GÊNEROS LITERÁRIOS NO ENSINO MÉDIO: UMA EXPERIÊNCIA COM
TEXTOS DE GUIMARÃES ROSA E LEANDRO GOMES DE BARROS
Alyere Silva Farias (UFRN/UFCG)
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Dr. José Hélder Pinheiro Alves (UFCG)
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INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, a Literatura de Cordel passou a ocupar mais espaço na seleção de
gêneros literários a serem lidos pelos alunos do ensino básico. Dentre os autores mais celebrados
nesta classificação está Leandro Gomes de Barros, cujo tom satírico se consagrou na literatura
popular, bem como imortalizou alguns de seus personagens. Um dos personagens de Leandro
Gomes de Barros que não se restringe às barreiras do gênero cordel e povoa inúmeras histórias
populares é o Cancão de Fogo, homem astuto,esperto e arteiro, que costuma “dar quengos”, ou seja,
aplicar golpes nos outros personagens.
A partir do desenvolvimento de nossos estudos anteriores sobre as peculiaridades da
Literatura de Cordel e suas relações com outras vertentes e gêneros da Literatura Brasileira,
observamos que o quengo, enquanto habilidade do personagem para se safar com esperteza, tirando
proveito das situações difíceis vivenciadas por ele, se aproxima mais do malandro definido por
Antonio Candido (1993), do que da concepção de herói pícaro.
O quengo, enquanto característica do personagem Cancão de Fogo, apresentada por
Leandro Gomes de Barros, se configura como um atributo que pode também ser observado, sob
nossa perspectiva,na obra de autores do cânone nacional, a exemplo do personagem Lalino, do
conto “Traços Biográficos de Lalino Salãthiel ou A Volta do Marido Pródigo”, publicado no livro
Sagarana (2001), por João Guimarães Rosa, autor cuja relação com o popular é ratificada pela
abundância de estudos literários a respeito do modo como o escritor mineiro retomou e
ressignificou causos e personagens da cultura popular, entre outros aspectos.
Neste trabalho buscamos apresentar uma reflexão sobre a organização curricular das aulas
de literatura, desde o estabelecimento do cânone até o momento atual, no qual há um documento
parametrizador, no estado da Paraíba, pautado na perspectiva de gêneros, sob uma ótica
recepcional.Além dessa reflexão, apresentaremos parte dos resultados da nossa pesquisa
desenvolvida para a obtenção do título de mestre (Posle-UFCG). Realizada em uma turma do
terceiro ano do Ensino Médio de uma escola pública do interior da Paraíba, a experiência consistiu
na leitura compartilhada dos folhetos “A vida de Cancão de Fogo” e “O Testamento de Cancão de
Fogo” (2006), de Leandro Gomes de Barros, e do conto “Traços Biográficos de Lalino Salãthiel ou
A Volta do Marido Pródigo”, de autoria de João Guimarães Rosa, publicado no livro Sagarana
(2001).
Com o objetivo de investigar a recepção dos alunos, no momento da leitura oral na sala de
aula, analisamos a identificação e o estranhamento ante os textos, com base nas OCEM (2006), nos
Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba (2006) e nas reflexões de Cosson
(2009), Cereja (2005) e Aguiar (1988) e verificamos que a abordagem dos gêneros distintos não se
configurou como dificuldade, mas contribuiu para a reflexão e o desenvolvimento da proficiência
de nossos alunos leitores.
A LITERATURA ESCOLARIZADA
Em seus primeiros séculos, a Literatura Brasileira acabou por estabelecer seu cânone
pautada em motivações mais políticas que estéticas, concepção que foi levada à escola e, mesmo
com o desenvolvimento dos estudos literários, a historiografia se estabeleceu nas aulas de literatura,
não apenas por uma orientação nacional, mas acabou se solidificando de forma que prevaleceu
mesmo com a discordância posterior dos primeiros estudos sobre a literatura, como observa Bosi,
[…] o que se foi tornando problemático (a não ser na retórica escolar) foi a tese de
uma conexão estrutural entre esquemas rigidamente nacionais/nacionalistas e a
produção da obra artística ou literária. (...) o risco de seguir à risca esse esquema
(estilos de época mais tipos ideais) é cair no círculo vicioso da reprodução–repetição
daquilo que se considera “típico de um determinado estilo ou período históricocultural” (BOSI, 2002, p. 21, 35)
O risco, apontado por Bosi, transformou-se no modelo de ensino no que se refere à
literatura, que se observou desde o Brasil colonial, quando foi estabelecido no país o modelo de
educação humanista, que teve origem na Grécia Antiga e foi influenciado pela Reforma
Educacional Francesa e pelo Humanismo Italiano, além de já ter sofrido influências dos
movimentos renascentista e neoclassicista.(CEREJA , 2005)
O estudo da literatura concentrou-se, então, no cânone, estabelecido pelos professores de
literatura, que eram os críticos da época e também os escritores. Dessa forma, história, crítica, teoria
e mesmo o fazer literário andavam, muitas vezes, juntos durante o século XVIII, norteados,
inicialmente, por uma tradição retórica que depois abriu espaço para a poética, e que anos mais
tarde começaram a dividir espaço com as disciplinas independentes “Literatura” e “História da
Literatura” (CEREJA ,2005). No final do século XIX, como ainda nos esclarece Cereja (2005), a
retórica e a poética desaparecem do currículo e a literatura na escola passou a consistir em uma
abordagem da história do período literário, afastando-se da obra literária em si.
O modelo estabelecido no século XIX obteve sucesso em sua época, e ainda é utilizado
hoje, mas depois de décadas já não atendia mais às necessidades educacionais do público escolar.
Durante o século XX, além dos estudos relativos à literatura popular, foram desenvolvidos estudos
sobre outras produções literárias que continuaram ausentes do cânone tradicional, e que, a exemplo
da literatura de cordel, acabaram por estabelecer seu próprio cânone. Outro fator determinante foi o
desenvolvimento de concepções de estudos literários que privilegiam literaturas ausentes do cânone
da academia e passaram a refletir sobre a necessidade de mudanças no ensino de literatura, com o
intuito de incluir outras manifestações além das que já haviam sido canonizadas.
O estabelecimento de um cânone da literatura brasileira e a divisão deste em períodos
literários, bastante difundida pelos manuais e livros didáticos, acabou por restringir o estudo da
literatura na escola a uma exposição do contexto histórico de cada movimento artístico
protagonizado pela elite intelectual culturalmente atuante no Brasil, e ao reconhecimento de seus
principais autores e obras. Dessa forma, se ignorava a existência de autores e obras que se
afastavam, um pouco ou totalmente, das principais características de cada movimento.
De acordo com as Orientações Curriculares do Ensino Médio (2006), a situação atual da
literatura na escola é fruto da crise nos anos 1960, visto que nos anos anteriores havia um currículo
que privilegiava a língua e a redação e ensinava os clássicos da literatura. Este quadro muda apenas
com a democratização do ensino, nos últimos anos da década de 1960, que possibilitou o acesso de
um público maior e com necessidades diferentes das que tinha o seu antigo e restrito público.
A partir da década de 1970 houve uma preocupação crescente relacionada ao
desenvolvimento de uma abordagem do estudo da linguagem, que procurava se afastar da
concepção tradicional de ensino de língua enquanto expressão formal e da literatura enquanto
história literária. Nesta época começaram a ser redigidos os primeiros documentos parametrizadores
para o ensino no Brasil e, como as OCEM observam, “assumia-se que era necessário trazer à sala de
aula textos que circulassem na sociedade […] não se pode dizer [...] que tenha havido, nesse
período, uma alteração de fato significativa em termos de objetos de ensino” (BRASIL, 2006, p.
20).
Essa reflexão começou, de fato, a atingir a escola na década de 1980, quando o contexto de
uso da língua passou a ser relevante e, o estudo do texto, literário ou não, passou a considerar seu
produtor e seu receptor no processo de construção de sentidos (BRASIL, 2006).
As discussões que se aproximaram da escola nos anos 1980 não provocaram mudanças no
currículo do que hoje chamamos de Ensino Médio, mas abriram espaço para que alguns professores
encontrassem alternativas ao ensino tradicional de literatura.
Entretanto, a possibilidade de encontrar outros caminhos para o ensino de literatura
provocou uma reação de recusa ao cânone, o que resultou no “abandono da leitura de obras antes
consideradas fundamentais” (COSSON, 2009, p. 22). A concepção de linguagem presente nos
Livros Didáticos a partir da década de 1990, revela uma maior preocupação quanto ao que se
deveria ensinar; uma mudança que pode ser observada na preocupação que começa a surgir em
relação às concepções subjacentes ao Livro Didático de Português e que, consequentemente,
norteavam o ensino de língua e literatura, pois
[…] quebrando uma longa prática de descompromisso com a qualidade os livros
didáticos (LD) que comprava para uso das escolas públicas, a então FAE constituiu,
em 1993, uma comissão para definir critérios de avaliação de LD. E a partir de 1996,
o MEC passou a subordinar a compra dos LD inscritos no Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD) a uma aprovação prévia efetuada por uma avaliação oficial
sistemática (RANGEL, 2003, p.13)
Houve então o estabelecimento de algumas perspectivas teóricas norteadoras dos livros
didáticos de língua portuguesa e literatura, no que se refere à influência das teorias sobre os
processos de aprendizagem e à concepção de língua, como a noção de discurso em detrimento da
noção de gramática difundida até então. Assim, em relação à literatura, foi possível experimentar
certa atenção a aspectos do sentido, mas o que se encontra ainda é uma perspectiva do tratamento de
temas, mesmo nos mais recentes que se organizam considerando a noção de gêneros textuais, como
observa Bezerra, ao destacar que os livros didáticos
[…] sugerem textos interessantes para leitura, mas ao abordá-los predomina a
discussão temática, numa perspectiva de verdade/falsidade (valorizando mais a
extração de informações do texto), descurando-se, por exemplo, das funções que eles
exercem na sociedade. As questões apresentadas pelos autores do LDP como
propostas de estudo do poema se referem ao aspecto técnico, formal do texto (verso
ou prosa) e à extração de informações objetivas do texto, numa perspectiva de
decodificação, à procura de informações objetivas (animais desconhecidos, palavras
desconhecidas), mas não fazem referência ao poema em si (ritmo, música,
literariedade), nem ao valor da poesia na sociedade. (BEZERRA, 2003, p. 46)
A presença do texto literário na disciplina de Língua Portuguesa e em seus livros e
manuais, infelizmente não significa que a literatura é privilegiada nesse espaço, visto que boa parte
das discussões gira, de certa forma em torno de questões referentes à linguagem, ao estudo da
estrutura e dos temas, sem relação com a sua vida, e evidentemente, com a sua formação enquanto
leitor. E pode-se considerar como ponto pacífico que é dessa forma que a tradição da leitura de
textos literários ainda predomina, não apenas nos primeiros anos da década de 1990.
Na segunda metade da década de 1990, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
começaram a discutir as demandas e necessidades do ensino de língua portuguesa, aliando-se ao já
citado Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e aos parâmetros internacionais de ensino
básico. Os PCNs para o primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental pretenderam se mostrar
como “um projeto educativo comprometido com a democratização social e cultural”(BRASIL,
2001, p. 23) e apresentaram uma concepção de ensino de literatura baseada no acesso à diversidade
de gêneros textuais. (BRASIL, 2001)
Percebe-se a influência dos estudos de gênero e tipo textuais, bem como a tentativa de
aproximar o estudo da linguagem da vida do aluno. Esta outra concepção abriu um maior espaço
para a pluralidade cultural, ou ao menos deixou brechas que possibilitaram uma abordagem que
compreendia gêneros orais e escritos, citando os contos, mitos e lendas populares, orais e escritos, e
a literatura de cordel.
Observamos ainda o termo “cordel”, utilizado pelo documento, considerando-o como
representante de uma cultura diferente, como percebemos a seguir: “os gêneros existem em um
número quase ilimitado, variando em função da época (epopeia, cartoon), das culturas (haikai,
cordel) das finalidades sociais (entreter, informar)” (BRASIL, 1998, p. 24). Se o tratamento é
problemático, já podemos observar que são citados gêneros não-canônicos, ainda por conta da
abordagem discursiva e das noções de gênero e tipo textual que passaram a guiar o ensino de língua
e leitura no ensino fundamental.
Para o Ensino Médio, partindo da segunda metade da década de 1990, foram escritos
quatro documentos, que tentaram se complementar em resposta às críticas tecidas pelo seu público
alvo, os professores, e também pelos críticos e pesquisadores da área. Os Parâmetros Curriculares
Nacionais –Ensino Médio (PCNEM) datam de 1999 e, apesar de se propor a revisar a prática do
estudo da “história da literatura” e apresentar conceitos inovadores para a área de “Linguagens e
Códigos e suas Tecnologias”, este documento não conseguiu transpor o conhecimento científico
para a prática cotidiana do professor, que, por sua vez, não conseguiu identificar outro norte para as
aulas de literatura.
Um dos aspectos preocupantes neste documento é a sugestão de que não há critérios para
que se distingam as obras literárias. Ao considerar arbitrária a classificação de um texto como
literário, o documento se utiliza unicamente de dados de uma pesquisa realizada com alunos, com a
qual pretende ratificar a falta de critérios objetivos para essa separação. Entretanto, o documento
seguinte, as OCEM de 2004, já rebate esta concepção, considerando que os PCNEM comentem os
seguintes equívocos:
[…] o primeiro deles é o de sugerir a inexistência de critérios (...) o segundo
equívoco é aquele em que se sugere que a opinião do aluno possa, por isso mesmo,
ser erigida em critério para definição do que é literário ou não (BRASIL, 2004, p.
69)
A reflexão sobre estes problemas acabou por favorecer estudos que se propuseram a pensar
a questão metodológica da aula de literatura sob uma ótica recepcional, com as contribuições de
Bordini e Aguiar, que consideram que “o sucesso do método recepcional no ensino de literatura é
assegurado na medida em que seus objetivos com relação ao aluno sejam alcançados” (AGUIAR e
BORDINI, 1988, p. 85).
Por considerar que o texto literário precisa estabelecer, via leitura, uma relação com o
leitor, percebe-se que houve uma abertura, já no final da década de 1990 e no início do século XXI,
para a escolha de gêneros não-canônicos a serem incluídos no currículo do Ensino Médio. Essa
modificação resulta do desenvolvimento dos Estudos Culturais que apoiam a concepção de que o
conhecimento literário não consiste apenas no conhecimento do cânone tradicional, mas no
conhecimento do conjunto de sistemas “que compreende as várias manifestações literárias. Esses
sistemas, em conjunto com o sistema canônico, precisam ser contemplados na escola, assim como
as ligações que mantêm com outras artes e saberes” (COSSON, 2009, p. 47).
Os PCNEM foram complementados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais + Ensino
Médio, (PCN+), de 2002, um documento que apresentou as principais teorias desenvolvidas no
âmbito do ensino de literatura, mas continuou bastante teórico, além de ter se aproximado mais das
posturas tradicionais para o ensino de literatura enquanto história literária fracionada em estilos de
época.
Os PCN+ não são claros quanto à sua posição em relação ao cânone. Por sua vez, as
Orientações Curriculares do Ensino Médio, de 2004, e as Orientações Curriculares para o Ensino
Médio, de 2006, se assemelham mais aos PCNs do ensino fundamental e procuraram abandonar a
postura teórica dos primeiros documentos e aproximar-se de seu público alvo.
O documento de 2004, em sua apresentação, ao expor o contexto do Ensino Médio, não
admite qu os PCNEM (1999) apresentaram falhas e coloca como causa do seu não aproveitamento e
substituição a ineficiência dos professores e a divergência conceitual, como se observa de forma
clara a seguir:
No âmbito pedagógico, a divergência conceitual nos meios especializados da noção
de competência defendida em documentos oficiais e a insuficiente formação dos
professores constituíram empecilhos para adoção das novas orientações, visto o
desconhecimento teórico, pelos profissionais da educação básica, e mesmo por seus
formadores, limitou a apropriação desse novo modelo. (BRASIL, 2004, p. 08)
No entanto, ao observamos o documento, percebemos que ele consiste em um apanhado
teórico, não se concentra em atingir o ponto de reflexão do ensino; contenta-se em apresentar as
teorias em voga, que se não eram de conhecimento dos professores, também não foram
apresentadas de modo a propiciar o desenvolvimento desses conhecimentos.
Para as OCEM de 2004, o ensino de literatura deve considerar a experiência estética do
leitor ante o texto, observando que a divisão entre literário e não-literário, problematizada nos
PCNEM, deve ser resolvida a partir da observação da sensação de estranhamento que o texto
provoca em seu leitor, além do que chama de critérios básicos para definir as obras, como a
elaboração linguística e a forma de percepção-constituição da realidade (BRASIL, 2004), que
permitem que possamos receber textos como mais literários que outros.
Ao considerar que é possível se definir que uma obra é mais literária que outras, o
documento não pretende se fechar em um cânone definido pela recepção de cada leitor. Ele procura
ressaltar que não existem critérios que justifiquem uma seleção de obras em detrimento de outras,
além de oferecer duas reflexões nas quais a seleção de textos literários para o Ensino Médio deve
estar pautada, “a primeira delas tem a ver com o modo mais apropriado de dispor, ao aluno, a
experiência literária e a segunda concerne à propriedade ou não da definição de cânones nesse nível
de ensino” (BRASIL, 2004, p. 78).
O documento de 2006, com grandes contribuições de seu antecessor, no volume
“Linguagens e Códigos e suas Tecnologias”, no componente “Conhecimentos de Literatura”, não
concebe o seu ensino como história, nem repete a concepção de literatura nos moldes tradicionais,
mas considera por “experiência literária o contato efetivo com o texto.”(BRASIL, 2006, p. 55)
Essa observação já pressupõe o contato direto do aluno com o texto literário, além de abrir
espaço para uma diversidade de obras, já que a distinção entre o literário e o que se distancia do
literário se realizaria a partir do trabalho com a linguagem em cada texto, e não por integrar o
cânone tradicional, já que este é transitório, mas “o cânone não é em si negativo” (BRASIL, 2006 p.
75) e sim a restrição a ele como única manifestação literária a ser escolarizada.
O texto das OCEM, ao se referir à seleção de elementos de uma cultura a ser trabalhada em
sala de aula, parece não revelar uma compreensão intercultural do ensino de literatura, mas
aproxima-se mais do que considera-se como transculturalidade, visto que parece que o que se
propõe é a aproximação com uma outra cultura e não o diálogo, trocas e inter-relações entre
diferentes culturas.
Essa impressão não subsiste e o avanço em relação aos outros documentos é notável. É
perceptível que há o espaço para as trocas interculturais nas aulas de literatura visto que o objetivo
dessa fase do ensino básico seria auxiliar o aluno a estar apto para
[…] atuar, de forma ética e responsável, na sociedade, tendo em vista as diferentes
dimensões da prática social. Desse ponto de vista, em síntese, o ensino médio deve
atuar de forma que garanta ao estudante a preparação básica para o prosseguimento
dos estudos, para a inserção no mundo do trabalho e para o exercício cotidiano da
cidadania, em sintonia com as necessidades político-sociais de seu tempo. (BRASIL,
2006, p.18)
É interessante ressaltar que já no primeiro parágrafo do componente “Conhecimentos de
Literatura” é feita uma referência ao primeiro documento escrito para o ensino médio. Tal
comentário segue uma linha totalmente oposta ao que foi tecido na apresentação do documento de
2004, como se percebe a seguir:
As orientações que se seguem têm sua justificativa no fato de que os PCN do ensino
médio, ao incorporarem no estudo da linguagem os conteúdos de Literatura,
passaram ao largo dos debates que o ensino de tal disciplina vem suscitando, além de
negar a ela a autonomia e a especificidade que lhe são devidas.(BRASIL, 2006, p.49)
Dessa forma, observa-se que entre os documentos parametrizadores não há uma
verticalização da proposta, mas uma completa reformulação, sobretudo ao considerarmos o
primeiro e o último, por aspectos que certamente passam pela mudança da equipe responsável pelo
seu desenvolvimento, seus consultores e leitores críticos, que acabam por revelar as influências
teóricas que nortearam cada um dos textos. O foco na função social da literatura, que é vista
enquanto arte e analisada no que diz respeito a sua estética, em detrimento do estudo pragmático
tradicional, é evidente nas OCEM (2006), que cita Antonio Candido e explica o que se entende por
letramento literário. A contribuição que mais chama a nossa atenção é a que diz respeito à seleção
dos textos literários, que de acordo com as Orientações devem considerar a experiência literária no
âmbito individual e coletivo.
Os Referenciais Curriculares para o Ensino Médio na Paraíba (2006) foram distribuídos no
estado juntamente com as OCEM do mesmo ano, e consiste em uma “iniciativa de ampliar as
orientações para um ensino mais compatível com as novas pretensões educativas” (PARAÍBA,
2006, p. 10). Para atingir este objetivo, a exemplo das OCEM de 2004 e 2006, a secretaria de
educação convocou os profissionais docentes das universidades federais e estadual para desenvolver
o documento, além de realizar seminários e reuniões para que estes referenciais se aproximassem da
realidade do ensino e aprendizagem no estado da Paraíba, deixando claro que a cada escola compete
a adequação do documento à sua realidade, através do planejamento e do desenvolvimento do
projeto político-pedagógico.
Os Referenciais apresentam o componente “Conhecimentos de Literatura” e se apresenta
como sugestões metodológicas e orientações gerais, pautadas em uma “concepção de ensino de
literatura que privilegia o contato direto do estudante com as obras literárias de diferentes gêneros e
épocas” (PARAÍBA, 2006, p. 81), considerando, para isso, a tradição literária, mas sem se restringir
apenas ao cânone escolar.
A perspectiva deste documento, a exemplo das Orientações Nacionais, privilegia a leitura
das obras e o debate, aproximando-se de um modelo de aulas “dialógico” e buscando propiciar ao
aluno um momento de fruição, de prazer estético, além do mero cumprimento do currículo. A
proposta deste documento é que haja uma mudança na organização do currículo no componente
Literatura no Ensino Médio, e “ao invés de iniciar os estudos literários por autores de 5 ou 6 séculos
passados, iniciar com autores contemporâneos. E, ao invés de privilegiar o puro historicismo,
trabalhar a partir dos gêneros literários” (PARAÍBA, 2006, p. 83).
O documento defende, em concordância com as Orientações nacionais, o estudo de obras a
partir de gêneros, aqui, minimamente classificados enquanto “lírico”, “conto e crônica”, que
correspondem à narrativa, e o “dramático”, abrindo espaço para obras que não constam no cânone
tradicional da literatura brasileira. É válido observar que este documento é bastante específico
quanto à presença da literatura de cordel:
[...] a literatura de cordel deve também ser estudada nesta etapa do ensino. Autores
paraibanos importantes, como Leandro Gomes de Barros e poetas populares em
geral, não necessariamente paraibanos, como Patativa do Assaré, podem compor o
elenco de poetas a serem lidos. A partir de sua realidade, o professor poderá ler
folhetos de poetas locais e até mesmo levar os estudantes a pesquisarem possíveis
cordelistas de sua cidade. (PARAÍBA, 2006, p. 84)
O documento também observa que, como o poema, o conto pode ser lido em sala de
aula, por não ser tão extenso quanto um romance. Para os dois gêneros, observa-se que é
aconselhável que se aliem considerações estruturais e a discussão a partir de situações apresentadas
no texto, evitando cair no esquema de estudo do livro didático, no qual se encontra uma série de
elementos estruturais a serem identificados no texto literário.
A linguagem também ocupa espaço nestas reflexões, visto que “é um elemento essencial
que necessita sempre ser posto em evidência em qualquer apreciação de obras literárias”
(PARAÍBA, 2006, p. 88), com o intuito de que o leitor possa atribuir sentido a essa linguagem, seja
no que se refere à seleção de palavras ou a suas funções. É importante ainda observar que o
documento não apresenta os gêneros de forma estanque e nem em modelos predefinidos, mas
observa particularidades e semelhanças entre eles, como vemos a seguir:
Aspectos apontados no estudo do poema também podem comparecer no texto
narrativo. Por exemplo, diferentes tons que podem permear uma narrativa (tom
lírico, tom satírico, tom melancólico, tom irônico, tom humorístico, tom trágico, etc.)
a visão de mundo que permeia o texto narrativo também deve ser observada. O texto
tem um viés político-social? De que ponto de vista ou de que perspectiva falam e
agem as personagens? (PARAÍBA, 2006, p. 89)
No que se refere ao estudo do romance e da novela, observa-se a reiteração dessa relação
existente entre os gêneros, visto que é sugerido que sejam retomados os elementos estudados em
relação ao conto para que sejam apreciados no romance e na novela, a fim de provocar uma reflexão
sobre suas semelhanças e distinções. A sugestão é que se abordem as características da tradição no
gênero a partir da leitura de algumas obras, partindo da discussão em sala de aula, com o
levantamento de questões temáticas e formais e chegando às características que ligam essa obra a
algum movimento estético (PARAÍBA, 2006).
Em sua última subdivisão, chamada de “tópicos sobre história da literatura brasileira” o
documento sugere que, após o contato com a obra literária, incentivado no primeiro ano do Ensino
Médio e no segundo, a partir de uma perspectiva de estudo de gêneros literários, o terceiro ano
poderá ser considerado como o espaço para o desenvolvimento de uma visão menos mecanicista,
linear e factual da história literária, que se desenvolveria a partir de blocos, e não de escolas
literárias como é feito tradicionalmente. Uma das alternativas propostas para realizar este estudo é a
leitura comparativa de obras de um mesmo gênero e de escolas diferentes, dentro de um dos blocos
apresentados, por exemplo, a partir da qual se poderia fomentar discussões a respeito da história da
literatura.
Diante do exposto, é perceptível que a atual concepção norteadora do ensino de literatura
abre espaço para a leitura da obra literária, a teorização, o conhecimento da crítica e da história de
uma obra, sem que seja necessário defini-la enquanto popular ou erudita, canônica ou não-canônica,
visto que “A literatura é um conjunto de obras, não de fatores nem de autores” (CANDIDO 1981 p.
35) e o principal objetivo dos documentos parametrizadores é a formação de leitores críticos,
criativos, ou seja, leitores proficientes.
A EXPERIÊNCIA DE LEITURA
Pautados nessa perspectiva, apresentada pelos referenciais curriculares da Paraíba,
procedemos à experiência de leitura do livreto Vida e Testamento de Cancão de Fogo, edição que
continha os folhetos selecionados para leitura, de Leandro Gomes de Barros, e do conto “Traços
Biográficos de Lalino Salãthiel ou A Volta do marido Pródigo”, de João Guimarães Rosa, realizada
nos meses de março e abril de 2010, com alunos do terceiro ano do turno da noite de uma escola da
rede municipal do município de Arara-Pb.
Optamos por registrar a experiência por meio de gravações em áudio ou em vídeo, e em
alguns momentos, como no encerramento da leitura de cada obra, realizamos os dois tipos de
registro da experiência para que eventualmente pudéssemos nos basear nas reações dos alunos, caso
fosse necessário, para elucidar alguns de seus comentários.
Mantivemos também como registro, durante o tempo de observação e de realização da
experiência, um diário de pesquisa, no qual apontamos nossas impressões sobre eventos ocorridos
durante as aulas, como também as que foram fruto de diálogos com o professor após o término de
cada uma delas. Também para efeito de registro, aplicamos um questionário com os alunos e outro
com o professor da turma, antes da experiência, e um terceiro questionário ao final da experiência,
que foi aplicado apenas aos alunos.
Antes de conhecermos a sala de aula, conversamos com o professor titular, que indicou o
melhor período para a nossa intervenção, a partir de seu cronograma de assuntos a serem
trabalhados na turma, e nos reservou um tempo de aulas imediatamente após o estudo da semana de
arte moderna e da leitura de contos de Graciliano Ramos, aos quais iremos nos referir ao longo de
nossa análise.
Essa organização nos permitiu realizar um trabalho em conjunto com o professor, visto que
ele enxergou a possibilidade de um diálogo entre os escritores, Guimarães Rosa e Graciliano
Ramos, e ainda a existência de um percurso de leitura que aproximava a leitura desses contos da
leitura dos folhetos de cordel. Dessa forma, percebemos que a concepção de ensino desse professor
se aproximava do que pretendíamos realizar em sua sala de aula. Esses contatos iniciais, feitos
pessoalmente, por telefone ou troca de mensagens eletrônicas, não foram registrados, mas foram
eficazes para a realização da experiência. Para efeito de registro, elaboramos um questionário a ser
respondido pelo professor que atendia às nossas necessidades de pesquisa, no qual incluímos
questões já debatidas em nossas conversas a fim de obter por escrito as informações que já
havíamos coletado de maneira informal.
Inicialmente, a turma do Terceiro Ano da noite era formada por 12 alunos entre 15 e 18
anos e, no decorrer da experiência passou a 14 alunos, com a inclusão de mais dois rapazes. No
decorrer da análise, passaremos a nos referir a cada um dos alunos utilizando a letra inicial de seu
nome. Antes da leitura dos textos selecionados, acompanhamos algumas aulas ministradas pelo
professor titular da turma e aplicamos um questionário a ser respondido pelos alunos, com o
objetivo de delinear o perfil dos leitores, ao qual apenas os 12 alunos iniciais responderam.
Chegamos à escola em uma terça-feira, duas semanas após o início do ano letivo, para
começar a observação de aulas. A escola, relativamente nova, se situa em uma região afastada do
centro da cidade e próxima a um conjunto de casas populares, das quais, segundo o professor, vem
o maior número de alunos. Ainda não haviam se encerrado as matrículas, mas já sabíamos que a
turma seria composta por menos de 20 alunos. Neste dia, apenas nove estavam presentes. Ao
entrarmos na sala, já foi perceptível que a relação entre professor e alunos era bastante amigável,
com muito espaço para o diálogo, visto que o professor acompanhava essa turma desde o início do
Ensino Médio. Após um breve momento de conversas sobre o cotidiano, o professor nos apresentou
como “uma professora que irá acompanhar algumas aulas e, mais tarde, participar junto conosco das
nossas aulas”.
Após essa apresentação, a aluna I. se dirigiu ao professor e o questionou sobre os livros
que eles leriam este ano para fazer o exame vestibular das universidades públicas presentes no
estado – a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e
a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). O professor prontamente respondeu que em
outra ocasião disponibilizaria a lista para todos. Nesse momento, os alunos começaram a se
manifestar dizendo que não gostaram de ler o romance Quincas Borba no ano anterior, obra que
havia sido indicada no ano anterior para a primeira fase do Processo Seletivo Seriado, realizado por
uma das universidades públicas federais da região, destinada aos alunos que completam o Segundo
Ano do Ensino Médio.
Alguns dos alunos disseram ainda que haviam gostado do romance Senhora e do conto
“Pai contra Mãe”, leituras também realizadas durante o Segundo Ano e que mostram que o
professor realiza muitas leituras literárias e organiza as aulas de literatura seguindo a perspectiva
historicista, sobre a qual nos referimos no primeiro capítulo, visto que são obras localizadas no
século XIX, época que tradicionalmente faz parte do currículo do Segundo Ano. Dessa forma, esse
professor consegue aliar a leitura literária, indicada pelos documentos parametrizadores do Ensino
Médio, ao estudo historicista linear da literatura, necessário para que os alunos tenham êxito no
concurso vestibular e para que seja cumprido o currículo determinado para essa série.
Dentre as perguntas do primeiro questionário respondido pelos alunos, destacamos
algumas questões. A terceira questão “Você gosta de ler?” teve dez respostas afirmativas e duas
negativas. Percebemos que as meninas responderam que “Sim” enquanto os meninos disseram
“não” e o aluno F. chegou a afirmar que as meninas estariam mentindo, pois também não gostavam
de ler e, por isso, recebeu uma grande vaia de suas colegas, que argumentaram lembrando os
diversos textos que já haviam lido em sala de aula, dos quais gostaram. Esta questão se relaciona
com a quarta, “O que você prefere ler?”, que também apresentava alternativas a serem selecionadas
pelos alunos. Três alunos escolheram “quadrinhos”, cinco selecionaram “revistas”, dois marcaram
“contos”, oito alunos escolheram “romance”, apenas um aluno marcou “cordel”, três selecionaram
“poemas”, três marcaram “jornal” e três marcaram a opção “outros”.
Na opção “outro” havia um espaço para que o aluno identificasse a sua preferência e
obtivemos as seguintes respostas: “blogs na internet”, “livro de suspense”, “obras que viram filmes”
e “livros de culinária”. P., que disse não gostar de ler marcou “jornal” e F. marcou a opção “outro” e
escreveu “não gosto de ler!”. Os alunos se sentiram à vontade para expor seus gostos, ou
simplesmente para dizer do que não gostavam, mas a principal informação revelada por essa
questão foi de que, apesar da experiência negativa com Quincas Borba, o romance é o gênero
preferido por esses alunos.
Atentamos ainda para o fato de que os dois gêneros aos quais pertencem as obras que
deveríamos ler com os alunos foram os menos escolhidos: “conto”, por dois alunos, e “cordel”, por
somente um. Os alunos afirmam ler romances e revistas. A escolha do romance enquanto gênero
provavelmente segue o que podemos chamar de tendência mundial de leitura pelos adolescentes,
considerando o sucesso de livros das séries Crepúsculo e Harry Potter, os quais verificamos que
eram citados pelos alunos em conversas com os colegas nos momentos de intervalo das aulas. Já as
revistas asseveram o desejo de se informar já expresso em respostas a questões anteriores, apesar de
apenas 03 alunos marcarem a opção “jornal”.
Ao serem questionados sobre o tipo de personagem, de desenhos, filmes ou livro que mais
gostavam, e apesar de não oferecermos alternativas para essa questão, percebemos a predominância
de certos modelos. Seis alunos confessaram gostarem dos personagens românticos que lutam pelo
amor, quatro preferiram os aventureiros, três revelaram gostarem dos personagens inteligentes das
narrativas de suspense, dois gostam de personagens de comédias, outros dois não gostam de
nenhum e um respondeu “não lembro”.
À questão sete “Você gosta das aulas de literatura?”, todos responderam “sim” e à oitava
“Você sente dificuldade para ler textos literários? Por quê?” quatro alunos responderam “sim” e sete
responderam “não”, enquanto a aluna C. não marcou nenhuma das alternativas. A justificativa de C.
foi a seguinte: “às vezes sinto algumas dificuldades, pelo fato de alguns textos não serem muito
claros”. Na impossibilidade de identificar uma predominância, a aluna preferiu se abster, o que
consideramos como um possível indício de sua experiência de leitora em relação à sua identidade
enquanto aluna de literatura. Os que responderam sim, por sua vez, justificaram a resposta dizendo
que achavam difícil, pois não tinham costume de ler e que são obrigados a ler na escola.
Observamos que a leitura literária, vista enquanto obrigação imposta pela escola, não os
agrada, apesar de gostarem das aulas e terem o costume de ler. A aula de literatura é considerada de
forma dissociada da leitura literária. Um dos aspectos que pode explicar porque essa dificuldade em
ler textos literários não os faz preterirem a aula de literatura é o relacionamento com o professor,
que, como já salientamos, se caracteriza pela liberdade de expressão e valorização do indivíduo.
Dentre os que responderam “não”, apenas um não justificou. Por sua vez, os demais
comentaram que gostavam de literatura e por isso não sentiam dificuldades, que se identificavam
com o texto por ser um texto rico em detalhes. A aluna I. revela que a mãe a incentivou a ler desde
cedo e por isso não sente dificuldades hoje. Estas respostas evidenciam alguns aspectos essenciais
para a formação de leitores, que são a identificação, o desenvolvimento de um gosto e o convívio
com o texto literário desde cedo e ratificam a nossa observação de que os alunos não são leitores
inexperientes.
No questionário respondido pelo professor, procuramos investigar como ele definia seu
planejamento de aulas e constatamos que sua reflexão se aproxima do que deduzimos nos
momentos de observação, mesclando conhecimento linguísticos e literários, aliando, sempre que
possível, a literatura a outras artes, e abrindo espaço para autores que não são tradicionalmente
incluídos no ambiente escolar, sejam autores regionais ou não, sempre tomando como referência os
documentos parametrizadores do ensino no âmbito nacional e no estadual. A reflexão do professor a
respeito da seleção dos textos literários remete à nossa própria compreensão dos documentos
exposta no primeiro capítulo, como é possível observar na resposta à décima segunda questão do
questionário do professor:
As Orientações Curriculares Nacionais - Literatura sugerem que uma
infinidade de aspectos devam ser observados na seleção de textos: o cânone,
o vestibular, o tempo escolar, entre outros aspectos. Os Referenciais
Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba são fortemente inspirados nas
Orientações. No entanto, há um caráter mais diretivo no documento
estadual, no qual são sugeridos, por exemplo, quais os gêneros a serem lidos
em um determinado período do tempo escolar, principalmente, no 1° ano do
Ensino Médio.
Com uma prática fundamentada nas diretivas recentes, tanto dos documentos oficiais
quanto das teorias desenvolvidas no âmbito acadêmico, o professor construiu um cotidiano com os
seus alunos no qual a literatura se insere, no último ano do Ensino Médio, de forma a possibilitar a
reflexão sobre si e sobre o outro, sem deixar de lado o cânone, o tempo escolar, o vestibular e o
contato com uma diversidade de gêneros literários, no que se refere à literatura.
A leitura de textos dramáticos e folhetos de cordel são exemplo do espaço dado pelo
professor a textos que geralmente não ocupam espaço na leitura literária feita em sala de aula. Além
de apresentar uma diversidade de gêneros, o professor procura relacionar o texto literário a aspectos
culturais regionais para favorecer a recepção dos alunos, visto que reconhece a relevância do
contexto sócio-histórico em que o texto foi produzido. O professor ainda ressalta que “muitas vezes,
a comparação é suscitada pelos próprios alunos”.
De posse destas informações passamos à leitura do conto “Traços Biográficos de Lalino
Salãthiel ou A Volta do Marido Pródigo” de Guimarães Rosa, e dos folhetos A Vida de Cancão de
Fogo e O Testamento de Cancão de Fogo , de Leandro Gomes de Barros. Para esta experiência de
leitura, utilizamos cópias do conto retiradas da 69ª impressão do livro Sagarana (ROSA, 2001)
dividida em cinco apostilas que agruparam as nove partes em que o conto se divide, e a edição em
livreto intitulada Vida e Testamento de Cancão de Fogo, que se assemelha ao formato do Gibi e em
lugar de uma xilogravura, apresenta uma representação colorida do personagem Cancão.
O livreto une os dois volumes de folhetos de Leandro Gomes de Barros, contém 32 páginas
e se divide em dois volumes, que juntos apresentam as 312 sextilhas setissílabas com o esquema
rímico ABCBDB. Tal forma, tradicional para o gênero, é atribuída a Silvino Pirauá de Lima, que as
introduziu nas cantorias (ALVES SOBRINHO, 2003). A escolha do volume único se deu por não
encontrarmos edições individuais do folheto, assim, entre levar para a sala de aula a cópia dos
folhetos retirada de uma antologia poética e apresentar o folheto que reúne as narrativas, optamos
pela última alternativa. A diferença entre as versões restringe-se ao suporte que, no primeiro caso, é
um livro e, no segundo, é um livreto, como ressaltamos, no tamanho comum ao Gibi, formato
utilizado atualmente pela Editora Luzeiro.
Considerando as informações reveladas nos questionários dos alunos e do professor,
organizamos a experiência da seguinte forma: inicialmente leríamos “A vida de Cancão de Fogo”,
de Leandro Gomes de Barros, seguida da leitura de “Traços Biográficos de Lalino Salãthiel ou A
Volta do Marido Pródigo”, de Guimarães Rosa, e por fim o folheto “O Testamento de Cancão de
Fogo”, também de Leandro.
Definida a ordem de leitura, realizamos a experiência e percebemos o que podemos chamar
de dois movimentos de recepção mais relevantes, que permearam a experiência, que consistem na
atitude de identificação ou estranhamento. Ao utilizarmos o termo “identificação” estamos
considerando a relação estabelecida entre o texto lido e o cotidiano dos leitores, e quando nos
referimos ao estranhamento, atentamos para os momentos de leitura em que ocorre o movimento
oposto ao primeiro e os alunos não conseguem atribuir sentido ao texto lido a partir da relação com
o seu cotidiano. Ao utilizarmos o termo “estranhamento” não fazemos qualquer relação com o
conceito dos formalistas russos.
Após a leitura, realizada oralmente em sala de aula, pelos alunos, o questionário aplicado
ao término da experiência teve como objetivo registrar por escrito as impressões que os alunos
haviam expressado durante a leitura e também na discussão final. A esse questionário, treze (13)
alunos responderam as sete (07) questões subjetivas a respeito dos textos literários que havíamos
lido. Diferente do primeiro questionário, neste nenhum dos alunos pediu para deixar questões em
branco, apesar de alguns terem respondido parcialmente a parte delas.Nele, as questões versaram
sobre a experiencia de leitura, essencialmente no que se refere aos trechos e personagens preferidos,
aos comentários sobre as narrativas e comentários pessoais de cada aluno sobre os textos lidos.
Optamos por essa abordagem por percebermos que os alunos conseguiam refletir sobre os dois
textos, de dois gêneros distintos, numa perspectiva comparativista, mas respeitando seu nível de
reflexão.
REFLEXÕES FINAIS
Procuramos realizar uma reflexão sobre como outras perspectivas de ensino podem
contribuir para enriquecer a experiência do aluno com a literatura em sala de aula, pois não
ignoramos que falamos de um lugar privilegiado. É necessário destacar ainda que o professor busca
aliar à orientação curricular uma postura de ensino de gêneros literários sob uma ótica recepcional
da leitura, e em lugar de apenas citar os principais textos literários e seus autores, privilegiou a
leitura integral de textos literários, dessa forma, os nossos alunos já tinham experiência de leitura
dos mais diversos gêneros, e de quase todas as épocas.
Ao localizar a nossa intervenção após a leitura de contos de Graciliano Ramos, o professor
acabou demonstrando como costuma aliar a tradição de um currículo ainda um pouco engessado a
uma postura de incentivo à leitura focada no leitor, e, para facilitar, ou mais precisamente, mediar
essa relação entre os alunos e os textos que pretendíamos ler em sala de aula, promoveu a leitura de
contos de Graciliano Ramos que apresentavam um personagem que poderia proporcionar um
diálogo com Cancão de Fogo e Lalino Salãthiel.
Quanto ao modo como se daria a recepção dos textos literários que apresentavam
diferenças formais e tematizavam aspectos semelhantes da condição humana, podemos afirmar que
a recepção se deu a partir da relação entre os dois textos, possibilitada pela experiência de cada um
dos leitores.
Durante a leitura compartilhada, os alunos perceberam semelhanças entre as obras, além de
elencarem aspectos que distanciavam os dois personagens principais, mas não chegaram a refletir
sobre diferenças formais, visto que para eles, devido à experiência de leitura de diversos textos
literários, essas diferenças não se configuraram como um ponto relevante para os leitores. O ponto
de convergência da leitura dos folhetos e do conto era a forma como os alunos significavam o que
haviam lido, relacionando principalmente os dois personagens principais e os seus “quengos”.
Entre os quengos de Cancão e Lalino, a diferença de recepção se deveu principalmente à
relação que os alunos estabeleciam entre as ações e a lógica da justiça, a qual se refere Jolles (1976)
ao falar sobre a moral ingênua na forma simples, e que nos ajuda a definir a forma de recepção dos
alunos, visto que seu horizonte de expectativa se organiza a partir da concepção de narrativa com
um enredo simples em que o bem sempre vence o mal mas não necessariamente um bem que segue
a moral cristã, mas que é balizado por essa moral ingênua que espera que o mocinho da história
sofra, para que no final seja recompensado, enquanto reserva uma punição para os vilões.
Ao lermos os folhetos de Leandro Gomes de Barros e o conto de Guimarães Rosa, os alunos
se sentiram à vontade para expressar a preferência pela leitura do livreto Vida e Testamento de
Cancão de Fogo, que não se deu por conta da dificuldade lexical do texto de Guimarães Rosa, ou
pela maior extensão dele, que chegava a cinquenta páginas, mas porque os nossos leitores se
identificaram mais com o personagem Cancão, por conseguirem ver nessa narrativa o modelo que
preferiam e, assim, perceberem que o seu horizonte de expectativas fora atendido.
A realização de mais um questionário ao final da experiência acrescentou dados relevantes
que ainda não havíamos registrado, visto que naturalmente alguns alunos se impunham mais
durante as discussões, a exemplo do aluno F. e das alunas I., G. e J. e os demais acabavam
concordando com os seus comentários, a não ser a aluna E., que sempre manifestava sua opinião
resguardada em sua opção religiosa. Dessa forma, as respostas individuais dos questionários finais
foram importantes para ter acesso a opiniões pessoais.
Quanto à perspectiva de leitura literária norteadora de nossa pesquisa, constatamos que a
sala de aula enquanto espaço de experiência literária significativa dá lugar a textos literários que
não constam nos manuais, sem prejudicar o conhecimento literário dos alunos, mas auxiliando a
desenvolver sua criticidade em relação aos textos lidos. Nosso percurso comprova a importância de
se aliar o estudo historiográfico previsto no currículo do Ensino Médio a uma prática voltada para a
leitura literária, na qual se privilegie a formação do aluno leitor, que, exercendo sua autonomia,
passa a conceber a literatura como uma manifestação da experiência humana e, por isso, universal e
sem barreiras.
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Alyere Silva Farias