cicloturismo Roça chique Um roteiro de bicicleta pela Provence – o melhor lugar da França para pedalar, comer e viajar { Por Fabio Affonso Ferreira 36/vo2.b vo2.b/37 CICLOTURISMO C Campos de lavanda e girassóis. Vilas perdidas no tempo, mas com restaurantes de primeira. Vinhedos e oliveiras. Essa é a paisagem. E, para vê-la, estradas perfeitas para rodar de bicicleta. Estamos falando da “roça francesa”, localizada entre as areias da Riviera e os Alpes. Sim, a famosa Provence, um lugar com sol e céu azul durante a maior parte do ano. Para percorrer o que a região tem de melhor, pelos locais menos povoados, escolhemos um roteiro que cruza três parques naturais regionais: Gorges du Verdon, Luberon e Vaucluse. A partida foi de Moustiers Sainte Marie, no Parque Natural Gorges du Verdon, uma vila encravada nas rochas do cânion do Rio Verdon. Ali, uma fonte de água natural corre pelas ruas, formando uma cascata bem no centro. O lugar é conhecido pelos trabalhos em porcelana tipo faience e pela proximidade com um incrível cânion, com mais de 700 metros de profundidade, cortado por uma estreita via. É na vila que ficam, também, o restaurante e o hotel do renomado chef Alain Ducasse. No primeiro dia, a programação de pedal consistiu em um giro desafiador: cerca de 90 quilômetros com 2.000 metros de ascensão – que valeu cada pingo de suor. A estrada percorre, pelo alto, as encostas do Rio Verdon. Em diversos pontos, só passa um carro por vez pelas curvas e túneis encravados nas rochas. Por isso, todos vão realmente devagar. O único perigo é se distrair com a beleza da estrada e perder a concentração. Na volta, ainda dá para fazer um mergulho no lago que se forma antes de o rio estreitar, com águas tão verdes e brilhantes que parecem melhoradas no Photoshop. seSSão Mane en Provence é a terra dos cosméticos L’Occitane. Minúscula, a cidade vive do turismo, da produção de cosméticos e do óleo de oliva. Passamos a noite no hotel da própria L’Occitane, aproveitando o spa e guardando energias para os próximos dias. Saindo de Mane, entra-se na ciclorrota do Luberon, uma via de bike de 236 quilômetros toda sinalizada que atravessa o Parque do Luberon por estradinhas agrícolas. Ali, os raros veículos com que se cruza são pequenos tratores de sitiantes locais. A região é produtora de cerejas, pêssegos, ameixas e amêndoas. Nosso destino final era Bonnieux, mas paramos em Caseneuve para almoçar em um dos melhores restaurantes da região, por surpresa, comandado pelo simpático paulista Fabricio Delgaudio. O desvio para Caseneuve vale não somente pelas delícias do chef, mas também pela linda estrada que passa pelo meio de parreiras, a A.O.C. Ventoux. Foram 80 quilômetros, dos quais 20 totalmente planos, em uma ciclovia arborizada e tranquila até chegar a Bonnieux, uma pequena vila perche (como são chamadas as vilas medievais penduradas nos penhascos). Com menos de 2 mil habitantes, ela tem uma vista perfeita para o vale do Rio Calavon. Após inúmeras batalhas, a vila mudou-se do pé do morro para o topo para melhor se proteger. Lá de cima, avistam-se Lacoste, uma vasta planície, e o Mont Ventoux, conhecido como O único problema por aqui é se distrair com a beleza da estrada e perder a concentração em cima da bike Campos de lavanda, vinhedos e vilas medievais: é isso que os olhos encontram PASSAGEM PARA AS CABRAS No dia seguinte, deixamos Moustiers em direção a Mane en Provence, passando por uma das maiores regiões produtoras de lavanda da Europa, o Plateau de Valensole. O contraste do céu azul com o lilás da lavanda é de doer a vista. Foram cerca de 20 quilômetros planos nesse cenário de cartão-postal até cruzar o Rio Durance e pegar uma pequena serra, na qual a única vez que fomos obrigados a parar foi para dar passagem a um rebanho de cabras. 38/vo2.b vo2.b/39 CICLOTURISMO um caminho bonito nunca é longo ‘o gigante da Provence’ e temido pelos ciclistas pela dificílima escalada de 21 quilômetros. Essa subida geralmente é piorada pelo Mistral, vento que chega a mais de 100 km/h. Resolvemos pernoitar em Bonnieux e fazer um terceiro dia de pedal mais tranquilo: um loop pela planície do Rio Durance. No dia seguinte, em direção ao Mont Ventoux, a rota que pegamos percorria as mais belas vilas perches do Luberon, começando por Lacoste (ali o Marquês de Sade refugiou-se no castelo de seu avô, após ser diversas vezes preso devido às suas ideias e comportamento libertino). Hoje, restaurado, o castelo pertence ao renomado estilista Pierre Cardin. Em seguida, Menerbes, na qual Pablo Picasso morou por alguns anos e comprou, em 1944, uma casa para a sua musa, Dora Maar. Depois, Gordes, pendurada nos penhascos, que passou momentos delicados após o terremoto de 1909 e o bombardeio de 1944, sendo revitalizada graças ao turismo a partir da década de 1960. UMA SUBIDA, MUITAS TRIBoS Logo depois chegamos a Gordes, de onde avistamos a bela Abadia de Sénanque, num vale, circundada de campos de lavanda. E, já deixando o Luberon, entramos no Parque Natural Regional do Vaucluse. Ali passamos por Venasque – mais uma adorável vila medieval com uma espetacular vista para a Planície de Carpentras – e seguimos para o Mont Ventoux. Após Venasque, a estrada foi quase plana, atravessando chateaux et domaines, como são conhecidas as vinícolas da região. O destino 40/vo2.b final, Crillon Le Brave, é um pequeno burgo onde os quartos do hotel confundem-se com as poucas residências da aldeia. O turismo de bike está tão enraizado nessa região que na recepção do hotel havia um display com os nomes dos hóspedes que subiram o Mont Ventoux e seus tempos de escalada. Há um sistema no qual você registra o seu tempo e, em seguida, o lança em um portal que automaticamente elabora um ranking. Nosso próximo destino? Outro alucinante loop, dessa vez pelos Gorges de la Nesque, outra estrada cênica que circunda um cânion. Paramos em um hotel a apenas 4 quilômetros do início da subida mais dura do Mont Ventoux, que começa pela cidade de Bedoin. Não íamos sair dali sem encarar o desafio e encerrar a viagem com uma verdadeira conquista. A mítica montanha, isolada na Provence, com 1.912 metros de altitude, exige o máximo de pernas e pulmões para superar duros 21 quilômetros a 7,6 graus de inclinação média para atingir o topo. São 1.639 metros de ascensão. Uma experiência inesquecível, com a estrada repleta de ciclistas. A cada grupo que encontrávamos, a motivação ia crescendo. Havia gente de tudo que é “tribo” subindo, cada um no seu ritmo: desde bikes urbanas com senhoras de saia e garrafa de vinho no suporte da caramanhola até os mais empolgados ciclistas. Voltamos com a certeza de ter aproveitado ao máximo um lugar no qual somente de bicicleta se vivencia de modo intenso o ditado provençal que diz: “Um caminho bonito nunca é longo”.