DO PERSONAGEM AO PÚBLICO: A QUESTÃO DA IDENTIFICAÇÃO NO MELODRAMA Cristiane Valéria Silva (Acadêmica de Psicologia – UFSJ – Pesquisadora do GETEB) Profa. Dra. Claudia M. Braga (Co-tutora do PET – UFSJ, Coordenadora do GETEB) Resumo: Parte do projeto de pesquisa Do Melodrama à Telenovela: um estudo da Cultura de Massa no Brasil , atualmente desenvolvido no GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro, o presente trabalho propõe -se a analisar obras de cunho melodramático e sua recepção pelas pla téias populares, a partir da relação entre as características dos personagens e sua identificação pelas platéias. Palavras-chave: Teatro, Personagem, Público, Identificação, Melodrama A arte dramática em si tem como elemento esse ncial a reação gerada na platéia para a qual se dirige. Na tragédia grega clássica, segundo os preceitos aristotél i- cos, tal efeito é gerado através de uma narrativa que supõe a imitação de ações da vida humana levando a uma identificação do público com o enredo ali apresentado. A tragédia é uma imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num est ilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, s egundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, s uscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas em oções. (Aristóteles, cap. VI, 2) O melodrama apóia -se na codificação da tragédia exposta por Aristóteles, conforme as r egras então estabelecidas: utiliza -se de estruturas familiares do público que despertem as emoções sugeridas na Poética para que ocorra a identif icação. Valendo-se de alguns dos recursos utilizados pela tr agédia, o melodrama propõe uma maior aproximação com o seu público ao representar situações cotidianas e uma con strução maniqueísta e estereotipada dos personagens que enfatizam as dicotomias da natureza humana de tal m aneira que um personagem mau será somente mau e um person agem bom, se mostrará bom até o final da trama. A estrutura proposta culmina em uma divisão arquetípica dos personagens, sublinhando caracteres da personalidade humana, e a identificação da platéia se dá pelo viés do reconhecimento destas personalidades apresentadas de maneira a enfatizar a dicotomia bem/mal que permeia a vivência humana. Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estes não podem ser senão bons ou maus (pois os caracteres dispõem-se quase só nestas duas categorias, diferindo apenas pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que as personagens são representadas ou melhores ou piores ou iguais a todos nós. (Arist óteles, 242) “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano I - Número I – janeiro a dezembro de 2005 SILVA, Cristiane Valéria 2 A emoção suscitada pelo melodrama caracteriza o movimento catártico impulsionado pela identificação. Pode ser encaradas como necessária à uma harmonização das emoções no espe ctador. Quando se emociona o público elimina, mesmo que aparentemente, a sua dor. A partir de uma experiência particular, as emoções agem como ferr amenta na formação de uma identidade social. Ao compartilhar do sofrimento alheio como se pertencente ao individual, o privado tor na-se público e a dor torna-se universal. A estrutura do melodrama possibilita este fenômeno, como p odemos perceber através da citação que Silvia Oroz faz de Herta He rzog: “Os espectadores, ao se identificarem, e a seus problemas, com os sofredores heróis e heroínas dos m elodramas, outorgam grandeza às suas próprias aflições cotidianas e afirmam sua superioridade sobre o utras pessoas que não viveram experiências emotivas tão profundas” Os personagens arquetípicos possib ilitam uma eficaz identificação do es pectador através de uma operação chamada por Román Gubern de “sublimação mítica” Para Tomás Gutiérrez Alea, é uma descarga emocional através de uma entrega afet iva” (OROZ, 1992. 19) A base da aceitação do gênero em questão pelo seu público encontra -se no jogo mimética representativa daquilo que se assemelha às experiências reais ou simbólicas da platéia. Pode -se afirmar que “desde a metade do século XVIII , não há sucesso sem lágrimas, a ponto de a crítica fazer delas o critério para avaliar a predileção d o público por uma representação.”(Buffalt, 1988. 81). O mecanismo que leva o público do melodrama a se emocionar de tal maneira que pode chegar às lágrimas, é acionado pelo processo de identificação, como citado ant eriormente, que, segundo a psicanálise é “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (FREUD, 1976. 133). Trata-se de um jogo de desejo. Projeta -se no outro aquilo que, de alguma maneira, é próprio do sujeito, seja no campo da realidade ou do simbólico. Nos depar amos aqui com conflitos que podem residir na estrutura central do eu, ou seja, conflitos reais que fazem parte da vida cotidiana do sujeito, ou conflitos que se apresentam enquanto um ideal do eu, que cond izem com uma projeção no outro daquilo que se deseja ou supõe ser. Trata-se aqui de uma atitude narcisista, em que o outro é um espelho. Como a imagem de Narciso no espelho, o simulacro é inic ialmente um duplo ou uma duplicação do real. A imagem no espelho pode ser o reflexo de um certo grau de identidade do real, pode e ncobrir ou deformar essa realidade, mas também pode abolir qualquer idéia de identidade, na medida em que não se refira mais a nenhuma realidade externa, mas a si mesmo, a seu próprio jogo simulador. Neste caso, o espelho deixa de ser algo que transcendent emente reflita, duplicando, o real, para tornar -se um espaço/tempo op eracional, com uma lógica própria, imanente. Sem a necessid ade de uma realidade externa para validar a si mesmo enquanto imagem, o simulacro é ao mesmo tempo imaginário e real, ou melhor, é o apagamento da diferença entre real e imaginário (entre o “verdadeiro” e o “falso”). (Sodré, 1990. 28) Ao se ver refletido, o indivíduo toma para si a dor representada, como se este outro repr esentado, esta imagem especular, fosse ele próprio. Os seus conflitos são elaborados através da identificação mimética, e as emoções surg idas deste processo são purgadas, purificadas, sem que ocorra em um plano real, a resolução destas emoções. Na construção dos personagens é possível observar a apresentação de ca racterísticas bem definidas para cada grupo de personagens. Dentre eles é bem visível na estrut uração do vilão caracteres que se repetem em várias obras, tais quais: avareza, egoísmo, ambição, inveja, dentre “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano I - Número I – janeiro a dezembro de 2005 DO PERSONAGEM AO PÚBLICO: A QUESTÃO DA IDENTIFICAÇÃO NO MELODRAMA 3 outros sentimentos de natureza moral inferior. N a mocinha, podemos citar a ingenuidade e a pureza, próprias das vítimas. O herói ou a heroína melodramáticos se contrapõe ao vilão com sentimentos de valores morais superiores, tais como a lealdade, a bondade, a coragem, dentre outros. A construção proposta evidencia as características com as quais o público irá se identificar. Novamente, através da dicotomia entre o bom e o mau, entre o correto e o inco rreto, a platéia irá se reconhecer no palco. Há uma preocupação no sentido de sublinhar tais característi cas da personalidade humana de modo a salientá -las e contrapô-las. É a opção por esta construção que marcará as relações estabelecidas entre os personagens e sua identificação pelo públ ico. Sendo o melodrama um tipo de espetáculo eminentemente popular, pod e-se concluir que a construção dos personagens obedece ao intuito de torná -los, através de suas características e ações, um dos instrumentos de identific ação entre o que se passa no palco e a platéia e é através deste processo identificatório que o melodra ma provoca em seu público a emoção que nitidame nte pretende alcançar. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética . Rio de Janeiro: Tecnoprint, 19-. OROZ, Sílvia. Melodrama: o cinema de lágrimas da América Lat ina. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1992. SODRÉ, Muniz. A Máquina de Narciso – Televisão, Indivíduo e Poder no Brasil . São Paulo: Cortez, 1990. VICENT-BUFFAULT, Anne. A História das lágrimas. Séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1988. “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano I - Número I – janeiro a dezembro de 2005