A Instituição e sua Borda A instalação do problema No campo das artes plásticas, as instalações são formas de intervenção no ambiente de tal maneira que entre obra e vida, entre arte e socius, entre o criador e o espectador já não se garante uma distância ou uma separação. Aqui o que se distingue não se separa, em um hibridismo que queremos tomar como método. Seguindo este caminho (méthodos) já não podemos aceitar tão naturalmente questões corriqueiras como estas: de onde falo? Qual é minha identidade profissional? Acreditamos que nossos dispositivos de intervenção são modos de nos . instalarmos. no mundo, habitando este limite entre os domínios. Nesse sentido, é em uma zona de 1 intercessão . lá onde operam os intercessores . que fazemos nossas apostas. A literatura também nos permite experimentar essa zona de indeterminação onde o sentido já não se garante pela sua separação do não sentido. É esta, por exemplo, a experiência literária que Lewis Carroll nos oferece ao narrar as aventuras da pequena Alice. A habilidade da menina para captar os núcleos de non sense que os fatos portam associada à sua extrema vivacidade, faz de suas aventuras uma viagem para a qual somos convocados nisso também que em nós surpreendemos. Como destacou Deleuze em Lógica do Sentido, trata-se, no texto de Carroll, de uma . encenação dos paradoxos do sentido. . 2 A clínica é também uma experiência que traz à cena os paradoxos, sendo ela mesma confrontada, em sua prática, com essa dimensão de não-clínica que ela comporta. O trabalho é sempre o de extrair o não-clínico da clínica, situando-se no limite onde já não cabe separá-la da arte, da política e da filosofia. Se o intercessor-arte nos serve como indicação metodológica, o intercessor filosófico não cumpre menos esta função, nos ajudando a pensar a clínica e o conceito de subjetividade. Vale destacar que o método que temos construído para pensar a produção da subjetividade pode, numa primeira vista, criar um certo mal entendido ou mesmo uma indisposição da parte de quem tem definido 3 sua identidade profissional no campo da clínica . É importante dizer que nós não estamos menos engajados numa tecnologia da subjetividade premida pela urgência do contemporâneo. No entanto, o que dizemos soa, muitas vezes, com um tom filosofante. Trata-se de uma questão de método, como afirmamos, que não nos afasta da clínica. O conceito filosófico tem para nós não um sentido estritamente demonstrativo ou de exercício da erudição, mas nos serve na sua função intercessora, isto é, nesse movimento que ele comporta e que nos permite a constituição de um compromisso crítico naquela dupla acepção da palavra: crítico porque relativo à crítica ou colocação em análise das práticas instituídas, aí incluídas as da própria análise; e crítico no sentido de crise, esta que é experimentada por efeito da desestabilização dessas mesmas 4 práticas. Todo conceito filosófico, como entendemos, porta um quantum de transversalização que faz dele um poderoso intercessor, já que nessa sua fronteira indeterminada permite conexões, agenciamentos, expressando uma potência de desestabilização do nosso próprio saber, o que nos parece ser bastante produtivo, sobretudo para quem está comprometido com uma militância dita clínica. Comportando sempre um grau de abertura, se apresentando sempre como um composto de elementos heterogêneos, se afirmando como uma singularidade, o conceito filosófico nos serve pelo que tem de movimento. Nesse movimento somos então levados a pensar diferentemente, experimentando o limite de nosso saber, ali onde nos confrontamos com o fora. Para nós essa decisão metodológica nos obriga necessariamente a uma experiência de crise do que entenderíamos como nosso saber, nosso especialismo, nossas propriedades. A filosofia de 5 Hume relida por Deleuze nos serve, então, para recolocarmos o problema da subjetividade em sua relação com o sentimento que temos de nós mesmos e que nos define como identidades 6 próprias. Hume argumenta que este sentimento de propriedade tem sua gênese no tempo. É na experiência do tempo que a subjetividade se configura como um plano de produção ininterrupto, produção de si, uma autopoiese geradora do sentimento de si. Esta autopoiese se dá como um plano de produção composto tanto por eventos e fatos quanto por expectativa e espera. A tese empirista afirma o primado da experiência. Em sua radicalidade, essa tese se apresenta como uma figura paradoxal, pois todo esforço desta intuição filosófica foi o de pensar uma experiência pura, primeira, anterior ao próprio sujeito ou experiência sem um sujeito prévio que fosse sua condição de possibilidade. Segundo Hume, o humano se define como uma experiência no tempo, uma experiência de síntese no tempo. O passado e o presente se atraem e se conectam criando o sentimento de familiaridade, uma estrutura de antecipação do futuro, uma crença, um hábito, uma espera. As sínteses no tempo vão criando as Instituições com as quais o homem busca satisfação para suas necessidades. Vivemos, portanto, no artifício. Criamos Instituições que são para nós realidades primeiras, tal como naturezas inventadas ou imaginadas. O interessante, para nós, é aproveitar as reflexões filosóficas de Hume/Deleuze para rachar as instituições, sobretudo a instituição de si, fazendo aparecer seu processo de produção. Nossas naturezas são, portanto, invenções e funcionam na medida em que acreditamos nelas. E, se resta ainda, para aquém dessas crenças e instituições alguma natureza humana, essa deve ser entendida apenas como tendência à contração de hábitos, isto é, tendência a contrair no tempo. Nosso esforço de compreensão desses conceitos filosóficos se justifica, então, pela intuição de que o tema da clínica está aí implicado. Na clínica, o trabalho se dá sobre um plano multivetorializado de produção de subjetividades, plano que se desdobra no tempo. Entendemos o conceito de subjetividade descrevendo não uma essência ou um estado de coisa, mas um processo de produção ou de síntese no tempo a partir de componentes heterogêneos que se apresentam como vetores de existencialização. O plano da clínica, comportando esta diversidade, não pode ele mesmo, portanto, ser definido por suas fronteiras, já que essas são constantemente desestabilizadas pelo próprio trabalho da análise. Daí ser difícil pensar uma instituição clínica, a não ser que ela se defina menos pelo que nela está instituído e mais pelo que nela e dela transborda. Uma instituição clínica ao atualizar a instituição da clínica só se sustenta nessa experiência em seu limite, isto é, estando sempre em suas bordas. 7 Esse é o caso de La Borde. Guattari, no prefácio de La borde ou le droit à la folie , diz que La Borde é um . buraco negro. e o que se pode fazer é escrever um livro não sobre, mas a partir de La Borde (a partir da borda). Só se pode falar dos agenciamentos que nos atravessam todo o tempo. A Psicoterapia Institucional ali experimentada é uma acumulação sobre as bordas, pessoas que vão e vem. Em La Borde discute-se tudo de todos os lados, . não havendo mais meio de ser louco tranqüilamente. (ibid). A Clínica de La Borde está situada a 200 Km de Paris, ao sul de Blois no distrito de CourCheverny. Foi fundada em 1953 por Jean Oury, seu atual diretor, e contou com o trabalho de Felix Guattari desde 1955. Oury havia sido residente em Saint Alban, hospital psiquiátrico dirigido por François Tosquelle nos anos 40 e 50 e onde uma importante experiência crítica da psiquiatria teve lugar. Esta experiência mais comumente chamada de Psicoterapia Institucional colocou em questão o modelo asilar, ressaltando o papel de produção da doença mental realizada pela instituição psiquiátrica. Criticava o confinamento e a exclusão dos pacientes tanto na participação de seu próprio tratamento quanto na organização da vida institucional marcada por uma hierarquia rígidas das relações. O movimento que se desdobrou a partir da experiência de Saint Alban resultou na proposta da Psiquiatria de Setor que visou a descentralização da atenção e a oferta de tratamento no território. La Borde foi um dos equipamentos de saúde ativados pelo movimento da Psiquiatria de Setor embora dele tenha se diferenciado logo nos primeiros anos de seu percurso. Contando com a formação psicanalítica e institucionalista de Oury assim como com a experiência de militância política e os estudos filosóficos de Guattari, La Borde se constituirá como um campo de experimentação especialmente ligado ao tratamento da psicose. Como afirma Guattari . foi então que aprendi a entender a psicose e o impacto que poderia ter sobre ela o trabalho 8 institucional. . O cenário onde estas mudanças vão se singularizar é fortemente marcado por articulações entre a clínica e a política. Neste contexto é que . a análise passa a ser vista como 9 uma dimensão de toda a experimentação social.... . La Borde é uma instituição na borda de si, dando passagem para acontecimentos singulares, experiências impessoais 10 tais como essas que tão fortemente nos tocam em uma viagem. Tomaremos como material de análise, agora, a nossa correspondência pela internet, portanto em tempo real, sem distância, correspondência que acompanhou uma viagem à França. Experimentando as bordas: Correspondência Rio/Paris At 23:16 21/04/2000 CEST, you wrote: Querido amigo, bom saber das alianças que torcem por e bebem dos sonhos que podemos partilhar... Levarei ares de Paris porque eles aos poucos entranham nossos poros. Estive hoje em La Borde! A viagem para lá te contarei em detalhes (pois estes são os mais importantes, bien sûr) mas já te digo que há questões para pensarmos (e seria diferente?). Entre conversas com os pensionaires (como são chamados os usuários) e participação na assembléia geral com o Oury, respira-se, um ar de amitié et solidarité, mas também vê-se claramente que a referência (ou reverência?!) é para com os médicos. Digo-lhe que em matéria de modelos de gestão estamos produzindo coisas bem interessantes por aí. O que há aqui de interessante é um desmanchamento dos especialismos entre os profissionais de saúde. Todos são monitores ou estagiários, nem se sabe qual a formação de cada um...a não ser os psiquiatras e psicanalistas!!! Bem, certamente há mil coisas interessantes. Comprei uma fita sobre La Borde e um livro sobre Grupo, apesar de que não há "psicoterapia em grupo!!!" em La Borde. Beijos da amiga Regina _____________________________ Regina Imagino teu passeio por La Borde se fazendo à borda do lugar como não poderia deixar de ser, em se tratando de você e por se tratar de La Borde. Sempre há coisas para pensar e criticar, pois este trabalho é infindo. Mas o que pode torná-lo menos cansativo é o prazer do passeio e a sensação da viagem (estar assim tão longe e tão perto). E os ares de Paris devem mesmo dar um outro aroma para estas questões. Na viagem temos a oportunidade de fazer diferentemente, pensarmos (nos) diferentemente, pela embriaguez desses ares. Aproveita, amiga, a viagem!!! Um beijo Edu _____________________________ Estar na borda, aproveitar a estrangeiredade da língua na língua. Cena 1: Chego à la Gare de Blois. Aguardo um homem que viria me buscar na chauf (como ils disent). Devo esperar no Café de la Gare. Je demande un café. Un homme me regarde. Seria ele? Pareceu-me ler em seu olhar a mesma pergunta. Ele não se dirige a mim e se senta em outra mesa. Aguardo. Quase 11:30, vou para fora do Café e observo uma van que se aproxima. Como saber? Olho e procuro. Salta uma mulher loura, olhos aflitos, gestos abruptos. Ela fuma e se dirige para dentro do Café. O motorista salta também, pega um pequeno papel e me olha. Dirige-se a mim e pergunta meu nome. Era ele quem estava encarregado de me conduzir à La Borde. Entramos no café e aquele primeiro homem que me olhara diz achar que eu iria à Clínica. Apresenta-se a mim. Era Jean-Luc. Pensionaire de La Borde (como eles se chamam).Logo, carinhosamente, fala-me da sua relação com La Borde. Jean-Luc, como ele havia ao final do dia escrito, quando me dava seu endereço (pois eu lhe disse que escreveria), iria ser aquele que me introduziria no mundo de La Borde... Um Beijo Regina _____________________________ Regina à la borde A cena tem ares noir, comme il faut. A troca de olhares faz do bar um "aparelho" onde se sabe algo funciona. Ali você espera, é pura espera e abertura ao que só se insinua, entrevê. Jean-Luc é o parceiro apropriado para um tal momento (mas também pudera, com este nome ...)Ambos estão à espreita, são espera. E o que dizer de seus hábitos, senão que eles se refaziam naquele inusitado e inquietante encontro entre-olhares? Um café com um copo d'água. Talvez até mesmo um gauloise em baforadas densas. Será que você já está fumando? Edu _____________________________ Cena 2: C'est vraie. A espera é abertura para os acontecimentos no que eles se insinuam como novo. É um estado de corpo onde o que se conhece, o hábito, serve como automatismo funcional sem atrapalhar o que está devindo. Dominique acaba seu café. Dunot, o motorista, está apressado, diz que há pessoas para pegar. Meu corpo vibra na pressa de Dunot, mas também no acolhimento de J-Luc. J-Luc quer saber de mim: de onde venho, o que faço ali. "Você é uma nova estagiária?. Não, vim conhecer La Borde, mas fico apenas um dia. . Não dá para conhecer La Borde em um dia, que pena você não poder ficar mais. . Digo que há muito conheço, de outros modos, La Borde. Tenho lido, conheci Guattari... . Há alguém lhe esperando?. Maria José, respondo, uma estagiária brasileira". J-Luc gosta de Maria José, ela é suave e sabe afirmar o que quer, diz-me. Faz frio fora do Café. Entramos na chauf. O clima é muito acolhedor. Dominique senta-se na frente e J-Luc indica meu lugar. A conversa continua. Ele me explica que a chauf sai 5 vezes ao dia de La borde e vai até o centro de Blois. Blois é uma pequena cidade, bastante turística pelos Chateaux onde os reis franceses costumavam passar suas férias. A cidade está florida nesta época do ano, ainda que faça um pouco de frio. A chauf pára e Dominique salta: iria passar o dia com parentes. É num bar que ela fica. J-Luc olha-me e sussurra que Dominique bebe. Mais à frente paramos novamente num bar. Entra, circunspecta, uma senhora. Digo-lhe bonjour, e ela não responde. J-Luc continua falando de La Borde. Todos os dias a chauf... paramos em outro bar e, desta vez, entra um cachorro(!) ... (!)e algum tempo depois, sua dona. É uma senhora muito alegre. Dunot reclama do seu atraso. Ele tem pressa(!). Ela, amavelmente, se desculpa e me é apresentada por J-Luc. Eles, decididamente, gostam dos brasileiros. Seguimos para La Borde na va - nau dos insensatos(?) dirigida por Dunot, que continua apressado. Lembro-me do coelho da Alice, sempre apressado. E eu, seria Alice, mergullhando no país das Maravilhas? Chegamos à La borde depois de uns 13km em uma linda estrada. Já avisto o Chateau. É lindo! Paramos antes da porta de entrada(!?!).Não sei bem porque. J-Luc convida-me a saltar e eu o faço. Afinal, ele estava sendo meu guia. Ele me conduz ao centro de estagiários. Maria José n'était pas là. J-Luc convida-me para almoçar. O caminho se bifurcara. Seria introduzida no Chateau por J-Luc, e...poderia ser de outro jeito? Entramos e imediatamente nos misturamos aos outros pensionaires. Estava em La Borde. Agora havia mergulhado em outra superfície. Beijos Regina _____________________________ Regina As cenas vão se seguindo compondo um roteiro como aqueles do cinema francês: charmosos, densos e suaves. J.-Luc parece mesmo ser o melhor guia para essas aventuras de Alice. E o espanto da menina é a sua força de intervenção e de crítica. Por isso viver a crise é para as alices uma forma de fazer a diferença. Petite terrible! Tenho certeza que a maravilha se espalhará como que por contágio. É preciso reinventar Alice a todo momento. Só assim saberemos descobrir os buracos por onde escapar das armadilhas do cotidiano. Um beijo Edu _____________________________ Cena 3: Entro no Castelo acompanhada por J-Luc e procuramos uma mesa para almoçar. Como havia somente uma mesa desocupada dirijo-me a ela, mas J-Luc me explica que devemos nos sentar nos lugares vagos que possam existir em uma ou outra mesa. "Eles poderiam se magoar. . Novamente percebo-me à espera, algo de novo se anunciava. Aguardo. Observo a movimentação: barulho de pratos, vozes, pessoas colocando travessas com a comida, mesas cheias de gestos... paro os olhos em um negro, jovem que de frente ao prato faz gestos repetidos sem se aproximar da comida. Seus olhos estão vazios... ou distantes. Pareceu-me repetir uma dança ou uma espécie de ritual. Uma moça se aproxima e lhe pergunta se não quer comer. Ele continua seu movimento... Como fazer a diferença? Mas J-Luc já me chamava para sentarmos, pois havia conseguido uma travessa de comida para nós. Dizia-me que tinha que comer ao meio-dia e já passava um pouco da hora. A comida é cheirosa...é uma paella. Vejo pessoas circulando entre os que comem. Tiram pratos, trazem água e a sobremesa. 6a.feira era dia de sobremesa especial, pois na véspera tinha atelier de patisserie e sempre preparavam algo gostoso. Na nossa mesa senta-se uma linda moça: Pierre Marie, como se apresenta. Pergunta quem eu sou e logo se interessa por eu ser brasileira. Novamente a simpatia se instaura. Começamos a conversar, falo um pouco de como vim parar em La Borde. Ela também: há uns 12 anos atrás sentira muita dor na coluna e isto fizera mal a sua cabeça. Agora estava bem, mas de vez em quando as coisas ficavam complicadas. Diz não gostar de espanhóis...eles são muito traiçoeiros. Os brasileiros são abertos, acolhedores. J-Luc, atencioso, perguntava-me se não queria mais, se desejava água. Levanta-se para pegar a jarra. O chá das 5 de Alice... Chega Maria José e se apresenta. Continuamos a falar em francês para que todos participem. Mas há uma outra língua que fala ... são milhares de sensações e cheiros. Sinto-me completamente incluída na cena, sou também JLuc, a moça que me parecia árabe, Maria José,... Terminamos o almoço. Saímos da sala e J-Luc despede-se dizendo que esquecera que teria que pegar uma encomenda na cidade e teria que ir. Voltaria mais tarde, se desse... Diz esperar me ver novamente....eu também. No ar sinto gentileza, acolhimento. Alice procura a chave, mas ficara muito pequena após o almoço. Não conseguiria sair tão fácil daquele labirinto... Beijo Regina (esta mensagem foi enviada no dia 30 de abril às 24h) _____________________________ Regina Alice Quando os limites começam a se confundir - Regina/J-Luc, ela/ele, Pierre/Marie, Maria/José -, muda-se a expectativa, o ar da espera se adensa e imersos em seu volume faz-se toda a diferença. Sente-se ali as mil Alices que circulam provocando o espírito, fazendo do pensamento e do coração uma experiência de aventura. Em La Borde ou à meia noite, entre abril e maio, nem bem 30 nem ainda primeiro, eis o lugar e o momento em que todos os gatos ficam pardos em sua inespecificidade felina. Mulher-gato é uma das formas de Alice, bela e fera a um só tempo, nesses momentos intersticiais. Grande viagem!!!! Edu _____________________________ Cena 4: Alice buscava alguma explicação lógica no que acontecia com ela(...ou acontecia nela?! ou melhor, acontecia apesar dela!). Nossa! Tudo parecia de repente tão confuso... Ela sai do Castelo, Maria José animadamente lhe fala de como o espaço estava dividido. À direita se vê uma pequena capela, mas que na verdade era uma biblioteca. Um pouco mais para frente se vê uma sala, mas que na verdade era um atelier de cultivo de plantas... Alice, conformada com o fato de que naquele mundo havia outros sentidos, procurava não se espantar a cada passo. Andavam um pouco rápido demais para Alice. Ela queria saborear cada canto. Lembrou-se que trouxera uma máquina de fotografar. Tira algumas fotos e a máquina não funciona mais, era a pilha... Seguem andando pelos cantos, entram num outro alojamento. Alguns pensionistas ali habitavam. Chamam-no Extension (extensão... do que?) Há também aí uma parte que é da Administração e alguns outros ateliers. M-J fala um pouco do dia-a-dia. Pela manhã ela e outros estagiários acordam os pacientes e lhes dão os remédios. Remédios?! Espanta-se Alice. Todos os pensionistas tomam medicações. Os médicos reúnem-se com os estagiários e monitores uma vez por semana para discutirem sobre os pensionaires e seus medicamentos. Depois de tomarem seus remédios, arrumam-se e vão tomar café. Reúnem-se, então, para ler a feuille du jour, espécie de boletim onde se registram e se organizam as atividades que serão oferecidas e/ou desenvolvidas naquele dia. Depois cada um vai para a atividade que quiser realizar. Muitas vezes vão conversar com o médico ou com seu psicanalista. Psicanalista?! Espanta-se Alice. Todos os pensionistas (ou quase) consultam-se com o psicanalista. Alguns deles vêem seus psicanalistas até quatro vezes por semana. Alice pergunta se médicos e psicanalistas acompanham os pensionaires em outras atividades. Com exceção das reuniões gerais, onde quase todos estão presentes, são os estagiários e monitores que acompanham os pensionaires nas demais atividades. Há análise em grupo? Terapia de grupo, qualquer atividade entendida como terapêutica em grupo? NAO! Alice, agora, não entendia mais nada mesmo. Sentia-se num mundo onde o nonsense estava presente em toda sua potência de desequilibrar o já conhecido e experimentava o sabor daquilo que se lhe apresentava como inédito, inexplicável. Mas aquilo que acabava de ouvir parecia-lhe só fazer sentido num mundo "muito razoável". Onde estaria a força disruptora do esquizo, da análise que crescera por entre um Castelo-Chateau do século XVI e os limites esgarçados de uma Psicoterapia que colocava em análise a ela mesma? M-J espantou-se com a exclamação de Alice e num certo momento diz que, de fato, quem faz o trabalho de estar com os pacientes são os monitores e estagiários, mas que percebe haver um lugar diferenciado dos médicos e psicanalistas. Mais ainda, a referência é, em grande parte das vezes, com o médico. Interesso-me em saber sobre a divisão do trabalho e como é feita a gestão das atividades. Eles se organizam em equipes para realizarem os trabalhos? Como é feita a agenda? Quem gerencia os recursos? M-J novamente parece se espantar com as questões. Não há equipes formadas entre os que cuidam. Monitores e estagiários (os primeiros são os que são contratados, recebem algum salário, os segundos recebem alimentação e estadia) reúnem-se semanalmente para discutirem algum caso ou alguma questão que envolva os pacientes. Os estagiários ficam responsáveis por um ou outro alojamento (há três, com o total de 150 leitos) e desenvolvem algum atelier. Cuidam da limpeza dos alojamentos, trocam as roupas, desenvolvem atividades, cuidam da alimentação, participam das reuniões, etc. . Como dizia, segue M-J, depois das atividades da manhã, é hora do almoço. Todos se sentam à mesa e..." Alice, que já vivera a experiência do almoço com J-L, se distancia da explicação dada por M-J. Ficara . presa. em seu espanto de não haver análise de/em/com os grupos. Onde estava Guattari? Mas Alice não queria perder nenhum momento da experiência e de novo volta a M-J. . ... aqui é o outro alojamento, chama-se Parc, é mais novo que os outros dois. . Somos interrompidas por uma senhora que quase sem palavras fala com M-J. Percebo que se comunicam rapidamente, os olhares falam... Seguimos para o Castelo, pois estava na hora de M-J comer. Entramos pela cozinha. M-J me explica que a cozinha é de circulação livre para todos. Há pensionaires que poderiam desconfiar do que iriam comer, de modo que qualquer um entra a hora que quiser. Os cozinheiros-monitores são super simpáticos. Conversam com todos enquanto cozinham. A cozinha é clara, grande, convidativa. Passamos à sala de comer. Novamente a sensação de compartilhamento me invade. Gestos, risos, sons, cheiros...Agora não como e converso com Ginnete. Digo-lhe que Marcos (um brasileiro que estivera por lá durante um tempo) lhe mandara um grande abraço. Ela sorri. Conversamos um pouco. Naquele mesmo andar havia um hall de entrada e uma grande sala onde as assembléias e grandes reuniões aconteciam. Terminado o almoço, subimos dois andares. No primeiro, um outro alojamento e acima o lugar onde habitam os estagiários. Deixo minha mochila e desço com M-J para a reunião de depois do almoço. A sala é grande e bonita. Tem dois níveis e um bar muito simpático. Há uma grande mesa onde já estão sentadas algumas pessoas: pensionaires e um psicólogo, me diz M-J. Começam por apresentar as atividades da tarde, decidem algumas mudanças, riem. Muitos entram e saem. Alguns nada dizem, outros dizem e nada escutam. Outros escutam e olham. Eu/Alice experimento. Fico encantada por/em afectos que estão ainda sem língua. Beijos ReginaAlice _____________________________ Regina Na confusão da menina, as instituições vão perdendo seu sentido, revelando sua face de absurdo e de conveniência. Pois sob o olhar de Alice, as coisas ficam sem explicação ou bem se explicam às avessas. Mas o importante é que seu passeio não se interrompe, deslizante/delirante por entre as torres do castelo meio hospital, meio albergue, meio parque, meio asilo, meio atelier, meio... É por aí que a menina segue, movida agora pela surpresa com leves tons de indignação. E o que salva a menina é esta sua habilidade de passar pelo meio. Edu _____________________________ Cena 5: Afetos ainda sem língua, passar pelo meio... Instigada por sua curiosidade, Alice procura J-Luc. Ele não disse que voltaria? A reunião não demora muito. M-J diz que tem que providenciar um xerox de um mapa. Ah! Um mapa! Alice pensa que com um mapa na mão poderia muito bem saber que outros caminhos existiriam por ali. Provocada, segue M-J. "O mapa,diz M-J, é do Brasil". Do Brasil??? Alice nem podia acreditar. Pensava que havia caído num Castelo medieval francês e, de repente estava preste a ter um mapa do Brasil. A confusão de novo se instalava. Estava na França, em Blois, em Cour Chevernie, no Brasil...Estava na Idade Média, em pleno ano 2000... Afinal, em que tempo, em que espaço? M-J andava rápido, pois tinha outra reunião. Passam pelo atelier de jardinagem que a esta altura tinha se transformado em sala de reunião para a preparação da feuielle du jour do outro dia. Explica a uma jovem moça que gostaria que eles colocassem as atividades programadas dentro do mapa que ela iria reproduzir. No dia seguinte seria aniversário do Brasil, 500 anos, e ela tinha preparado um atelier Brasil especial: comidas, bebidas, cores, música...tudo típico. Até o bar ficaria aberto o dia inteiro. Alice adorou aquela história. Lembrou-se que o Brasil tinha mesmo dessas coisas. Ficou com saudades dos amigos, das cores e sons. Mas...e o mapa? A cartografia é sempre de circunstâncias, lembrou-se: um dia, um gesto, um vento. Como manter o brilho dos acontecimentos? Como guardar a força disruptiva do devir? Como experimentar um devir-Alice? Conseguimos, por fim, o xerox. Passamos para a moça que pareceu incumbir-se da tarefa. Era hora da reunião de estudos dos estagiários. M-J convida-me para participar. Experimento novamente a tensão. Afinal outro estado de corpo era demandado. Beijos Regina Cena 6: Sentamo-nos à mesa e todos portam um texto. Haviam lido e agora o discutiriam. Mais de quoi s'agit-il? Alice reconhece imediatamente o texto: "Transversalidade" de Félix Guattari. Não podia mesmo ser outro. Tal texto, em tal contexto. Texto-chave, chave para Alice, chave para experimentar le hors du texte. Eles lêem, discutem, relêem. Aice inebria-se com a experiência. Teria ela tomado chá de cogumelo no almoço? Mas a duquesa árabe lhe dissera que era água! A comida não teria sido paella, mas moluscos e camarões de estranhos mares? Por onde Alice passava experimentava aquela sensação: havia uma estranheza que se dava como primeira vez (afinal, pensou Alice com os cadarços de sua bota, era a primeira vez que vinha a La Borde), mas que ao mesmo tempo lhe parecia tão familiar...O estranho familiar, o ritornello que varia na repetição. Alice achou que agora era demais. Ela, de fato, estava variando das idéias...Variando. Decido intervir. Pareceu-me que eles estavam lendo muito ao pé da letra. De repente, vejo-me falando francês livremente. Apresento idéias que me vêem dos encontros com meu amigo Edu. Falo de Guattari, do momento em que ele escrevia aquele texto, destaco aspectos que ainda não tinha visto no texto que já lera tantas vezes. Todos me escutam. Christofle, o filósofo que coordenava o grupo, concorda comigo, faz comentários. Falo, escuto, sinto,vejo, vivo. Beijos Regina _____________________________ Regilices Agora está tudo tão rápido. Leio duas cenas de um só golpe e me surpreendo com a velocidade dos acontecimentos expressa nas palavras que roteirizam as cenas. As palavras vão se fundindo, contraídas pela força do agenciamento entre elas e entre isso que não são elas, mas que percorre os corredores do castelo medieval/2000 em uma França/Brasil. Regina e as Alices se encontram nessa zona de indefinição onde elas se abraçam, fundindo-se não em uma, mas em muitas regilices. Sinto a velocidade da tua experiência, minha amiga, desta tua viagem que atravessa, transatlântica, a distância entre os continentes. Habitar essa utopia França/Brasil é viajar e viajo com você de carona. Assim continuamos próximos. Edu _____________________________ Cena 7: Descemos rapidamente pois já estava na hora da grande reunião de sexta- feira. Quando chegamos, a mesa coordenadora estava composta e a sala cheia. Oury estava no centro, mas não era quem presidia o encontro. Alice sentiu novamente o clima de espera. Sentou-se ao fundo da sala de onde podia ter uma visão de tudo. Onde estava J-Luc? Procurou dando uma rápida passada pela sala, mas não conseguiu vê-lo. C'est domage... O momento era um desses momentos quentes que os socioanalistas tanto falam... A análise corria pelos cantos, atravessava as falas, os gestos às vezes um pouco bizarros dos que ali estavam, passava pela tentativa de organização da pauta daquele que, com óculos escuros, toda hora dizia "Numéro 4, les ouefs de pâque qui seront cacher... Numéro 5, Ginette ...". Mais como um mestre de cerimônias do que como um chefe de sessão plenária, ele passava a palavra, pedia a um e outro que fizesse silêncio, dizia que o ponto já estava discutido e decidido, etc... A meu lado M. José segue animada as discussões. Eu fico atenta aos muitos gestos, sons, palavras-atos... Chega um homem alto, passos incertos. Dirige-se para o fundo da sala. Pára perto de onde estou. Não fala. Põe-se de costas para a mesa coordenadora e repete, com seu corpo, uma série de gestos. A cena, a princípio "fora de lugar" para a assembléia parece integrar-se rapidamente. Ninguém se dirige a ele para o reconduzir, ou o afastar. Um outro homem parece perceber, não sei por qual estranho canal, o que o primeiro pedia. Um cigarro. Trocam pequenos olhares, o segundo dá ao primeiro um cigarro. Ele pega, fuma e vai embora... O fora-incluído produz a ruptura necessária ao esperado, impõe-se na cena, modifica-a... Alice percebe que M-José falava com ela já tinha algum tempo. Perturbada pelo agenciamento gesto-cigarro, Alice tinha por alguns instantes desviado sua atenção... Desvio-afeto. "Você ouviu?. Perguntava-lhe M-José. . Você conversou com a Ginette no almoço e lhe disse que conhecia o Marcos, ela colocou na pauta para você falar". Falar???? O que??? Mal conseguia refazer-se do susto da notícia já chegara a hora. "Notícias do Marcos...", segue o chefe de cerimônia, com sua palavra determinada. Levanto-me, digo que sou brasileira, que estou ali para conhecê-los e que estou feliz com esta oportunidade. Digo-lhes que Marcos sente saudades e que abraça a todos. Sorrisos, olhares de cumplicidade. SIM, era isto: cumplicidade, aliança. Era isto que atravessava a sala, o Castelo, as paredes, o ar! Oury pede a palavra e fala do jornalzinho da semana e que ele havia escrito um parágrafo que gostaria de ler. Lê, carinhosamente, calorosamente valorizando o CLUB, aquilo que para ele não podia morrer, haveria de ser reconstruído sempre. O Club, invenção de Guattari e dele, invenção coletiva, dispositivo de engendramento coletivo de enunciação... Miriam (nora de Guattari, brasileira), diz que tem convites para a inauguração dos arquivos das obras de Guattari que, a partir de agora, ficariam sob a gestão do IMEC, para acesso de todos. Os convites ela entregou à mesa. Aplausos para Guttari, para todos. A reunião-assembléia-dispositivo de coletivização termina. Clínica em ato, Instituições em análise, incluindo a da clínica. Falo com Miriam, quero ir ao encontro de inauguração dos arquivos de Guattari. Conversamos, identificamos amigos. Ela me enviará um convite. Pede para ligar... M-J despede-se, tinha outra reunião e eu deveria esperar a chauf que me levaria de volta à estação. Sento-me na soleira da entrada do Castelo e aguardo. Outras pensionaires estão ali. Falamo-nos, o encontro continuava, a máquina-La Borde était partout. Beijos Regina Eduardo Passos . Doutor em Psicologia, área de pesquisa Estudos da Subjetividade, Professor adjunto do departamento de Psicologia da UFF. Regina Benevides de Barros . Doutora em Psicologia Clínica, área de pesquisa Estudos da Subjetividade, Professor adjunto do departamento de Psicologia da UFF. 1 Utilizamos o termo intercessor na acepção que lhe dá Deleuze. Cf. Deleuze, G. Os intercessores. Em Conversações. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, pp. 151-168. 2 Deleuze, G (1982) Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, prólogo. 3 Aqui nos interessa fazer uma distinção entre campo e plano da clínica, entendendo o primeiro como o conjunto de saberes e práticas instituídas no qual um especialismo se define. O plano da clínica, diferentemente, se apresenta como um domínio transdisciplinar em que saberes e práticas se constituem na desestabilização das suas fronteiras instituídas. Cf. Passos, E. & Benevides de Barros, R (2000). A Construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicologia :Teoria e Pesquisa, 16, n.1, pp 071-079. 4 Deleuze, G. & Guattari, F. O que é a filosofia. São Paulo, Editora 34, 1994. 5 Deleuze, G. Empirisme et subjetivité. Paris, PUF, 1953. Deleuze, G. . Instintos e Instituições. Em Carlos Henrique Escobar (org.) Dossier Deleuze.Rio de Janeiro, Hólon, 1991. 6 Como esclarece Ayer, Hume toma a identidade humana com o mesmo . método de raciocínio. que foi empregado para a explicação da identidade das . plantas e dos animais, dos barcos e das casas e de todos os produtos compostos e mutáveis quer da arte quer da natureza. A diferença reside precisamente em que Hume equaciona a identidade pessoal, com a identidade da mente e define essa sem fazer referência ao corpo. Ao afirmar que ele a define, tomo em consideração as palavras do filósofo: . A identidade que atribuímos ao espírito do homem é apenas fictícia e procede da atividade da imaginação. (Tratado). . Ayer, A.J.(1981) Hume. Lisboa: Publicações Dom Quixote, p. 104. 7 Pollack, J & Sabourin, S. (1996) La borde ou le droit à la folie. Paris: Calmann-Lévy. 8 Guattari, F. (1992). Caosmose. Rio de Janeiro, Editora 34, p. 183. 9 Rolnik, S. Nota do trad. no artigo Guattari (1981), A transversalidade. Em Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo.São Paulo, Brasiliense, p. 103. 10 O problema do impessoal foi tratado de modo definitivo no último texto publicado por Deleuze sob o título . l. immanance: une vie.... . Deleuze, G. (1995) Immanance: une vie...Philosophie, 47. Este artigo foi comentado por muitos autores, tendo sido o tema do colóquio organizado em Paris pelo Colégio Internacional de Filosofia, . Gilles Deleuze: imannance et vie. . Cf. o número Gilles Deleuze: imannance et vie da revista Rue Descartes, 20, mai, 1998.