dos sócios pelos débitos sociais?
2 DA RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS NAS
SOCIEDADES DE ADVOGADOS
Especialmente após a promulgação do atual Código Civil, recrudesceu o entendimento de ser a sociedade de advogados sempre ilimitada, ou
seja, sendo o patrimônio social insuficiente para saldar as obrigações sociais, os credores da sociedade poderiam recorrer ao patrimônio particular
dos sócios.
A tese estaria fundamentada no disposto no art. 1.023 do Código
Civil, segundo o qual, “se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das
perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária”.
E tal dispositivo, em princípio, alicerçaria tal conclusão, porque
segundo ele, os sócios respondem com seus bens particulares se o
patrimônio da sociedade não for suficiente para pagamento dos credores
da sociedade. Aparentemente, no particular, a opção destes restringirse-ia a adotar a regra geral representada pela responsabilidade de cada
um proporcional à sua participação no capital social ou determinar a solidariedade entre eles, não havendo, porém como fugir à responsabilidade subsidiária e ilimitada. Nesse sentido o magistério de Ricardo Fiuza,
que apresenta solução singular se os sócios da sociedade simples pretenderem limitar sua responsabilidade:
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Caso os sócios de sociedade simples pretendam limitar suas
responsabilidades por dívidas sociais, podem eles constituir a
sociedade segundo um dos tipos previstos nos arts. 1.039 a
1092, que regulam as sociedades empresárias.2
No mesmo sentido parece ser o entendimento de Maria Helena Diniz,
ao comentar o art. 1.396 do Código Civil de 1916, o qual é repetido pelo
art. 1.023 do atual Código:
Art. 1.396. Se o capital social for insuficiente para o pagamento das dívidas da sociedade, os sócios deverão responder subsidiariamente por elas na proporção em que tiverem
de participar nas perdas sociais, conforme o valor de sua
entrada ou o estipulado no pacto social. Isto é assim porque
os credores da sociedade são credores dos sócios.3
Aproveitamos a oportunidade para, fazendo um parêntese, examinar a distinção entre capital e patrimônio ou cabedal (termo utilizado no
Código Civil de 1916), normalmente confundidas, como, aliás, no trecho
acima citado.
De fato, a garantia dos credores não é representada pelo capital
social, o qual caracteriza apenas a soma do valor da contribuição dos sócios.
Por isso mesmo, o capital social somente será alterado, diante de nova
contribuição dos sócios (representada, inclusive, pela renúncia ao recebimento de lucros para que estes sejam convertidos em capital) ou devolução a eles, quando será reduzido. Apenas em uma hipótese o capital social
será modificado sem nova contribuição ou de devolução aos sócios: quando diante de freqüentes prejuízos, objetiva-se ajustar o balanço à realidade, uma vez que a um capital grande opõem-se substanciais prejuízos acumulados. Nesse caso, trata-se de simples ajuste de contas, não sendo alterado o patrimônio líquido, eis que apenas se compensam os prejuízos com
o capital, reduzido no montante daqueles É como se a contribuição dos
sócios fosse prestada naquela data.
2
FIUZA, Ricardo et al. Novo código civil comentado, p. 841.
3
DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado, p. 901.
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Releva notar que o valor em moeda corrente recebido dos sócios
para integralizarem suas cota-partes não permanecem necessariamente
no caixa da sociedade. Ao contrário, normalmente, ele é aplicado ou
utilizado para compra de bens ou pagamento de despesas, sendo os
bens ou aplicações diluídos no ativo como disponível, realizável em curto
e longo prazo, e ativo permanente. Nessas condições a eficiente aplicação do capital na atividade da empresa redunda em aumento do
patrimônio social. Ao contrário, se a sociedade é mal administrada, o
passivo, representado pelo exigível por terceiros aumenta, em detrimento do ativo, com conseqüente redução do patrimônio líquido, podendo, mesmo ocorrer de transformar-se este em negativo, o que significa que o capital social (soma da contribuição dos sócios, repita-se)
já foi totalmente absorvido na atividade social, estando a sociedade
trabalhando, no momento, apenas com capital de terceiros. Nessas
condições, extinta ela, os bens representados no ativo não serão suficientes
para pagar os credores. Apesar disso, enfatize-se, no balanço, o capital social é expresso em toda sua plenitude, por corresponder à soma
da contribuição dos sócios, conquanto na oportunidade tenha ele sido
totalmente absorvido pelos prejuízos.
Com essa explicação, pensamos ter deixado claro que o que será
utilizado para pagamento dos credores (cujos créditos representam o
exigível em curto e longo prazo) são os bens descritos no ativo, e não o
capital social que, repita-se, é, na verdade, assim como as demais contas
positivas do patrimônio líquido, o crédito dos sócios contra a empresa,
mas que só receberão, ou sob a forma de distribuição de lucros ou, quando
da dissolução da sociedade, após liquidados os créditos de terceiros. Se
o ativo não for suficiente para pagar os credores, entra a responsabilidade subsidiária dos sócios referida no art. 1.023 do atual Código Civil
(art. 1.396 do anterior).
Feitos esses esclarecimentos, fechemos o parêntese e retornemos à
matéria efetivamente em discussão, salientando que a solução propugnada
pelo deputado Ricardo Fiuza para que os sócios da sociedade simples tenham responsabilidade limitada não pode, por força do disposto no art. 16
de Lei n. 8.906/94, ser utilizada pelos sócios da sociedade de advogados,
cuja responsabilidade, portanto, no teor da Resolução da OAB n. 112/2005
e segundo os corifeus da tese acima exposta, será sempre ilimitada.
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Ousamos discordar desse entendimento, o qual, a nosso ver, sobre
conflitar com a melhor doutrina, não harmoniza com os princípios básicos
de hermenêutica, eis que decorre da interpretação literal de um dispositivo
isolado do código e, o que é pior, atribuindo-lhe força impositiva, o que,
por si só, contraria as bases do Direito Privado.
De fato, não se pode esquecer de que, em princípio, as normas do
Direito Privado, em especial o Obrigacional, são, regra geral, dispositivas,
não se impondo à vontade das partes, mas, ao contrário, somente se aplicando na sua omissão (das partes), como bem leciona Caio Mário da Silva
Pereira:
Em geral, no direito privado vigora o principio da autonomia
da vontade, e, nesta órbita, são supletivos ou meramente permissivos os princípios legais, salvo, entretanto, no que o legislador entende interessar à ordem pública, ponto onde começa a incidência das normas inderrogáveis pela vontade
privada.4
Por outro lado, não há como interpretar um dispositivo isolado, sem
atentar que ele integra um sistema harmônico, de forma que qualquer norma influencia e sofre a influência das demais.
Ora, no caso em pauta, a conclusão de Maria Helena Diniz acaba
por tornar inócuo o art. 997, VIII (art. 19, IV, do Código Civil de 1916),
que dispõe:
Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito,
particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará:
[...];
VIII – se os sócios respondem, ou não, subsidiariamente,
pelas obrigações sociais.
Portanto, nos termos do dispositivo transcrito, devem os sócios no
contrato social deixar expresso se, na hipótese de o patrimônio social ser
4
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I, p. 76.
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insuficiente para liquidar as obrigações da sociedade, responderão eles ou
não, perante os credores desta, com o seu patrimônio particular.
A discussão dessa matéria foi extremamente prejudicada pela conclusão a que chegaram os participantes das Jornadas de Direito Civil, que
assim redigiram o seu enunciado n. 61, fruto, sem dúvida, de uma análise
superficial e equivocada do problema: “O termo subsidiariamente constante
do inciso VIII do art. 997 deverá ser substituído por solidariamente a fim de
compatibilizar esse dispositivo com o art. 1.023 do mesmo código”.
De fato, a redação do dispositivo em questão é perfeita, não apresentando qualquer conflito com o art. 1.023, eis que tratam de matérias
completamente distintas. O primeiro regula quando pode ocorrer a responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais (primeiro cobra da
sociedade e depois dos sócios) e o segundo a distribuição da responsabilidade entre os sócios (proporcional à participação ou solidária).
Aliás, cumpre notar que a responsabilidade pessoal dos sócios de
responsabilidade ilimitada e mesmo a dos cotistas da sociedade limitada
que excede a sua participação no capital social (o que falta a integralizar o
capital), é, nos termos dos arts. 1.024 e 1053, sempre subsidiária, não
podendo, durante a vida da sociedade, por força da sua personalidade
jurídica, ser confundidos o patrimônio desta com o do sócio.
Nesse sentido, a lição de Bruno Sacani Sobrinho e Bruno Montenegro
Sacani, para quem as disposições dos arts. 1.033 e 1.024 do Código Civil
determinam que a responsabilidade dos sócios é subsidiária,
sejam estes simples quotistas ou administradores, e, mais ainda, não se aplicam apenas às sociedades simples, mas também às limitadas (ex vi do art.1.053)5.
Também Ricardo Negrão, com a costumeira proficiência, encerra
qualquer discussão a respeito, ao lecionar:
É de lembrar que as sociedades com personalidade jurídica,
como ocorre com outra qualquer pessoa, física ou jurídica,
5
SACANI, Bruno Montenegro; SACANI SOBRINHO, Bruno. A estrutura do contrato social
e a responsabilidade dos sócios nas sociedades simples e empresária sob a luz do novo código
civil. Repertório IOB, p. 675.
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respondem sempre de forma ilimitada pelas obrigações assumidas, conforme dispõe o art. 591, do Código de Processo
Civil. Trata-se de responsabilidade patrimonial primária. Os
sócios respondem ordinariamente, conforme a estrutura social
a que se submeteram, sempre subsidiariamente ao patrimônio
social, ou, como se convencionou chamar na linguagem processual, com responsabilidade patrimonial secundária.6
Portanto, apesar do respeito que nos merecem os participantes das
Jornadas de Direito Civil, indubitável que a responsabilidade da sociedade é sempre ilimitada, ou seja, seu patrimônio responde integralmente
por suas obrigações; por outro lado, somente se poderá exigir dos sócios
o pagamento de débitos sociais, se o patrimônio da sociedade não for
suficiente para solver o seu passivo.
É essa responsabilidade subsidiária que poderá, nos termos do art.
997, VIII, ser ou não excluída no contrato social. Excluída, passam os
credores a contar para satisfação de seu crédito apenas com o patrimônio
social e não mais, sequer subsidiariamente, com o particular dos sócios,
conforme expresso no art. 1.023 do Código Civil (1396 do de 1916).
Em outras palavras, a responsabilidade ilimitada dos sócios nas sociedades simples, na qual se inclui a sociedade de advogados, só ocorrerá caso o contrato social, seja omisso, ou estabeleça a responsabilidade
subsidiária dos sócios pelas obrigações sociais. Optando os sócios por
excluir essa responsabilidade, os credores, como salientado acima, só poderão contar com o patrimônio social.
Esta posição não é inédita, tendo, ao contrário, sido defendida por
luminares do direito civil brasileiro, tais como J. M. Carvalho dos Santos, o
qual, comentando o art. 1.396 do Código Civil de 1916 (repetido pelo art.
1.023, do atual), assim se manifestou:
Os sócios respondem, subsidiariamente, pelas obrigações
sociais, a menos que o contrário tenha sido estipulado no
contrato social, caso em que os credores da sociedade não
podem agir contra os sócios, limitando-se ao exercício de
seus direitos apenas sobre o patrimônio social, dê ou dê este
6
NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, v. I, p. 255.
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para cobrir as dívidas. Não havendo disposição semelhante
no contrato, a responsabilidade subsidiária é indiscutível.7
Releva notar que no início de nossa carreira de advogado também
nos deixamos enganar pela redação do art. 1.396 e, com base nele, defendemos a impossibilidade de a sociedade por cotas de responsabilidade
limitada ser civil, uma vez que perderia sua principal característica, que é a
responsabilidade limitada dos seus sócios.8
Essa confusão que, até hoje, vem sendo também cometida também
por modernos estudiosos do direito, foi observada por João Eunápio Borges
– em clara demonstração de sua vocação para o magistério, ao se dignar a
ler o singelo trabalho de um principiante nas artes jurídicas – que, com
argumentos definitivos, demonstrou a necessidade de conjugar o art. 1.396
com o n. IV do art. 19, ambos do Código Civil de 1916 (1.023 c/c 997,
VIII, do Código atual):
Ora, é tão sabido como elementar que o art. 1.396 do Código
Civil não é lei de ordem pública, mas, constitui norma supletiva quase sempre expressamente derrogada pelas partes nos
contratos de sociedades civis (e o jovem assessor será naturalmente sócio de algum clube ou sociedade recreativa...).
Daí a exigência constante do item IV do art. 19 do Código
Civil de que o registro de uma sociedade civil declarará ‘se
os membros respondem ou não subsidiariamente, pelas obrigações sociais’, isto é, se os sócios querem (o que raramente
ou nunca acontece) ou não querem a aplicação a tal sociedade da norma do art. 1.396.9
Exceto quanto à referência às sociedades de fins não lucrativos (clubes ou sociedades recreativas), que no atual Código Civil são chamadas
de associações – em consonância, aliás, com o entendimento dos
doutrinadores, também, daquela época e, portanto, em nada altera a
7
CARVALHO DOS SANTOS, J. M. Código civil brasileiro interpretado, v. XIX, p. 114.
8
CUNHA PEIXOTO, Euler da. Sociedade de responsabilidade limitada civil ou comercial.
Mensagem Econômica, p. 14.
9
BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre, p. 372.
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conclusão –, inquestionável o magistério do ilustre e pranteado professor
da Faculdade de Direito da UFMG.
Em suma, a responsabilidade dos sócios perante terceiros nas sociedades de advogados – simples por força dos arts 966 e 983 do Código
Civil e da Lei n. 8.906/94 – será limitada à participação deles no capital
social ou ilimitada, envolvendo o seu patrimônio particular, em caso de
insuficiência do social, se – e tão-somente se – o contrário não dispuser o
contrato social, pelo que absurda a restrição imposta pela Resolução OAB
n. 112, de 2005 que, no particular, repete a de n. 92/2000.
Cumpre, agora, examinar a responsabilidade dos sócios nas sociedades de advogado decorrente de prejuízo causado a terceiros, no exercício profissional, por culpa ou dolo, expressa no art. 17 da Lei n. 8.906/94,
do seguinte teor: “Além da sociedade, o sócio responde subsidiária e ilimitadamente pelos danos causados aos clientes por ação ou omissão no exercício da advocacia, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar em que
possa incorrer”.
Antes de mais nada, cumpre enfatizar que a sociedade em geral,
como pessoa jurídica que é, será sempre responsável pelos atos ilícitos
praticados em detrimento de seus clientes, por seus sócios, prepostos e
associados.
Entretanto, a sociedade de advogados apresenta uma singularidade.
É que sua atividade, por força do art. 3º da mesma lei, só pode ser exercida
por profissional inscrito na OAB, formalidade privativa, nos termos do
Capítulo III do mesmo Estatuto Legal, de pessoas naturais (as sociedades,
segundo o Capítulo IV são registradas e não inscritas).
Nessas condições, embora a sociedade se encarregue do contato
com o cliente e da contratação dos serviços, o exercício da atividade deve
ser exercida pelo profissional, pessoa física, pessoalmente, sócio, empregado ou associado, de tal forma que qualquer problema na sua execução,
só pode decorrer de falha do mesmo, resultante de sua culpa ou dolo. E,
segundo o art. 186 do Código Civil, quem “por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda
que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Como o ato seria sempre cometido pelo profissional inscrito na OAB,
ele próprio estaria praticando o ato ilícito, sendo, por conseguinte, pessoalmente obrigado a indenizar o prejudicado.
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O art. 17, coerente com a realidade, deixa claro que ambos, a
sociedade e o sócio, são responsáveis pelo ato ilícito praticado pelo advogado, esclarecendo, porém – e aí, sem dúvida, em indiscutível benefício
ao advogado –, que, ao contrário do que ocorre normalmente, a responsabilidade do causador do dano não é solidária, mas subsidiária, de tal forma
que o terceiro somente poderá acionar o responsável pelo dano após frustrada, por falta de patrimônio suficiente desta, a cobrança à sociedade.
Entretanto, o dispositivo em apreço refere-se apenas aos atos praticados pelos sócios, ignorando a possibilidade de a falha ter sido cometida
por advogado contratado ou associado. Nesse caso, seria o sócio que
nada tem a ver com o episódio, também pessoalmente, responsável?
Pela afirmativa, parece concluir Elias Farah:
O Regulamento do Estatuto, por sua vez, dispõe no art. 37,
que ‘as atividades profissionais privativas dos advogados são
exercidas individualmente [...],’ mas complementa, no art.
40, que os advogados sócios e os associados respondem subsidiária e ilimitadamente pelos danos causados aos clientes,
nas hipóteses de dolo ou culpa e por ação ou omissão [...]’.10
Como insinuado, há de se distinguir: a) a responsabilidade dos sócios pelos atos sociais, que pode ser subsidiária à sociedade ou não,
dependendo da forma como regulado no contrato social; b) a responsabilidade da sociedade pelos atos ilícitos praticados por seus sócios,
prepostos e ou associados, no exercício da profissão, que é ilimitada, respondendo todo o patrimônio social, e o do sócio, somente se prevista no
contrato a responsabilidade subsidiária dos cotistas; c) e, finalmente, a responsabilidade pessoal do advogado que, no exercício da atividade profissional, age com culpa ou dolo.
A hipótese prevista na alínea “b” não coloca, salvo o disposto nas
alíneas “a” e “c”, em risco o patrimônio particular dos sócios, que somente
são atingidos indiretamente, como reflexo da participação deles na sociedade, de tal forma que, se a sociedade perde, tal prejuízo repercute no
valor da cota-parte do cotista.
10
FARAH, Elias. Sociedade de advogados – Reflexões sobre a responsabilidade do sócio.
Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, p. 145.
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A RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS NAS SOCIEDADES DE ADVOGADOS
Já na terceira hipótese, a responsabilidade é pessoal de quem pratica o ato ilícito, ou seja, causa prejuízo a outrem em decorrência de culpa
ou dolo. Por conseguinte, além da sociedade que sempre responderá
pelos atos dos advogados que prestam serviços a seus clientes, apenas
aqueles – sócios, empregados ou associados – que estiverem envolvidos
e contribuíram para o ato ou atos dos quais redundou o prejuízo ao cliente,
serão responsabilizados.
Importante não se esquecer de que a obrigação do advogado é de
meio e não de resultado, segundo a distinção atribuída a Demogue, citado
por Fábio Konder Comparato, que destaca, inclusive, a questão do ônus
da prova que caracteriza cada uma delas:
Em certas relações de obrigação, observava ele, o devedor é
simplesmente adstrito a observar o comportamento do bonus
pater familiae (v.), competindo ao credor a prova de que tal
não ocorreu. Em outras, ao contrário, o credor tem o direito de
exigir a produção de certo resultado, sem o que a obrigação se
considera inadimplida; nesta hipótese, compete ao devedor provar que a falta do resultado previsto ocorreu sem culpa de sua
parte.11
E completa o ilustre jurista:
Há, assim, certas obrigações cuja prestação não consiste em
um resultado certo e determinado a ser produzido pelo devedor, mas simplesmente numa atividade diligente deste em
benefício do credor. O exemplo padrão é o do contrato de
prestação de serviços profissionais pelo médico ou pelo advogado. O paciente que procura um médico deseja obviamente o restabelecimento de sua saúde. Mas este resultado,
embora seja a causa essencial do contrato, não pode constituir o objeto do pactuado. O que o paciente está no direito de
exigir é que o médico lhe dispense um tratamento consciencioso, diligente e conforme aos progressos da ciência médica.
Não pode, porém, exigir que o médico obtenha infalivelmente
11
DEMOGUE apud COMPARATO, Fabio Konder. Obrigações de meios, de resultado e de
garantias. In: ENCICLOPÉDIA SARAIVA DE DIREITO, v. 55, p. 422.
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EULER DA CUNHA PEIXOTO
a sua cura; nem pode este inculcá-la ou anunciá-la como
infalível, sob pena até de navegar nas águas do curandeirismo
(CP, art. 283).12
Da mesma forma o advogado se compromete, especialmente, em
questões judiciais, a envidar os maiores esforços, com diligência e competência no sentido de conseguir o sucesso pretendido pelo cliente na ação.
Não atingido o objetivo, nem por isso perderá o advogado direito aos
honorários ou poderá ser responsabilizado. O cliente somente fará jus à
indenização se demonstrar que o fracasso decorreu de exclusiva desídia,
imperícia, negligência ou mesmo dolo do profissional.
E, frise-se, apenas o profissional desidioso, imperito, doloso ou negligente ou aqueles que contribuíram para tal, poderão ser responsabilizados,
não repercutindo o problema no patrimônio particular dos demais sócios,
empregados ou associados.
3 CONCLUSÃO
Em resumo, nas sociedades de advogados:
• A responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais fica restrita
ao patrimônio da sociedade, estendendo-se a seu patrimônio particular, na insuficiência daquele, se previsto no contrato social, conforme expresso no art. 997, VIII, do Código Civil. O disposto no
art. 1.023 que, aliás, repete o art. 1.396 do Código Civil de 1916,
só se aplica se o contrato social prevê a responsabilidade subsidiária dos sócios. Esta, entre os sócios poderá ser solidária, se prevista no contrato ou, na omissão do mesmo, proporcional à participação de cada um no capital social.
• Como o exercício da advocacia é privativo do profissional inscrito
na OAB, e, por conseguinte, da pessoa física, somente esta estaria em condições de causar prejuízos ao cliente ao agir com culpa
ou dolo e, apenas, o(s) advogado(s) que assim proceder (em ou
12
COMPARATO, Fabio Konder. Obrigações de meios, de resultado e de garantias. In: ENCICLOPÉDIA SARAIVA DE DIREITO, v. 55, p. 433.
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A RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS NAS SOCIEDADES DE ADVOGADOS
contribuírem para tanto) poderão ser responsabilizados, não sendo, assim, atingido o patrimônio particular dos demais.
• A sociedade, como a pessoa que contrata os serviços com o cliente – embora sejam eles realizados por profissionais, pessoas físicas
–, é, segundo o art. 17 da Lei n. 8.906/94, a principal responsável
pelos prejuízos causados ao cliente por culpa ou dolo do profissional encarregado de exercer o serviço, cuja responsabilidade é subsidiária. Dessa forma, só pode ser acionado caso o patrimônio social seja insuficiente para fazer face à indenização.
• Não se justifica condicionar o registro de contratos sociais de
sociedades de advogados à inclusão nele da cláusula prevista no
art. 2º, XI, da Resolução n. 112/2006 do Conselho Federal da
OAB, prevendo a responsabilidade subsidiária do sócio que, no
exercício profissional, causar prejuízo ao cliente por agir com culpa
ou dolo, eis que tal disposição encontra-se expressa no art. 17 da
Lei n. 8.906/94 Assim, inócua sua repetição no contrato. Por outro
lado, a responsabilidade ilimitada dos sócios pelos atos sociais não
é uma decorrência de lei, mas da vontade dos sócios, expressa no
contrato social, sendo, outrossim, cabível cláusula em contrário,
nos termos do art. 997, VIII, do Código Civil. E, embora não nos
consideremos infalíveis, condicionar o registro do contrato social,
conforme tem procedido a OAB, à existência no mesmo de cláusula estabelecendo a responsabilidade ilimitada dos sócios é, na melhor das hipóteses, altamente discutível e, como tal, sem dúvida,
injustificável.
4 REFERÊNCIAS
BEVILAQUA, Clovis. Código civil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1937.
v. I e IV.
BORGES, João Eunápio. Curso de direito comercial terrestre. Rio de
Janeiro: Forense, 1971.
CARVALHO DOS SANTOS, J. M. Código civil brasileiro interpretado.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1938, v. XIX.
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EULER DA CUNHA PEIXOTO
COMPARATO, Fabio Konder. Obrigações de meios, de resultado e de garantias. In: ENCICLOPÉDIA SARAIVA DE DIREITO. São Paulo: Saraiva,
1977. v. 55.
CUNHA PEIXOTO, Euler da. Sociedade de responsabilidade limitada civil
ou comercial. Mensagem Econômica, Belo Horizonte, n. 202, p. 14. dez.
1970.
DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. São Paulo: Saraiva, 1977.
FARAH, Elias. Sociedade de advogados: reflexões sobre a responsabilidade
do sócio. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo,
Nova Série, Ano 3, n. 6, jul./dez. 2000.
FIUZA, Ricardo et al. Novo código civil comentado. São Paulo: Saraiva,
2006.
MONTEIRO, Wasington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo:
Saraiva, 1986, v. I.
NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. São Paulo:
Saraiva, 2003. v. I.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1987. v. I, n. 19.
REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE MINAS GERAIS. Belo Horizonte, n. 46, p. 95, 2005.
SACANI, Bruno Montenegro; SACANI SOBRINHO, Bruno. A estrutura
do contrato social e a responsabilidade dos sócios nas sociedades simples e
empresária sob a luz do novo código civil. Repertório IOB, n. 24, 2003.
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A NOVA LEI DE FALÊNCIAS E AÇÃO PENAL
PRIVADA SUBSIDIÁRIA*
José Barcelos de Souza**
Reafirmando regra que o Código Penal consagra, dispõe o Código
de Processo Penal, art. 29, que “será admitida ação privada nos crimes de
ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”.
E a Constituição vigente elevou a citada regra, praticamente com as
mesmas palavras do art. 29 transcrito, à categoria de norma constitucional.
Já a revogada Lei de Falências, art. 108, parágrafo único, dispunha
que, se o Ministério Público “não oferecer denúncia, os autos permanecerão em cartório pelo prazo de três dias, durante os quais o síndico ou
qualquer credor poderão oferecer queixa”.
Adotava-se, assim, a regra de que caberia a queixa tanto quando o
Ministério Público simplesmente não oferecesse a denúncia no prazo, como
também quando pedisse o apensamento dos autos do inquérito judicial aos
do processo de falência, pedido de apensamento esse que equivalia ao
pedido de arquivamento de inquérito policial. Isso, naquele curto prazo, no
que dizia respeito ao juízo de quebra, visto que, esgotados os prazos, seria
admissível a ação penal no juízo criminal.
Interessante notar que antes da Lei de Falências o Código de Processo Penal já dispunha, com muita clareza, no art. 510, que o requerimento de arquivamento pelo Ministério Público não impedia fosse intentada
ação por queixa do liquidatário ou de qualquer credor.
*
Trabalho elaborado para servir como material didático para as aulas da disciplina Direito
Penal Empresarial, do curso de pós-graduação das Faculdades Milton Campos.
**
Professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais. Professor titular das Faculdades Milton Campos. Livre-docente pela UFMG. ExPromotor de Justiça em Minas Gerais. Subprocurador-Geral da República aposentado.
Diretor do Departamento de Direito Processual Penal do Instituto dos Advogados de
Minas Gerais (IAMG).
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JOSÉ BARCELOS DE SOUZA
Diante disso, não seria de causar espécie mantivesse a nova lei
falencial, de 2005, a tradição daquele sistema em nosso direito, como de
fato manteve.
É o que se extrai do parágrafo único do art. 184 da Lei n. 11.101, de
9/2/2005. verbis:
Decorrido o prazo a que se refere o art. 187, § 1º, sem que o
representante do Ministério Público ofereça denúncia, qualquer credor habilitado ou o administrador judicial poderá oferecer ação penal privada subsidiária da pública, observado o
prazo decadencial de 5 (seis) meses.
Em trabalho sobre a nova Lei de Falências, seu ilustrado autor
preconiza que o dispositivo citado “exige interpretação sistemática, lendo-se ‘inércia do Parquet’ ao invés de ‘não oferecer denúncia’ no prazo legal”.1
Procurou-se, como se vê, uma leitura discordante do que está escrito no dispositivo, com o fim de afastar a possibilidade de uma ação penal
privada supletiva.
Explica-se a posição do eminente autor: Surgiu, tempos atrás, um
entendimento de que a ação penal privada subsidiária só caberia se o
Ministério Público se mantivesse inerte no prazo legal para o oferecimento
da denúncia, vale dizer, se deixasse correr o prazo sem manifestação, e não
também quando não a oferecesse por ter requerido o arquivamento dos
autos do inquérito policial ou outras peças de informações.
Semelhante interpretação contraria o já mencionado art. 29 do Código de Processo Penal, segundo o qual “será admitida ação privada nos
crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”. E
como essa regra é repetida pela Constituição vigente, também esta resta contrariada.
Escreveu o Prof. Basileu Garcia que o entendimento de que não
cabe a queixa do ofendido quando esteja arquivado o inquérito a requerimento do órgão do Ministério Público é, conforme salientara o
1
BITENCOURT, Cesar Roberto. A nova lei de falências: aspectos penais e processuais penais.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 205.
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Des. Manuel Carlos de Figueiredo Ferraz na I Conferência de
Desembargadores, “contrário à lei expressa”. Poder-se-ia dizer, agora, é
“contrário a preceito constitucional expresso”.
Como escreveu o Prof. Aníbal Bruno, mostrando-se favorável ao
entendimento também aqui acolhido, “é essa, aliás, a solução mais liberal,
consoante com o espírito que anima os fundamentos das nossas instituições
jurídicas, e a que melhor atende não só ao interesse do ofendido, mas ainda
ao interesse social vinculado à perseguição dos fatos puníveis”.
Um singelo exemplo baseado em acontecimentos dos dias em que
escrevemos estas notas – agosto de 2008 – serve para elucidar a questão.
Tem causado muitas manifestações pela imprensa a decisão do Supremo Tribunal Federal contrária ao emprego abusivo de algemas por ocasiões de prisões. Opiniões já havia no sentido de que o fato tipifica infração
penal, capitulada na Lei n. 4.898/65, sobre o abuso de poder, dentre elas,
além da minha própria, as do falecido professor, desembargador e exsecretário de segurança pública do Estado de São Paulo, Sérgio Marcos
de Moraes Pitombo, e do Prof. Luiz Flávio Gomes, por mim citados em
artigo sobre “O emprego de algemas”, publicado em jornais diversos e que
se pode ver no site do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Suponha-se que vítima de um desses abusos represente ao Ministério Público
para que promova a competente ação penal e que este se abstenha de
denunciar requerendo o arquivamento, o que nada tem de fantasioso, pois
que “dentro da PF e do Ministério Público Federal a decisão do STF foi
considerada absurda”.2
Tendo em vista a atualidade e a relevância do assunto, pareceu-me
oportuno reproduzir texto de capítulo que escrevi sobre a matéria, em tese
de concurso para a livre-docência na UFMG, depois transcrita, sem qualquer alteração senão os tópicos finais de atualização, no livro Teoria e
Prática da Ação Penal.3 Eis o texto original, com os acréscimos finais:
Na vigência do Código Penal de 1890, que no art. 407 estabelecia,
como modos de instaurar a ação penal, a queixa da parte ofendida (ou de
quem tivesse qualidade para representá-la) e a denúncia do Ministério
2
O GLOBO, p. 11, 19 ago. 1998.
3
SOUZA, José Barcelos de. Teoria e prática da ação penal, p. 214-224.
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Público, os diversos códigos de processo estaduais admitiam, salvo os casos em que não cabia a ação pública, a queixa ou a denúncia alternativamente, estabelecendo alguns, expressamente, que se firmava a preferência
pela prioridade de uma ou de outra, enquanto o do Rio Grande do Sul
assentava a possibilidade da promoção cumulativa da ação do Ministério
Público e da do ofendido.4
O Código Penal de 1940, ainda vigente, alterou o sistema anterior,
ao declarar que a ação pública é promovida pelo Ministério Público (art.
102, § 1°). Mas acrescentou no § 3° do mesmo art. 102 que “a ação
privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferecer denúncia no prazo legal”.
Por seu turno, reafirma o Código de Processo Penal que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no
prazo legal”, cabendo ao Ministério Público “aditar a queixa, repudiá-la e
oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo,
fornecer elementos de prova, interpor recursos e, a todo tempo, no caso
de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal”.
A iniciativa privada, nos casos da chamada ação pública, é, assim,
agora, meramente supletiva. A predominância do interesse social reclama,
de fato, que ao Estado, e tão-somente a este, incumba a promoção da
ação penal, excetuados os casos em que, por motivo igualmente relevante,
deva ela caber, privativamente, ao ofendido.
Por outro lado, tanto o interesse particular na aplicação da lei penal,
quanto, e especialmente, o interesse geral na realização da justiça penal reclamam um efetivo controle não só da negligência, da desídia ou da relapsia
do órgão próprio do Estado, mas também de um equivocado juízo sobre a
pertinência da ação. O só sistema do art. 28 não oferece segurança altamente satisfatória, mesmo porque deixa ao desamparo a hipótese de tardança do
Ministério Público, a qual poderia, em alguns casos – e como tem acontecido
– prolongar-se por período de tempo suficiente para a prescrição da ação.
O art. 29, pois, completa o sistema, com a vantagem de fazê-lo em
função daquele duplo interesse: o individual e o geral. Ele estabelece uma
forma de controle, pelo próprio ofendido, do órgão titular da ação5 e, em
4
Cf. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado, v. 1, p. 366-367.
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última análise, do princípio da obrigatoriedade da ação penal,6 não apenas
na hipótese de inércia daquele órgão, mas também quando obtém do juiz,
irrecorrivelmente, o arquivamento da notitia criminis.
Instituto novo em nosso Direito Positivo, estranho, como não poderia deixar de ser, dada a possibilidade da iniciativa da ação pública também
pelo ofendido, à legislação anterior ao Código Penal de 1940 e ao vigente
Código de Processo, a ação penal supletiva talvez tivesse tido, na doutrina
e na jurisprudência, aceitação tão ampla quanto autorizam os textos legais
que dela tratam, de modo a alcançar, como deve, o caso de arquivamento,
se se atentasse mais para a apontada razão doutrinária em que se inspira.
Com efeito, conhecida é a controvérsia reinante em torno da inteligência dos textos legais que cuidam da ação privada subsidiária.
Assim é que, para uma corrente de opinião, só caberá a ação privada em crime de ação pública quando o Ministério Público se mostra inerte,
deixando escoar in albis o prazo de denúncia, e não, também, no caso de
arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação.
Esse o entendimento de José Duarte,7 Espínola Filho,8 Jorge Alberto Romeiro,9 Raymundo Cândido10 e Vicente Azevedo,11 agora também
prestigiado por José Frederico Marques, em reconsideração de opinião
anterior.12 No mesmo sentido, a conclusão n. XII, da I Conferência de
Desembargadores, realizada no Rio de Janeiro em 1943, aprovada por
27 votos contra 13, com o apoio de Nélson Hungria, membro das comissões revisoras dos projetos dos atuais Códigos Penal e de Processo Penal,
em cujo voto se lê que “houve a intenção de se destacarem dois casos”.13
5
Cf. CÂNDIDO, Raymundo. Do ingresso no juízo penal, p. 44.
6
Cf. SOUZA, José Barcelos de. Inquérito policial: Ministério Público – Arquivamento. Minas
Forense, nota 9, p. 20-5.
7
DUARTE, José. Tratado de direito penal brasileiro: da ação penal da extinção da punibilidade,
v. 5, p. 84.
8
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado, v. 1, n. 85, p. 368.
9
ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação penal, p. 200.
10
CÂNDIDO, Raymundo. Do ingresso no juízo penal, p. 52.
11
AZEVEDO, Vicente. Curso de direito judiciário penal, v. 2, p. 210.
12
MARQUES, José Frederico. Curso de direito penal, v. 3, p. 378-379.
13
CONFERÊNCIA DE DESEMBARGADORES, I, Anais… p. 174-175.
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Na jurisprudência podem citar-se no mesmo sentido grande número de
julgados.14
Que cabe a ação privada também no caso de arquivamento é o que
sustentam Osny Duarte Pereira,15 Salgado Martins,16 Francisco José
Simch,17 Lourival Vilela Viana18 e Hélio Tornaghi.19
Como escreve o Prof. Aníbal Bruno, “é essa, aliás, a solução mais
liberal, consoante com o espírito que anima os fundamentos das nossas
instituições jurídicas, e a que melhor atende não só ao interesse do ofendido, mas ainda ao interesse social vinculado à perseguição dos fatos
puníveis”.20
E para o Prof. Basileu Garcia o entendimento de que não cabe a
queixa do ofendido quando esteja arquivado o inquérito a requerimento do
órgão do Ministério Público é, conforme salientara o Des. Manuel Carlos
de Figueiredo Ferraz na I Conferência de Desembargadores, “contrário
à lei expressa”.21
No sentido do cabimento da ação privada os tribunais também têm
se manifestado.22
Passemos em revista, brevemente, argumentos que têm sido considerados para a recusa da ação privada no caso de arquivamento:
14
Dentre outros, acórdão do Supremo Tribunal Federal, em grau de embargos, na Sessão de 17
maio 1951, publicado no DJ, de 30 mar. 1953, apenso, p. 987-9, e que se pode ler também na
Revista Minas Forense. 3:198-206; idem à unanimidade de votos, embargos, Sessão de 7 set.
1948, na RT (São Paulo), 185:999; idem por unanimidade de votos, em Sessão de 26 maio
1954, RF, 159:327-8; e acórdãos de tribunais dos Estados, na RF, 93, p. 5; 107:124; 139:405;
150:440; 162:337.
15
Queixa em crime de ação pública intentada após arquivamento do inquérito policial. Arts. 28
e 29 do Código de Processo Penal, RF, p. 382.
16
MARTINS, Salgado. Sistema do direito penal brasileiro, p. 466.
17
SIMCH, Francisco José. O poder de arquivamento no art. 28 do Código de Processo Penal,
Rev. Jurídica, n. 22, p. 171.
18
VIANA, Lourival Vilela. Apostilas.
19
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo penal, v. 1, t. 2, p. 55-58.
20
BRUNO, Aníbal. Direito penal, v. 1, t. 3, p. 399.
21
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, v. 1, t. 2, p. 644; e artigo da ação penal. RT,
São Paulo, n. 172, p. 3.
22
Acórdão do TJ do antigo Distrito Federal, RF, 130:536; ac. do TJSP, de 12 set. 1945, na RT.
159:559; ac. do TJSP, de 11 ago. 1953, na RT. 217:97; ac. do STF, de 1 maio 1949, no DJ, de
28 mar. 1951, p. 693; idem de 18 out. 1948, RF, 131:548.
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a) A lei fala em ação pública não intentada no prazo legal. Regula-se,
assim, a inércia, desídia.23
Mas é bem de ver que requerer o arquivamento é um modo de não
oferecer denúncia no prazo legal. A lei não faz distinção. Tanto deixa o
promotor de oferecer denúncia no prazo legal quando se mantém inerte,
como também quando declara que não vai mesmo oferecê-la.24
Como bem elucida Hélio Tornaghi, o argumento de que o Ministério Público, pedindo o arquivamento, não ficou inerte, inativo, mas agiu, e
o que a lei quer é apenas permitir a ação subsidiária na hipótese de negligência do órgão estatal,
nem encontra amparo na letra da lei nem nas razões políticas
que a inspiraram. O art. 29 não diz que a ação privada será
admitida nos crimes de ação pública, se o Ministério Público
não agir no prazo legal, se o Ministério Público for desidioso,
se nada fizer, mas, sim, afirma: ‘será admitida ação privada
nos crimes de ação pública se esta não for intentada no prazo legal’. E é claro que se o Ministério Público pede o arquivamento, durante o prazo da denúncia ou depois dele, pouco
importa, não intenta a ação penal no prazo da lei. E que é isto
mesmo que a lei quer significar, não há dúvida: o Estado que
chamou a si o exercício da ação penal, retirando-o ao ofendido, deve restituir-lhe’ quando entende de não mover a ação
penal. Nenhum prejuízo há nesta restituição, nesta devolução, sem a qual a publicação do ius persequendi poderia,
em certos casos, ser verdadeiro esbulho e com a qual se
permite ao ofendido trazer ao conhecimento do Judiciário
fatos que, a seu ver, exigem punição. De qualquer modo, é
sempre o Judiciário que irá dizer da procedência ou não da
queixa, sem tempo, portanto, para a Justiça.
O Estado que privou o ofendido de promover ação prometendo fazê-lo deve restituir-lhe aquele direito se, embora por
convicção, não quer acionar em determinado caso.25
23
Cf. DUARTE, José. Voto na I CONFERÊNCIA DE DESEMBARGADORES. Anais…
24
Cf. GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, v. 1, t. 2.
25
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo penal, v. 1, t. 2, p. 56.
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Aquele argumento, aliás, prova demais, porque a tardança do Ministério Público não induz necessariamente negligência, ou desídia, ou
relapsão. Muitíssimas vezes decorrerá de excesso de processos a examinar, de complexidade do caso, de força maior.
Bem avisadamente, o anteprojeto do Código de Processo Penal, de
autoria do Prof. Hélio Tornaghi, ao cuidar do cabimento de ação privada
subsidiária na hipótese da demora da apresentação da denúncia, fala em
excesso do “dobro do prazo concedido em lei” (art. 40, inc. II).
b) Diz-se que em princípio a ação penal e pública. Ao Estado compete promovê-la, em regra. Excepcionalmente é que se transfere ao ofendido, para que se evitem escândalos e para resguardar o decoro das famílias.26 “O direito de punir pertence ao Estado e só este pode exercitá-lo. A
ação deve ser pública”, eis conceitos expendidos pelo Des. José Duarte.27
Também aqui o argumento prova demais, porque em nosso Direito
Positivo não vigora o chamado critério monopolistico do exercício da ação
penal pelo Ministério Público, pois que subsiste a ação privada, principal e
subsidiária.
A chamada ação penal privada nada tem de incompatível com a publicidade do direito que ela tende a efetuar, desde que é proposta e exercida
perante a autoridade pública, a que ficam reservadas a imposição e a execução da pena, advertem Florêncio de Abreu, Nélson Hungria e Narcélio
de Queiroz, após salientarem que “o caráter publicístico da ação penal
decorre de que esta visa à realização do Direito Penal, que é de ordem
pública”. Escrevem ainda: “O jus puniendi cabe ao Estado, mas não há
incongruência alguma no conceder-se ao particular o jus persequendi in
judicio. Nada impede que a titularidade da ação penal seja reconhecida a
pessoa diversa do titular do direito subjetivo à punição”.28
Outra não é a lição de Guglielmo Sabatini, nestes termos:
L’azione penale e sempre pubblica, perche diretta a
soddisfare un interesse colletivo, generale; cosiche non
26
Min. Orozimbo Nonato, voto no RE 17.779, embargos, Minas Forense, v. 3, p. 198.
27
In voto na I Conferência de Desembargadores. in Anais, cit.
28
Parecer contrário à proposta de reforma dos Códigos Penal e de Processo Penal, publicado na
RF, CVII:164.
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A NOVA LEI DE FALÊNCIAS E AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA
perdorebbe questo suo carattere nemmeno quando fosse
esercitata dal privato cittadino, como avviene in altri
campi dei diritto, in cui al cittadino e consetito l’esercizio
di diritti pubblici.29
A propósito, veja-se, mais uma vez, a lição de Tornaghi:
No intuito de tornar mais perfeita a ação penal, o Estado chamou a si a titularidade dela na maioria das infrações e instituiu
um órgão do Poder Executivo encarregado de movê-la. Esta
publicização da ação penal nada tem que ver com a publicização
da Justiça, pela qual o Estado se reservou a tarefa de fazer
justiça, convertendo destarte a ação contra o ofensor em ação
perante ele, Estado, na pessoa do juiz. A ação poderia, perfeitamente, continuar a ser privativa do ofendido, sem perder seu
caráter de ação perante o Estado e sem comprometer o
publicismo da justiça. Outra coisa é a questão de saber se
convém ou não manter a ação privada.30
c) Outro argumento é extraído do próprio art. 29, in fine, que estatui
caber ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia
substitutiva e, a todo tempo, retomar a ação como parte principal.
Como admitir, pergunta-se, que o órgão do Ministério Público que
explicitamente se tenha pronunciado pela inexistência de crime vá aditar a
queixa, se já se pronunciou no sentido de não haver crime algum?31
O Prof. Vicente de Paulo Vicente de Azevedo, a quem, em face dos
termos amplos do art. 29 parece à primeira vista não obstar à ação o arquivamento, observa:
bem analisada a hipótese, a conclusão deve ser contrária,
tendo-se presente a parte final do artigo: estabelecer-se-ia,
facilmente, a seguinte situação: o promotor público, que havia requerido o arquivamento do inquérito, e obtido o deferimento, ver-se-ia na contingência de promover a ação penal
29
SABATINI, Guglielmo. Principi di diritto processuale penale,v. I, p. 303.
30
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo penal, v. 1, t. 2, p. 55.
31
Cf. Min. Luiz Gallotti, voto no RECrim 17.779, embargos, Minas Forense, v. 3, p. 199.
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contra sua vontade e opinião, porque a parte, depois de
oferecê-la, e vê-Ia recebida, dela se desinteressou, negligenciou quanto ao seu andamento.32
Argumento semelhante, de que o art. 29 manda ou impõe ao Ministério Público o dever de retomar a ação penal no caso de negligência do
querelante, e que, dessa forma, seria possível ao ofendido forçar o Ministério Público a agir, bastando-lhe apresentar queixa e, em seguida, abandonar a ação, é também esposado por José Duarte,33 Jorge Alberto
Romeiro,34 Eduardo Espínola Filho.35 Também José Frederico Marques, concluindo que seria um absurdo que o Promotor, depois de entender inexistir elementos para a persecutio criminis, viesse a funcionar na ação como parte principal, salienta que o absurdo é tanto maior
quando no art. 28 do estatuto de processo penal, determinado vem que
o promotor que pede o arquivamento não mais funcionará no processo
como órgão da ação penal se o pedido não for atendido, pois que, se o
Procurador-Geral entender que deve ser inaugurada a ação, dará ele
próprio a denúncia ou designará outro órgão do Ministério Público para
oferecê-la.36
Entretanto, como muito bem demonstra Tornaghi, o art. 29 não
manda o Ministério Público retomar a ação, pois diz apenas que caberá
ao Ministério Público fazê-lo, não resultando daí nenhum dever e sim
mera faculdade. Chama à colação diversos textos legais para a demonstração de que “caberá”, quer dizer “será admissível”, “será permissível”,
“será facultado”, diferentemente do que ocorre quando a lei usa “deverá”
ou outro verbo qualquer no futuro, com força imperativa. Assim, por
exemplo, o art. 581 diz que “caberá recurso em sentido estrito...”, “mas
isso não significa que a lei manda interpor o recurso nos casos nela mencionados”.37
32
AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Curso de direito judiciário penal. .
33
DUARTE, José. Acórdão proferido na ApCrim do Distrito Federal n. 5.312, de 1944, de que
foi relator. AJ, p. 356.
34
ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação penal, p. 200.
35
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado, n. 85, p. 356.
36
MARQUES, José Frederico. Estudos de direito processual penal, p. 118.
37
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo penal, v. 1, t. 2, p. 57.
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Igualmente, a lei não impõe ao promotor o dever de aditar a queixa. Apenas lhe faculta fazê-lo.
Depois, o arquivamento se faz não somente por convicção quanto
à inexistência do crime, quanto à matéria de fato, mas também por matéria outra de direito, e, tanto num como noutro caso, poderá o acusador
oficial convencer-se de um equívoco, vindo lisamente a adotar outra opinião. Nem o impediria de fazê-lo o art. 28 mencionado, com o qual, de
resto, não se choca o art. 29. O que aquele dispositivo legal impede é
que o Procurador-Geral determine ao promotor que promova a ação:
jamais que este o faça sponte sua, reconsiderando anterior opinião.
d) Aduz-se, também, que somente quando o Ministério Público deixar passar o prazo para a denúncia é que pode intervir o ofendido para
corrigir a falta, e, na hipótese de pedido de arquivamento, o processo se
fará da maneira regulada no art. 28, isto é, se o juiz entende que o fato
merece mais detido exame, remeterá os autos ao Procurador-Geral, e este,
então, decidirá, confirmando a orientação do inferior hierárquico ou dando
outra orientação ao processo; de outro modo – di-lo Nélson Hungria –
“estaria ressuscitada aquela ação de ominosa memória, que se chama ação
popular e que, como diz o Des. José Duarte, só dá lugar a chantages e
extorsões”.38
Certo que o art. 28 regulou o controle da recusa do promotor de
Justiça em oferecer denúncia, mediante exame pelo juiz dos motivos por
ele invocados, para a remessa dos autos ao Procurador-Geral se discordar
do promotor. Mas restaria sem controle a confirmação do ProcuradorGeral. Demais, a remessa do processo a este dependeria da discordância
do juiz. Nestas condições, não se evidenciaria inconveniente ou inútil uma
dupla modalidade de controle, pelo Procurador-Geral e pelo ofendido;
nem o art. 28 a impede.
Como com acuidade observa Basileu Garcia, é exatamente no caso
de arquivamento que se mostrará de maior utilidade o cabimento da ação
privada subsidiária. Em geral, na prática, prefere-se aguardar a denúncia
tardia, evitando-se despesas, de modo que se abalançaria aparte a contratar
advogado e movimentar a ação depois da recusa declarada do Ministério
38
HUNGRIA, Nélson. In: CONFERÊNCIA DE DESEMBARGADORES, I, Anais..., p. 174-175.
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Público.39 Mesmo porque a demora intolerável poderia ser obviada por
correição pelo órgão superior do Ministério Público.
Que não pode haver a ação popular com fundamento no art. 29 não
há dúvida, por isso que a ação privada ali prevista não compete a quisque
de populo, mas só ao ofendido, ou a quem tiver qualidade para representálo, nos termos do art. 30 do mesmo Código; mas pode haver também por
motivo de arquivamento a ação privada do ofendido, que não se confunde
com a ação popular, vale dizer, aquela em que quisque de populo licet
acusare. A ação é dita popular, aliás, quando a faculdade da denúncia, e
não da queixa, compete a quivis de populo, considerada, assim, ação
pública, e não privada. Identificava-se com a denúncia de qualquer pessoa
do povo, existente ao tempo do Código de Processo Penal de 1832.
A ir por aí, a ação do ofendido no caso de falta de denúncia no prazo
legal seria também ação popular.
“A própria ação popular, ainda conservada na liberal Inglaterra (e
por tantos anos admitida entre nós, de modo geral ou excepcionalmente) é
de uma lógica irrepreensível, pelo menos dentro dos postulados democráticos, que predominam no governo dos países civilizados”, escrevem Nélson Hungria, Vieira Braga e Narcélio de Queiroz, acrescentando que “se
compreende que se repudie ela, não por motivos de lógica jurídica, mas
por motivos de mera política jurídica, fonte de vinditas, de perseguições ou
extorsões que pode ser”.40
Não adotada entre nós, nem mesmo supletivamente, como meio de
controle da obrigatoriedade da ação penal, para o que também poderia
servir, não há negar a conveniência da ação privada, para que não se frustre o desejo de justiça do ofendido.
É aspecto que não pode ser olvidado ao serem determinados os
meios de controle da ação do Ministério Público.
Como observa Enrique Jimenez Araujo, para semelhante problema,
que se apresenta com caráter agudo naqueles sistemas processuais que não
admitem, nem como subsidiária, a querella popular, é preciso que se arbitre
um recurso que satisfaga, al menos, a la víctima de su deseo de justicia.41
39
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal, v. 1, t. 2.
40
HUNGRIA, Nélson; BRAGA, Vieira; QUEIROZ, Narcélio. Parecer.
41
JIMENEZ ARAUJO, Enrique. Derecho procesal penal, v. 1, p. 192.
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Embora não admita a ação privada no caso de arquivamento, por
motivos que adiante serão examinados, assim se expressa o Prof. José
Frederico Marques, ao demonstrar ser ela possível quando o promotor
deixar esgotar o prazo da denúncia nos crimes contra a economia popular:
A intervenção do ofendido no processo criminal não é mais
olhada com a desconfiança de outrora. Já se não fala mais
em resquício de vingança privada, visto que os estudos processuais sobre o direito de agir e a jurisdição mostraram a
inanidade de tal alegação. Além de seu aspecto de instituto
nitidamente democrático (pois que é uma forma de intervenção do povo na administração da justiça), a ação penal privada constitui um reforço à atividade persecutória do Estado.42
Já escrevia o imortal Carrara que sempre lhe pareceu que um dos
mais eloqüentes critérios para julgar o grau maior ou menor de liberdade
civil permitido aos cidadãos da nação é o que se infere do maior ou menor
domínio que tenham os particulares no exercício da ação penal que deva
promover-se contra os culpados de um delito.43
e) Tem impressionado a alguns o fato de que a ação privada, no
caso de arquivamento, contraria abertamente a opinião, expressa, do Ministério Público, bem como o pronunciamento do juiz, extraindo-se,
daí, argumento contrário à ação subsidiária.
Assim é que José Frederico Marques, acusando mudança de orientação, escreve:
Alguns entendem que o art. 102, § 3°, do Código Penal, admite a ação penal privada subsidiária também quando o Ministério Público deixa de oferecer denúncia para requerer o
arquivamento. Assim também já interpretamos o texto acima citado. Todavia, temos por errônea, atualmente, essa opinião. O particular não se pode sobrepor ao Ministério Público, nos crimes em que este é o senhor da ação penal. A
exceção aberta pelo preceito do art. 102, § 3°, do Código
Penal é de direito estrito. Nem se compreende que depois da
42
MARQUES, José Frederico. Estudos de direito processual penal, p. 131.
43
CARRARA. Azione penale. Revista Penale, p. 5.
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fiscalização do juiz e do chefe do Ministério Público, sobre o
arquivamento requerido pelo promotor, pudesse o ofendido
fazer tábula rasa de todos esses pronunciamentos para propor a ação penal. Tal subversão de princípios, vindo dar uma
posição privilegiada ao ofendido no exercício da ação penal,
não poderia encontrar agasalho na lei penal.44
Para Eduardo Espínola Filho “seria verdadeira subversão da ordem,
implicando um patente desrespeito à autoridade das decisões judiciárias,
admitir a queixa, respeito a crimes que constituíram assunto de inquérito,
representação ou informação mandados arquivar”.45
Se se atentar para o fato de que a ação privada subsidiária é um
dos modos de controle da obrigatoriedade da ação penal, não se estranharia que viesse o particular como que sobrepor-se ao Ministério Público. Pode aquele agir exatamente porque, com a recusa já incontrolável
do Ministério Público, poderia ficar sacrificado o princípio da
obrigatoriedade.
Não há subversão alguma de princípios em poder o ofendido fazer tábula rasa dos pronunciamentos do Ministério Público e do juiz,
por isso que estes não são infalíveis e nem o cargo lhes infunde conhecimentos superiores. A lei mesma lhe confere, ao ofendido, o direito de
recorrer, se não o faz o Ministério Público, de sentença judicial, que é
fundamentada, e nisto ninguém vê absurdo algum. E se, na fase inicial, o
juiz não julga o caso, mas funciona apenas como fiscal da
obrigatoriedade da ação, limitando-se, quando acolhe as razões
invocadas pelo Ministério Público, a simplesmente mandar arquivar o
inquérito ou peças de informações, sem ter que fundamentar seu despacho e decidir, nada mais razoável que poder o ofendido propor a
ação, se não se conformar com o arquivamento, para que o caso seja
devidamente apreciado e julgado pelo Poder Judiciário.
Depois, se o caso chegou ao Ministério Público, por força da ação
fiscalizadora do juiz, o ofendido teria, pelo menos, uma opinião valiosa
44
45
MARQUES, José Frederico. Estudos de direito processual penal, p. 118.
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal
brasileiro anotado, n. 85, p. 368.
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A NOVA LEI DE FALÊNCIAS E AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA
sobre a matéria, da qual não estaria fazendo tábula rasa. Seria sumamente
injusto, sim, impedi-lo de apegar-se ao pronunciamento do juiz. E eis o que
se deve considerar: o arquivamento se faz, tratando-se de inquérito, à vista
do que dele consta, e ele pode não conter – e muitas vezes não contém –
toda a verdade, como salientou o Des. Agripino Gouveia de Barros46 e
expôs, longamente, Osny Duarte Pereira.47
Como demonstrou o autor citado, a Policia Judiciária, entre nós,
sofre dificuldades e influências adversas que, em muitos casos, refletem
negativamente nos inquéritos.
De modo geral, salvo as exceções, nomeadas as autoridades policiais por critérios de política partidária, não raro deturpam as investigações
as injunções políticas. Et alia maiora...
A possibilidade das influências indiretas da política tem sido posta em
relevo mesmo com relação a membros do Ministério Público, principalmente
no interior do País,48 ou a juízes. A esse respeito, assim se manifestou o Des.
Ivair Nogueira Itagiba, na I Conferência de Desembargadores:
Como vários colegas assinalaram, o que é fato, o que é verdade, o que é incontestável no Brasil é que, não obstante o
trancamento dos partidos políticos, o que se observa é que as
influências, no interior, se fazem sentir de maneira irretorquível.
Esta influência da política sobre a justiça não é de hoje; é de
todos os tempos. E sabemos, mesmo, que muitos juízes resolviam os processos cedendo às injunções da política sobre a
justiça.49
Releva notar ainda que, não podendo o ofendido interferir no inquérito policial, facultado que lhe é, apenas, requerer diligências – que serão
realizadas, ou não, ajuízo da autoridade (CPP, art. 14) –, pode, muitas
vezes, ter outros elementos com que poderá provar sua acusação.
46
BARROS, Agripino Gouveia de. In: CONFERÊNCIA DE DESEMBARGADORES, I.
Anais..., p. 179.
PEREIRA, Osny Duarte. Artigo doutrinário.
47
48
Cf. voto do Min. Afrânio Antônio da Costa no RE 17.779, cit.; ROMEIRO, Jorge Alberto.
Da ação penal, cit.
49
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Finalmente, para a demonstração de que o Código de Processo Penal
não repele a ação privada supletiva, como meio de controle do princípio da
indiscricionalidade da ação penal pública, também no caso de arquivamento, mas, antes, aquele diploma legal a acolhe, basta que se argumente com
o disposto, sobre o processo de crime de falência, em seu art. 510, verbis:
“O arquivamento dos papéis, a requerimento do Ministério Público, só se
efetuará no juízo competente para o processo penal, o que não impedirá
seja intentada ação por queixa do liquidatário ou de qualquer credor”.
A parte final do dispositivo, firmando expressamente a
admissibilidade da queixa, longe de reforçar, como quer Espínola Filho,
entendimento de que, nos casos gerais, a iniciativa subsidiária ficaria vedada pelo arquivamento”,50 serve para confirmar a regra do cabimento
da queixa. O texto legal transcrito, dando titularidade ao credor e ao
síndico da massa, orientação que não foi modificada pela atual Lei de
falências,51 preservou o cabimento da ação, em caso em que poderia
haver dúvida quanto a quem fosse ofendido.
Do exposto, pode-se concluir que nosso Direito Positivo admite a
ação do ofendido também em caso de arquivamento e que tal sistema convém ser mantido.
Outra não foi a orientação do Anteprojeto Tornaghi, prevendo, expressa e separadamente, as duas hipóteses em que se faculta a iniciativa
privada supletiva.
O Projeto n. 633/75 seguiu orientação diferente, não admitindo ação
privada subsidiária.
A Câmara dos Deputados, porém, aprovou a Emenda n. 6, apresentada pelo Deputado José Bonifácio Neto, no sentido de acrescentar,
depois do art. 6°, um dispositivo com a redação seguinte:
Art. Será admitida ação penal privada subsidiária, nos crimes de ação penal pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa,
repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervindo em
50
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado, v. 5, p. 65.
51
Decreto-Lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945.
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todos os termos do processo e retomando, no caso de negligência do querelante, a ação como parte principal.
Parágrafo único. A ação penal privada subsidiária deverá
ser oferecida dentro de seis meses a contar do dia em que se
esgotar o prazo para oferecimento da denúncia, sob pena de
decadência.
O texto aprovado repete, em essência, o art. 29 e, no que diz respeito ao prazo para a queixa, o art. 38, ambos do Código vigente.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Curso de direito judiciário penal. São Paulo, 1958, v. 2, p. 210.
BARROS, Agripino Gouveia de. In: CONFERÊNCIA DE DESEMBARGADORES, I. Anais...
BITENCOURT, Cesar Roberto. A nova lei de falências: aspectos penais e
processuais penais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo,
n. 58, 2006, p. 205.
BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1966, v. 1, t. 3.
CÂNDIDO, Raymundo. Do ingresso no juízo penal. Belo Horizonte: [s.n.], 1952.
CARRARA, Francesco. Azione penale. Revista Penale, n. 111, p. 5, 1875.
CONFERÊNCIA DE DESEMBARGADORES, I. Anais... Rio de Janeiro, 1943.
DUARTE, José. Acórdão proferido na ApCrim do Distrito Federal n. 5.312,
de 1944, de que foi relator. AJ, Rio de Janeiro, 1944, v. LXXI, p. 356.
DUARTE, José. Tratado de direito penal brasileiro: da ação penal: da
extinção da punibilidade. Rio de Janeiro: Jacinto, v. V.
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 1960, v. 1 e v. 5.
GARCIA, Basileu. Ação penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 172, v. 3.
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 4. ed. São Paulo: Max
Limonad, 19—. v. 1, t. 2, p. 644.
HUNGRIA, Nélson. In: CONFERÊNCIA DE DESEMBARGADORES, I,
Anais...
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JOSÉ BARCELOS DE SOUZA
HUNGRIA, Nélson; BRAGA, Vieira; QUEIROZ, Narcélio. Parecer.
ITAGIBA, Ivair Nogueira. CONFERÊNCIA DE DESEMBARGADORES,
I. Anais... Rio de Janeiro, 1943.
JIMENEZ ARAUJO, Enrique. Derecho procesal penal. Madri, [s.d.], v. 1.
MARQUES, José Frederico. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva,
1956. v. 3.
MARQUES, José Frederico. Estudos de direito processual penal.
MARTINS, Salgado. Sistema do direito penal brasileiro. Rio de Janeiro:
José Konfino Editor, 1957.
O GLOBO, p. 11, 19 ago. 1998.
PEREIRA, Osny Duarte. Artigo doutrinário.
ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação penal. Rio de Janeiro: Forense, 1949.
SABATINI, Guglielmo. Principi di diritto processuale penale. Catânia:
Casa del Libro, 1958. v. I.
SIMCH, Francisco José. O poder de arquivamento no art. 28 do Código de
Processo Penal, Rev. Jurídica, Porto Alegre, v. 22, n. 171, 1943.
SOUZA, José Barcelos de. Inquérito policial – Ministério Público – Arquivamento, Minas Forense, Belo Horizonte, v. 36, nota 9, p. 20-5, 1960.
SOUZA, José Barcelos de. Teoria e prática da ação penal. São Paulo:
Saraiva, 1979, n. 116, p. 214-224.
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo penal. Rio de
Janeiro: Forense, 1956, v. 1, t. 2.
VIANA, Lourival Vilela. Apostilas.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DESCRITO
NO ART. 66 DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
José Arthur Di Spirito Kalil*
Luis Augusto Sanzo Brodt**
Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade,
quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou
garantia de produtos ou serviços:
Pena – Detenção de 03 (três) meses a 1 (um) ano e multa.
O delito em foco é praticado pelos fornecedores de produtos ou
serviços por meio de informações “de balcão”,1 que circundam internamente no estabelecimento, seja oralmente, seja mediante explicações
para os consumidores, seja na forma escrita. Nesta segunda modalidade, os informes podem vir impressos em panfletos, cartazes, anúncios
em prateleiras, etiquetas, rótulos, embalagens, manuais, bulas, termos
de garantia, etc.
Assim, verifica-se que o crime acima se distingue daquele narrado
no art. 67 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), perpetrado por
meio de publicidade. Havendo a compra, o crime será outro, amoldandose ao tipo descrito no art. 7º, VII, da Lei n. 8.137/90, para o qual se exige
*
Advogado criminalista. Mestre e doutorando em Ciências Penais pela UFMG. DiretorSecretário do Instituto de Ciências Penais/Belo Horizonte.
**
Professor adjunto do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFMG. Doutor
em Ciências Penais pela UFMG. Membro do Conselho Penitenciário de MG.
1
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. Apud FONSECA, Antônio Cezar Lima da.
Direito penal do consumidor, p. 159.
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JOSÉ ARTHUR DI SPIRITO KALIL e LUIS AUGUSTO SANZO BRODT
a aquisição do produto ou do serviço pelo consumidor, a fim de que este
seja levado a erro.2
Observa-se que o legislador erigiu atos preparatórios à venda – os
descritos no art. 66 do CDC – à categoria de atos executórios, estendendo, assim, a tutela penal a um campo tradicionalmente intocado pela intervenção estatal. Percebe-se claramente adoção de critério de política criminal voltado à preocupação com a prevenção geral, traço nítido na tutela
dos bens supra-individuais. Para tal orientação do direito penal, “exige-se,
portanto, um distanciamento da realização efetiva da agressão, em favor da
criminalização formal de condutas supostamente lesivas ou perigosas”.3
A doutrina costuma classificar o crime do art. 66 do CDC como
formal.4
Como se sabe, o conceito de crime formal contrapõe-se ao de crime
material. Para José Frederico Marques,
a distinção entre crimes formais e materiais está no tipo.
Todo delito produz um dano, ou potencial ou efetivo. Mas
nem toda a ação produz um evento típico. Crime formal, portanto, é o crime de mera conduta, é o crime em que no tipo
não há referência ao resultado; e crime material é aquêle em
que o tipo descreve a ação e o resultado desta.5
Como esclarece o Professor, o evento típico a que se refere trata-se do resultado naturalístico. De acordo com a lição acima, é o crime material que requer a presença no tipo do resultado naturalístico; de
2
“Constitui crimes contra as relações de consumo: [...] VII – induzir o consumidor ou usuário
a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade de bem
ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária.”
(Grifo nosso).
3
MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Sociedade do risco e direito penal: uma avaliação de
novas tendências político-criminais, p. 107.
4
FONSECA, Antônio Cezar Lima da. Direito penal do consumidor, p. 159. Nesse sentido
também: GUIMARÃES, Sérgio Chastinet Duarte. Tutela penal do consumo: abordagem dos
aspectos penais do código de defesa do consumidor e do art. 7º da lei nº 8.137/90, p. 93. O
tipo descritivo do crime material exige a presença de resultado (naturalístico) exterior à
conduta (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, p. 165).
5
MARQUES, José Frederico. Estudos de direito processual penal.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DESCRITO NO ART. 66 DO CÓDIGO DE DEFESA...
conseqüência, em tal espécie de delito haverá imprescindivelmente um
nexo de causalidade entre ação e resultado descritos pelo legislador.
Realçando tal elemento típico (nexo de causalidade), vem a explicação
de Juarez Cirino dos Santos, para quem os crimes materiais são narrados em “tipos de resultado”: “os tipos de resultado compreendem uma
separação espaço-temporal entre ação e resultado, ligados por uma
relação de causalidade, como o homicídio (art. 121), o furto (art. 155),
o estelionato (art. 171) etc.”6
Tanto Juarez Cirino dos Santos quanto José Frederico Marques
não distinguem crimes formais e crimes de mera conduta.7 Para Cirino
dos Santos, esses últimos crimes estão contidos na categoria dos “tipos
de simples atividade”, e são assim caracterizados: “se completam com
a realização da ação, sem qualquer resultado independente, como a
violação de domicílio (art. 150), o falso testemunho (art. 342), etc”.8
Conforme Manoel Pedro Pimentel, “crimes formais são aqueles
em que o dano ou o perigo constitutivos do crime se tornam realidade
com o desencadear da conduta. O resultado que a lei considera relevante para a perfeição da figura delituosa já se completa com a própria
conduta”.9
A seguir, Manoel Pedro Pimentel diferencia crime formal de crime de
mera conduta, frisando que, no primeiro, há resultado naturalístico, e no
segundo não:
Os crimes formais se compõem de conduta e resultado considerado relevante para o direito, resultado esse que pode
não se apresentar destacado da ação, mas que é um resultado material. Os crimes de mera conduta se realizam tãosomente com a conduta, não sendo relevante para o direito o
resultado natural que dela decorra.10
6
SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível, p. 39.
7
Nesse sentido também: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, p. 163.
8
SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível, p. 39.
9
PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes de mera conduta, p. 41.
10
PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes de mera conduta, p. 41.
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Aderem à diferenciação retro Damásio E. de Jesus,11 Luis Flávio
Gomes12 e Cezar Roberto Bitencourt,13 para os quais também não se cogita de resultado naturalístico nos crimes de mera conduta. Todos citam como
exemplos de delitos de mera conduta a violação de domicílio (art. 150,
CP) e a desobediência (art. 330, CP).
Deve ser realçada a ponderação do tratadista Cezar Bitencourt acerca
da dicotomia apresentada nesses últimos parágrafos: “Na verdade, temos
dificuldade de constatar com precisão a diferença entre crime formal e de
mera conduta”.14 Com razão o prestigiado autor. Além de se mostrar nebulosa a distinção, não se constata utilidade doutrinária e prática na criação
de mais uma categoria de crimes (de mera conduta), além das conhecidas
“crimes materiais” e “crimes formais”.
O crime do art. 66 é, pois, formal (ou de mera conduta, tanto faz).
Assim classificado o delito em foco, figure-se o exemplo do agente que
afixa em seu estabelecimento um cartaz, ofertando bebida láctea como se
fosse leite, fazendo afirmação falsa sobre natureza do produto. In casu,
não é necessário que o consumidor adquira o bem, como já ressaltado,
bastando a realização do anúncio fraudulento.
A figura omissiva do art. 66 do CDC também pode ser classificada
como crime formal, já que o tipo não exige a configuração de um resultado
naturalístico para a sua configuração. Para Antônio Cezar Lima da Fonseca, adepto da famigerada distinção, a forma omissiva do delito em referência é classificada como de mera conduta.15
Outra perspectiva de classificação dada à figura delituosa do art.
66 do CDC é a de crime de perigo e crime de dano. Para Paulo José da
Costa Júnior, “dano é a perda (privação, subtração, sacrifício) ou a
diminuição (limitação, restrição) de um bem ou interesse”.16 Já “perigo,
11
12
JESUS, Damásio E. de. Direito penal, v. 1, p. 191.
GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito penal: parte geral, v. 2,
p. 524.
13
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, p. 214.
14
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, p. 214
15
FONSECA, Antônio Cezar Lima da. Direito penal do consumidor, p. 159.
16
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Nexo causal, p. 54.
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pois, é a probabilidade de dano. Ou um estado de fato que traz a probabilidade de um evento danoso. É o dano potencial. A idoneidade ou
capacidade de um fenômeno vir a causar a perda ou a restrição de
bens-interesses”.17
Antes de se prosseguir enfocando a aludida classificação, é necessário que se precise o bem jurídico protegido pela norma do art. 66
do CDC.
Verifica-se que a proteção aos consumidores é um princípio da
ordem econômica consagrado no inciso V do art. 170 da Constituição
da República. Daí por que os crimes contra o consumidor não deixam de
ser também crimes contra a ordem econômica18 e inserem-se no chamado Direito Penal Econômico.
O co-autor do presente trabalho, Luís Augusto Sanzo Brodt,19 Professor da Faculdade de Direito da UFMG, leciona:
Os crimes econômicos têm por bem jurídico as condições
que permitam a efetivação da ordem econômica consagrada constitucionalmente e que estão apontadas, sobretudo, nos
princípios que, segundo o constituinte, devem orientá-la; soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio
ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que
tenham sua sede e administração no País.
Para João Marcelo de Araújo Júnior, o bem jurídico protegido nos
crimes praticados contra o consumidor pode ser definido como o interesse coletivo de regularidade, transparência, licitude e equilíbrio das relações de consumo.20 Pondere-se que tal interesse coletivo vem assegurado pelo cumprimento dos deveres dos fornecedores de produtos e de
17
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Nexo causal, p. 58.
18
FONSECA, Antônio Cezar Lima da. Direito penal do consumidor, 1999, p. 37.
19
BRODT, Luís Augusto Sanzo. A tutela penal da ordem econômica. O sino do Samuel, p. 10.
20
ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Dos crimes contra a ordem econômica, p. 103.
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serviços para com os consumidores, v.g. os descritos nos incisos I a IV
do art. 6º do CDC.21
Aponta-se, outrossim, que o objeto da tutela penal é a própria relação de consumo,22 ou seja, o vínculo jurídico que se forma entre o fornecedor de bens e serviços e o consumidor.
A objetividade jurídica “relação de consumo” é criticada por Sérgio Chastinet Duarte Guimarães, que, atento à função do bem jurídico
de esclarecer o conteúdo do preceito penal, pondera que a fórmula é
vaga, imprecisa e redundante, até porque o consumo implica necessariamente num relacionamento entre agentes.23 Na seqüência de sua exposição, o mencionado estudioso afirma que a objetividade jurídica, a
rigor, é “a intangibilidade/credibilidade da ordem econômica voltada
para a regulação do consumo”.24
Em verdade, não se verifica dissonância entre os aludidos autores na
questão do bem jurídico presente nos crimes contra o consumidor. O que
se deseja tutelar é, sim, uma relação jurídica que seja adequada aos ditames do código de defesa do consumidor, que se assente, pois, na
vulnerabilidade deste e na observância de seus direitos. Assim, realizandose jogo de palavras, é correto, outrossim, afirmar-se que o bem jurídico
são as condições que permitem a efetivação de relações de consumo conformes com a Lei n. 8.078/90.
21
“Art. 6º São direitos básicos do consumidor: I – a proteção da vida, saúde e segurança contra
os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados
perigosos ou nocivos; II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos
e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de
quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que
apresentem; IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais
coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no
fornecimento de produtos e serviços [...]”.
22
FONSECA, Antônio Cezar Lima da. Direito penal do consumidor, p. 47. No mesmo sentido: FERRARI, Eduardo Reale. Direito penal do consumidor e Constituição Federal Brasileira. Ciências Penais, p. 276; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. Direito penal do
consumidor: capítulo do direito penal econômico. Revista de Direito do Consumidor, p. 118.
23
GUIMARÃES, Sérgio Chastinet Duarte. Tutela penal do consumo: abordagem dos aspectos
penais do código de defesa do consumidor e do art. 7º da lei nº 8.137/90, p. 45-46.
24
GUIMARÃES, Sérgio Chastinet Duarte. Tutela penal do consumo: abordagem dos aspectos
penais do código de defesa do consumidor e do art. 7º da Lei nº 8.137/90, p. 46.
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Como se sabe, o CDC é bastante minucioso ao normatizar a relação
de consumo (arts. 6º, I a IV, 8º, 9º, 10º, 31º, 37º, etc.) e, como se observa,
as condutas que contrariam tais disposições são incriminadas, a exemplo
daquelas previstas em seu art. 66. Assim, torna-se evidente o caráter
promocional ou instrumental do direito penal na temática em referência.25
O bem jurídico tutelado pelo legislador referente ao crime do art. 66
do CDC não é individual, atinente a precisos consumidor e fornecedor. Ao
contrário, estende-se à massa de consumidores, que é alcançada mediante
o fornecimento de bens e serviços. Registre-se que o legislador, antes de
definir as figuras delituosas no CDC, colocou a rubrica “Crimes contra as
Relações de Consumo”, notando-se o uso do plural.26 Desse modo, verificase que o bem jurídico possui o caráter supra-individual.
É comum na doutrina a classificação dos delitos descritos no CDC
como crimes de perigo.27 Explica-se, inclusive, que a tônica da proteção
dos bens coletivos é a prevenção dos danos, o que justificaria a opção
legislativa por tipos de perigo, inclusive abstrato.28 Para aqueles que se
filiam a tal orientação, haveria nas condutas em estudo potencialidade de
dano à saúde, vida, segurança e economia dos consumidores.29 Entretanto,
ainda que aceitável tal conclusão tomando-se a ótica de determinado consumidor, o bem jurídico tutelado é supra-individual, deixando de pertencer
a um único consumidor.
Parece-nos mais ajustada ao bem jurídico (supra-individual, in casu)
a posição doutrinária que tem os crimes contra as relações de consumo
25
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. Crimes contra o consumidor: capítulo do
direito penal econômico. Revista de Direito do Consumidor, p. 118. No mesmo sentido:
SANGUINÉ, Odone. Introdução aos crimes contra o consumidor: perspectiva criminológica
e penal. Revista dos Tribunais, p. 328.
26
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. Direito penal do consumidor: capítulo do
direito penal econômico. Revista de Direito do Consumidor, p. 120.
27
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. Direito penal do consumidor: capítulo do
direito penal econômico. Revista de Direito do Consumidor, p. 111; FERRARI, Eduardo Reale.
Direito penal do consumidor e Constituição Federal Brasileira. Ciências Penais, p. 277.
28
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. Direito penal do consumidor: capítulo do
direito penal econômico. Revista de Direito do Consumidor, p. 111. Assim também: SILVEIRA,
Renato de Mello Jorge. A tutela penal dos interesses difusos, p. 31.
29
FILOMENO, José Geraldo Brito. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro
de defesa do consumidor, p. 653-654.
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como de dano. Com efeito, num anúncio fraudulento sobre a característica
do produto, o agente vulnera um dos aspectos mais prestigiados da relação
de consumo, o direito à informação clara e fidedigna que possuem os consumidores. Nesse sentido, não haveria lugar para a probabilidade de ofensa – o perigo –, mas lesão propriamente ao bem jurídico.
Considerado o bem jurídico nesses termos, tem-se que o delito do
art. 66 do CDC é crime de dano, pois efetivamente são violadas regras da
desejável relação de consumo descrita nos arts. 6º, III, e 31 do citado
diploma legal, notadamente as que dizem respeito à transparência nas informações a serem prestadas ao consumidor. O delito seria de perigo caso
o bem jurídico fosse individual, por exemplo, o patrimônio de um consumidor determinado, especificamente perigo abstrato, pois a situação periclitante
para o consumidor seria presumida.
Poder-se-ia pensar que a concepção da natureza jurídica do delito
em foco como de dano afastaria os problemas intrínsecos aos crimes de
perigo abstrato, como a ofensa ao princípio da presunção de inocência e
ao princípio da lesividade. Mas, tais questões insistem em permanecer em
crimes que contenham bem jurídico coletivo ou supra-individual, mesmo
diante da natureza de “crime de dano” que se lhe apresenta melhor.
O que se verifica é a perda da função de garantia tradicionalmente
outorgada ao bem jurídico, outrora tido como substrato material e referência interpretativa do tipo penal.30 Com as proclamadas necessidades de
proteger os bens supra-individuais e coletivos, numa época de sociedade
de riscos, tem-se verificado o fenômeno da desmaterialização de bens jurídicos,31 que agora se encontram cada vez mais fluidos e imprecisos. E o
que é pior, os bens jurídicos, que deveriam provir da realidade social
contemplada pelo direito32 agora são cada vez mais artificiais, porque
provenientes mais de disposições legais do que da realidade social.
Nessa ordem de idéias, observa-se excesso de roupagem para o
bem jurídico tutelado pelas tipificações presentes no estatuto consumerista,
tudo a indicar a sua inescondível fluidez, permitindo-se jogo de palavras em
30
31
32
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, p. 163.
MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Sociedade do risco e direito penal: uma avaliação
de novas tendências político-criminais, p. 107.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, p. 265.
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sua larga conceituação. Como já anotado, o bem jurídico é tanto “o interesse coletivo de regularidade, transparência, licitude e equilíbrio das relações de consumo”, como “a própria relação de consumo”, podendo ser
entendido também como “a intangibilidade/credibilidade da ordem econômica voltada para a regulação do consumo”, ou ainda, “as condições que
permitem a efetivação de relações de consumo conformes com a Lei n.
8.078/90”.
As condutas descritas no art. 66, a exemplo de outras também definidas na Lei n. 8.078/90, como se pode notar, constituem crimes de desobediência ou transgressão. Para não ficarmos sob o jugo do império da lei
e delimitarmos o âmbito do punível, é de se exigir uma adequada tipificação,
sobretudo nos crimes que ofendem bens supra-individuais e coletivos. Nesse
sentido, o legislador deve descrever uma conduta realmente apta a ofender o bem jurídico, fazendo-o de forma precisa e taxativa.33 Essas advertências cabem como luva à incriminação ora estudada, pois nada mais
impreciso do que o emprego do elemento normativo “informação relevante”.
Ademais, não se deve esquecer de que a incriminação dos fatos é
um produto bruto, inacabado do legislador,34 a merecer a necessária
lapidação por parte do intérprete. Assim, na consideração da tipicidade
material, é possível concluir que nem sempre atos coincidentes com o tipo
serão lesivos ao bem jurídico. E tal juízo deve ser aferido concretamente,
atentando-se às circunstâncias. Não se deve esquecer do “esclarecimento
preliminar indispensável” de Fragoso: “O desvalor da ação punível é aquele que o legislador reconhece como tal, não se excluindo que possa haver
erro nesse juízo de valor realizado por em estabelece a norma”.35
No tocante à omissão de informações ao consumidor (2ª parte do
art. 66), pondere-se que nem sempre haverá a configuração do delito diante da inadvertência do fornecedor de produto sobre durabilidade, por exemplo, quando esta for detalhe irrelevante para o consumidor. Obviamente,
garantia de produto é algo relevante a priori, mas pode não ser em determinadas circunstâncias. Veja-se a seguinte ilustração: alguém vai adquirir
33
SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição, p. 150.
34
GOMES, Luiz Flávio. O princípio da ofensividade, p. 28.
35
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, p. 265.
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um adorno para presentear um parente distante em face de seu casamento;
ora, em tais oportunidades, a beleza (se o regalo “faz vista”) e a utilidade
do objeto é que serão relevantes; durabilidade não entra em cena. Ainda
que se omita informes sobre ela, não se caracterizaria, in casu, o delito.
Mutatis mutandis às considerações feitas nos crimes de perigo,
não poderá haver dano presumido, iure et de iure, ao objeto da tutela
penal; deve-se sempre admitir prova em contrário, sob pena de se cercear a defesa do acusado, que ficará tolhido em sua argumentação reativa
à imputação.
Para além dos esforços interpretativos para se restringir o âmbito da
esfera punível no crime do art. 66 do CDC, inúmeras serão as dificuldades
para a defesa. Alguns institutos da teoria do crime são avessos aos crimes
de mera conduta ou formais. Inicialmente, não há que se falar de nexo de
causalidade em crimes dessa ordem, visto faltar o resultado naturalístico. A
tentativa, em face da própria estruturação do tipo de mera conduta, é
incabível.36 A tentativa desistida,37 consubstanciada na desistência voluntária e no arrependimento eficaz, parece inconciliável com os crimes de mera
conduta. Ou o agente desiste de praticar o crime e não realiza conduta
alguma, ou pratica a ação incriminada e consuma o delito.38 Nem haveria
de se cogitar de arrependimento posterior (art. 16 do CP), uma vez que os
delitos em apreço dispensam a existência de qualquer resultado naturalístico
ulterior que pudesse ser impedido pelo agente.
Ainda sobre alguns aspectos da teoria geral do crime incompatíveis
com o delito de mera conduta, afirma-se que o crime culposo também se
enquadra nesse particular, em que pese à disposição contida no art. 66, §
2º, do CDC (se o crime é culposo, detenção de um a seis meses ou multa).
Os crimes culposos são caracterizados por condutas contrárias ao dever que
conduzem necessariamente a um resultado danoso ou perigoso, resultado
esse incluído no tipo.39 Ora, se nos crimes de mera conduta o resultado
36
Nesse sentido: FONSECA, Antônio Cezar Lima da. Direito penal do consumidor, p. 165.
GUIMARÃES, Sérgio Chastinet Duarte. Tutela penal do consumo: abordagem dos aspectos
penais do código de defesa do consumidor e do art. 7º da lei nº 8.137/90, p. 97.
37
A expressão é de Aníbal Bruno (Direito penal: parte geral, p. 245).
38
PIMENTEL. Manoel Pedro. Crimes de mera conduta, p. 107-108.
39
BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral, v. 1, t. II, p. 89-90.
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lesivo (dano ou perigo) é presumido pelo legislador,40 não integrando o
tipo, então não se vê como conciliáveis os dois institutos.41
Assim, tal incriminação culposa revela-se excessiva sob o ponto de
vista político-criminal, pois em hipótese dogmática rebelde ao crime culposo,
ainda assim se prevê a intervenção penal. Para ilustrar a injustiça de se
punir o crime de mera conduta culposo, seria o mesmo que prever como
crime de trânsito o “avanço culposo de sinalização semafórica”.
É de se atentar que a forma comissiva do art. 66 do CDC, sob outro
ângulo, revela-se incompatível com a previsão culposa do seu § 2º. É que,
como adverte Manoel Pedro Pimentel, a figura comissiva de “fazer afirmação falsa” pressupõe o conhecimento da falsidade do informe, o que é
compatível apenas com a forma dolosa da realização do tipo.42
Em suma, a previsão de crimes de mera conduta pelo Código de
Defesa do Consumidor representa rigorosa modalidade de intervenção
penal. Para verificar a legitimidade de tal postura do legislador, deve-se
atentar para o princípio da proporcionalidade,43 a fim de verificar a sua real
necessidade e adequação para a tutela do bem jurídico que se quer proteger. A doutrina, com base nessa orientação, tem feito objeções à atuação
do direito penal em diversas modalidades delituosas, reputando-a exagerada, porque enseja mais desvantagens do que vantagens. Nessa ordem de
idéias, tem-se propugnado a atuação de um direito administrativo
sancionador.44 Tal recomendação parece-nos de bom alvitre, sobretudo
porque não existem diferenças nas finalidades preventivas das sanções do
direito administrativo e do direito penal.45
PIMENTEL. Manoel Pedro. Crimes de mera conduta, p. 79.
40
41
42
PIMENTEL. Manoel Pedro. Crimes de mera conduta, p. 96. Esse aspecto foi também
apreciado por Alberto Zacharias Toron (Aspectos penais da proteção ao consumidor. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, p. 87).
Aspectos penais do código de defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, p. 252.
43
Canotilho divide o princípio em referência numa tríade de subprincípios, a saber: princípio da
conformidade ou adequação de meios; princípio da necessidade e princípio da proporcionalidade
em sentido estrito (cf. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 268-269)
44
Sobre o assunto, veja-se: FERRARI, Eduardo Reale. Direito penal do consumidor e Constituição
Federal Brasileira. Ciências Penais, p. 291 e MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade
do risco e direito penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais, p. 194 et seq.
45
FERRARI, Eduardo Reale. Direito penal do consumidor e Constituição Federal Brasileira.
Ciências Penais, p. 293.
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Por fim, registre-se que, para outras modalidades de crimes econômicos, como os que afetam o meio ambiente e a ordem tributária, existe a
previsão de causas especiais de extinção da punibilidade, como a homologação de termos de ajustamento de conduta e o pagamento do tributo
devido. Tais causas não se verificam no direito penal do consumidor, o que
intensifica a injustiça e o excesso em suas incriminações. Existindo meios
menos lesivos de intervenção nas relações de consumo, seja mediante um
direito administrativo específico, seja mediante previsão de causas especiais
de extinção da punibilidade, não há como justificar a rigorosa atuação do
direito penal nessa seara.
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São Paulo: Editora RT, 1995.
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São Paulo, n. 1.
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Paulo, n. 1
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 11.
ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
BRODT, Luís Augusto Sanzo. A tutela penal da ordem econômica. O Sino
do Samuel. Jornal da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, ano
XIV, n. 94, p. 10, ago./dez. 2007.
BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
v. 1, t. II.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1997.
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FERRARI, Eduardo Reale. Direito penal do consumidor e Constituição Federal brasileira. Ciências Penais, São Paulo, ano 1, v. 1, p. 276, jul./dez. 2004.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DESCRITO NO ART. 66 DO CÓDIGO DE DEFESA...
FILOMENO, José Geraldo Brito. Comentários ao capítulo I do código brasileiro de defesa do consumidor. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código
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FONSECA, Antônio Cezar Lima da. Direito penal do consumidor. Porto
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MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Sociedade do risco e direito penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCrim,
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MARQUES, José Frederico. Estudos de direito processual penal.
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RT, 1975.
SANGUINÉ, Odone. Introdução aos crimes contra o consumidor: perspectiva criminológica e penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 675, p. 328,
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Curitiba: Lumen Juris/ICPC, 2005.
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JOSÉ ARTHUR DI SPIRITO KALIL e LUIS AUGUSTO SANZO BRODT
SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da
Constituição. São Paulo: Editora RT, 2003.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A tutela penal dos interesses difusos.
São Paulo: Editora RT, 2003.
TORON, Alberto Zacharias. Aspectos penais da proteção ao consumidor.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 3, n. 11, p. 87, jul./set. 1995.
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LESÃO AO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E
DA ISONOMIA NA ESFERA DA INSTÂNCIA
SUPERIOR NO QUE PERTINE À
MANIFESTAÇÃO DA PROCURADORIA DE
JUSTIÇA
Tarcisio Marques *
Edson Alexandre da Silva**
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Considerações iniciais. 2. O Parquet e o seu múnus
no feito criminal. 3. O contraditório e a manifestação do Ministério Público na 2ª Instância. 4. Jurisprudências. 5. Doutrina no direito comparado. 6. Conclusão. 7. Referências.
Zeus... enviou Hermes com o objetivo de dar aos homens pudor e
justiça, a fim de que construíssem cidades e estreitassem os laços comuns de
amizade. Hermes, após receber esta ordem, perguntou a Zeus como deveria
dar aos homens o pudor e a justiça, e se as distribuiria como Epimeteu havia
distribuído as artes; porque eis aqui como foram estas distribuídas: a arte da
medicina, por exemplo, foi atribuída a um homem só, que a exerce para uma
multidão de outros que não a conhecem, e o mesmo sucede com todos os
demais artistas. Bastará, pois, que eu distribua igualmente pudor e justiça
entre um pequeno número de pessoas, ou que os reparta entre todos indistintamente? Entre todos, sem dúvida, respondeu Zeus; é preciso que todos
sejam partícipes, porque ao se entregar a um pequeno número, como foi feito
com as demais artes, nunca haverá nem sociedades nem povos.1
*
Membro do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos e Sociais (BRAJS). Juiz de Direito
titular da 2ª Vara da Comarca de Andradas. Juiz Eleitoral da 13ª Zona. Pós-graduado em
Direito Processual Penal.
**
Membro do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos e Sociais (BRAJS). Assessor de Juiz de
Direito. Pós-graduado em Direito Público e em Direito Processual.
1
PLATÃO. Diálogos: Protágoras o de los sofistas, p. 114.
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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Insta-nos como intróito, embora de todos os estudiosos do Direito
já por demais sabido, trazer à baila alguns dos princípios basilares do regime democrático que se consubstanciam, dentre outros, no princípio da
igualdade das partes, da ampla defesa, e em principal, como constou do
título – o princípio do contraditório e da isonomia, quer seja, igualdade das
partes em todos os atos e fases processuais.
O princípio do contraditório, como sabido, figura como um dos mais
importantes no processo acusatório, garantia constitucional que assegura a
ampla defesa do acusado, conforme expresso também na Carta Maior
(art. 5º, LV). Segundo tal princípio, o acusado goza do direito de defesa
sem restrições, repita-se – sem restrições –, em todo processo, destarte,
deve estar assegurada a igualdade das partes.
Como já apregoava o mestre J. Canuto Mendes de Almeida, abordando o princípio do contraditório no processo penal,
a verdade atingida pela justiça pública não pode e não deve
valer em juízo sem que haja oportunidade de defesa ao indiciado.
É preciso que seja o julgamento precedido de atos inequívocos
de comunicação ao réu: de que vai ser acusado; dos termos
precisos dessa acusação; e de seus fundamentos de fato (provas) e de direito. Necessário também é que essa comunicação seja feita a tempo de possibilitar a contrariedade: nisso
está o prazo para conhecimento exato dos fundamentos
probatórios e legais da imputação e para a oposição da contrariedade e seus fundamentos de fato (provas) e de direito.2
Corolário do princípio da igualdade, a isonomia processual obriga
que a parte contrária seja também ouvida, em igualdade de condições e
também de oportunidades. Em outras palavras, se determinada parte se
manifestou, seguidamente a parte contrária ou ex-adversa deverá ter a
possibilidade de também se manifestar nos autos. Assim, a ciência bilateral
dos atos e termos do processo e a possibilidade de contrariá-los são os
limites impostos pelo contraditório, a fim de que se concedam às partes
2
Cf. ALMEIDA J., Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do processo penal, p. 86-87.
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ocasião e possibilidade de intervenção no processo, apresentando provas, oferecendo alegações e, ao menos ter o direito de rebater o que foi
dito em seu desfavor.
Feitas essas considerações preliminares e adentrando no tema propriamente dito (lesão aos princípios do contraditório e da isonomia), instanos desde já mencionar, fato que não é de ninguém desconhecido, que nos
processos criminais, após a prolação da sentença em 1ª Instância, havendo, por óbvio recurso, após as razões e contra-razões das respectivas
partes envolvidas (art. 601 do CPP), nos termos do art. 602 Código de
Processo Penal, os autos, após ascenderem à instância superior, são remetidos à Procuradoria da Justiça para a sua devida (ou indevida? – como se
verá) manifestação (art. 610 do CPP)
Nos dizeres do art. 610, parte final, do CPP, após essa etapa é que
será remetido ao relator, para designação, pela respectiva câmara, de dia
para julgamento.
Pois bem, quem desconhece que o Procurador de Justiça, quando
de sua manifestação, não raras vezes, acrescenta, enxerta, até mesmo insere novas citações de doutrina e jurisprudência às razões/contra-razões do
Parquet de 1ª Instância? Há casos que conhecemos, que até mesmo inova
as teses expostas em instância primeva, muitas vezes até partindo para a
exacerbação. Em princípio, poderiam pensar alguns que tal manifestação
do Procurador de Justiça seria até aceitável, afinal é o órgão acusador que
está com a palavra.
Entretanto, não nos parece correto, aqui usando um eufemismo, pois
na verdade se nos afigura como inexoravelmente injusto e ilegal que não seja
possibilitado à defesa qualquer oportunidade para manifestar-se sobre a inovação ou o acréscimo aposto no corpo acusatório, em detrimento do réu.
Que desde já não se argua que poderia perfeitamente o réu, por
intermédio de seu procurador constituído, se desejasse, proceder à sustentação oral, onde poderia rebater o que passamos, doravante, denominar
de “acréscimos acusatórios”, apostos pela Procuradoria de Justiça. Mas
não é também desconhecido de ninguém que a maioria dos réus não dispõe
de recursos financeiros para contratar um advogado para desenvolver sua
defesa, sendo, geralmente, designado advogado dativo para tal mister. Não
é também desconhecida de ninguém a carência de Defensores nos Estados
da Federação para proceder à defesa e muito menos realizar a manifestação
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ou sustentação oral na instância ad quem. Assim, somente os réus e acusados que tenham como parceiro o níquel e a prata é que terão condições de
contratar um profissional para o rebatimento do que fora acrescido em seu
desfavor pelo Procurador de Justiça que atua em grau de recurso no feito.
Desejamos consignar que uma única vez, durante nossa atuação no
Poder Judiciário, pudemos verificar que um único Procurador de Justiça3
quando de sua manifestação, assim se pronunciou, in verbis:
[...].
Inicialmente, peço vênia ao nobre Relator para tecer alguns
comentários a respeito de nossa visão acerca da intervenção
da Procuradoria de Justiça nos recursos de apelação e nos
recursos em sentido estrito.
A nosso aviso, a manifestação do Procurador de Justiça em
segunda instância, se contrária ao réu, fere os princípios constitucionais do contraditório e da igualdade entre as partes.4
De louvar-se, pois, tal iniciativa.
2 O PARQUET E O SEU MÚNUS NO FEITO CRIMINAL
Fato é que o crime lesa não apenas direitos individuais, mas sociais
também, pois perturba as condições da harmonia e estabilidade, sem
as quais não é possível a vida comunitária. Mas incumbe ao Estado –
que é um meio e não um fim – a consecução do bem comum, que não
conseguiria alcançar se não estivesse investido do jus puniendi, do
direito de punir o crime, que é o fato mais grave que o empece na
consecução daquela finalidade. Conseqüentemente, deve o Estado, além
do jus puniendi, dispor de outro direito que vai realizar aquele: é o jus
persequendi ou jus persecutionis (direito de ação), que, por assim
dizer, realiza o jus puniendi.
3
TJMG, Apelação n. 446.123-2, Comarca de Santa Rita de Caldas-MG. Procurador de Justiça
Marco Antônio Lopes de Almeida.
4
No mesmo sentido: CRUZ, Roberto Schietti Machado. Atuação do Ministério Público no
processamento dos recursos criminais face aos princípios do contraditório e da isonomia.
Revista dos Tribunais, p. 491.
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Assim, o processo como procedimento é, pois, o conjunto de atos
legalmente ordenados para apuração do fato, da autoria e exata aplicação
da lei. O fim é este: a descoberta da verdade, o meio.5
O Ministério Público é o órgão estatal da pretensão punitiva. Como
a aplicação do direito de punir depende de julgamento prévio, existe esse
órgão para deduzir a pretensão punitiva em juízo, mediante acusação, e
também para orientar e ter proeminência em toda a persecução penal.6
No processo penal, é parte, como senhor que é da ação: propõe-na,
enumera e fornece as provas, luta e porfia para o triunfo final da pretensão
punitiva, que será proclamado pelo juiz contra o acusado. Participa, pois, do
juízo – acutum trium personarum – no qual existem autor, réu e o juiz.7
Sobre a instituição Ministério Público, sempre oportuno recordar o
ensinamento de José Frederico Marques:
O Ministério Público, por sua vez, integra a relação processual
armado de direitos subjetivos correlacionados com a função que
lhe seja dado exercer no desenrolar do procedimento. Quer como
autor, quer como fiscal da lei, esse órgão estatal se encontra em
face da norma processual, ora na posição ativa de quem exige o
cumprimento de imperativos jurídicos em prol dos interesses que
encarna, ora na de sujeição passiva a outros imperativos da mesma natureza. Também o Ministério Público, por isso mesmo, é
titular de direitos subjetivos processuais, que se configuram segunda a função que lhe é conferida na relação processual.8
Não desconhecemos as prerrogativas do Parquet, todavia,
contemporaneamente, considerando que na República Federativa do Brasil
vige o Estado Democrático de Direito9 (art. 1º da CF/88), ao nosso aviso,
Cf. NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
Cf. MARSICO, Alfredo de. La rappresentanza nel diritto processuale penale, p. 150.
7
Cf.NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal, cit.
8
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal., v. II, p. 289.
9
Anote-se que o Estado Democrático de Direito, conformado pela Constituição de 1988, é um
Estado de Justiça Social. Com efeito, constituem seus fundamentos a soberania, a dignidade
da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político.
(Cf. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional: teoria do Estado e da Constituição – Direito constitucional positivo. 13. edição revista, atualizada e ampliada conforme a
Emenda Constitucional n. 53/06. Belo Horizonte: Del Rey, 2007)
5
6
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sua manifestação na segunda instância do Poder Judiciário, sem que seja de
igual modo possibilitada à Defesa enseja pelo menos uma discussão.
A propósito a Carta Magna de 1988, a Constituição Cidadã incorporou o princípio do devido processo legal, que remonta à Magna Charta
Libertatum de 1215, de fundamental importância no direito anglo-saxão.
Desde a Revolução de 1789, o regime constitucional é associado à
garantia dos direitos fundamentais. Não é ocioso recordar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (art. 16) condicionou à proteção dos direitos individuais a própria existência da Constituição.10
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. XI,
n. 1º, garante:
todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser
presumido inocente até a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe
tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à
sua defesa.
Ora, dos mais importantes no processo acusatório é o princípio do
contraditório (ou da bilateralidade da audiência). Trata-se de garantia constitucional que assegura a ampla defesa do acusado (art. 5º, LV).
Julio Fabbrini Mirabete, sobre a quaestio, assinala:
O acusado goza do direito de defesa sem restrições, num processo em que deve estar assegurada a igualdade das partes. [...]
Corolário do princípio da igualdade perante a lei, a isonomia
processual obriga que a parte contrária seja também ouvida,
em igualdade de condições (audiatur et altera pars). A ciência bilateral dos atos e termos do processo e a possibilidade de
contrariá-los são os limites impostos pelo contraditório a fim
de que se conceda as partes ocasião e possibilidade de intervirem no processo, apresentando provas, oferecendo alegações, recorrendo das decisões, etc.11
10
11
Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 15. ed. São
Paulo: Atlas, 1986.
Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1994.
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3 O CONTRADITÓRIO E A MANIFESTAÇÃO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO NA 2ª INSTÂNCIA
O contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a
condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela
acusação caberá igual direito de defesa de opor-se a ele ou de dar-lhe a versão
que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica
diversa daquela feita pelo autor.12 Hoje, na apelação comum, subindo os autos
ao juízo ad quem, irão eles com vista ao Ministério Público de segunda instância, pelo prazo de dez dias, e em seguida – é claro – aos atos preliminares do recebimento do processo no tribunal, respectivo registro e outros mais.13
Vejamos.
Nos recursos em sentido estrito, com exceção do de habeas corpus,
e nas apelações interpostas das sentenças em processo de contravenção
ou de crime a que a lei comine pena de detenção, os autos irão imediatamente com vista ao Procurador-Geral, pelo prazo de cinco dias e, em seguida, passarão, por igual prazo, ao relator, que pedirá designação de dia
para o julgamento (art. 610 do CPP).
Se o requerimento não foi indeferido in limine, abrir-se-á vista dos
autos ao Procurador-Geral, que dará parecer no prazo de dez dias. Em
seguida, examinados os autos, sucessivamente, em igual prazo, pelo relator
e revisor, julgar-se-á o pedido na sessão que o presidente designar
(art. 625, § 5º, do CPP).
Assim é que o imortal e sempre lembrado Prof. José Frederico Marques ensina:
Segundo nos parece, o texto mencionado só se afina com os
princípios de nosso processo penal se for entendido em termos restritos. O procurador – geral deve ter vista dos autos,
não para neles oficiar, e sim para tomar conhecimento da
causa e acompanhar seus trâmites no juízo ad quem.14
12
CF. MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 21. edição atualizada até a EC 53/06. São
Paulo: Atlas, 2007.
13
Cf. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 1965. v. IV.
14
Cf. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro:
Forense, 1965. v. IV.
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Com efeito, a vista é aberta a Procuradoria-Geral de Justiça para
que o Procurador verifique a pertinência de se fazer sustentação oral da
acusação, colocar-se a par das questões debatidas no recurso e, se requerer intervenção nos debates orais do processo para responder à defesa,
encontrar-se apto a propugnar pela condenação do acusado.
4 JURISPRUDÊNCIAS
A Corte Constitucional brasileira, STF, já teve a oportunidade de
tratar da quaestio que não é singela:
I – O recorrente foi condenado a 3 meses de detenção, com
convolação em multa, por difamação (Lei 5.250/67, art. 21,
caput). O Ministério Público, que falou por último lugar, opinou pela condenação. Como o querelado não pode manifestar-se depois, argüiu a nulidade do processo a partir daí, pois
violado teria ficado o devido processo legal na modalidade
da ampla defesa.
II – O art. 45, IV, da Lei de Imprensa abre prazo para que o
autor e réu falem seguidamente. No art. 40, § 2º, II, determina seja ouvido o Ministério Público. Como o Parquet se
manifestou, ainda que como custos legis, contra o querelado, cabia ao juiz, sob pena de violação ‘material’ do devido
processo legal, ter dado oportunidade ao ora recorrente para
que ele rebatesse as argumentações ministeriais. Invocação
do disposto no § 2º do art. 500 do CPP.
III – Recurso provido.15
5 DOUTRINA NO DIREITO COMPARADO
No direito alienígena em Portugal o tema foi objeto de questionamento no Tribunal Constitucional.
Manuel Lopes Maia Gonçalves, comentando o art. 416 do novo
Código de Processo Penal de Portugal de 1988, correspondente ao art.
664 do CPP de 1929, leciona:
15
STF, RHC 4457, Rel. Min. Adhemar Maciel, 6ª T., j. 13/11/1995, DJU 24/1996, p. 22.810.
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Cumprirá ao MP no tribunal superior apor o seu visto ou
emitir o seu parecer, o qual não está vinculado pela motivação ou pela resposta do Ministério Público emite o seu parecer, podendo suscitar quaisquer que se lhe oferecem como
cabidas para a decisão e devendo, logicamente, seguir a ordenação estabelecida nas alíneas do no. 2 do art. 417; em
casos que se afigurem de extrema simplicidade aporá o visto
no processo.
A norma do art. 664 do CPP de 1929, reproduzida pelo art.
416 do CPP de 1987, quando interpretada no sentido de conceder ao Ministério Público, para além já de qualquer resposta ou contrapartida da defesa, a faculdade de trazer aos
autos uma nova e eventualmente mais aprofundada argumentação contra o recorrido, é lesiva dos princípios consagrados no art. 32, ns. 1 e 5 da CRP.
José Narciso da Cunha Rodrigues, outro lusitano, assevera:
Relativamente à tramitação do recurso, o Código mantém
a vista inicial ao Ministério Público emitir parecer no tribunal superior foi objecto de recente apreciação pelo Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta da
constitucionalidade. Por acórdão de 6 de maio p.p. (1987),
o Tribunal considerou inconstitucional o art. 664 do Código de Processo Penal (de 1929), que continha a mesma
redação do atual art. 416). Se bem compreendemos, na
decisão deste Alto Tribunal, aliás excelentemente fundamentada, a linha –força da argumentação reside mais na
violação do contraditório que do princípio de igualdade de
armas. Qualquer que seja o rigor da decisão, ela parece
ter ido além da intenção do Tribunal. Não se afigura passível de censura constitucional o Ministério Público ter
vista do processo. É uma via processual legítima de transmissão dos autos. A outra (notificação e confiança do processo) é estranha à posição do Ministério Público como
órgão de justiça.
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6 CONCLUSÃO
A filosofia do direito pretende pensar com o rigor do pensamento
científico. Pretende ser considerada uma “ciência do direito”. Para tanto,
elude uma tarefa hermenêutica sumamente interessante: interpretar as construções fantásticas do direito penal. Porém, ao mesmo tempo elude também uma incumbência ética: a reflexão sobre as conseqüências dessas construções para o ser humano que as sofre.16
Damásio Evangelista de Jesus anota:
É inegável, diz o Ministro José Celso de Mello Filho, que o
Promotor de Justiça detém parcela da autoridade emanada
do Estado, razão pela qual os seus atos serão passíveis de
controle e de correção judiciais quando afetados pelos vícios
da ilegalidade ou do abuso de poder.
O princípio do contraditório – diz Robert Wyness Millar, “é inseparável
da administração de uma justiça bem organizada e encontra sua expressão
na parêmia romana do audiatur et altera pars, pois o juiz deve ouvir
ambas as partes para poder decidir e julgar”.17
Assim, temos como reluzente que “as partes devem ser postas em
condições de se contrariarem”. É o mínimo que o ordenamento jurídico
pátrio deve prever sob pena de ferir o princípio do contraditório, e, com a
ausência deste não há o devido processo legal.
Finalmente, não raras vezes, como já salientado alhures, o Procurador de Justiça, em sua manifestação na 2ª Instância, trazendo novos arestos
jurisprudenciais, entendimentos doutrinários e mesmo novos argumentos,
induz a Câmara Criminal ao aumento da pena, bem como ainda a negar
provimento a apelação manejada pelo réu.
Com a permissa venia, em respeito aos princípios ora debatidos,
entendemos que deva ser pensado em uma etapa, uma fase a ser deferida
à defesa, propiciando, quiçá, ao menos que se proceda à intimação da
parte ex adversa, para fazer a contra-oposição ao que foi em nosso enten16
17
CF. MESSUTI, Ana. O tempo como pena. Tradução de Tadeu Antonio Dix Silva e Maria
Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: Editora RT, 2003.
MILLAR, Robert Wyness. Los princípios formativos del procedimento civil, p. 47.
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der indevidamente acrescido, alongado, ou seja, o que denominamos de
“acréscimos acusatórios”; e, em caso de tratar-se de réu pobre, portanto
sem recursos financeiros, possibilitar em respeito ao princípio do contraditório, da igualdade, etc., que a Defensoria Pública se manifeste a respeito.
É o mínimo o que se poderia esperar de um Estado Democrático de
Direito, onde haja Justiça e vigore princípios basilares da Constituição tais
quais o contraditório e a isonomia.
Ne Sutor ultra crepidam.18
7 REFERÊNCIAS
ALMEIDA J., Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do processo
penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.
CALDAS, Gilberto. Novo dicionário de latim forense. São Paulo: Leud, 1984.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional: teoria do Estado e da Constituição – Direito constitucional positivo. 13. edição revista,
atualizada e ampliada conforme a Emenda Constitucional n. 53/06. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
CRUZ, Roberto Schietti Machado. Atuação do Ministério Público no
processamento dos recursos criminais face aos princípios do contraditório e
da isonomia. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 737, p. 491.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional.
15. ed. São Paulo: Atlas, 1986.
JESUS, Damásio E. de. Código de processo penal anotado. 10. ed. São
Paulo: Saraiva, 1993.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio
de Janeiro: Editora Forense, 1965. v. II.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio
de Janeiro: Editora Forense, 1965. v. IV.
MARSICO, Alfredo de. La rappresentanza nel diritto processuale penale. 1915.
MESSUTI, Ana. O tempo como pena. Tradução de Tadeu Antonio Dix Silva
e Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: Editora RT, 2003.
18
Não vá o sapateiro além das chinelas. (CALDAS, Gilberto. Novo dicionário de latim forense.
São Paulo: Leud, 1984)
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TARCISIO MARQUES e EDSON ALEXANDRE DA SILVA
MILLAR, Robert Wyness. Los princípios formativos del procedimento
civil. 1945.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1994.
MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 21. edição atualizada até a
EC 53/06. São Paulo: Atlas, 2007.
NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 20. ed.
São Paulo: Saraiva, 1990.
PLATÃO. Diálogos: Protágoras o de los sofistas. México: Porrúa, 1996.
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20
ASSOCIATIVISMO MUNICIPAL E A
CONSOLIDAÇÃO DO PAPEL DO MUNICÍPIO
COMO ENTE DO SISTEMA FEDERATIVO
BRASILEIRO
Beatriz Morais de Sá Rabelo Corrêa*
–––––––––––––––– SUMÁRIO ––––––––––––––––
1. Introdução. 2.1. O município no constitucionalismo
brasileiro. 2. Estudos de reformulação do pacto federativo: participação efetiva dos representantes da esfera
municipal. 2.2. Da necessidade de reformulação do pacto federal como meio de fortalecimento dos municípios.
3. Em busca de um mecanismo eficaz de intermediação
entre o estado e o município. 4. Das políticas públicas.
5. Considerações finais. 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Desde as mais remotas raízes da colonização brasileira há um traço
de autoritarismo que insiste em permanecer no seio social. De fato, já nos
primórdios, a concentração de poder nas mãos da elite fundiária que
controlava as Câmaras Municipais marcou definitivamente a história dessa enorme Colônia.
O contexto político-social era extremamente favorável ao
coronelismo, definido por Victor Nunes Leal como, “sobretudo, um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais,
notadamente senhores de terras”.1
*
Advogada. Especialista em Direito Público Municipal pela Unimontes. Secretária Executiva
da Associação dos Municípios da Área Mineira da Sudene.
1
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no
Brasil, p. 42.
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BEATRIZ MORAIS DE SÁ RABELO CORRÊA
O poder, nesse contexto, servia como verdadeira moeda de troca.
Todo o arranjo político dava-se sob o manto da reciprocidade, ou seja,
de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores como que toca tropa de burros; de
outro lado, a situação política dominante do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial,
que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça. 2
O cenário de miséria que rodeava a maioria da população rural era
propício aos votos de cabresto que marcavam as eleições. E não apenas no
momento específico do voto; como em todas as demais relações políticas,
reinava o paternalismo, o mandonismo (perseguição aos adversários) e o
filhotismo (distribuição de cargos públicos entre os agregados políticos).3
Todavia, além desse contexto socioeconômico, havia uma deficiência institucional que servia de sustentáculo ao coronelismo: a carência de
autonomia dos municípios. Em outras palavras, havia uma dependência do
poder político local em relação ao governo estadual, uma vez que os municípios ficavam à mercê de uma autonomia apenas extralegal, concedida
pelo governo estadual de acordo com o apoio político recebido.
Nesse período, a Lei Orgânica municipal era ditada pelo Poder
Legislativo estadual. Esse mecanismo de poder, por óbvio, permitia o cerceamento explícito da autonomia local. Todavia, no contexto dos acordos
com os coronéis, o governo estadual trocava algumas concessões
“extralegais” por apoio político, e assim mantinham-se incólumes as bases
autoritárias do coronelismo.
Nota-se que a força dos coronéis encontrava um cenário de extrema
miséria da maioria da população. Portanto, ainda que aquele que se despontava como coronel não fosse verdadeiramente abastado, diante da
miserabilidade dos demais, assim este lhes parecia. E, como sói acontecer, onde há escassez de recursos básicos para a sobrevivência humana,
2
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no
Brasil, p. 42.
3
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no
Brasil, p. 60-61.
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ASSOCIATIVISMO MUNICIPAL E A CONSOLIDAÇÃO DO PAPEL DO MUNICÍPIO...
a instrução é algo ainda mais raro e a população costuma sucumbir-se
diante de uma simples promessa de mantimentos.
Assim, os coronéis costumavam falsear os votos dos seus rebanhos
eleitorais, direcionando os votos para o resultado pactuado, através dos
votos de cabresto e de elementos coercitivos como a ação de pistoleiros
que viviam à sombra de sua autoridade.
Não bastasse, era de praxe a vigia do voto que, antes de 1932, não
era secreto. Todavia, mesmo após a Revolução de 1930, com a promulgação do Código Eleitoral (que instaurou o voto secreto), o sistema coronelista
persistiu no cenário nacional, haja vista que a sua base de sustentação era a
estrutura agrária do País, e não o voto em si.4
Com efeito, passadas duas décadas da promulgação da nova ordem
constitucional, pautada na democracia e no federalismo, é notório que ainda persistem arraigados em nossa administração resquícios do coronelismo.
Dentre esses, importa-nos, em específico, a autonomia municipal.
De fato, se no auge do coronelismo, na República Velha (de 1889 a 1930)
a ausência ou a redução da autonomia municipal, aliada a outros fatores
estruturais, servia de sustentáculo do coronelismo, esse mesmo fenômeno,
hoje, impede que se firme de maneira efetiva a soberania do povo.
Sem dúvida, “sem a força e a independência das comunas, nelas não
encontraremos mais que administrados, e não cidadãos”.5
Com efeito, é com base nas novas diretrizes constitucionais que elevaram o município na ordem federativa, mas sem perder de vista as deficiências
herdadas do passado, que se objetiva abordar a questão da autonomia municipal, em busca de mecanismos eficazes que, verdadeiramente, contribuam
para o fortalecimento dos municípios e das vozes locais. E, como bem afirma
Ruy Cirne Lima, “descentralizar é pluralizar a autoridade”.6
Sem dúvida, o contexto atual exige a descentralização de poder, sem o
qual pouco se avançará na concretização das políticas públicas necessárias à
efetivação das garantias fundamentais previstas na Constituição Federal.
4
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no
Brasil, p. 257.
5
LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo, p. 145.
6
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes de certas leis e certos
costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social
democrático, p. 78.
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Nesse sentido, aplica-se o conceito de que “a formulação de políticas públicas constituí-se no estágio em que governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações, que
produzirão resultados ou mudanças no mundo real.”7
Essa mudança está diretamente associada à participação efetiva da
sociedade, produzindo efeitos nas instituições e na qualidade das políticas
públicas, sendo esse o processo de interação entre e indivíduo e a estrutura.
2 ESTUDOS DE REFORMULAÇÃO DO PACTO
FEDERATIVO: PARTICIPAÇÃO EFETIVA DOS
REPRESENTANTES DA ESFERA MUNICIPAL
2.1 O município no constitucionalismo brasileiro
Inúmeros fatores históricos e governamentais forçaram a redução ou
mesmo a extinção da autonomia dos municípios nos textos constitucionais
brasileiros. Essa constatação reforça a idéia de que o verdadeiro poder
soberano nasce mesmo é no município, pois é ali que se concentram os
elementos fundamentais da vontade popular. Nos momentos de maior
autoritarismo, a primeira providência do soberano é calar a voz das comunas
e, conseqüentemente, do povo.
A instituição municipal ganhou existência constitucional em 1824, no
Império, nos termos dos arts. 167, 168 e 169 da primeira Lei Maior, o que
não implicou, todavia, a realização da autonomia municipal. Vejamos o que
dispunha o art. 167 da Constituição Imperial:
Art. 167. Em todas as Cidades e Villas ora existentes, e, nas
mais, que para o futuro se crearem haverá Câmaras às quaes
compete o governo econômico e municipal das mesmas Cidades e Villas.
Para maior entendimento da importância dada ao governo local
pelo Império, cumpre transcrever, ainda, os arts. 168 e 169 da Constituição de 1824:
7
HOCHMAN, Gilberto; ARRETCHE, Marta; MARQUES, Eduardo (Org.). Políticas públicas no Brasil, p. 69.
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Art. 168. As Câmaras são eletivas, e compostas do número
de vereadores que a Lei designar, e o que obtiver o maior
número de votos, será Presidente.
Art. 169. O exercício de suas funções municipais, formação
das suas posturas policiais, aplicação das suas rendas, e todas
as suas particulares, e úteis atribuições serão decretadas por
uma lei regulamentar.
Da análise dos antigos dispositivos constitucionais destacados verifica-se que os municípios na verdade não passaram a dispor de autonomia, uma vez que uma lei regulamentar viria definir as funções das Câmaras. Todavia, a Lei de Organização Municipal, de 1º de outubro de 1828,
e o Ato Adicional de 1834 foram instrumentos normativos que acabaram
por reduzir a autonomia municipal. Em sua vigência, os assuntos de interesse local dependiam dos governos provincial e central, tanto é que a
Lei n. 28, de 1º de outubro de 1828, regulamentou o exercício das funções municipais, designando às Câmaras atribuições meramente administrativas. No entanto, tal legislação teve como mérito o favorecimento
do desenvolvimento do orçamento local (instaura-se aí o princípio da
discriminação das rendas locais) e das posturas municipais.8
Ainda com relação ao tolhimento da autonomia municipal no período imperial, importante destacar que, com a promulgação da Lei n. 105,
de 12 de maio de 1840 (Lei de Interpretação), os municípios ficaram
com total ausência de atos de administração local. Até mesmo para as
Câmaras executarem o que deliberavam de acordo suas atribuições
teriam de obter a aprovação do governo das províncias, da assembléia
provincial ou do presidente, conforme o caso.
Nesse mesmo sentido, foram os ditames das Constituições de 1891,
de 1934 e de 1937. Já a Constituição de 1946, embora textualmente
tenha garantido maior autonomia municipal, continha normas que poderiam
limitá-la.
Por sua vez, a Constituição Republicana e Federalista deu ao
município caráter autônomo. Todavia, na prática, o poder instituído foi
8
Cf. MELO FILHO, Urbano Vitalino de. Direito municipal em movimento, p. 26.
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sucumbido pelo poder de fato do coronel, permanecendo soberanas as
forças clientelistas existentes nesse período.
A efêmera Constituição Federal de 1934, embora tenha demonstrado
maior teor democrático, foi logo extirpada pelo Golpe Militar da Era Vargas.
A Constituição de 1937 foi marcada pela baixa autonomia municipal e pelo
sistema centralizador Getúlio Dornelles Vargas.
Somente com a Constituição de 1946 é que o município começou a
despontar no cenário político-constitucional como ente simétrico às demais
esferas de poder. Todavia, diante dos fatos que ocorreram até a Constituição de 1967, em especial o Golpe Militar e o regime ditatorial instaurado,
“todas as conquistas até então alcançadas pelos municípios estavam sucumbindo”,9 perdendo, assim, a autonomia anteriormente conquistada em
tríplice aspecto: administrativo, financeiro e político com o Ato Institucional
n. 5 e todos os demais que o seguiram.10
Diante dessas notícias históricas, inegável que foi mesmo a Constituição Federal de 1988 que elevou o município a ente federativo, reconhecendo relativa autonomia política, financeira e administrativa.
As Constituições anteriores, ao tratarem dos entes federados, dirigiamse tão-somente aos Estados, sem considerarem a existência e o valor dos
municípios no cenário nacional. Aos Estados é que se atribuía a competência de organizar os municípios e até mesmo definir as suas atribuições e
estrutura de seus poderes, incluída a elaboração das leis orgânicas municipais. Ao contrário de hoje, a lei orgânica municipal não era uma norma
particular de cada município, era traçada pelo legislativo estadual. Antes da
promulgação da Constituição Federal de 1988, raros foram os casos em
que os Estados concederam autonomia aos municípios, tendo como exemplo o Estado do Rio Grande do Sul, cuja Constituição Estadual incumbiu
os municípios de editarem suas leis orgânicas.
Essa tradição centralizadora comprometeu a capacidade dos municípios de exercerem sua autonomia, privilegiando-se uma mentalidade que
os transformava em mera instância de “administração” dos insuficientes
9
MARCO, Cristhian Magnus de. Evolução constitucional do município brasileiro. Revista
Jurídica, p. 93.
10
MARCO, Cristhian Magnus de. Evolução constitucional do município brasileiro. Revista
Jurídica, p. 93.
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recursos repassados por outras esferas de governo. Sendo assim, estabeleceu-se uma lógica incongruente de que o município deveria permanecer
sempre alinhado às políticas dos outros entes da federação, não como sujeito de uma relação de interação plena com os demais entes federados
que visasse a otimização dos recursos na persecução do bem comum, mas
sim de uma mera relação de sujeição aos executivos estadual e federal,
desprezados os elementos enseja dores do interesse local.
Nesse sentido, a fundação das diversas associações representativas
de municípios, ao longo de mais de três décadas – movimento iniciado
mesmo antes da promulgação da CF/88 que elevou os municípios brasileiros à condição de entes federados – foi decisiva para que se buscasse
suprir uma necessidade premente de se fazer representar os interesses locais, observadas as peculiaridades de cada região.
Portanto, entende-se oportuno que se discuta a maior participação
dos municípios na realização do interesse público, criando-se, para tal,
mecanismos de maior representatividade. E, neste diálogo, as associações
microrregionais, atentas à necessidade de correção das distorções oriundas do pacto federativo vigente, quer seja na formulação e implementação
de políticas públicas, quer seja no repasse mais justo de recursos para o
custeio de suas atividades, devem unir esforços para que se viabilize uma
efetiva participação dos municípios, segundo preceitua a Lei Maior.
A idéia central seria a criação de uma ponte entre a percepção dos
problemas locais e os formuladores de políticas públicas nos âmbitos
federal e estadual, necessariamente distantes do local onde o cidadão
vive suas agruras.
A inserção do município entre os componentes da federação não se
fez graciosamente, pois tem conseqüências jurídicas, dentre as quais a de
não poder ser alijado das esferas decisórias que de alguma forma afetem
os interesses locais.
Nesse contexto é que se vislumbra a possibilidade de as associações
de municípios atuarem de maneira mais próxima ao Governos Estadual e
Federal, servindo como intermediários entre o Estado e as necessidades
locais, visando otimizar a implementação das políticas públicas adequadas
aos respectivos municípios que congregam. Esse elemento de intermediação
pode ser consubstanciado na criação de um órgão consultivo e deliberativo,
composto por representantes de todas as regiões.
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Sem dúvida alguma, a partir da Constituição Federal de 1988, é necessário priorizar a descentralização para unidades administrativas territoriais
menores, de modo que o destino dos recursos públicos parta das localidades
mais próximas aos cidadãos, atendendo às necessidades locais.
Essa descentralização aproxima o Estado do cidadão, de modo a
fortalecer o diálogo entre as necessidades, expectativas e comandos da
população e os Administradores.
Com a criação de um órgão com esse objetivo, certamente haveria
maior proveito de recursos, eis que melhor direcionados de acordo com as
reais necessidades daquele que é destinatário final da coisa pública: o cidadão.
Além disso, é certo que tais mecanismos, por diminuírem o
distanciamento entre administrados e administrador, exigem daqueles maior
participação nas discussões políticas e deste maior comprometimento.
A visão de nosso federalismo como centrífugo explica a nossa federação extremamente centralizada que, para aperfeiçoar-se, deve buscar constantemente a descentralização. O Brasil é um Estado federal surgido de um
Estado unitário, o que explica a tradição centralizadora e autoritária que deve
ser abandonada para que se construa uma federação moderna e um verdadeiro Estado Democrático de Direito. A Constituição de 1891 construiu um
modelo federal altamente descentralizado, porém artificial, pois não houve
União de Estados soberanos, mas, sim, uma divisão para se criar uma União
artificial que, por esse mesmo motivo, recuou nas Constituições brasileiras
posteriores. Não se pode negar a história, mas, sim, trabalhar com ela para
fazer evoluir o nosso Estado para modelos mais descentralizados e, logo,
mais democráticos. É justificado, pois, o aparecimento de um federalismo de
três níveis no Brasil, país de tradição municipalista que é.
A descentralização é, pois, o melhor caminho para democratização
estatal e reconstrução de espaços comunitários aptos a resgatar uma nova
cidadania, baseada na organização e atuação da sociedade ao lado do
Poder Público.
2.2 Da necessidade de reformulação do pacto federal como
meio de fortalecimento dos municípios
O município é uma associação que corresponde a um instinto e a
uma necessidade natural do homem, como a um instrumento de progresso
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para si próprio. Dada a proximidade existente entre cidadão e município,
os munícipes serão sempre os maiores interessados em viabilizar soluções
para os problemas locais em virtude dos problemas básicos (escolas, estradas, luz, água, etc.) serem perceptíveis e vivenciados em maior escala
nos municípios.
Apesar de a atual Constituição Federal moldurar a descentralização
para as autonomias locais, de nada adianta tal prerrogativa se não lhes
forem propiciados os meios para a sua efetivação.
Nos dizeres de Michel Temer, a Constituição de 1988 fez renascer a
Federação e conferiu maior soma de competências administrativas e
legislativas aos Estados. Deu-lhes mais recursos tributários na tentativa de
pautar-se por uma verdade: não há verdadeira autonomia sem numerário
para execução de suas tarefas constitucionais.11
Pontual é a colocação de José Luiz Quadros de Magalhães, ao
afirmar com relação ao pacto federal que “mais do que nunca, é fundamental que encontremos soluções efetivas de implementação de uma democracia participativa, fundada na cidadania”. E prossegue o ilustre professor, afirmando:
A discussão da organização territorial contemporânea, cada
vez mais sofisticada e pontual, pois parte de realidades históricas, culturais, sociais e econômicas específicas, é importante, sendo necessário que haja a transferência de competências e de parcelas de soberania não só para os níveis
macrorregionais, como a economia globalizada exige, mas
principalmente para o poder local, até mesmo como forma
de resistência ao que há de perverso na globalização, vista
como fase de superação das economias internacionais [...].12
Pondera, por fim, que houve uma evolução das formas de organização territorial e de repartição de competências, que estão cada vez mais
complexas e ricas, e que há claramente, em nível mundial, uma valorização
crescente da descentralização territorial efetiva, como forma de ganhar em
agilidade, eficiência e, principalmente, em democracia, consagrando o
11
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional, p. 73.
12
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Pacto federativo, p. 13-14.
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respeito à diversidade cultural, que permite sejam encontradas soluções
criativas que respeitem o sentimento da localidade, da região cultural e
principalmente do sentimento de cidadania que se constrói na rica diversidade das culturas das cidades, “espaço real e não virtual”.13
Mais do que oportuna para a democracia brasileira, pois, é a discussão sobre o pacto federal, o regime de distribuição de competências e a
necessidade de fazer avançar o nosso modelo federal centrífugo. O nosso
federalismo se encontra fortemente comprometido, assim como nossa democracia, por adotar mecanismos altamente centralizadores.
Frise-se que nosso federalismo é um dos modelos mais centralizados, conforme se depreende de uma simples leitura dos arts. 21 a 24 da
Constituição Federal de 1988, que tratam da distribuição de competências. O federalismo brasileiro, ao contrário do norte-americano, é centrífugo e absolutamente inovador ao estabelecer um federalismo de três níveis,
incluindo o município como ente federado e, portanto, com um poder constituinte decorrente.
Portanto, a Constituição de 1988 restaurou a federação e a democracia, procurando avançar num novo federalismo centrífugo, que deve
buscar sempre a descentralização, e de três níveis, incluindo uma terceira
esfera de poder federal que é o município. Entretanto, apesar das inovações, o número de competências destinadas à União em detrimento dos
Estados e municípios é muito grande, fazendo com que tenhamos um dos
Estados federais mais centralizados no mundo.
Ainda que não trate especificamente do fenômeno da centralização dentro de um Estado federal, as lições do Prof. Paulo Bonavides a seguir transcritas ilustram a problemática que envolve o excesso de concentração de poder:
A centralização reúne porém conhecidas desvantagens. Dentre estas cumpre ressaltar em primeiro lugar a ameaça que
se faz pesar sobre a autonomia criadora das coletividades
particulares, sufocadas ou suprimidas, consoante o grau da
política centralizadora. Ao desaparecerem os grupos intermediários, cava-se um fosso entre o indivíduo e o Estado,
que a história política mais recente consigna via de regra
obstruído com o freqüente sacrifício da liberdade humana,
13
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Pacto federativo, p. 13-14.
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com a destruição dos anteparos sociais que eram aquelas
coletividades intermediárias, nas quais se abrigava contra a
onipotência do Estado a já circunscrita faixa de arbítrio individual; coletividades que deixaram de ser desde a queda do
feudalismo aqueles círculos da mais estreita e intolerável tirania, processada à sombra de um Estado a serviço do privilégio aristocrático, até se converterem, desde a revolução
burguesa vitoriosa, em asilos para as liberdades individuais
desamparadas e inermes como decorrência do desvirtuamento dos fins que o Estado busca socialmente prover e que
materialmente o vêm compelindo às opções intervencionistas,
cujo abuso, repetimos, constitui evidente ameaça ao homem
e à sua liberdade.
A seguir, a excessiva centralização sobrecarrega o poder
central de responsabilidades administrativas de somenos importância, que os agentes do poder público numa esfera local
de competência, munidos de um poder de decisão, oriundo
do organismo social interessado – do qual proviessem também esses mesmos agentes – estariam capacitados a levar a
cabo com mais vantagens para o bem comum da coletividade respectiva.
A centralização rigorosa conduz ordinariamente à paralisação dos direitos de self-government – de reconhecido proveito administrativo, político e social para os grupos envolvidos, do mesmo passo que diminui nesses grupos o interesse
por tudo quanto concerne à matéria pública, atrofiando conseqüentemente todo o esforço de iniciativa local.
Enfim, oferece a centralização este último lance negativo: promove ao plano da legislação nacional copiosa matéria de interesse meramente local e retarda a decisão de assuntos administrativos, que, na esfera das comunidades interessadas, encontrariam rápida ou instantânea solução, porquanto não ficariam tais comunidades à espera que os agentes superiores do
poder se familiarizassem com os temas pendentes, para darlhe muitas vezes a resposta mais inconveniente ou inadequada
às exigências de cada caso concreto e particular.14
14
BONAVIDES, Paulo. Ciência política, p. 165-166.
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O Estado contemporâneo atravessa uma profunda crise, na qual a
concentração de poder tende cada vez mais a anular o que ainda resta de
autonomia nas coletividades políticas participantes da composição federativa, mal permitindo distingui-las das unidades que integram o Estado unitário descentralizado.
Dessa maneira, embora permitidas algumas condutas centralizadoras,
constitucionalmente previstas, o Legislativo e o Executivo da União devem
buscar, o quanto possível, descentralizar competências, recursos e poderes.
3 EM BUSCA DE UM MECANISMO EFICAZ DE
INTERMEDIAÇÃO ENTRE O ESTADO E O MUNICÍPIO
Nessa linha de raciocínio, buscando mecanismos que promovam
maior autonomia municipal e o acesso a uma fatia maior de recursos financeiros, vislumbra-se nas associações microrregionais, um caminho, ainda
que indireto, para uma participação mais efetiva dos municípios na formulação e execução das políticas públicas, garantindo ações de desenvolvimento voltadas para as peculiaridades de cada região.
Isso porque é inegável que o fortalecimento dos municípios passa
pelo fortalecimento das associações que os congregam, em todas as regiões do Estado. Passa pela maior representatividade dos interesses locais, com a efetiva participação dos municípios nas deliberações sobre as
políticas públicas necessárias ao desenvolvimento do Estado.
Portanto, em primeira ordem, os Estados devem criar mecanismos
hábeis a incentivar o funcionamento das associações microrregionais, de
modo que elas possam contar com recursos materiais e humanos que sejam adequados ao estreitamento do elo entre o Poder Executivo estadual e
os Poderes Executivos municipais.
No entanto, focalizando-se no ideal de se conferir maior representatividade aos municípios em curto prazo, entende-se oportuna a criação
de um órgão colegiado que faça a ponte entre as necessidades locais,
microrregionais e regionais com os formuladores de políticas públicas nos
níveis estadual e federal, eliminando boa parte da distância que se verifica
entre os fatos e problemas vivenciados pelo cidadão e as opões preferenciais estabelecidas em políticas públicas criadas em centros administrativos
freqüentemente alheios ao dia-a-dia do local em que serão aplicadas, o
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que, sem dúvida, pode contribuir significativamente para uma aproximação
real dos Estados com os seus respectivos municípios.
Sugere-se, pois, que seja um órgão colegiado, composto por representantes do governo do Estado e das macrorregiões que o compõem,
cuja atribuição primordial seria possibilitar a participação de representantes dos executivos municipais na elaboração de planos de governo, na formulação e execução das políticas públicas do Estado, sempre que afetarem interesses locais.
4 DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Essa reflexão sobre a descentralização do poder, intermediação
entre as esferas de governo e fortalecimento da autonomia municipal
tem como pano de fundo a concretização das políticas públicas no
Brasil.
E tal discurso se justifica uma vez que se observa que, malgrado
passadas duas décadas de promulgação da Constituição Federal e os inegáveis avanços na gestão pública, o Estado ainda enfrenta notórias dificuldades na concretização das aspirações democráticas impingidas pela nova
ordem constitucional.
Com efeito, é fácil constatar que as soluções nacionais, ou seja, os
“pacotes de medidas”, planejadas, em regra, por burocratas distantes do
cotidiano da população são cada vez mais impotentes.15 As decisões precisam partir do cidadão, da rua, do bairro, do município, enfim, de baixo
para cima. Somente com essa visão é que se faz possível uma aproximação
real entre o cidadão e o administrador.
Não raras vezes, vultosos recursos são empregados em projetos
totalmente divorciados da realidade local, sendo que bastava uma simples
consulta específica naquela localidade para constatar a ineficácia daquela
política no referido local.
Com efeito, diante do crescimento das populações mais pobres, é
visível a ineficiência das políticas econômicas tradicionais, “essa insuficiência estrutural atinge direitos fundamentais dos cidadãos, deixando à mostra
15
Cf. GENRO, Tarso; SOUZA, Ubiratan de. Orçamento participativo: a experiência de Porto
Alegre. 2. ed. São Paulo: Perseu Ábramo, 1997.
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a carência de instrumentos para a efetividade dos direitos previstos nas
Cartas Políticas, um dos problemas de maior complexidade nos tempos
modernos.”16
Nesse contexto, sob o ângulo da participação da sociedade, observa-se que a modernidade agravou a diferença entre as expectativas
dos administrados e a aplicação dos recursos públicos.
Essa não é, porém, uma exclusividade brasileira. Em vários países do mundo, é possível observar a pouca interferência das populações no processo que define o destino dos recursos públicos. Em outras palavras, é insignificante a palavra daquele para quem se voltará a
política pública.
Seguindo uma linha de pensamento, várias são as definições sobre políticas públicas, e a definição considerada
a mais clássica é atribuída a Lowi apud Rezende (2004:13):
política pública é uma regra formulada por alguma autoridade governamental que expressa uma intenção de influenciar,
alterar, regular o comportamento individual ou coletivo através
do uso de sanções positivas ou negativas.17
A política pública, em geral, tem como objetivo primordial a
“solução de problemas”,18 entretanto nos modelos atuais a elaboração de políticas públicas, se distancia das expectativas reais da população. E não raro chegam a destoar, significativamente das demandas populares.
É, pois, nesse contexto que se vislumbra oportuna a existência
de um órgão colegiado apto a intermediar o diálogo entre os anseios
locais e os elaboradores das políticas públicas, de modo a aproximar
os recursos das reais necessidades da população.
16
DAL BOSCO, Maria Goretti; DALLA VALLE, Paulo Roberto. Novo conceito da
discricionariedade em políticas públicas sob um olhar garantista, para assegurar direitos
fundamentais.
17
HOCHMAN, Gilberto; ARRETCHE, Marta; MARQUES, Eduardo (Org.). Políticas públicas no Brasil, p. 68.
18
HOCHMAN, Gilberto; ARRETCHE, Marta; MARQUES, Eduardo (Org.). Políticas públicas no Brasil, p. 68.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora significativo o avanço impingido ao Pacto Federativo pela
atual Constituição Federal, inegável é a sua fragilidade do ponto de vista
estrutural, uma vez que não garantiu, em especial aos municípios, recursos
financeiros condizentes com a sua autonomia.
Não encontrada ainda uma solução plausível para a reformulação
do pacto federal brasileiro, que vislumbre maior autonomia municipal e o
acesso a uma fatia maior de recursos financeiros, o caminho é fortalecer,
mesmo que por via indireta, a participação dos municípios na formulação
e execução das políticas públicas, podendo ser por meio das associações microrregionais, garantindo ações de desenvolvimento mais eficazes, considerando as peculiaridades de cada região, vislumbrando-se ainda
o recebimento de recursos financeiros compatíveis com a realidade e
atribuições municipais.
Apesar de ter erigido os municípios à condição de entes federados,
a Constituição Federal não assegurou uma forma adequada de custeio deles, situação essa que foi agravada pelo corrente movimento de
municipalização de serviços outrora de competências estadual e federal,
como saúde, educação e área social.
Parte-se do pressuposto de que há uma democracia pluralista e que
deve ser considerada a complexidade da tarefa governativa.
Seguindo essa linha de raciocínio, oportuna é a constatação de que
as microrregiões devem ter voz ativa na formulação e execução das políticas públicas. Previstas na Constituição Federal, em seu art. 25, § 3º, são
definidas como regiões administrativas intra-estaduais, nas formas especiais de organização administrativa do território. Como órgãos de planejamento, conveniente é que delas possa derivar a execução de funções
públicas de interesse comum, ressaltando a adesão dos municípios por meio
de convênio ou consórcio.
Assim, prevista a participação de representantes legítimos dos municípios em um órgão colegiado cujo objetivo seja intermediar o diálogo entre as necessidades locais e o Poder Estatal, abrir-se-á uma importante
vertente de descentralização administrativa que, no entanto, não poderá
surgir dissociada dos recursos financeiros indispensáveis à sua
implementação.
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Em resumo, a iniciativa de criar um órgão de intermediação n a estrutura do Poder Executivo Estadual poderá atender a dois objetivos claros e
específicos: a) os Estados e seus respectivos municípios poderão, em conjunto, implementar as políticas públicas de interesse regional e local, fortalecendo-se o espírito democrático; b) incentivo à criação e à participação dos
grupos de estudos e reflexões sobre a reformulação do pacto federal.
Portanto, iniciativas que busquem a qualidade e a eficiência na gestão pública de modo a minimizar os problemas enfrentados pela sociedade
devem pautar-se pela busca de uma efetiva participação dos municípios e
das associações microrregionais, aprimorando o processo de formulação e
efetivação de políticas públicas, contribuindo, finalmente, para um futuro
melhor dos Estados da Federação e, conseqüentemente, do Brasil.
6 REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 550 p.
DAL BOSCO, Maria Goretti; DALLA VALLE, Paulo Roberto. Novo conceito da discricionariedade em politicas públicas sob um olhar garantista,
para assegurar direitos fundamentais. Local: editora, ano.
GENRO, Tarso; SOUZA, Ubiratan de. Orçamento participativo: a experiência de Porto Alegre. 2. ed. São Paulo: Perseu Ábramo, 1997.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime
representativo no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime
representativo no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. Porto Alegre: Sulina,
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ASSOCIATIVISMO MUNICIPAL E A CONSOLIDAÇÃO DO PAPEL DO MUNICÍPIO...
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MEMÓRIA DO INSTITUTO
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SÁLVIO DE FIGUEREDO TEIXEIRA:
PROFESSOR, JUIZ E LÍDER INTELECTUAL*
Paulo Roberto de Gouvêa Medina**
Ao designar-me para falar em nome dos advogados, nesta sessão
de homenagem ao eminente Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, quis o
Presidente Cezar Britto, por certo, que a saudação de praxe não tivesse
caráter meramente protocolar, mas pudesse exprimir, na palavra de um dos
representantes mineiros no Conselho Federal da OAB, a voz de Minas,
num dos momentos de maior sintonia com o pensamento nacional. Cioso
das tradições de sua magistratura, é natural que nosso Estado tenha particular orgulho da trajetória de um dos seus expoentes, que soube pautar
pelo exercício da função jurisdicional na linha da serenidade e do equilíbrio,
valores tão caros à gente mineira. Eis por que o tom desta manifestação,
sendo acentuadamente mineiro, não é de forma alguma provinciano. Ao
contrário, revela a aspiração de que os advogados brasileiros, em geral,
possam fazer coro com as palavras de seu ocasional representante, conferindo-lhe testemunho isento, mas, nem por isso, menos caloroso.
Seja-me permitido assinalar, pois, que o sentido pessoal deste discurso mais ainda se justifica em razão dos laços de amizade que, há longo
tempo, unem o orador e o homenageado. Já o conhecendo de nome, pela
leitura de seus trabalhos na área de nossa especialidade comum, aproximei-me de Sálvio de Figueiredo Teixeira nos idos de 1980, em Curitiba,
por ocasião do Encontro Nacional de Processo Civil, promovido pelo Instituto dos Advogados do Paraná. Era ele, então, Juiz de Direito em
Congonhas do Campo. Juntos, trabalhamos na Comissão que examinou as
propostas de alteração do procedimento sumaríssimo, denominação superlativa atribuída pela Constituição à época em vigor àquele ilusório tipo
de procedimento. Acompanhei, a partir dali, sua ascensão na carreira de
*
Discurso pronunciado no STJ. Brasília, 17/10/2007.
**
Conselheiro Federal da OAB.
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PAULO ROBERTO DE GOUVÊA MEDINA
magistrado, até este Egrégio Superior Tribunal de Justiça, passando pelo
antigo Tribunal de Alçada e pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A seu
convite, participei de duas obras de estudos de Direito Processual Civil,
por ele coordenadas. E quando lancei, em 2003, o livro Direito Processual Constitucional, foi ao ilustre amigo e eminente Ministro que submeti
os originais, pedindo-lhe que me honrasse com o seu prefácio.
Há muito, portanto, tenho merecido de Vossa Excelência, Senhor
Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, desvanecedoras demonstrações de
apreço. Não residindo, porém, em Belo Horizonte, jamais poderia ufanarme de reeditar, em sua companhia, aquela página antológica de Gustavo
Capanema, O Juiz & o Advogado, em que o político mineiro evoca a
amizade que unia dois grandes nomes da vida forense do nosso Estado,
Rafael Magalhães e Mendes Pimentel, e descreve o que para ele, jovem
estudante de Direito, representava a oportunidade de vê-los, quase todo
início de noite, descerem juntos a Rua Paraíba, “onde, perto um do outro,
moravam”, para atingir “a Avenida Afonso Pena, que palmilhavam em toda
a sua longa parte plena”. Capanema observa que “assistia maravilhado ao
espetáculo daquela bela amizade” entre o Presidente do Tribunal da Relação e o grande advogado e professor de Direito. Quantos colegas ilustres
de Belo Horizonte teriam fatos análogos a recordar do convívio mantido
com o eminente Desembargador e Ministro! Porque uma das notas
marcantes de sua vida de magistrado foi sempre o trato ameno e afável
dispensado aos advogados. É esse um dos motivos que tornam para nós
sumamente justa e por demais grata a homenagem que hoje lhe é tributada.
Na pessoa de Vossa Excelência, Senhor Ministro Sálvio de Figueiredo
Teixeira, muitos são os méritos que identificamos e que o fazem credor da
nossa especial admiração. Três facetas ressaltam em seu perfil de homem
do Direito: o professor, o juiz e o líder intelectual.
Como professor universitário, cedo iniciou sua carreira, na vetusta
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, a Casa de
Afonso Pena, e logo revelou pendores para a pesquisa e para a produção
intelectual. Seu primeiro livro, editado em 1976, reuniu trabalhos escritos a
propósito do estatuto processual de 1973, sob o título Inovações e Estudos do Código de Processo Civil. A Apresentação da obra foi feita por
um dos maiores processualistas mineiros de todos os tempos, o Prof. Amílcar
de Castro, que, já então, vaticinou o futuro que se descortinava ao jovem
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SÁLVIO DE FIGUEREDO TEIXEIRA: PROFESSOR, JUIZ E LÍDER INTELECTUAL
autor, nestas palavras proféticas: “Este é livro de estréia, brilhante e promissora. Sem dúvida alguma, o autor será um dos grandes processualistas
brasileiros. O tempo vai mostrar que esta obra foi o começo de uma ascensão
memorável”.
Vieram, em seguida, Prazos e Nulidades em Processo Civil, livro
editado pela Forense; a atualização, pela mesma editora, do Manual Elementar de Direito Processual Civil, do também juiz e processualista de
escol Alfredo de Araújo Lopes da Costa, e o Código de Processo Civil
Anotado, dado a lume pela Editora Saraiva — além de outras publicações
e ensaios com que tem enriquecido a doutrina processual.
Na esteira da advertência de Ripert, “segundo a qual o jurista não
deve contentar-se em interpretar e aplicar a lei, mas participar da sua
elaboração, contribuindo para o aprimoramento das instituições jurídicas”, Sálvio de Figueiredo lançou-se a um trabalho meritório de ajustamento do Código de Processo Civil às novas exigências da prática forense. Dirigindo, então, a Escola Nacional da Magistratura, coube-lhe, “nessa
condição, presidir a Comissão de Juristas encarregada de promover estudos e propor soluções com vistas à simplificação dos Códigos de Processo Civil e de Processo Penal”. Surgiram, assim, segundo essa linha de
orientação, em 1992, os anteprojetos da primeira etapa de reforma do
Código de Processo Civil, em trabalho conjunto com o Instituto Brasileiro de Direito Processual, representado pelo eminente professor e Ministro Athos Gusmão Carneiro. Reunidos em livro, em 1993, em edição da
Del Rey, de Belo Horizonte, esses anteprojetos, juntamente com o projeto de Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal,
que dispõe sobre o Estatuto da Magistratura, receberam do Ministro Sálvio
de Figueiredo Teixeira primorosa Introdução, sob o título Um Novo Processo, uma Nova Justiça.
A par de seu devotamento a essa obra legislativa de adequação do
Código de Processo Civil aos reclamos da moderna processualística, desenvolveu o Ministro Sálvio, com inexcedível dedicação, trabalho pedagógico de grande relevo como Diretor da Escola Nacional da Magistratura,
sempre preocupado com a formação do magistrado. Disso dá mostras o
livro, publicado pela Editora Del Rey, O Juiz: seleção e formação do
magistrado no mundo contemporâneo, que reúne dezoito trabalhos dele
sobre o tema, além de valiosas colaborações de sete outros juristas, quase
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PAULO ROBERTO DE GOUVÊA MEDINA
todos magistrados. Em exposição apresentada no Seminário Educación y
Formación para la Justicia, em São José da Costa Rica, em 11 de julho
de 2005, tive oportunidade de destacar o importante trabalho empreendido, no Brasil, pela Escola Nacional da Magistratura, sob a direção do
Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.
O ilustre homenageado fez jus, como poucos, em nosso país, ao título
de líder intelectual, porque não se contentou em contribuir, individualmente,
fosse com os seus trabalhos, fosse com a atividade de propulsor de uma
reforma legislativa, para a elaboração doutrinária e a atuação prática do processo civil, mas, dotado de invulgar capacidade de aglutinação, empenhouse, freqüentemente, em reunir estudiosos para a edição de obras coletivas,
em torno de temas palpitantes da ciência processual. E assim surgiram, entre
outros, Mandados de Segurança e de Injunção, Reforma do Código de
Processo Civil, Recursos no Superior Tribunal de Justiça e As Garantias
do Cidadão na Justiça, trazendo todos esses livros o selo da Editora Saraiva.
Posteriormente, a prestigiosa Editora Forense começou a editar a coleção de
Comentários ao Código Civil, em que um grupo de conceituados juristas
analisa, com proficiência, o Código de 2002 – e foi buscar, para coordenar a
obra, o mesmo líder intelectual que tanto já contribuíra para os estudos em
torno do processo civil. Sálvio de Figueiredo Teixeira não só assumiu a coordenação da série, como redigiu, em co-autoria com outros especialistas, o
vol. XVII, pertinente ao Direito de Família, abordando o Título I do Livro
respectivo, que trata Do Direito Pessoal.
De sua passagem por esta Colenda Corte, ficará a marca do civilista
e processualista estampada nos votos que proferiu. Não me cabe, neste
instante, proceder a uma análise de seus pronunciamentos, de modo a identificar a linha de orientação presente na judicatura aqui brilhantemente
exercida. Quero, de qualquer forma, pôr em destaque uma circunstância: a
de que o magistrado soube ser fiel às convicções do professor. No plano
científico, a precisão dos conceitos refletia, à evidência, o embasamento
doutrinário trazido da cátedra. E os seus votos, a par da segurança da
motivação, podiam ser lidos, não raro, dissociados do caso concreto, como
exposições didáticas dos temas versados.
Agora, ao aposentar-se, Senhor Ministro Sálvio de Figueiredo
Teixeira, Vossa Excelência apenas encerra um capítulo importante do livro
de sua vida, certo de que muitas páginas ainda em branco nele aguardam
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SÁLVIO DE FIGUEREDO TEIXEIRA: PROFESSOR, JUIZ E LÍDER INTELECTUAL
novos registros. A sensação que há de ter assemelha-se, certamente, à do
escultor que, ao cabo de longo tempo, afinal conclui a sua obra, orgulhoso
de si mesmo, com aquela tranqüilidade de espírito que advém da consciência da missão cumprida. Ele não dirá que o seu trabalho chegou ao fim,
mas, sim, que foi capaz de bem executá-lo. Do mesmo modo, na perspectiva do tempo, revendo o que produziu na judicatura, Vossa Excelência, a
despeito de toda a sua modéstia, também deverá alegrar-se de haver realizado uma grande obra, de haver sido digno do talento de que foi dotado.
E é por isso que o ato de aposentadoria que hoje celebramos representa o
fecho condigno de uma carreira vitoriosa.
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DISCURSO PROFERIDO POR OCASIÃO DO
RECEBIMENTO DA “MEDALHA
DESEMBARGADOR HÉLIO COSTA”, DO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS
GERAIS, NA COMARCA DE SANTA BÁRBARA,
EM 6/12/2007
José Anchieta da Silva*
Senhor Juiz, peço a palavra.
Farei eu mesmo minha defesa. Sei que estou aqui para ser julgado.
Vejo amigos, conterrâneos e convidados vários que, certamente, querem
ouvi-la. Tenho chances razoáveis de ser absolvido.
Divido minha defesa em partes breves e razoavelmente claras.
Defender-me-ei do delito de ter escolhido a profissão de advogado. Escolhi ser livre e, portanto, falar e fazer o que penso.
Defender-me-ei do delito de ter escolhido amar esta terra.
Quanto aos fatos, assumo-os todos, com os vícios e virtudes possam eles compreender.
Aclamado por Afonso Pena Júnior e vários outros próceres da
advocacia mineira para presidir o Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG), em 1915, Mendes Pimentel, em seu discurso de posse trouxe a definição de “advocacia”, tal como adotada por Zanardelli, grande
advogado e estadista da Itália nova:
‘Advocacia’: Sem armas, esta profissão doma a força; sem
força arrosta a violência; sem violência reduz o fausto e a
prepotência, à modéstia e ao temor. A pobreza a procura
como o seu asilo, a riqueza como o seu apoio, a honra como
a sua luz, a reputação como a sua égide, a própria vida como
meio de sua conservação...
*
Presidente do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
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JOSÉ ANCHIETA DA SILVA
Eis uma síntese do que compreende a verdadeira advocacia.
Estou convencido disso Senhor Juiz e, segundo Ruy Barbosa, não se
há admitir como delito o ter opinião. Quero dizer mais sobre o verdadeiro
advogado. Vejo nele a figura de um agente de transformação social. Quando ao profissional do Direito nada mais couber fazer, diante de uma injustiça angustiante, deve ser o arauto da sociedade manifestando, civicamente, a indignação. Deve fazer uso de sua trombeta tal como o fez Gideão até
ser absolvido pela Suprema Corte norte-americana.
Exercito a advocacia de modo definitivo e pleno. Filio-me àquele
pensamento beneditino segundo o qual laborare est orare. Tenho orgulho
do que faço e que chamo de advocacia de trincheira. Estou convencido de
que não existe profissão mais bela. É do nosso ministério profissional cuidar da honra, da liberdade e do patrimônio das pessoas. Nossa matéria
prima, portanto, é a vida.
Trago sempre presente, como se amuleto fosse, as palavras proferidas por Caio Mário da Silva Pereira, na sua obra crepúsculo, Pequenas
Lembranças, dirigindo-se a nós advogados:
Tende fé. Tende fé em que, depois deste retrospecto ético,
outras horas hão de vir. Passada a tormenta, as idéias ressurgirão, afirmadoras da eterna juventude do Direito, da Justiça e da Liberdade.
Se esses argumentos forem, Senhor Juiz, de alguma forma, insuficientes para minha absolvição, invoco alguns testemunhos dentre os presentes. Sigo, profissionalmente, as pegadas de alguns gigantes que aqui se
encontram.1 Se não quiserem assumir a condição de testemunhas denuncio-os à lide, todos, como litisconsortes obrigatórios, co-responsáveis pelos delitos, e assim os faço também réus como eu. Tenho ainda um álibi
maior que trago de casa: os meus dois filhos, Gustavo Henrique de Souza e
Silva e Max Roberto de Souza e Silva, como eu, se fizeram advogados, e
não os teria conduzido a tanto não tivesse a devoção que tenho na advocacia que pratico.
1
Dentre os presentes, foram citados: Aristóteles Atheniense, José Brígido Pereira Pedra Jr. e
Pedro Servo.
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DISCURSO PROFERIDO POR OCASIÃO DO RECEBIMENTO DA “MEDALHA...
Ainda sobre a acusação de ser advogado, quero deixar claro em
meu depoimento, sob fé de ofício, que pratico permanentemente a boa
conspiração junto a confrades do Instituto dos Advogados de Minas Gerais,2 junto ao Conselho da Ordem dos Advogados em Minas Gerais, junto
ao Colégio de Ordens de Advogados dos Países do Mercosul. Participo
do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais3 e das Academias de
Letras de Mariana e Municipalista. Adoro conspirar em favor da cultura e
do debate científico. E o faço nessas confrarias que citei aqui. Está, portanto, e comigo, Senhor Juiz, um bando de “adoráveis delinqüentes”.
Sou um homem livre e, portanto, falo e ajo de conformidade com
que penso. Afinal, eu só tenho um recurso profissional, o da “palavra”, e só
carrego uma arma, a “caneta”.
Tenho a honra de ocupar, na Academia Marianense de Letras, a
cadeira que tem por patrono o primeiro arcebispo de Mariana, a Roma de
Minas, Dom Silvério Gomes Pimenta, aquele negro que surpreendeu o alto
clero do Vaticano perguntando-lhe em que língua deveria fazer sua intervenção durante um sínodo do qual participava: em italiano, grego ou em
latim (?). Após brilhante exposição, surpreenderam-se os purpurados prelados, formulando, em relação ao nosso primeiro arcebispo: niger sed
sapiens (negro, porém sábio). Ninguém melhor do que Dom Silvério Gomes Pimenta escreveu um louvor à “palavra”, fazendo-o no seu discurso de
posse na Academia Brasileira de Letras, em cuja oração fomos haurir e
sorver: A Palavra:
Leva a palavra ao entendimento, ao coração, à imaginação
dos outros os mais recônditos segredos de nossa alma. Grandes, variados, estupendos os effeitos da palavra! Move as
fibras todas do coração humano: consola, aflige, irrita, estimula, acalma. No balbuciar da creancinha tem encantadora
magia. Na infância é o enlevo dos Paes, nos lábios dos velhos é solenemente triste, como triste é o despedir do crepúsculo cedendo logar às trevas da noite. No jovem é folgazã e
2
Dentre os presentes, foram citados: José Brígido Pereira Pedras Jr., Aristóteles Atheniense,
Fernando Armando de Oliveira, Dalmar Pimenta.
3
Dentre os presentes, foram citados: Regina Almeida, Raimundo Nonato, Adalberto Meneses,
Gilberto Madeira, Daniel Antunes e acompanhantes.
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JOSÉ ANCHIETA DA SILVA
alegre, ponderada e madura no varão. Na boca do general dá
ímpeto e ânimo ao soldado. Na do mestre illumina a intelligência,
na do orador ora resolve as multidões, ora serena as paixões
exaltadas; desperta os frios, infunde brios ao indolente. A mesma palavra reprehende, impera, supplica, atttera e anima. Na
boca do poeta a palavra falla à phantasia e ao coração, povoando aquella de imagens, revolucionando o coração com
affectos. A sciencia que revela os metaes contidos nas entranhas da terra é admirável, a que penetra no fundo dos mares
nos mostra os segredos que lá se ocultão; admirável a que
remonta muito acima das nuvens e nos comunicam os
phenomenos não suspeitados; admirável a que chega a penetrar no interior dos astros para nos dar com segurança a sua
composição íntima. Muito mais admirável, porém é o dom da
palavra que manifesta os segredos da alma humana. Mais profunda que os mares, mais alta que a atmosphera, mais recôndita que os astros; [...] é pois a palavra dom mimoso de Deus,
e por ahi vemos como deve ser por nos tratada.4
Faço uso das palavras na defesa intransigente da liberdade, fiel ao
pensamento de Lépido (Marcio Emílio Lépido – pensador): “[...] considero os perigos da liberdade preferíveis ao sossego da servidão´. Procuro
trabalhar cada caso, animado pela certeza que teve Andrew Hamilton (defendendo John Zenger, impressor nova-iorquino), repetindo sempre: “É a
melhor causa; é a causa da liberdade”.
Noutro delito, Senhor Juiz, sou acusado de ter escolhido amar esta terra. Sou réu confesso. Segundo Margarite Yourcenar, em Memórias de Adriano:
“quando um homem se confessa ele defende sua causa”. Tenho procurado
fazer o que está ao meu alcance para defender esta minha primeira pátria.
No primeiro crime, Senhor Juiz, denunciei confrades meus e apontei
conspiradores. Agora devo praticar uma delação sincera: a Associação
dos Amigos de Santa Bárbara – a ASASB.5 Faço mais grave, quero
4
Texto transcrito de Traços Biográficos de Dom Silvério Gomes Pimenta no seu centenário de
nascimento, escrito por Monsenhor Alypio Odier de Oliveira (São Paulo: Editora Escolas
Profissionais Salesianas, 1940, p. 162).
5
Dentre os presentes foram citados: Irnério Linhares, Arly Ayres, Clotilde Ribeiro, Nilza
Castro, Maria De La Salete Machado.
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DISCURSO PROFERIDO POR OCASIÃO DO RECEBIMENTO DA “MEDALHA...
entregar a este tribunal a minha própria mãe. que me ensinou os caminhos
que estou a percorrer. Ofereço, também, o pescoço de alguns cúmplices
meus. Peço apenas não leve nenhum deles preso em flagrante antes que eu
termine esta minha oração franca e sincera.
Ainda como elemento da defesa, quero para mim, para meus coautores de delito e para meus cúmplices, todos os benefícios da exceção
da verdade: afinal, realizamos conjuntamente a celebração do tricentenário
de Santa Bárbara, restauramos e revitalizamos edifícios, reanimamos o
cidadão santa-barbarense melhorando-lhe a auto-estima.
Esta gente a que me referi, senhor juiz, munido de verdadeiro espírito público é gente perigosa. Realizadora. Responderam sempre que convocados àquele chamado que o presidente Ronald Reagen fez aos
concidadãos norte-americanos: “Se não formos nós, quem? Se não for
agora, quando?” (é certo que o presidente americano fez essa convocação
em face da segurança pública, e nós, aqui em Santa Bárbara, o fizemos em
face do resgate da nossa terra como um valor histórico). É por isso que a
saga restauradora, impregnada, continua.
Senhor Juiz, não desejo praticar a delação premiada porque nela não
confio. Promovo outro tipo de delação cívica: a da gratidão. Ainda requerendo os benefícios da exceção da verdade, neste momento duas são as empreitadas às quais dedicamos o melhor da nossa conspiração: instalar definitivamente o juizado de pequenas causas na nossa comarca e trazer para
Santa Bárbara os restos mortais de seu filho mais ilustre, o Presidente da
República Affonso Augusto Moreira Penna. Affonso Penna necessita voltar
para casa. Para essa empreitada contamos já com o apoio da família do
presidente e de toda uma plêiade de instituições ilustres das Minas Gerais,
sob a liderança do Instituto dos Advogados que presido. Acho que incido
mesmo, Senhor Juiz, na prática do crime continuado. Sou um caso perdido.
Lombroso não me daria a menor chance.
Senhor Juiz, seja moderado na apenação. Lembre-se da advertência de Lúcio Valério, filósofo, orador romano e tribuno da plebe: “Quanto
mais poder tendes, mais deveis usar da autoridade com moderação”.
E agora, um último pedido: quero faça Vossa Excelência, Senhor
Juiz, constar do dispositivo sentencial que devo carregar, com as honras da
congregação, a Medalha do Mérito Desembargador Hélio Costa, pró-homem do Poder Judiciário Mineiro. Formado em 1975 encontrei-o já quase
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BRUNO TORQUATO DE OLIVEIRA NAVES e MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ
decano no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Fui por ele
chefiado no Departamento de Direito Civil, Comercial e Processual Civil,
na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais enquanto lá fui professor. Tive a honra de prestar serviços a Sua Excelência,
ele como provedor da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte.
Privo da amizade do seu filho, Desembargador Cláudio Costa e da esposa
deste, Desembargadora Maria das Graças Albergaria Costa, os quais visitei quando soube da lembrança de meu nome para receber esta Comenda.
E sendo esta a sentença, Senhor Juiz, abro mão do direito de recorrer em liberdade, porque quero ser prisioneiro desta honraria que o Poder
Judiciário do meu Estado, por meio da Comarca da minha Santa Bárbara,6
me confere.
Peço deferimento.
6
A mesa era composta pelo Juiz de Direito da Comarca, Dr. Alexandre Cardoso Bandeira,
Desembargador Osmando Almeida, Prefeito Toninho Timbira, Frederico Magalhães Ferreira
– Presidente da Câmara Municipal, Eustáquio Januário Ferreira – Presidente da OAB/
Subsecção de Santa Bárbara.
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PRONUNCIAMENTO POR OPORTUNIDADE
DA OUTORGA DA “MEDALHA DO INSTITUTO
DOS ADVOGADOS DE MINAS GERAIS”,
A COMENDA OFICIAL DO IAMG,
EM 7 DE MARÇO DE 2008
José Anchieta da Silva*
Cumprimentos oficiais
A data de 7 de março é particularmente cara à nossa Instituição, a
Casa de Mendes Pimentel.1 Criado no 7 de março de 1915, o Instituto dos
Advogados de Minas Gerais (IAMG), divisando já, no horizonte um tanto
ainda longínquo, a celebração de seu centenário, cumpre hoje o seu nonagésimo terceiro aniversário. São noventa e três anos de atividades
ininterruptas.
A data que o Estatuto Social manda celebrar não poderia compreender evento mais solene, mais cívico, mais grado e mais grato do que
promover a outorga da sua recém-instituída Comenda Oficial, a “Medalha
do IAMG” aos pró-homens da comunidade jurídica do Estado de Minas
Gerais.
A Comenda Oficial do IAMG é uma insígnia inédita no Estado e que
tem por finalidade, anualmente, homenagear, dentre os vultos que se destacaram nas carreiras jurídicas em Minas Gerais: o Advogado, o Professor
dedicado ao Magistério Jurídico, o Magistrado, o Membro do Ministério
Público, o Delegado de Polícia Civil e o Servidor (funcionário) do Poder
Judiciário.
O nosso Instituto dá, assim, demonstração de vitalidade. Dá cumprimento a dispositivos expressos de seu Estatuto Social e de seu Regimento
*
Presidente do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
1
Arts. 1o, 16, 62 do Estatuto Social e art. 1o do Regimento Interno.
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JOSÉ ANCHIETA DA SILVA
Interno. O Instituto, com essa iniciativa, se moderniza e se reinsere na
comunidade científica mineira, no que tange às atividades compreendidas
no universo do Direito. E, mais que tudo isso, exercita a gratidão que a
comunidade jurídica do Estado de Minas Gerais cultiva, em relação aos
seus mais nobres vultos na seara da atividade jurídica.
Tenho repetido – e confesso que gosto da expressão – que o Instituto
dos Advogados é uma instituição singular porque reúne, sem reservas e sem
dialetos, todas as tribos do Direito. Essa característica exclusiva da nossa
instituição propicia-lhe independência e altivez suficientes para o exercício de
uma espécie mesma de poder moderador nesses tempos modernos.
A criação da Comenda compreende o desejo do Instituto de contribuir no resgate dos valores. É, a nosso sentir, indispensável que resgatemos
os valores da gratidão e do reconhecimento. É imprescindível que, de alguma forma, monumentalizemos os nossos vultos; nossas referências, sublinhando urbi et orbis os currículos de profissionais cujos passos e cujas
passadas devem ser acolhidas como exemplos de conduta que não podem
ser esquecidos.
O profissional do Direito é um agente de transformação social. Entretanto, as transformações só se viabilizam e se materializam mediante ações
concretas. O Instituto tem consciência dessa sua responsabilidade social,
neste alvorecer de novo século, onde as coisas novas ficam velhas antes
mesmo de serem suficientemente conhecidas. É preciso resgatar o comportamento ético. É preciso valorizar a idéia do compromisso social. É
preciso rever conceitos diante de uma sociedade que exige dos cultores do
Direito uma visão cada vez mais plural, mais truísta, por vezes mais
concessiva do Direito, numa nova dimensão, em busca de uma sociedade
mais humana e mais justa. O Instituto dos Advogados de Minas Gerais
deseja um Estado refundado, uma pátria nova. Uma sociedade ecumênica.
Com esse concitar introdutório dei a medida dos propósitos que animam o
nosso Instituto no momento da criação de sua Comenda Oficial, que nasce
definitiva e forte em razão dos nomes escolhidos para portarem-na, neste
primeiro grupo de homenageados.
Foram escolhidos – cumpridos dispositivos específicos do regulamento criado – para esta primeira outorga: O Advogado José Cabral; o
Professor Antonio Augusto Junho Anastasia; o Desembargador Alvimar
de Ávila; o Promotor de Justiça, integrante do Ministério Público Estadual,
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PRONUNCIAMENTO POR OPORTUNIDADE DA OUTORGA DA “MEDALHA...
José Silvério Perdigão de Oliveira; o Delegado de Polícia Judiciária Jésus
Trindade Barreto (post mortem); e o Servidor do Poder Judiciário, Professor Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza.
O Advogado José Cabral, o decano, com 97 anos de idade, é mais
velho do que o Instituto – nascido em 1911, no distrito de São Sebastião
de Bela Vista, então município de Santa Rita do Sapucaí. Quando por nós
visitado para informar-lhe da escolha do nome dele como agraciado, foi
tomado em flagrante, redigindo um recurso em processo trabalhista, área
de sua especialidade. É o que todos nós desejamos: aos 97 anos de idade
estar peticionando. Formado pela Faculdade de Direito da Universidade
Federal, escola que melhor atende pelo seu apelido carinhoso “vetusta Casa
de Afonso Pena”, o Doutor Cabral foi Juiz trabalhista (dativo), político,
com mandatos pela antiga União Democrática Nacional (UDN) na Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, Professor na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Secretário e Vice-Presidente da
seccional mineira da Ordem dos Advogados, Presidente do Banco do Estado de Minas Gerais, Presidente do Clube Atlético Mineiro. Nomeado
para o Tribunal Regional do Trabalho, não aceitou a nomeação por motivos pessoais. O Presidente Castelo Branco encaminhou ao então Ministro
da Justiça, Milton Campos (outro pró-homem de Minas), memorando determinando a nomeação do homenageado para o cargo de Ministro do
Superior Tribunal Trabalho, na vaga de seu conterrâneo, Ministro Delfim
Moreira. A nomeação não se concretizou em face de delicado problema de
saúde enfrentado pela esposa do Doutor Cabral. No seu lugar veio a ser
nomeado Arnaldo Sussekind. É Cabral quem afirma, com extraordinária
lhanesa, característica que lhe é ínsita: “Pela primeira vez a emenda saiu
melhor do que o soneto”. O homenageado já recebeu comendas e deferências de várias origens. A comunidade jurídica mineira, Doutor José
Cabral, por tudo o que Vossa Excelência representa para a advocacia mineira e brasileira, devia-lhe esta, que hoje o Instituto dos Advogados de
Minas Gerais está a outorgar-lhe.
O jovem Professor Anastasia, mineiro de Belo Horizonte, já é, reconhecidamente, um jurista menino e um estadista precoce. Consagrado como
Professor na área de Direito Público, como lente nas Faculdades de Direito da Universidade Federal, onde se formou e obteve o título de Mestre, e
Milton Campos, tem-se destacado como homem público. É exemplo raro
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JOSÉ ANCHIETA DA SILVA
daquele que sabendo ensinar também sabe executar. Eis aí a figura do professor completo. É Vice-Governador do Estado de Minas Gerais e exerceu cargos e funções públicas, dentre as quais podem ser destacadas: Secretário de Estado de Planejamento e Gestão, Secretário de Defesa Social,
Secretário Adjunto de Planejamento e Coordenação Geral, Secretário de
Cultura, Secretário de Estado de Recursos Humanos e Administração, Presidente da Fundação João Pinheiro. Foi Secretário Executivo dos Ministérios do Trabalho e da Justiça.
O jovem Desembargador Alvimar de Ávila, formado em 1971, pela
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, nascido
em Diamantina, após vitoriosa advocacia exercida na cidade mineira de
Pirapora, bem à margem do rio São Francisco, no seu traçado original,
obra da natureza, arte do Criador é um magistrado moderno sem modernismos. Ingressou na magistratura em 1982. Embora ainda jovem, tem folha de serviços prestados ao Poder Judiciário que não cabe numa bula. Foi
Juiz do Tribunal Regional Eleitoral e Juiz auditor do Tribunal de Justiça
Desportiva em Minas. (para quem não sabe, se tivesse o homenageado
escolhido a carreira de jogador de futebol teria chegado à seleção brasileira). Foi o último Presidente do Tribunal de Alçada, responsável, em boa
medida, pela sua fusão com o Tribunal de Justiça do Estado. Recebeu
várias homenagens e comendas. Faltava-lhe, todavia, esta que o Instituto
dos Advogados de Minas Gerais está a conferir-lhe pelo trato que Vossa
Excelência dá àqueles que militam no Tribunal do Estado de Minas Gerais,
sem distinção.
O integrante do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Promotor José Silvério Perdigão de Oliveira, é natural de Senhor de Oliveira,
formado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Foi Professor na rede pública de ensino e, como integrante do Ministério
Público, trabalhou nas comarcas de Alto Rio Doce, Mariana e Ouro Preto
antes de chegar a Belo Horizonte, onde atua nas varas de família. A relevância e o destaque do Ministério Público realçados a partir da Constituição de 1988 se personificam e se fazem gente na ação diária deste Promotor de Justiça, assim reconhecido pelos advogados que militam no foro da
capital. Também Vossa Excelência já recebeu várias comendas e ao nosso
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PRONUNCIAMENTO POR OPORTUNIDADE DA OUTORGA DA “MEDALHA...
Instituto cabe outorgar-lhe a Comenda Oficial que ora lhe confere como
reconhecimento pelos serviços prestados.
O Delegado de Polícia Jésus Trindade Barreto manda dizer que partiu
antes, com aquele sorriso calmo, permanente. Não teve tempo para aguardar entre nós essa homenagem e se faz representar pelo seu filho e por sua
amada esposa. Jésus Trindade foi quase tudo: Delegado, político, Vereador
em Belo Horizonte e Deputado por quatro mandatos na Assembléia Legislativa
do Estado de Minas Gerais, Presidente da Academia Municipalista de Minas
Gerais e integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Era
católico de fé extraordinária. Acadêmico, na expressão correta do termo,
integrava, ainda, a Academia de Letras de Mariana, de São João del-Rei, de
Ponte Nova, de Montes Claros e de Campanha. Autor de vários livros, dentre os quais Sentimentos Mineiros e Textos e Lugares Seletos. Como
Deputado, foi um dos responsáveis pela criação do “Dia de Minas” (que se
celebra em Mariana, a 16 de julho, em Mariana).
Aproximadamente dois meses antes de falecer, ao final de uma
manhã de sábado, após sessão do Instituto Histórico e Geográfico de
Minas Gerais, tivemos a felicidade de, juntamente com o Professor Luiz
Ricardo Gomes Aranha, nosso vice-presidente, conduzir de carro o
nosso homenageado até a residência dele. Ávido de melhor aproveitar
os momentos de seu convívio, perguntei-lhe qual das funções por ele
exercidas lhe era mais cara. A resposta veio pronta, rápida e completa.
O Doutor Jésus, se sentira mais feliz ao tempo em que, como delegado
de carreira, chefiou a penitenciária de Neves. Disse-nos: “Ali, estive
mais perto do cidadão sofrido. Fui mais útil”. É por isso que a sua
memória não pode ser esquecida.
O Professor Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza é sinônimo de muita
coisa. Formado também pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, é Professor de Direito Constitucional da Faculdade de
Direito Milton Campos e na Escola Judicial Desembargador Edésio
Fernandes, do Tribunal de Justiça mineiro. É autor de prestigiados livros,
destacando-se, no campo do Direito, a sua obra Direito Constitucional
Comparado. No Instituto dos Advogados Mineiros, além de integrar a
rigorosa Comissão de Seleção é o Diretor desta revista. O Instituto é dele
devedor de dívida impagável. Estudou na Europa, nas Universidades de
Évora e Lisboa, na Ecole Nacional de la Magistrature em Paris, bem como
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JOSÉ ANCHIETA DA SILVA
na Universidade de Nova Iorque. Foi consultor da Organização das Nações Unidas para o Timor Leste.
A homenagem que rendemos a Vossa Excelência, nesta quadra, é
na condição de servidor do Poder Judiciário. O homenageado foi Diretor
Cível, Diretor Judiciário, Diretor Geral e Chefe de Gabinete da Presidência
do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Foi também Diretor Adjunto da
Escola Nacional da Magistratura. Servidor exemplar em todas as missões
que lhe foram confiadas, de destacar o orgulho e a felicidade do homenageado ao apresentar-se em dizer-se servidor público.
Caríssimos homenageados, o Instituto dos Advogados de Minas
Gerais tem a certeza de que, com a criação da sua Comenda Oficial, está
cumprindo o seu papel na comunidade jurídica mineira.
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HOMENAGEM A HUMBERTO THEODORO JÚNIOR,
PRIMEIRO DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE
DIREITO PROCESSUAL CIVIL DO IAMG
Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza*
Faz-se a ciência com fatos, como se faz uma casa com pedras; mas uma acumulação de fatos não é uma ciência, assim como um monte de pedras não é uma casa.
Dessa forma se expressou o célebre matemático francês Henri
Poincaré, em sua obra Ciência e Hipótese.
Humberto Theodoro Júnior, de quem tenho a felicidade de ser amigo
há alguns anos (não poucos), é um jurista que, com os fatos da vida; com
a sua inteligência privilegiada; com o estudo sério e profundo das leis; com
o exercício retilíneo das profissões forenses, antes magistrado e ora advogado; e com a dedicação à cátedra, tratando seus alunos com respeito e
carinho, merecendo deles o título de “Humberto Te Adoro”, não apenas
acumulou conhecimentos e, sim, criou e continua a criar a verdadeira ciência. A mais elevada ciência jurídica, que não guarda egoisticamente para
si, mas a distribui aos que lêem (e quantos!) as suas preciosas obras, sempre citadas nos tribunais e nas bibliografias especializadas.
O notável ensaísta espanhol Miguel de Unamuno, com seu espírito
crítico, disse:
A ciência tira a sabedoria das pessoas e costuma convertêlas em fantasmas carregados de conhecimentos.
Humberto Theodoro, como sabem todos que com ele convivem,
contradiz totalmente essas palavras do gênio de Salamanca, pois quanto
mais cientista se torna, mais pessoa ele é!
*
Editor Adjunto da Del Rey.
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RICARDO ARNALDO MALHEIROS FIUZA
Não é um fantasma hermético que só pensa e só fala em sua ciência. Não, ao lado do jurisconsulto, está o ser humano, de mente aberta e
coração sensível, que vive a vida, que aprecia a arte, que gosta de uma
boa prosa, que ama a literatura, que se delicia com a música (de Mozart
a Lupicínio Rodrigues), que conhece a História, que aprecia a boa mesa
e o bom vinho, sobretudo se forem um bistrô parisiense...
E, como homem, ele não se limitou a amontoar pedras, como advertia Poincaré, e, sim, construiu, na rocha, uma Casa, no sentido mais
amplo da palavra, onde mora sua querida família e onde se sentem bem
os seus amigos.
Falando agora como editor adjunto da Del Rey, repito aqui o que
escrevemos nós, os editores, na orelha do livro Processo Civil: novas
tendências:
Na apresentação desta excepcional obra coletiva, os seus coordenadores agradecem ‘à Editora Del Rey, que acreditou na
idéia e de pronto aceitou editar essa Coletânea de Estudos em
homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior.’
Na verdade, nós, da Del Rey, é que somos agradecidos por
passar a ter este precioso livro em nosso catálogo.
E assim nos sentimos por três claros motivos:
– Primeiramente, por se tratar de uma homenagem justa e
merecida a Humberto Theodoro Júnior, um dos maiores juristas do Brasil, como muito bem se expressou outro grande
nome do Direito brasileiro, o Ministro Sálvio de Figueiredo
Teixeira, ao afirmar, com propriedade, em nota introdutória
deste livro, que ‘Humberto Theodoro Jr., pelo seu talento e
genialidade, equipara-se a Amílcar de Castro e a Lopes da
Costa, também magistrados e processualistas, como ele’.
– Em segundo lugar, nós nos sentimos sadiamente orgulhosos em editar um livro, que traz em suas páginas os maiores
nomes da processualística nacional e internacional. Belo
Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Vitória, Salvador, Curitiba, Natal, Florianópolis, Brasília, Roma,
Milão, Barcelona estão representadas pelos seus professores, magistrados, procuradores e advogados de escol. Uma
autêntica Academia!
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HOMENAGEM A HUMBERTO THEODORO JÚNIOR...
– Por fim, mas não por menos, nós da Del Rey temos a
certeza de que estamos também homenageando, além do
grande jurista, um cidadão de primeira linha, um chefe de
família exemplar, um homem bom.
Termino, lembrando o filósofo de Estagira que, aristotelicamente,
assim se expressou: “Dignidade não consiste em possuir honrarias, mas
em merecê-las”.
Humberto Theodoro Júnior as recebe, como a homenagem de
hoje, porque as merece.
Belo Horizonte, 19 agosto 2008
(Abertura do Congresso de Direito Processual Civil em homenagem
ao Prof. Humberto Theodoro Júnior – FDUFMG..)
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CONSEJO FEDERAL DE LA OAB
COLEGIACIÓN OBLIGATORIA*
Roberto Busato **
Señoras y señores
Es para mi un gran honor comparecer a la Asamblea General de
Coadem, que reúne personalidades tan expresivas de la vida pública de
este país y de América Latina.
El tema que me fue propuesto – “La Colegiación Obligatoria de
los Abogados” – es de vital importancia en este momento en que
nosotros, latinoamericanos, siguiendo una tendencia mundial, estamos
empeñados en unirnos y organizarnos para enfrentar mejor los retos de
la globalización.
La colegiación es el camino para que esa unión se efectúe de forma
consistente, segura, y para que genere los resultados que buscamos. No
podemos permitir que un sector vital como la abogacía escape de nuestro
control y termine siendo anexionado por otros mercados, más ricos, más
organizados y con mayor experiencia. La palabra clave, a mi modo de ver,
es organización.
Quedo sorprendido, teniendo en cuenta su importancia, de que
pocos países en nuestro continente adoptan la colegiación obligatoria. Y
todavía más al saber que Brasil es el que hace más tiempo que se organizó
en ese sentido.
La Orden de los Abogados de Brasil – institución que aquí represento y cuyo Consejo Federal tuve el honor de presidir hasta febrero de 2007
– fue creada en 1930. Ya al siguiente año, un decreto del gobierno federal,
estableció la obligatoriedad de la colegiación.
*
VI Conferencia Nacional de la OAB. Asunción/Paraguay 28/8/2008.
**
Ex-Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
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ROBERTO BUSATO
Ningún titulado puede ejercer la abogacía en Brasil o incluso ejercer
cualquier función en el universo judicial sin antes haber sido aprobado en el
Examen de Orden, administrado bajo la responsabilidad de la OAB.
Además de garantizar al mercado de trabajo un padrón más elevado de
servicios, la colegiación obligatoria confiere también organicidad a la abogacía
brasileña. Una organicidad que ninguna otra carrera posee en Brasil.
El beneficio social de esa colegiación obligatoria no es únicamente
técnico. Hay un beneficio ético. La Orden juzga a los profesionales
infractores, garantizándoles amplia defensa y el debido proceso legal. Su
Estatuto es ley federal – y la compromete no solo con cuestiones corporativas,
sino también con las político-institucionales.
El artículo 44, inciso I, del Estatuto de la Abogacía y de la Orden de
los Abogados de Brasil, establece que nos corresponde:
Defender la Constitución, el orden jurídico del Estado democrático de Derecho, los derechos humanos, la Justicia Social,
y pugnar por la buena aplicación de las leyes, por la rápida
administración de la Justicia y por el perfeccionamiento de la
cultura y de las instituciones jurídicas.
Eso, como es obvio, nos implica prácticamente con todo el proceso
político-institucional del país, sin que, no obstante, ello nos autorice a
envolvernos en el juego político-partidario-ideológico – en el indeseable
pormenor de la política.
Nuestro desafío es exactamente figurar en esa acometida con el
distanciamiento necesario para no contaminarnos por el pormenor político
ni perder de vista la neutralidad que nos cabe como guardianes de la
ciudadanía.
La premisa para que podamos ejercer con eficacia y fidelidad ese
papel es la unión interna.
La OAB, además de ser la más influyente entidad de la sociedad civil
brasileña, es también la que posee mayor capilaridad. Estamos presentes
en prácticamente todos los rincones del país – incluso también en lugares
donde el Estado está ausente.
Eso otorgó a la abogacía brasileña tal grado de influencia que habitualmente es llamada como “tribuna de la ciudadanía” por la sociedad
civil organizada.
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CONSEJO FEDERAL DE LA OAB COLEGIACIÓN OBLIGATORIA
Siempre que el país vive turbulencias políticas – y lamentablemente,
en esta nuestra América Latina, las turbulencias políticas son más frecuentes
de lo que deseamos -, siempre que eso sucede la Orden de los Abogados
de Brasil es llamada, por la sociedad y por los propios políticos, a ejercer
una función de arbitraje.
Nada de eso sería posible sin que existiese la colegiación obligatoria.
En el campo corporativo propiamente dicho, esa colegiación nos permite
lidiar con temas complejos, como la mala calidad de la enseñanza jurídica o
también la internacionalización de los bufetes de abogados, de manera consistente y eficaz.
Hechas estas consideraciones preliminares, considero importante
hacer una retrospectiva histórica en relación con la abogacía brasileña y de
como llegamos a la situación que hoy ostentamos.
Pienso que puede servir de importante ayuda para nuestros colegas
latinoamericanos, cuya convivencia apreciamos y a los que queremos estar
unidos, en la meta común de fortalecimiento continental.
Sin perjuicio de nuestras peculiaridades y soberanía, pienso que
debemos buscar en nuestro continente esa organicidad, que, no obstante,
inevitablemente tendrá que ser precedida por esa organización interna – la
colegiación obligatoria.
Por tanto, vamos hablar un poco de historia– de los inicios de la
abogacía en mi país, de los orígenes y desarrollo de la Orden de los Abogados
de Brasil.
La referencia primordial de reglamentación de la actividad del ejercicio
de la abogacía en tierras brasileñas quedó establecida en las Ordenaciones
Filipinas – código legal ibérico del siglo XVII. Hasta la publicación del
Código Civil nacional, en 1916, esas Ordenaciones eran consideradas “la
piedra angular del derecho civil brasileño”.
Publicadas originalmente en 1603, exigían cumplir un curso jurídico
de ocho años, además del examen para actuar en la Casa de Suplicación,
resaltaban la responsabilidad civil del abogado.
En el inicio del Imperio, ya estaban establecidos los principios
disciplinarios como la probidad, el sigilo profesional y la responsabilidad
por daño resultante de la negligencia.
El infringir tales principios era punido con penas de privación de oficio, aplicadas por los jueces, en la inexistencia de un órgano que representase
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ROBERTO BUSATO
a los abogados nacionales. Ese órgano solo surgiría más de dos siglos
después, en 1843, año de creación del Instituto de los Abogados Brasileños
(IAB).
La creación del Instituto ya preveía, en su Estatuto, la existencia de
la Orden como entidad de selección y defensa de la profesión, es decir,
de regulación del ejercicio de la abogacía. Lo preveía, pero no lo instituía. Eso solo ocurriría, como veremos luego, casi un siglo después, en el
Brasil republicano. Estábamos todavía en el Brasil monárquico, en el Segundo Reinado.
Se temía la creación de la Orden de los Abogados, la organicidad
que establecería. El IAB se ocupaba solamente del estudio de la
jurisprudencia, promoviendo la investigación de los aspectos culturales y
doctrinarios del derecho. Se aplazó por décadas el surgimiento de la OAB,
sobre todo por su esencia republicana. Incluso con la República, proclamada en 1889, su surgimiento no fue inmediato.
Esperó aún cuatro décadas más. Solamente en 1930, año en que el
país era barrido por una revolución política que se disponía a modernizarlo
y a acabar con prácticas no republicanas en sus instituciones, sobre todo en
su proceso electoral, es entonces cuando surgió la OAB.
Lo interesante es que su creación no fue un acto específico. Se produjo
en medio de una amplia reestructuración judicial, inserida en el mismo diploma legal, fruto de los cambios que se procesaban en el país.
El primer Reglamento de la Orden – que estableció la colegiación
obligatoria – fue aprobado un año después de su fundación, por el Decreto
20.784 de 14/12/1931. A pesar de asegurar legalmente el funcionamiento
estructural de la Orden, el decreto no se apoyó en una investigación más
profunda de las prácticas profesionales de los abogados, debido al corto
tiempo de su elaboración.
La OAB, por lo tanto, se instala y comienza a desarrollarse en un
período conturbado de la historia del país en que la economía vivía los
reflejos de la crisis de 1929 y la política nacional, dirigida por el Gobierno
Provisional (24/10/1930-20/07/1934), enfrentaba la oposición de diversos sectores que reivindicaban la constitucionalización del país.
Tales fenómenos repercutieron en la aplicación de la ley disciplinadora
de la abogacía, que tuvo que adaptarse a las circunstancias posteriores,
que frecuentemente fueron contrarias a sus propias normas tradicionales.
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CONSEJO FEDERAL DE LA OAB COLEGIACIÓN OBLIGATORIA
Debido a la cantidad de cuestiones pendientes respecto a la
aplicación efectiva del Reglamento, hubo necesidad de consolidar los dispositivos adicionales del Decreto 22.478 de 20/02/1933 que especificó
mejor las puniciones de penas disciplinarias, así como también, la
inhabilitación del abogado que no estuviese portando su documento
profesional o que lo mantuviese en situación irregular, además del
establecimiento de normas para las elecciones internas, exigiendo
divulgación del pleito en los órganos de la prensa oficial y no oficial con
un plazo de antelación de 30 días.
En el período que se extiende de 1931 a 1945, el Reglamento sufrió
cerca de diez alteraciones, denotando el carácter aún de formación,
consolidación y adaptación de la institución naciente.
En 1935, por ejemplo, el Consejo Federal de la OAB decidió
establecer normas específicas en relación con las alteraciones normativas,
determinando que las resoluciones de carácter general sobre casos omitidos o sobre aplicación e interpretación del Reglamento y Régimiento Interno solo podrían ser modificadas mediante propuesta de algún Consejo
seccional o de miembro del Consejo Federal, por el voto de la mayoría
absoluta de los Consejos.
Pasados casi veinte años de la creación de la Orden, el Consejo
Federal se reestructuró internamente, desarrollando una organización
administrativa y legislativa más acorde con la expansión de sus actividades. Uno de los primeros pasos en ese sentido fue la reformulación del
Régimiento Interno, aprobado originalmente a 13 de marzo de 1933.
Modificado en 16 de diciembre de 1952, el nuevo Regimiento hizo
más ágil la tramitación de los procesos (con la fijación de plazos irrevocables)
y restringió la aceptación de los recursos de embargos, suprimiendo los
pedidos de reconsideración, entonces admitidos por fuerza del mandamiento
regimental. A partir de este momento, el Consejo Federal pasó a realizar
reuniones con periodicidad fija, como órgano permanente, funcionando
prácticamente el año entero.
Otra preocupación fue la codificación de las innumeras alteraciones
sufridas por el Reglamento. Elaboradas muchas veces sin obedecer a los
debidos criterios jurídicos, esas modificaciones convirtieron la legislación
sobre la OAB en un conjunto de leyes, confuso y disperso, considerado
uno de los más defectuosos de la legislación brasileña.
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ROBERTO BUSATO
En una sesión ordinaria del Consejo Federal, en marzo de 1951, fue
presentada la primera propuesta para la elaboración de un nuevo Reglamento
que sería posteriormente reformulada. Ante la cantidad de sugerencias, se
hizo necesaria la designación de una comisión para estudiar las enmiendas.
Esta comisión elaboró un extenso informe sobre el asunto, expuesto
en una reunión, cinco años después, en 1956. El grupo no llegó a una posición
final dadas las opiniones divergentes en relación a la organización de la
institución, ratificada mediante imposición de ley federal.
Se establecieron dos corrientes antagónicas. Una sustentaba que la
Orden debería estructurarse como una asociación profesional de ingreso facultativo, en los términos del artículo 159 de la Constitución; otra como una
“entidad paraestatal de naturaleza corporativa”. Esta corriente era mayoritaria.
Superadas las divergencias, la comisión dio fin al anteproyecto
distribuyendo copias para todos los Consejos Seccionales y delegaciones
de la OAB con el propósito de obtener nuevas sugerencias y la aprobación
general.
Después de la revisión sistemática del texto, se decidió modificar la
denominación “Reglamento” – herencia de la influencia francesa que somete
la fiscalización legal de la clase al control estatal – por “Estatuto”, término
más adecuado para traducir el carácter autónomo de ley federal, que la
legislación de la Orden ya presentaba desde su creación.
El término reglamento se refiere a un acto administrativo de
competencia del Poder Ejecutivo que tiene por finalidad detallar el contenido
de la ley propiamente dicha. El reglamento, por lo ello, es inferior
jerárquicamente a la ley, no pudiendo contrariarla.
El antiguo Reglamento representaba apenas un conjunto de reglas a
la jurisdicción disciplinaria contra el abogado infractor o que ejercía abuso
de autoridad, a través del cual la Orden podría ejercer el “poder de policía”
mediante delegación del Poder Público.
Finalizado el proyecto, el Estatuto fue presentado al Presidente de la
República, Juscelino Kubtischek, que estuvo presente en la sesión del
Consejo Federal realizada el 11 de agosto de 1956.
Acompañado del Ministro de Justicia, el Presidente firmó un mensaje
aprobando el documento y transformándolo en proyecto gubernamental
que, después de siete años de tramitación en el Congreso Nacional, fue
convertido en la Ley 4.215 de 27 de abril de 1963.
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CONSEJO FEDERAL DE LA OAB COLEGIACIÓN OBLIGATORIA
La considerable demora en la aprobación del proyecto puede ser
entendida como reflejo de una serie de resistencias políticas que culminaron
con el veto impuesto por el siguiente Presidente de la República, sr. João
Goulart, al artículo 149.
El referido artículo garantizaba el derecho de ejercicio profesional a
los inscritos anteriormente en los cuadros de la Orden, o sea, a los regidos
por el antiguo Reglamento. En nota oficial, publicada el 27 de abril de 1963,
el Presidente Goulart afirmaba que la vigencia del dispositivo seria contraria a los intereses nacionales, pues éste permitiría que una misma categoría
profesional fuese controlada por regímenes jurídicos diferentes.
Se estableció un conflicto entre la Orden y el Gobierno, del que salió
victoriosa la abogacía. El entonces presidente de la Orden, Povina
Calvalcanti, telegrafió a los parlamentarios pidiendo el derribo del veto presidencial, que se consiguió por aplastante mayoría: 306 votos a 10.
La nueva ley reafirmó definitivamente la naturaleza jurídica de la Orden
como organización indiscutiblemente sui generis, de corporación abierta,
sin numerus clausus, destinada a la selección, disciplina y defensa de la
clase de los abogados, y además, también, de naturaleza sindical.
La especificidad de la OAB se hace clara en su triple función: como
gerenciadora de un servicio público federal, a pesar de su ministerio privado; órgano que reglamenta las actividades de la abogacía y la legitima como
elemento esencial a la administración de la Justicia y corporación que asume
determinadas prerrogativas sindicales de la clase de los abogados.
Conforme determinaba el artículo artigo 18 del Estatuto de 1963, la
coexistencia de la Orden con sindicatos profesionales autónomos seria
perfectamente posible, destacándose simplemente que el pago de la
anualidad dejaba exentos, automáticamente, a todos los inscritos en los
cuadros de la institución de la obligatoriedad del impuesto sindical.
Los sindicatos detentaban el poder de representación individual de
los abogados asociados, a los que les estaba prohibido, no obstante, reivindicar la responsabilidad por los intereses generales de la clase, que eran
responsabilidad exclusiva de la OAB.
Las denominadas sociedades de abogados pasaron a ser disciplinadas mediante la creación de un registro propio ratificado por la Orden, que
les asignaba personalidad jurídica, concediendo a los Consejos seccionales
una función corregidora respecto a los actos de su constitución. Fueron
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prohibidos expresamente los registros de las sociedades que tuviesen fines
exclusivamente mercantiles o razón social de origen dudoso, como sigue
ocurriendo hasta hoy.
Tras casi treinta años de vigencia, el primer estatuto de la OAB ya no
era acorde con el contexto socio-político nacional. Aprobado en 1963, en
vísperas del Golpe Militar, que tuvo lugar en 1964, el Estatuto no pudo
contener el avance de las arbitrariedades en relación con el ejercicio de la
abogacía, pues fue configurado en un período democrático en que
predominaba la figura del abogado liberal, sin cualquier vinculo permanente
con el cliente.
Durante ese período, fueron varias las tentativas de reforma
estatutaria, dando por resultado la aprobación de algunos proyectos de ley
que no pasaron, pese a todo, de cambios tópicos y específicos, sin abordar
las cuestiones estructurales de la abogacía.
La propuesta de elaboración de un nuevo Estatuto tuvo por objetivo
actualizar el carácter profesional de la actividad del abogado-empleado, o
sea, del profesional asalariado vinculado a una empresa u oficina.
El abogado-empleado pasó a ser sinónimo de defensa de las
obligaciones laborales, principalmente, en lo respecta a la preservación
de la autonomía técnica ante el empleador, al establecimiento de la base
salarial, a la jornada mínima de trabajo y a los honorarios de sucumbencia.
La necesidad de reformulación estatutaria ganó cuerpo al final de la
década de los ochenta. El texto fue considerado, no obstante, insatisfactorio
y superficial, pues optaba apenas por actualizar la Ley de 1963. Pero la
promulgación de una nueva Constitución en Brasil, en octubre de 1988,
imponía cambios en el Estatuto de la Abogacía.
La nueva Carta Magna del país, en su artículo 133, consideraba al
abogado “indispensable a la administración de la Justicia’ convirtiéndole,
por ello, más que una categoría profesional en un precepto constitucional.
Se imponía un Estatuto en sintonía con los nuevos tiempos – y las nuevas
responsabilidades. Y él comenzó a ser discutido.
En 1991, el anteproyecto recibió un sustitutivo – y, en el año siguiente,
la reforma del Estatuto se convirtió en prioridad para la OAB. Movilizados
los abogados de todo el país, fueron reunidas cerca de 700 propuestas
para el anteproyecto, que fue enviado al Congreso Nacional en abril de
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1992, donde fue aprobado, recibiendo sanción presidencial en julio de 1994,
y transformándose en la Ley 8.906/94.
El gran mérito del Estatuto fue dar expresión completa al ya mencionado artículo 133 de la Constitución Federal, sin dejar de garantizar el libre
ejercicio del habeas corpus independientemente de la mediación de
abogado, adaptando la legislación de la Orden a las nuevas estructuras
democráticas.
Pero no fue un proceso tranquilo. Fue objeto de las más variadas
críticas de la prensa y de los sectores de la magistratura. La Asociación de
los Magistrados Brasileños envió al Presidente de la República una
sugerencia de veto con 12 puntos, en las vísperas de la sanción del proyecto.
Los puntos más combatidos se referían a los honorarios de
sucumbencia, antes destinados a las empresas para las cuales los abogados
trabajaban, y a la inmunidad asegurada al abogado en el ejercicio de la
profesión, que ya no podría ser ya detenido ni punido por los jueces cuando
se encontrase en su actividad profesional.
Otro punto en discordia fue la cuestión de la presentación de
sustentación oral en los tribunales y las reglas relativas a la jornada de trabajo
y a la percepción de honorarios abogatícios.
Los dispositivos que habían sido atacados por la Asociación de los
Magistrados Brasileños, mediante Acciones Directas de Inconstitucionalidad,
que fueron otorgadas liminarmente, provocaron graves perjuicios para el
ejercicio profesional de la abogacía.
Una clara demostración de este hecho fue la decisión aprobada por
el Supremo Tribunal Federal, también a nivel de liminar, de permitir que
jueces puedan intimidar a los abogados, amenazándoles de detención siempre
que interpretasen supuestas ofensas como desacato. Otro perjuicio se refiere
al impedimento de defensa oral de los abogados después del voto del relator.
En la realidad, eran las decisiones del Supremo las que tenían clara
motivación corporativista, pues los dispositivos suspendidos envolvían
situaciones en las que estaba en juego la garantía del abogado ante la magistratura.
Los ataques al Estatuto no quedaron sin respuesta. En nota oficial de
la época, el Consejo Federal de la OAB puso en conocimiento de la sociedad
las razones de aquellas embestidas contra el nuevo Estatuto, que
representaban una grave falta de respeto al orden jurídico.
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Quiso el destino que el proceso intentado por la Asociación de los
Magistrados Brasileños, atacando la constitucionalidad de dispositivos del
Estatuto, fuese juzgado en su mérito solo en 2006, cuando yo estaba
ejerciendo la Presidencia del Consejo Federal de la Orden de los Abogados
de Brasil y el Supremo Tribunal Federal estaba presidido por el Ministro
Nelson Jobin, que fue relator de esta misma ley en el Congreso Nacional,
cuando ejercía el cargo de diputado y readquirimos en juicio histórico la mayoría
de las prerrogativas que estaban suspendidas por las liminares ya referidas.
Así es, por ejemplo, que la detención en flagrante en el ejercicio
profesional solo podrá ser llevada a cabo con la presencia en el momento
del levantamiento de su acta ante un representante de la OAB, así como,
igualmente, en el caso de busca y aprehensión de documentos en las oficinas de bufete de abogado, solo será legal con la presencia obligatoria de la
Entidad de los abogados.
El Estatuto se encuentra en vigor, pero ha sufrido las alteraciones
pertinentes a las modificaciones de la coyuntura socio-política del país.
Abogadas y abogados,
Autoridades presentes,
Es importante destacar que en setenta años de trayectoria, la OAB
institucionalizó la actividad profesional de los abogados legitimando, por
medio de las legislaciones que aquí mencioné, las características
fundamentales de la profesión a través de la definición de sus requisitos
esenciales, de los actos privativos y de los impedimentos de la actividad
abogaticia, además de la cuestión disciplinaria.
El ingreso en los cuadros de la orden conforme el Reglamento de
1931, era realizado a través de solicitud escrita, dirigida al presidente de la
sección del Distrito Federal o subsección y acompañando la documentación
comprobatoria en relación con aspectos como titulación en Derecho por
facultad reconocida por las leyes de la República, al tiempo de formación,
o facultad de país extranjero legalmente catastrada.
El candidato debería ser brasileño nato o nacionalizado. Estar inscrito como elector y no haber tenido condena por crímenes como robo, contrabando, extorsión, peculado, homicidio, apropiación indebida, abuso de
autoridad, etc. En el artículo 14 del reglamento, ya estaba prevista la admisión
de miembros corporativos que ejercerían funciones equivalentes o auxiliares junto a los abogados propiamente dichos.
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Los interinos y los solicitantes representaban a los que, no siendo
bachilleres en Derecho, ya ejercían actividades abogaticias antes de la
creación de la Orden y fueron incorporados a los cuadros de la institución,
mediante autorización, con diversas restricciones, sin que se les reconociese,
no obstante, el status de abogado.
Mientras el interino, por el mérito de la práctica de asistencia jurídica
informal, recibía habilitación especial de la OAB para ejercer en juicio de
primera instancia, el solicitante sería una especie de auxiliar de abogado,
generalmente estudiante de abogacía, habilitado por ley, para requerir en
juicio o promover el trámite de las acciones.
Posteriormente, el cuadro de solicitantes fue extinguido por el Estatuto de 1963, que instituyó la obligatoriedad de las prácticas profesionales
para los estudiantes de Derecho. Los estudiantes en período de prácticas
pasaron a ejercer las mismas funciones de los solicitantes de causas, haciendo
innecesaria la existencia legal de éstos. Sin embargo, fue asegurada la
continuidad a aquellos que ya ejercían la profesión de solicitante, sin límite
de tiempo.
Los criterios de admisión en los cuadros de la Orden tuvieron
considerables alteraciones con la aprobación del primer Estatuto. El intento
de desarrollar efectivamente una conciencia profesional de la categoría fue
una marcada característica de la nueva ley, a través de la institución del
período de prácticas profesionales obligatorias, como requisito para la
inscripción en los cuadros de la OAB, equivalente al examen.
La adopción del período de prácticas tuvo como objetivo hacer más
eficaces y amplias las normas de selección de los miembros, con el propósito de elevar el nivel cultural y técnico de los nuevos abogados. El carácter
facultativo de los plazos de aplicabilidad denotó la preocupación de la Orden
en relación con el aspecto normativo de la legislación que pretendía educar
y adaptar a los bachilleres al nuevo sistema de legitimación de la profesión.
A pesar de ello, los objetivos educativos del primer Estatuto no
obtuvieron éxito ante la flexibilidad del sistema opcional que dispensaba la
obligatoriedad del examen de la Orden a aquellos que hubiesen cumplido el
período de prácticas de forma satisfactoria, según la fiscalización de la OAB.
A pesar de asegurar la regulación de los períodos de prácticas gracias
a la aprobación de diversos recursos, la OAB tuvo que hacer frente al
avance de los intereses exclusivamente mercantilistas de algunas instituciones
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de enseñanza jurídica que pasaron a presionar al gobierno con el propósito
de desvincular las prácticas del control de la Orden.
Con la aprobación de las Leyes 5.842/72 y 5.960/73, las prácticas
pasaron a ser elaboradas y controladas casi que totalmente por las facultades
de Derecho. La creación del período de prácticas de la “Práctica Forense
y Organización Judicial”, integrado al currículo permanente de los cursos,
representó un factor bastante oneroso y poco instructivo para los estudiantes
que se vieron obligados a someterse a los dictámenes comerciales de los
establecimientos de enseñanza.
A partir de este momento, se creó un conflicto entre la OAB y las
instituciones de enseñanza que, sirviéndose de la justificación de garantizar
el principio de la autonomía universitaria obtuvieron el derecho legal de
administrar las prácticas, o sea, de interferir en el control de una de las
formas de admisión en los cuadros de la Orden, reduciendo la participación
de la OAB a la restringida función de fiscalización.
Preocupada con el compromiso de comprobación de la capacidad
profesional mínima de los abogados, la OAB intentó volver a conseguir el
control completo del proceso de selección de los abogados suscitando
varios debates en torno al asunto.
Ya en 1974 fue realizado el Simposio de las Prácticas Profesionales
y del Examen de Orden, hecho con el objeto de discutir exclusivamente el
desgaste de los procesos de admisión en los cuadros de la Orden.
Los anales de la VI Conferencia Nacional de la OAB, que tuvo
lugar en octubre de 1976, también hacen referencia a los “Instrumentos
Legales de Selección Profesional del Abogado”.
En 17 de noviembre de 1981, el Consejo Federal envió una
representación al Ministro de Justicia resaltando la necesidad de que fuese
encaminado un proyecto de ley al Congreso, para hacer nuevamente
obligatorio e insustituible, el examen de la Orden para el reconocimiento
legal de la profesión de abogado, como medio de garantizar la credibilidad
social de la abogacía.
En ese sentido fue dirigido al Congreso Nacional un proyecto de ley
para consagrar el examen de la Orden como la única forma de legitimación
de la profesión y establecer el período de prácticas como medida
coadyuvante en la maduración de la práctica abogaticia.
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El proyecto tuvo trámite lento recibiendo el incentivo de la Asociación
de los Abogados de São Paulo que, en 1985, envió un oficio al Consejo
Federal de la OAB pidiendo la aceleración del proceso y la sólida adhesión
de la clase. No obstante, solo por medio del Estatuto actual, sancionado en
1994, fue posible revocar totalmente las leyes que restringían la capacidad
de regulación profesional de la entidad.
Hoy, cualquier función jurídica que los bachilleres pretendan ejercer
– bien sea la abogacía, la magistratura o la fiscalía – necesita ser precedida
de un sistema de selección profesional propio de la institución que regula
las referidas actividades.
La nueva legislación estableció claramente que el Examen de la Orden
no puede interferir en la autonomía universitaria ya que la finalidad de la
selección y fiscalización de los bachilleres es posterior a la titulación conferida
por los cursos jurídicos, siendo compatible con el principio de libertad de
profesión garantizado en el Art 5º, § XIII de la Constitución: Es libre el
ejercicio de cualquier trabajo, oficio o profesión, observadas las
calificaciones profesionales que la ley establezca.
El período de prácticas continuó existiendo aunque bajo dos formas,
a saber: el período de práctica profesional de la abogacía, disciplinado por
el Estatuto y por el Reglamento General de la OAB; y el período de práctica
jurídica (del currículo), administrado por las instituciones de enseñanza y
regulada por la Orden Ministerial, que solo prepara al titulado para ejercer
profesiones jurídicas, habilitándole a poder someterse a los procedimientos
de selección profesional.
Por lo que se refiere a los actos privativos de los abogados, hay una
gran evolución entre el Reglamento de 1931 y los Estatutos de 1963 y
1994. Incluso exponiendo los dispositivos básicos respecto de la finalidad
y organización de la institución, normas de admisión en los cuadros de la
Orden y derechos y deberes de los abogados, el Reglamento inicial dejó
mucho a desear en lo que se refiere al ordenamiento del ejercicio de la
abogacía.
De los 109 artículos que forman la ley solamente cuatro fueron reservados para tratar directamente de la práctica profesional, dejando de
mencionar cuestiones importantes como los actos privativos de los abogados
y las reglas del servicio de asistencia jurídica. Esas cuestiones solo serían
legitimadas trascurridos más de 30 años después con la publicación del
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primer Estatuto, de 1963, que, en el Título II, Del Ejercicio de la Abogacía,
reservó 80 artículos, divididos en 9 capítulos, para tratar del asunto.
El primer Estatuto garantizó una relativa ampliación de los actos privativos de los abogados. Sin embargo, esa ampliación no consiguió
establecerse sin que antes sufriera varios percances, debido a la intensa
oposición articulada por los miembros del Congreso Nacional.
Con la aprobación del 2º Estatuto, en 1994, se añadieron a las funciones privativas de la abogacía las actividades de consultaría y dirección
jurídica (abogacía preventiva y judicial) y la representación con carácter
profesional ante la administración pública.
La definición de las incompatibilidades profesionales entre la abogacía
y otras funciones fue tratada en apenas dos artículos en el Reglamento.
Versaban sobre prohibiciones e impedimentos (prohibición parcial) para
hacer procuración en juicio. Las prohibiciones pesaban sobre jueces en
general, miembros del Ministerio Público, funcionarios de la Justicia, policías
y corredores de fondos públicos. En el ámbito de los impedidos, estaban
los jefes del Poder Ejecutivo Federal y Municipal, miembros del Poder
Legislativo y los funcionarios públicos administrativos.
En 1963, el primer Estatuto simplificó las hipótesis de impedimentos
para el ejercicio de la abogacía, estableciendo que cualquier actividad, función
o cargo público que disminuya la independencia del profesional o proporcione la captación de clientela no es compatible con la práctica de la abogacía.
En el 2º Estatuto, de 1994, el gran avance en relación con la
reglamentación de los impedimentos se refiere a las restricciones presentadas
sobre la actuación de los Procuradores, Abogados Y Defensores Generales,
así como también, de los dirigentes de órganos jurídicos de la administración
pública directa, indirecta y fundacional.
Los ocupantes de tales cargos serian exclusivamente legitimados
para el ejercicio de la abogacía vinculada a la función que ejerzan,
durante el período de la investidura. Otro aspecto importante fue la
aclaración que el 2º Estatuto proporcionó a las afirmaciones vagas e
indeterminadas del primer Estatuto en relación con las incompatibilidades.
El primer Estatuto terminó por instaurar una casuística que daba
margen a múltiples interpretaciones, como cuando estableció que la abogacía
es incompatible con cualquier actividad que reduzca la independencia
del profesional o proporcione captación de clientela.
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Ya el Estatuto del 94 procuró presentar un vasto listado de hipótesis
de incompatibilidades apartando cualquier duda en relación con las funciones prohibidas de convivir con la práctica abogaticia.
Por determinación de la nueva ley, las infracciones disciplinarias
pasaron a ser cohibidas con mayor rigidez. El Estatuto en vigor añadió a la
aplicación de multas otras penas que deberían evitar la reincidencia de las
transgresiones, garantizando el patrón ético de la corporación.
El rigor de las nuevas puniciones no impidió que la ley se preocupase
de garantizar el derecho de defensa de los abogados injustamente notificados. La reorganización de los casos de recurso, según su peculiaridad,
estableció plazos uniformes para su interposición, además de permitir que
los procesos de revisión penal puedan certificar la rehabilitación de los
profesionales.
Al contrario de los restantes aspectos, el control disciplinario de la
categoría fue presentado de forma bien consistente en el Reglamento, abarcando cerca de 30 artículos ( 27º a 56º ).
Además, solamente con el Estatuto del 63, varios preceptos considerados como regla de ética pasaron a hacer parte de los deberes legales
de la autoridad abogaticia destacándose, de entre ellos:
el sigilo profesional;
la defensa de la reputación de la clase;
prestación gratuita de servicios profesionales a los necesitados
en el sentido de la ley;
recusación del patrocinio a causas ilícitas salvo en defensa del
proceso criminal;
y prohibición de pronunciamiento público sobre casos entregados a otros abogados.
Algunos derechos también fueron legitimados por el Estatuto como
la libertad de visitar a los clientes incluso cuando estuvieran detenidos; el de
exigir la presencia del Presidente de la sección local cuando fuera detenido
en flagrante; la inviolabilidad de los archivos y oficinas profesionales; el
libre acceso en las salas de audiencias, sesiones de los tribunales, notarias y
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prisiones; el derecho de réplica y el derecho de desagravio público cuando
fuese ofendido en el ejercicio de la profesión.
El 2º Estatuto hizo una síntesis detallada de las acciones atentatorias
a los principios éticos de la abogacía. Se estableció que solamente el Estatuto podría indicar las infracciones disciplinarias, siendo prohibidas
interpretaciones análogas que desvirtuasen las determinaciones soberanas
de la ley estatutaria.
El proceso de organización estatutaria de la Orden de los Abogados
de Brasil y sus reformulaciones, de acuerdo con el desarrollo histórico del
Derecho Nacional, representan la consolidación de su legitimidad y
soberanía como órgano regulador de la actividad abogaticia en todo el
país.
Ese es, en síntesis, el modelo de colegiación obligatoria a que llegamos,
en el transcurso de décadas de vivencias y experiencias acumuladas, que
estoy seguro han de servir como rico acervo de reflexión para los países
que deseen organizarse de manera análoga.
Evidentemente, no todo es transponible de un país a otro.
Existen, efectivamente, las peculiaridades, las circunstancias de cada
cual. Pero creo que la experiencia de la abogacía brasileña – que vive
circunstancias geopolíticas análogas a las de la abogacía latinoamericana –
ha de ser de gran valía a los países vecinos que desean adoptar la colegiación
obligatoria y que la ven como lo que de hecho es: un paso fundamental para
garantizar la calidad de los servicios jurídicos, elevar su patrón ético y fortalecer en todos los sentidos las prerrogativas de la profesión.
Sin duda, es un beneficio para la ciudadanía y una graduación fundamental en el proceso de unidad continental que buscamos – y del que el
Consejo de los Colegios y Órdenes de Abogados del Mercosur (el Coadem)
es apenas el primer paso, así como por la UIBA – Unión Iberoamericana
de Colegios y Agrupaciones de Abogados.
Espero haber contribuido con estas palabras para hacer más denso
este debate.
Muchas gracias.
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Revista IAMG Edição 14