UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
DIREITO E PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL APÓS 1988:
expansão, competição, identidades e desigualdades.
André Filipe Pereira Reid dos Santos
2008
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DIREITO E PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL APÓS 1988:
expansão, competição, identidades e desigualdades.
André Filipe Pereira Reid dos Santos
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia).
Orientadora: Profª Drª Maria Ligia de Oliveira Barbosa
Rio de Janeiro
Julho de 2008
II
DIREITO E PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL APÓS 1988:
expansão, competição, identidades e desigualdades.
André Filipe Pereira Reid dos Santos
Orientadora: Profª Drª Maria Ligia de Oliveira Barbosa
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia).
Aprovada por:
___________________________
Presidente, Maria Ligia de Oliveira Barbosa.
___________________________
Eliane Botelho Junqueira.
___________________________
Joaquim de Arruda Falcão Neto.
___________________________
Maria Helena de Magalhães Castro.
___________________________
Michel Misse.
Rio de Janeiro
Julho de 2008
III
Santos, André Filipe Pereira Reid dos.
Direito e profissões jurídicas no Brasil após 1988: expansão, competição,
identidades e desigualdades/André Filipe Pereira Reid dos Santos. – Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2008.
vi, 217f.: il.; 31 cm.
Orientador:
Maria
Ligia
de
Oliveira
Barbosa.
Tese
(doutorado)
–
UFRJ/IFCS/Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2008.
Referências: f. 143-158.
1. Sociologia. 2. Direito. 3. Sociologia das Profissões. 4. Profissões Jurídicas. 5.
Identidades Profissionais. 6. Desigualdades Sociais. I. Barbosa, Maria Ligia de. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Direito e profissões
jurídicas no Brasil após 1988: expansão, competição, identidades e desigualdades.
IV
A Merinha, que apostou que eu chegaria até aqui, mas não pode presenciar este momento. A
luta dela pela vida foi um exemplo e tanto. Saudades da minha mãe!
A Zuna, que passou por grandes dificuldades, mas não deixou de estar ao nosso lado. Valeu,
pai!
A Telminha e Nina que foram meu ponto de equilíbrio em todos os momentos. A partir de um
determinado período a vida cotidiana passou a ser vivida direta e intensamente em função
delas.
Amo vocês!
E que venham Tito e Pedro!
V
Agradecimentos
A Maria Lígia de Oliveira Barbosa, minha orientadora, pelas críticas e sugestões e
pela paciência comigo. Esse trabalho chegou ao final também pelos seus incentivos e
cuidados. Nunca me esquecerei de você!
A Ricardo Falbo e Michel Misse, pelas sugestões e exortações que fizeram na banca
de qualificação. Vocês mudaram os rumos da tese!
A Amélia Rosa de Sá Barretto, pela acolhida em seu lar, por seus ouvidos atentos e
pelos conselhos para a vida.
A Beatriz Proba, pela presteza em agendar as entrevistas no MP.
A Andréa Paladino e Kosta Matevski, pela consultoria.
Aos profissionais entrevistados, que contribuíram muito para o resultado final da tese.
O anonimato imposto para a preservação das fontes não diminui a importância de cada um de
vocês.
À Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, pela indicação dos contatos dos
Defensores selecionados para entrevista.
À Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro (ADPERJ), na
figura de seu presidente Denis Praça.
Ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
A Ângela, Claudinha e Denise, atenciosas funcionárias do PPGSA.
À Coordenação de Estudos Legislativos (BANDEP), pelo envio dos dados solicitados
sobre as ocupações e os estudos acadêmicos dos deputados federais brasileiros.
Ao pessoal da FDV que esteve comigo em boa parte do tempo do doutorado.
Ao pessoal do Unicuritiba, minha nova casa.
Àqueles que foram meus alunos e ouviram partes dessas minhas idéias.
VI
RESUMO
DIREITO E PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL APÓS 1988:
expansões, competições, identidades e desigualdades.
André Filipe Pereira Reid dos Santos
Orientadora: Profª Drª Maria Ligia de Oliveira Barbosa
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia).
Para análise das profissões jurídicas brasileiras, a sociologia das profissões representa
importante abordagem que abre caminho para a compreensão do significado atual desses
grupos. A partir do processo de redemocratização política do Brasil as profissões jurídicas
planejaram e executaram um projeto profissional. O trauma da ditadura militar foi um
argumento fundamental para reforçar a importância do direito e das profissões jurídicas para
redemocratização do país. E os movimentos sociais foram levados para dentro da Assembléia
Nacional Constituinte de 1987, transformando as lutas sociais em lutas políticas por novos
direitos legislados. As próprias profissões jurídicas participaram intensamente da construção
da Constituição de 1988, marcando seu espaço de poder para essas profissões. O campo
jurídico se expandiu junto com o campo político a partir do processo de redemocratização
política do país, mas essa expansão do poder das profissões jurídicas (projeto profissional)
não aconteceu de forma homogênea nem harmônica. Há lutas entre algumas profissões
jurídicas que remetem a lutas por identidades e por controle sobre determinadas áreas do
espaço social. O Ministério Público e a Defensoria Pública no Rio de Janeiro demonstram
essa luta e seus principais fatores, marcando disputas por identidades e estabelecendo novas
desigualdades entre as próprias profissões jurídicas.
Palavras-chave: Sociologia das Profissões; Profissões Jurídicas; Ministério Público;
Defensoria Pública; Identidades Profissionais; Desigualdades Sociais.
Rio de Janeiro
Julho de 2008
VII
ABSTRACT
DIREITO E PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL APÓS 1988:
expansões, competições, identidades e desigualdades.
André Filipe Pereira Reid dos Santos
Orientadora: Profª Drª Maria Ligia de Oliveira Barbosa
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia).
For the analisys of brasilian legal profession the sociology of profession represents an
important aproach which opens the door to understanding the current significance of these
groups. Since the begining of the political redemocratization in Brasil, legal professions have
planned and executed a professional project. The trauma left after the military regime
government was a crucial argument to strenghten the importance of law and legal professions
for the redemocratization of the country. The social movements were taken into the 1987
National Constitutional Assembly, transforming the social struggles into political struggles
for the new rights. The legal professions participated intensely in the building of the 1988
Constitution, demarkating their space within the system of power. Legal field has expanded
together with the political arena since the redemocratization process but the expansion of
power of legal professions (professional project) has not happened in a homogenous and
harmonic way. There are conflicts between some legal professions that go back to struggles
for identity and certain social areas. District Attorney Office and Public Defender Office in
Rio de Janeiro clearly demonstrate the struggle for identity and creating new inqualities
between legal professions.
Key words: Sociology of Professions; Legal Professions; District Attorney; Public Defender
Office; Professional Identities; Social Inequality.
Rio de Janeiro
Julho de 2008
VIII
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADPERJ
Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro
AMB
Associação dos Magistrados Brasileiros
AMPERJ
Associação do Ministério Público do Estado do rio de Janeiro
ANAMATRA Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho
ANC
Assembléia Nacional Constituinte
BANDEP
Coordenação de Estudos Legislativos da Câmara do Deputados
CONAMP
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público
DPGE-RJ
Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro
ENC
Exame Nacional de Cursos
IES
Instituição(ões) de Ensino Superior
INEP
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
MPF-RJ
Ministério Público Federal - Procuradoria da República no Estado do Rio de
Janeiro
MP-RJ
Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
OAB
Ordem dos Advogados do Brasil
OAB-RJ
Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Rio de Janeiro
UERJ
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFRJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
IX
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS, p. 1
Capítulo 1 – ABORDAGENS SOCIOLÓGICAS SOBRE PROFISSÕES, p. 7
1.1 FUNÇÕES SOCIAIS DAS PROFISSÕES, p. 7
1.2 A CONTRIBUIÇÃO INTERACIONISTA, p. 12
1.3 PROFISSÕES E PODER, p. 14
1.4 SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES JURÍDICAS, p. 26
1.5 SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES NO BRASIL, p. 30
Capítulo 2 – DIREITO E PROFISSÕES JURÍDICAS: análises da estrutura e do
funcionamento do campo jurídico e descrições do campo jurídico brasileiro, p. 35
2.1 DIREITO E BUROCRACIA, p. 35
2.2 CAMPO JURÍDICO, p. 38
2.2.1 O ensino jurídico, p. 39
2.2.2 As Associações Profissionais, p. 42
2.3 BREVE DESCRIÇÃO DO CAMPO JURÍDICO BRASILEIRO: ensino do direito,
profissões jurídicas, associativismo e instâncias de consagração, p. 44
2.3.1 Ensino do Direito no Brasil, p. 44
2.3.2 Profissões Jurídicas no Brasil, p. 48
2.3.3 Associações no Campo Jurídico Brasileiro, p. 54
2.3.4 Instâncias de Consagração das Profissões Jurídicas Brasileiras, p. 55
Capítulo 3 – PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL: elaboração e execução de um
projeto profissional a partir da redemocratização política, p. 63
3.1 PRIMEIROS JURISTAS BRASILEIROS, p. 63
3.2 PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL APÓS O FIM DA REPÚBLICA VELHA, p. 67
3.3 PROFISSÕES DO DIREITO E DITADURA MILITAR, p. 70
3.3.1 O Terror Militar, p. 72
3.3.2 O Ensino Jurídico durante a Ditadura Militar, p. 75
3.4 O PERÍODO DA REDEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA E A CONSTITUIÇÃO DE 1988,
p. 78
3.4.1 A Participação dos Profissionais do Direito na Elaboração da Nova Constituição
Brasileira, p. 82
3.5 EXPANSÃO DO ENSINO DO DIREITO APÓS 1988 E CONTROLE DE MERCADO,
p. 91
3.6 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DAS RELAÇÕES SOCIAIS, p. 95
X
Capítulo 4 – MINISTÉRIO PÚBLICO VERSUS DEFENSORIA PÚBLICA NO RIO DE
JANEIRO: identidades e desigualdades, p. 100
4.1 INSTITUIÇÕES JURÍDICAS ESCOLHIDAS, p. 102
4.1.1 Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro, p. 102
4.1.2 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, p. 107
4.2 IMPRESSÕES E COMENTÁRIOS SOBRE AS ENTREVISTAS, p. 109
4.3 ANÁLISES DAS ENTREVISTAS COM DEFENSORES PÚBLICOS E PROMOTORES
DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, p. 113
4.3.1 Problemas Sociais Brasileiros, p. 113
4.3.2 Imagens da Pobreza, p. 115
4.3.3 A Pobreza no Brasil, p. 115
4.3.4 O Comportamento dos Pobres, p. 116
4.3.5 Rendimentos Profissionais, p. 119
4.3.6 Desigualdade de Rendimentos entre Defensoria e MP, p. 119
4.3.7 Isonomia de Rendimentos entre Defensoria e MP, p. 124
4.3.8 Defensoria versus MP, p. 126
4.3.9 A Clientela da Defensoria, p. 132
CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 140
REFERÊNCIAS, p. 143
ANEXOS, p. 159
XI
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Para apresentar esta tese escolhemos duas vertentes, uma experimental e outra
acadêmica. Por isso chamamos esse início de Considerações Iniciais, em vez de Introdução. A
parte experimental está em forma de apresentação das agruras de uma pesquisa de doutorado.
Chamamos de experimental porque não se vê muito esse tipo de apresentação por aí. Toda
novidade é também um experimento. Já o que chamamos de apresentação acadêmica está em
forma de pequena antecipação daquilo que se pode (ou não) esperar desta tese. É a introdução
mais clássica, com apresentação em forma de resumo daquilo que o leitor lerá mais à frente,
tentando dar uma idéia das hipóteses e discussões a serem realizadas.
AGRURAS DE UMA PESQUISA DE DOUTORADO
Quando lemos um trabalho científico, às vezes achamos que o resultado final da
pesquisa ou o texto final foram frutos unicamente das escolhas do pesquisador. E essa
imaginação do leitor vai também fazendo a fama do autor. Quando o trabalho está bom,
pensamos: “que capacidade de fazer análises!”, “como usa adequadamente a metodologia e a
teoria!”, “como argumenta bem!”. Quando o trabalho está ruim, é um Deus nos acuda: “o
orientador não deveria...”, “mostra desconhecimento...”, “imagina, sem nenhum respaldo,
que...” E por aí vai. Estando bom ou ruim o trabalho, as críticas dos leitores, que
primeiramente são os próprios pares, quase sempre toma uma visão planificada, sem
considerar as ranhuras, os relevos da trajetória do autor ou das dificuldades encontradas para a
produção do trabalho. Talvez não se possa mesmo exigir dos leitores que eles saibam de
aspectos particulares da trajetória do pesquisador. Mas o próprio pesquisador poderia/deveria
expressar mais os seus sentimentos em relação ao trabalho e às dificuldades enfrentadas para
sua realização.
Nem sempre os resultados das pesquisas vão ao encontro das expectativas e hipóteses
do pesquisador. E nem sempre as hipóteses de trabalho são concebidas a priori. Daí a
importância de relatar um pouco a experiência da pesquisa. Algumas vezes o
desenvolvimento das pesquisas vai impondo novas hipóteses que anteriormente não haviam
sido pensadas. Vamos tendo que fazer adequações à pesquisa, o que inclui métodos e teorias.
O que estamos dizendo é que o produto final das pesquisas nem sempre é esperado, e isso é
muito eliasiano. Não há um controle absoluto do pesquisador sobre suas fontes e hipóteses de
trabalho. Esse controle é sempre relativo, precisando de alterações no percurso. Essa
constatação não deve diminuir o peso das críticas que devem ser feitas pelos pares, mas deve
dar ao pesquisador a certeza de que ele não é tão brilhante nem tão “fraco” quanto as críticas
possam pintá-lo. Porque ele não é dono da verdade. Porque ele não é senhor absoluto de suas
pesquisas e de seus resultados. Numa sociedade em que o binômio sucesso/fracasso baliza os
julgamentos morais, o campo científico às vezes parece não estar tão imune a essa lógica de
mercado. Mas os efeitos que esse tipo de julgamento tem sobre o pesquisador e seus trabalhos
– porque separar trabalho e trabalhador é cada vez mais difícil mesmo no campo científico –
pode ser menos pernicioso na medida em que ele tiver maior consciência de suas limitações e
virtudes. Em nossa sociedade, o sucesso costuma encobrir uma multidão de erros e fracassos
pessoais. Mas o campo científico às vezes é até mais cruel, não deixando que os deslizes da
carreira sejam esquecidos, nem pelos pares nem pelo próprio pesquisador que cometeu algum
erro considerado grave, seja na área metodológica, teórica ou mesmo pessoal.
Torna-se impossível apresentar brevemente os capítulos que virão a seguir sem antes
apontar, minimamente, alguns aspectos do percurso nada linear que foi feito até chegarmos ao
resultado final da tese. Passamos por todo tipo de experiência no decorrer do curso de
doutorado: não recebemos bolsa de fomento à pesquisa; mudamos de Niterói para Vila
Velha/ES; depois, de Vila Velha para Campo Mourão/PR; e, por fim, de Campo Mourão para
Curitiba; trabalhamos como professor de sociologia e antropologia em cursos de graduação
tão distintos quanto Desenho Industrial, Direito, Serviço Social, História, Ciências Sociais e
Administração; trocamos de orientadora; vimos nascer e crescer nossa filha; estamos
esperando
mais
dois
filhos;
enfrentamos
perseguições
acadêmicas;
desemprego;
desentendimentos familiares; doenças; morte na família; entre outras experiências boas e
ruins. Enfim, este trabalho está repleto de fracassos e sucessos das mais diferentes ordens.
Talvez haja até mais fracassos, mas fizemos o nosso melhor. Seria insuportável pensar no
resultado final da tese fora desse contexto. Ou pensar numa outra tese em meio a tudo o que
passamos. Se o contexto fosse outro, muito provavelmente a tese também teria outros
contornos.
Quando fomos aprovados para o doutorado, tínhamos um projeto por demais
grandioso. No decorrer do tempo fomos alterando e reduzindo o projeto inicial até chegarmos
ao que estamos defendendo aqui. Parte das alterações realizadas e seus principais motivos
serão demonstrados aqui, porque entendemos, como Bourdieu (2003, p. 18), que a exposição
2
dos resultados da pesquisa é também uma exposição de si mesmo, é um correr riscos. Estamos
assumindo esses riscos como parte da discussão necessária ao amadurecimento das questões
levantadas e ao ingresso definitivo no campo da sociologia brasileira.
O QUE (NÃO) ESPERAR DESTE TRABALHO
Esta tese de doutoramento tem como fio condutor as transformações ocorridas nas
profissões jurídicas brasileiras após a Constituição de 1988, que tiveram reflexo sobre todo o
sistema de justiça, que chamamos, lato sensu, de Direito. Entendemos Direito não só como
normas, mas como sistema (não num sentido funcionalista) de justiça, algo como o que
Bourdieu chama de campo jurídico, que não é só Poder Judiciário, mas que inclui uma
infinidade de instituições e agentes com atuações político-jurídicas. Aliás, a impossibilidade
de separar o campo político do campo jurídico vai estar presente em quase todas as nossas
análises, ressaltando que Direito e Política são como duas faces de uma mesma moeda.
Propomos, então, o oposto daquilo que pretendia o positivismo jurídico clássico, que seria a
separação entre esses dois mundos que para nós é coexistente: o jurídico e o político.
No Capítulo 1 apresentaremos uma discussão breve, embora com o cuidado de não
torna-la superficial demais, das principais abordagens sociológicas para análise das
profissões. Seguimos basicamente a abordagem teórico-analítica da sociologia das profissões,
começando pelos funcionalistas, passando pelos interacionistas, até chegar aos weberianos.
Entre os funcionalistas, mostraremos a importância de Carr-Saunders e Parsons para criação
desse novo campo da sociologia; as modificações empreendidas pelo olhar de Goode e
Merton; e a permanência do funcionalismo na recente abordagem de Abbott. No
interacionismo, destacaremos os sociólogos Hughes e Freidson. O interacionismo propõe uma
maior proximidade com o objeto a ser analisado pelo sociólogo, no caso, a profissão a ser
analisada. Já entre os que podem ser chamados de weberianos, porque relacionam profissões a
poder, formas de organização do poder, passaremos por Johnson, Larson, Collins, Starr, Elias
e Bourdieu. Daremos maior atenção aos weberianos, em particular a Elias, porque será nosso
principal aporte teórico para algumas análises que faremos em capítulos posteriores. Por fim,
passaremos por uma breve apresentação da sociologia das profissões jurídicas e pela
Sociologia das Profissões no Brasil, destacando seus principais autores e temas. Este primeiro
capítulo tem um cunho mais teórico.
3
Já o Capítulo 2 tem um aspecto mais descritivo, com análises da estrutura e
funcionamento das profissões jurídicas à luz das teorias de Larson, Bourdieu, Merton e
Collins e com descrições do campo jurídico brasileiro. Dentre as análises do funcionamento
do campo jurídico, passaremos pela discussão sobre o papel do estado (que preferimos grafar
com letra minúscula) e da burocracia para as profissões jurídicas. Apresentaremos também a
importância do ensino do direito e das associações profissionais para a constituição do campo
do direito. Por fim, faremos uma descrição do campo jurídico brasileiro, passando por: ensino
do direito, profissões jurídicas, associativismo e instâncias de consagração. A descrição do
campo jurídico brasileiro será acompanhada de pequenas análises e discussões sobre a
realidade do campo jurídico no Brasil, para isso utilizaremos mais autores brasileiros. Na
descrição das profissões jurídicas, utilizaremos a Classificação Brasileira de Ocupações
(CBO), que é uma espécie de catálogo oficial das profissões brasileiras. Faremos uso da CBO
com as devidas ressalvas sobre o papel de reconhecimento do poder das profissões,
desempenhado pelos códigos oficiais de classificação profissional.
No Capítulo 3 partiremos para uma análise mais próxima de nossa realidade social e
de nosso tempo. A partir de um breve histórico das profissões jurídicas no Brasil, entraremos
numa discussão um pouco mais densa sobre o período de transição conhecido como
redemocratização política, passagem da ditadura militar para a democracia. Este período será
enfocado a partir de dois eixos de análise: o trauma causado pela ditadura militar na sociedade
brasileira e o uso ideológico desse trauma social para elevação das profissões jurídicas a um
patamar importante de poder na sociedade brasileira pós-88. Esses dois eixos vão se integrar
justamente no período denominado de redemocratização política, particularmente durante a
Assembléia Nacional Constituinte de 1987, e conformará o que estamos chamando –
utilizando um conceito larsoniano – de projeto profissional.
Nossa hipótese aqui é de que o projeto profissional das profissões jurídicas brasileiras
foi concebido e executado durante a redemocratização política do país. E como todo projeto
profissional ele continua em elaboração/execução. Mostraremos que a expansão do campo
jurídico após 1988 acompanhou a expansão do campo político que se iniciou antes, durante a
redemocratização política do país. Para fazer toda essa discussão não deixaremos de lado
outros fatores importantes como: a expansão do ensino superior brasileiro já durante o período
militar; a expansão do ensino do direito após 1988 e o controle de mercado do ensino do
direito, realizado pelas associações profissionais; e a judicialização da política e politização da
4
justiça, que são fatores recentes que têm avançado em todo mundo. Neste capítulo lançaremos
mão de inúmeros autores nacionais, como José Murilo de Carvalho, Oliveira Vianna, Afonso
Carlos Marques dos Santos, Miguel Baldez, Joaquim Falcão, Luiz Werneck Vianna e Ricardo
Falbo, entre outros.
O Capítulo 4 se propõe a ser mais empírico, com análises do trabalho de campo que
realizamos entre defensores públicos e promotores de justiça do Rio de Janeiro. Este capítulo
se iniciará com a afirmação de que a expansão ocorrida no campo jurídico brasileiro não
alcançou todas as profissões jurídicas de igual modo. Quer dizer, embora haja após 1988 uma
expansão do número de faculdades de direitos e, conseqüentemente, de profissionais do
direito na sociedade brasileira, essa expansão não ocorre indistintamente em todas as
ocupações jurídicas. Para desenvolver essa idéia, mostrando que a expansão das profissões
jurídicas após 1988 não foi uniforme, destacaremos uma competição entre defensores
públicos e promotores de justiça, que têm conseqüências para a própria prestação jurisdicional
destas profissões e para a construção da identidade dessas diferentes profissões jurídicas. A
luta entre as profissões jurídicas escolhidas se estabelece no estado do Rio de Janeiro, mas
bem poderia ser em qualquer outro estado brasileiro. A competição entre essas profissões
imiscui aspectos identitários e remuneratórios, em alguns momentos mascarados
ideologicamente sob o discurso de proteção/defesa dos pobres e da sociedade brasileira.
Nossa hipótese primeira aqui, retirada da abordagem teórica de Elias sobre a relação
estabelecidos/outsiders, seria a de que o tipo de clientela atendida pela Defensoria – os
economicamente hipossuficientes da sociedade brasileira – são a causa da baixa remuneração
dos defensores quando comparados aos promotores de justiça na maioria dos estados
brasileiros. Esta hipótese nos levou ao trabalho de campo com realização de entrevistas e
observações participantes que permitiram o desenvolvimento de outras linhas de investigação.
Numa dessas entrevistas um promotor nos deu um fio que nos levou à meada: além do
conflito entre defensores e promotores há uma tentativa do MP de constituir uma visão de
mundo partilhada pelos promotores de justiça, compondo uma estratégia profissional por
autoridade profissional (Starr). A busca por poder por parte do MP se dá pela via de uma
autovalorização da própria instituição e ajuda a construir a identidade profissional dessa
importante profissão jurídica brasileira. Esta autoridade profissional do MP brasileiro se
constrói para dentro da instituição fundada na ideologia de um profissionalismo calcado na
técnica jurídica e para fora na visibilidade da importância da instituição para a democratização
5
do país. Mas além desses dois fatores, passa também pelo monopólio de um importante
espaço de atuação profissional, a denúncia penal, e pelo controle interno dos próprios pares.
Por tudo que já apresentamos até aqui esperamos que tenha ficado clara a proposta do
título do trabalho: o direito e as profissões jurídicas brasileiras se expandiram durante a
redemocratização política brasileira, em particular após a promulgação da Constituição de
1988, ampliando as competições por poder entre as profissões jurídicas e no campo do direito
como um todo – por exemplo, entre as faculdades de direito. Essas competições são por
poder, em todos os sentidos, e geram diferenciações (identidades) e desigualdades (inclusive
econômicas) no campo do direito. Nossas escolhas teóricas, metodológicas e de construção do
texto (forma e linguagem) foram feitas sempre para privilegiar a simplificação do argumento,
embora nem sempre isso aconteça. A banca de qualificação do projeto, composta por Misse e
Falbo, foi fundamental para alterações nos rumos das pesquisas. Já a banca de defesa, com
Castro, Misse, Junqueira e Falcão, realizou um segundo e mais importante crivo ao
desenvolvimento e transformação de nossas idéias. Mas a responsabilidade pelo que está
escrito aqui é toda do autor.
6
1 ABORDAGENS SOCIOLÓGICAS SOBRE PROFISSÕES.
Quando surge uma nova instituição ou um novo campo cientifico nem sempre se sabe
imediatamente o que está surgindo e nunca se sabe onde as mudanças sentidas vão parar. Com
o campo da sociologia das profissões também foi assim: começou como uma abordagem
sociológica do fenômeno das ocupações modernas e hoje já se constitui, ou se auto-intitula,
um campo autônomo dentro da sociologia, com autores e teorias próprias, com objetos de
pesquisa próprios e com sua própria historicidade.
Numa abordagem funcionalista, autores como Carr-Saunders, Parsons, Goode e
Merton foram imprescindíveis para os primeiros passos e o desenvolvimento da sociologia
das profissões. Posteriormente, Freidson realizou importantes contribuições para a sociologia
das profissões, já de uma perspectiva que podemos chamar de interacionista. Mas os
weberianos serão responsáveis pela sedimentação da sociologia das profissões como subcampo da sociologia. E fazem isso ao enfocar o poder profissional, explicitando suas
ideologias e seus projetos. Mas é claro que todos os teóricos da sociologia das profissões
anteriores foram importantes para que os weberianos chegassem a imprimir mudanças
significativas na sociologia das profissões, como veremos aqui.
1.1 FUNÇÕES SOCIAIS DAS PROFISSÕES
Os funcionalistas levantaram as primeiras questões da sociologia em torno do papel
das profissões nas sociedades modernas. De uma maneira geral os funcionalistas deram ênfase
à formação profissional e à constituição dos papéis profissionais como decorrência da
modernização das sociedades, dando especial valor aos profissionais na estrutura social. Para
Durkheim, a divisão social do trabalho se organizava a partir da divisão técnica do trabalho,
uma divisão funcional. As profissões desempenhariam funções específicas dentro do corpo
social em prol da harmonia, do bom funcionamento, do próprio corpo. Para ele, o
desenvolvimento da divisão do trabalho era a base de desenvolvimento da organização e
identificação dos grupos sociais. A identificação profissional seria quase automática,
decorrente da divisão técnica do trabalho. Seria uma consciência de pertencimento ao grupo,
fruto de um processo de socialização. Os demais funcionalistas não se afastaram muito desses
pressupostos durkheimianos.
7
A sociologia das profissões começa a tomar forma como ramo autônomo da sociologia
a partir da década de 1930. Os trabalhos do inglês Carr-Saunders foram emblemáticos dos
primeiros passos do que viria a ser conhecido posteriormente como sociologia das profissões.
O verbete “profession”, elaborado por Carr-Saunders e Wilson, para a Enciclopédia de
Ciências Sociais, publicada em 1934, foi uma primeira tentativa de definir/conceituar
profissão. Segundo Dubar, no verbete, o autor define profissão da seguinte maneira: “dizemos
que uma profissão emerge quando uma quantidade definida de pessoas começa a praticar uma
técnica definida fundamentada em uma formação especializada”. (2005, p. 170) A partir desta
primeira definição de profissão, que Dubar afirma que se tornou clássica, fica marcada a
importância da formação para o surgimento de uma profissão. Esta seria uma formação dita
superior, especializada, o que dá às profissões um aspecto elitizado.
Para Carr-Saunders e Wilson, as profissões modernas descendiam das guildas,
corporações de ofícios da Idade Média, e incorporavam um sentido de missão, vocação1, que
apontava para o surgimento das associações profissionais como instituições responsáveis pela
ajuda mútua dos profissionais e pela demarcação entre os profissionais e os não-profissionais,
os qualificados e os não-qualificados. Nesta perspectiva não se fazia nenhuma crítica às
profissões, pelo contrário, entendia-se as profissões como resultado normal (natural) do
processo evolutivo das técnicas nos “países civilizados”. É como se os profissionais fossem
substituir progressivamente a mão-de-obra não-qualificada nas sociedades modernas,
condenando os não-qualificados à extinção.
Foi na sociologia americana, graças a Talcott Parsons e seus pupilos, que, no final da
década de 30, a sociologia das profissões encontrou seu maior impulso inicial. Sem jogar fora
as concepções básicas propostas por Durkheim e por Carr-Saunders e Wilson2, Parsons inclui
a relação profissional-cliente como parte da construção dos papéis profissionais, ressaltando
que as profissões atendem às necessidades da sociedade. Para ele, a sociedade necessita do
trabalho dos diferentes grupos profissionais. Falar em diferença ao invés de desigualdade não
é sem propósito em se tratando do funcionalismo. Como cada parte do corpo tem uma função
específica, não há hierarquias para o funcionalismo, mas diferenciação. Os funcionalistas se
1
“Reconhecemos uma profissão como uma vocação, fundada num treinamento intelectual prolongado e
especializado que capacita ao exercício de um serviço particular”. (1934, p. 478) (tradução livre) No original:
“We recognize a profession as a vocation founded upon prolonged and specialized intellectual training which
enables a particular service to be rendered.”
2
Dubar (2005, p. 171), citando Heilbron, destaca “a grande semelhança” do verbete “Profession” de 1934, feito
por Carr-Saunders e Wilson, com o de 1968, feito por Parsons.
8
preocupam eminentemente com o funcionamento da estrutura social e não com os processos
históricos de formação da estrutura.
Em relação ao processo de profissionalização, a dimensão do conhecimento é a mais
importante para Parsons. O funcionalismo parsoniano liga profissão a trabalho e educação,
porque a formação é a integração do profissional ao corpo social para o desempenho de sua
função. O processo de profissionalização tem a função de garantir a coesão social e a
socialização dos profissionais. Para ele, a universidade moderna é a base das profissões e, por
isso, os profissionais são verdadeiros vocacionados a desempenhar uma missão na sociedade e
não meros negociantes. “Ao contrário dos negócios [...] as profissões são marcadas pelo
‘desprendimento’”3. (Parsons, 1939, p. 458 – tradução livre)
As diferenças (de prestígio, remuneração e autonomia) entre as profissões decorrem,
segundo ele, da competência do grupo profissional na realização de suas tarefas. Com isto, ele
acaba dividindo profissões (sentido mais nobre) de ocupações (sentido menos nobre). Toda
profissão é uma ocupação, mas nem toda ocupação é uma profissão. A profissão teria a
preocupação de devolver à sociedade os conhecimentos desenvolvidos, e ocupa o topo da
estratificação ocupacional.
William J. Goode, outro funcionalista4, desenvolve um pouco mais a idéia de
diferença entre as profissões ao definir o processo de profissionalização como o
desenvolvimento de um corpo abstrato de conhecimentos. Aqui se coloca a questão da
identidade social das profissões, processo de socialização e formação da identidade do grupo
profissional, discutindo a relação entre grupo profissional e sociedade. Rodrigues afirma que,
segundo Goode,
A sociedade concede às profissões autonomia em troca da capacidade de controlo;
recompensas e prestígio em troca de competência; monopólio através de licenças em
troca das melhores prestações ou serviços. É a sociedade que confere poder às
comunidades profissionais, que oferecem como contrapartida principal uma procura
constante de elevação dos níveis de formação dos seus membros. (2002, p. 10, 11)
O controle social sobre as profissões, para Goode, é feito pelos próprios grupos
profissionais, numa espécie de concessão feita pela sociedade como um todo para os grupos
3
No original: “But by contrast with business in this interpretation the professions are marked by
‘disinterestedness’”
4
Dubar (2005, p. 175) e Rodrigues (2002, p. 10) concordam que Goode seja um dos mais importantes pupilos de
Parsons.
9
profissionais. Goode trata os grupos profissionais organizados como comunidades
homogêneas que desempenham papéis intermediários entre a sociedade e as profissões.
Barbosa chama a atenção para o fato de que “a base dessa homogeneidade é o longo período
de treinamento ao qual os seus membros são submetidos”. (1993, p. 185) Este treinamento
profissional seria responsável pela transmissão e reprodução dos valores profissionais.
A abordagem de Goode sobre o controle social das profissões aponta para um aspecto
duplo na relação sociedade-profissões: a sociedade mantém o controle sobre os profissionais,
que desempenham funções específicas no corpo social, e os grupos profissionais protegem os
profissionais da sociedade como um todo.
Robert King Merton é também um sociólogo funcionalista, mas devemos considerar
que ele tentou incorporar em sua abordagem algumas discussões realizadas por Freud e por
Weber e seus seguidores. Embora ele tenha sido influenciado pela leitura que Parsons fazia de
Weber, afinal Parsons traduziu para o inglês a obra do autor alemão e foi professor/orientador
de Merton, deu um passo à frente na abordagem funcionalista ao distinguir funções
manifestas de funções latentes.
Para Merton um grupo social, as profissões, por exemplo, cumpre funções objetivas,
esperadas, manifestas, para os membros do grupo ou mesmo para o sistema social ou cultural
como um todo. Mas além de cumprir sua função manifesta, a função à qual se destina ou que
se espera, o grupo social pode cumprir funções latentes, funções não intencionadas pelo grupo
ou mesmo desconhecidas do próprio grupo. Segundo ele, os sociólogos só faziam análises do
visível, dos fatos objetivos da vida social, deixando de lado os fenômenos sociais não
esperados ou não reconhecidos pelo grupo social estudado. “O conceito de função latente
amplia a atenção do observador para mais além de se saber se a conduta consegue ou não a
sua finalidade confessada”. (Merton, 1970, p. 131)
Pensando especificamente as profissões Merton mostra, usando para isso a medicina,
que a vocação de servir à sociedade (o ideal de prestação de serviço à sociedade) que o
médico teria, e que começa a se aperfeiçoar numa longa formação, segue paralelamente a uma
segregação social dos não vocacionados. Se a formação profissional permite a socialização
dos futuros profissionais nos valores de serviço à sociedade, uma vez com o diploma na mão
os agora profissionais o utilizariam também como forma de se distinguir dos nãoprofissionais, daqueles que não enfrentaram o longo e difícil percurso da formação. A
10
formação profissional, ao mesmo tempo em que iguala os formandos (função manifesta),
estabelece uma hierarquia entre eles e os não-profissionais, ou falsos profissionais, depois de
formados (função latente).
Assim, de “profissão” aberta a todos os que sentem a vocação para a realização de
um ideal do serviço (função manifesta), o grupo profissional passa a ser, nesse
modelo, uma “organização fechada”, preocupada antes de tudo com sua própria
reprodução (função latente). (Dubar, 2005, p. 195)
Merton ainda não analisa esta relação como uma relação de luta por poder, mas como
contradições da formação profissional. A função manifesta e a função latente não são
excludentes e podem ser identificadas num mesmo objeto de pesquisa. Merton também vai
dar atenção aos intelectuais na burocracia e ao papel das associações profissionais, como
veremos no capítulo 2.
Andrew Abbott é outro autor que não chega a romper com o funcionalismo, embora
tenha se afastado um pouco mais dos funcionalistas em sua teoria dos sistemas profissionais,
chegando a introduzir uma noção de competição. Para Abbott, a divisão do trabalho está dada
e os grupos profissionais lutam por áreas específicas da divisão do trabalho. O sistema
profissional se assemelha a um sistema funcional. Só que o instrumento de organização da
disputa no sistema profissional é o grau de abstração do conhecimento que a profissão
controla. Quanto mais abstrato o conhecimento, maior o poder da profissão. O grau de
abstração do conhecimento profissional é uma medida da probabilidade de um grupo
profissional vencer uma disputa com outro grupo profissional. Rodrigues, elencando os cinco
principais pressupostos da teoria de Abbott, aponta como item quatro que
o principal recurso na disputa jurisdicional, e a característica que melhor define
profissão, é o conhecimento abstracto controlado pelos grupos ocupacionais: a
abstração confere capacidade de sobrevivência no competitivo sistema de profissões,
defendendo de intrusos, uma vez que só um sistema de conhecimento governado por
abstracção permite redefinir e dimensionar novos problemas e tarefas. (2002, p. 94)
Profissões que não conseguem tornar o seu corpo de conhecimentos suficientemente
abstrato tendem a desaparecer. Para melhor entender as relações sociais que um grupo
profissional estabelece com seus conhecimentos, Abbott cria o conceito de jurisdição.
Jurisdição é uma espécie de laço entre o grupo profissional e seus conhecimentos específicos.
Como há campos de conhecimentos da divisão do trabalho que estão sendo disputados por
mais de um grupo profissional, o autor afirma que estará configurado aí um conflito
11
jurisdicional. Assim como Parsons e os demais funcionalistas, Abbott chama a atenção para a
importância da educação (conhecimento) na autonomia dos grupos profissionais.
1.2 A CONTRIBUIÇÃO INTERACIONISTA
Os chamados interacionistas, provenientes, sobretudo, da Escola de Chicago, também
contribuíram para a sociologia das profissões, principalmente no aspecto metodológico. Os
principais autores dessa abordagem são Hughes e Freidson.
Everett Hughes faz uma aproximação interessante das profissões com as religiões, mas
que em alguns momentos parece mais poético que sociológico, sem desmerecimento da
importância da poesia. Para ele, há profissão essencial à sociedade (sagrada) e sociedade
essencial à profissão (profana). Quer dizer, há profissões que desempenham funções
essenciais e outras que desempenham funções secundárias na sociedade. Para estas últimas
parece até que a sociedade é mais importante para ela do que ela para a sociedade. Quem
define o que é ou não “sagrado” é a própria sociedade, segundo ele. É a sociedade também
que autoriza o exercício profissional pela distribuição da licença para atuação, que pode ser
simbolizado pelo diploma, e que determina o mandato social dos profissionais, sua missão.
Hughes segue discutindo os problemas relacionados às profissões fazendo sempre um
paralelo com as religiões, onde ele trata de ritual, iniciação, disciplina, conversão... Mas a
maior contribuição da abordagem interacionista é a possibilidade de análise da socialização
do profissional. Esta socialização profissional não está restrita à formação profissional, como
nos funcionalistas, mas acontece também na atuação profissional, no mercado de trabalho,
através de três olhares: um olhar para o outro (profissional), um olhar para a estrutura
(profissional) e um olhar para si mesmo (como profissional). Fica marcada a relevância da
subjetividade do profissional para Hughes, psicologizando, de certa maneira, a abordagem
sociológica das profissões. Dubar afirma que o interesse desta abordagem “reside menos na
originalidade e no rigor do ‘modelo’ apresentado do que em sua fecundidade operacional”.
Afirma ainda que,
Hughes e os sociólogos às vezes agrupados sob o rótulo de “escola de Chicago”
tiveram o grande mérito de vincular estreitamente o universo do trabalho aos
mecanismos de socialização. [...] Hughes enfatiza o fato essencial de que o “mundo
vivido do trabalho” não podia ser reduzido a uma simples transação econômica (a
utilização da força de trabalho em troca de um salário): ele mobiliza a personalidade
individual e a identidade social do sujeito, cristaliza suas esperanças e sua imagem
de Si, engaja sua definição e seus reconhecimentos sociais. (2005, p. 184, 186, 187)
12
Como o funcionalismo restringe a possibilidade de análises empíricas, uma vez que o
indivíduo não exerce papel relevante para aquela corrente teórica, o interacionismo, que
valoriza o poder criativo dos indivíduos, apresenta melhor capacidade metodológica para a
análise empírica. O interacionismo está preocupado com análises qualitativas, criando
inferência a partir dos fatores para o surgimento de um fenômeno social. Por isso, para os
interacionistas é preciso que se escolha uma margem de diferenças qualitativas (diferentes
profissões, por exemplo), considerando a regularidade das diferenças.
Embora Eliot Freidson seja também considerado um interacionista, rótulo que ele
mesmo rejeita, ainda mantém algumas características funcionalistas, como veremos. Para o
interacionismo o estudo de caso deve ser feito comparativamente, comparando profissões,
como já dissemos. Uma vez que os funcionalistas consideravam os indivíduos sem poder
criativo, suas análises das profissões corriam o risco de reprodução das ideologias
profissionais. Barbosa afirma que
Se esta abordagem (o funcionalismo) teve o mérito inegável de “construir os
princípios de coerência do conjunto de características das profissões, isto é, uma
teoria do funcionamento, e mesmo da gênese, dos grupos profissionais” (Chapoulie,
1973, p. 91 – grifo da autora), ela pode ser criticada por uma proximidade excessiva
ao seu objeto. (1999, p. 186, 187)
Freidson (1975) questiona justamente as ideologias profissionais ao tentar entender
empiricamente a relação entre médicos e pacientes em seu livro Profession of Medicine,
embora ele mesmo às vezes pareça não resistir a estas ideologias. Freidson promove um maior
afastamento do sociólogo para com o objeto de pesquisa (profissões) do que os funcionalistas,
mas ainda mantém algumas características funcionalistas, como veremos.
No entanto, no que há de interessante nesta corrente teórico-metodológica, há também
de problemático, porque o interacionismo não prescinde totalmente do funcionalismo, razão
pela qual se poderia colocar Freidson junto com os funcionalistas5. Isso porque para o
interacionismo o indivíduo escolhe numa estrutura social dada. A estrutura social não é
questionada ou discutida. A preocupação do interacionismo é com a relação entre indivíduos
num determinado espaço social, e não com o processo de formação social das organizações,
das instituições e mesmo da estrutura de relações sociais.
5
Barbosa (1999) classifica o trabalho de Freidson como “paradigma funcional fraco” porque ele mantém uma
certa divisão do trabalho como “limitador da capacidade de agência das profissões” e porque não problematiza o
poder nas competições profissionais.
13
Freidson trabalha com identidades profissionais, mas ainda não no sentido de
identidades coletivas, discutindo as diferenças intraprofissionais. Para ele, os excluídos de um
grupo profissional são aqueles que não tiveram competência para entrar ou se manter no
grupo. Embora ele sinalize com um processo de disputa intraprofissional, o poder ainda não
aparece como um problema, mas como decorrência do conhecimento que a profissão
acumula. O poder dos médicos na sociedade americana, por exemplo, decorreria de sua
competência, e serviria para garantir a homogeneidade do grupo profissional, o que de certa
maneira apresenta uma função social para o poder profissional: organizar e controlar a
atuação profissional e garantir a felicidade e o bem geral da sociedade.
Se Abbott permitiu o questionamento das disputas interprofissionais, embora para este
a disputa ainda acontecesse em termos cognitivos, Freidson permitiu a análise de disputas
intraprofissionais. Principalmente quando dá ouvidos aos próprios profissionais na
investigação de seus dilemas e conflitos para a construção das identidades profissionais. O
método qualitativo largamente utilizado pelos interacionistas acaba privilegiando um olhar
sociológico sobre a construção interna do grupo profissional a partir de suas lutas identitárias.
O problema desse tipo de investigação é que muitas vezes ele reproduz a ideologia do grupo
profissional, já que o próprio grupo estará sendo entrevistado. Embora o interacionismo tenha
emprestado importante contribuição para análise dos grupos profissionais, são os weberianos
que irão impactar a sociologia das profissões ao enfocar o poder profissional, explicitando
suas ideologias e seus projetos.
1.3 PROFISSÕES E PODER
As abordagens teóricas que associam profissões a poder descendem da linha
weberiana de pesquisa e análise. Para Weber, profissão era “aquela especificação,
especialização e combinação dos serviços de uma pessoa que, para esta, constituem o
fundamento de uma possibilidade contínua de abastecimento ou aquisição”. (1999, p. 91) A
definição weberiana de profissão destaca a capacitação (“especialização”), o individualismo
metodológico (“uma pessoa”) e a competição (“possibilidade contínua de abastecimento ou
aquisição”). A profissão seria o meio do indivíduo capacitado se inserir no mercado para
satisfazer suas necessidades materiais (“abastecimento”) ou imateriais (“aquisição”).
Aquisição pode subentender posições sociais, honras, títulos, enfim, poder social.
14
Os autores que serão apresentados agora, e que servirão de base para as análises que
faremos das profissões jurídicas na sociedade brasileira, são representantes da tradição
weberiana. Preferimos apresentar as principais abordagens teóricas por autor, em vez de por
tema/afinidade, para ficar de uma maneira que julgamos mais didática. Ademais, como já
dissemos, já há um tema em comum entre os autores apresentados: o poder. Podemos dizer
que o poder é algo que aparece em todos eles como uma categoria unificadora, doadora de
sentidos, e diferenciadora, estabelecendo os limites entre os que estão dentro e os que estão
fora das disputas e honras prezadas pelos profissionais. As profissões se estabelecem como
unidade integradora e excludente ao mesmo tempo, cumprindo a dupla função de fechar os
grupos profissionais em si e estabelecer a competição com os outros grupos profissionais. O
poder das profissões estaria exatamente na capacidade de doar sentido aos que pertencem ao
grupo profissional e estabelecer a dominação de um grupo sobre outros e sobre a sociedade.
Mas cada autor apresentado contribui de maneira específica para uma análise sociológica do
poder profissional.
Numa perspectiva histórica da importância das abordagens teóricas de matizes
weberianas para a sociologia das profissões, podemos afirmar que Terence Johnson (1972) foi
um dos primeiros autores a relacionar profissões a poder. O título sugestivo de seu livro,
Professions and Power, já aponta esta tentativa do autor relacionar as profissões a uma lógica
de competição por poder social. Rodrigues vai além e afirma que
Com a contribuição de Johnson pode dizer-se que se inicia uma nova fase marcada
pela preocupação de alargamento do campo de observação, isto é, passar da visão
internalista das profissões para o estudo em simultâneo das interações estabelecidas
com o exterior, a estrutura de classes da sociedade envolvente e, sobretudo, o
Estado. (2002, p. 50)
Johnson insere o poder alcançado pelas profissões numa dimensão maior de luta por
poder na estrutura das classes sociais6. Para ele, a separação entre economia e política está no
fundamento do poder alcançado pelos grupos profissionais, mascarando a expansão capitalista
6
Ao falar em classes sociais, precisamos dizer também que a importância do marxismo para as ciências sociais
durante quase todo o século XX não pode ser desconsiderada como fator que também contribuiu para um olhar
sociológico sobre as profissões. Por um tempo a sociologia das profissões discutia as classes médias antes
mesmo de discutir as profissões porque as profissões eram vistas como locus de atuação das classes médias, que
atuavam, principalmente, como profissionais liberais ou na estrutura burocrática do estado. De uma perspectiva
marxista, os grupos profissionais respondem a uma divisão econômica do poder em classes sociais, ficando as
classes médias entre a burguesia e o proletariado. No passado, as teorias de classes eram as mais utilizadas para
estudo de desigualdades. Com o avanço das teorias de estratificação, concomitante à perda de prestígio do
marxismo no plano teórico, as teorias de classes foram perdendo espaço na análise sociológica. Sobre o tema da
relação das classes médias com as profissões, cf. Grusky; Sorensen (1998) e Barbosa (1998).
15
sob a marca do profissionalismo. Sua abordagem mistura marxismo com aspectos da
sociologia weberiana, como vai acontecer também com Larson.
Magali S. Larson (1977), entende a profissionalização como uma estratégia para
conquistar poder, prestígio e renda na sociedade. Esta estratégia se desenvolve
simultaneamente na ordem econômica, defendendo um monopólio legal de atuação num
mercado profissional, e na ordem sócio-simbólica, promovendo o status social da profissão.
Para ela, as profissões são uma forma de organização da desigualdade social nas sociedades
modernas e de imposição da perspectiva dos grupos dominantes sobre os demais grupos
profissionais. Barbosa reforça este ponto afirmando que segundo Larson “com o
fortalecimento das profissões inaugura-se uma nova forma de desigualdade estrutural”.
(1993b, p. 8)
Na estrutura de estratificação social as profissões lutam por remuneração e prestígio.
As lutas profissionais às vezes são perceptíveis, outras não, mas elas existem e demarcam
territórios de poder político e econômico, de identidades e desigualdades. Como o grupo
dominante consegue impor as regras do jogo social para os outros grupos, organizando e
controlando o acesso ao conhecimento e às profissões, a profissionalização acaba se
resumindo numa tentativa de conversão de recursos escassos (qualificação) em outra ordem
de recursos (econômicos e de poder). Larson dá ênfase ao controle da produção da expertise,
valorizando a formação.
O principal instrumento de avanço da profissão, mais do que o altruísmo
profissional, é a capacidade de reivindicar habilidades esotéricas e identificáveis –
que é para criar e controlar uma dimensão cognitiva e técnica. (Larson, 1977, p. 180
– tradução livre)
Para ela, o controle sobre a dimensão cognitiva, controle do sistema de ensino, e sobre
a dimensão mercadológica, fechamento do mercado, são fundamentais para a tomada do
poder profissional e para a realização de um projeto coletivo de mobilidade social. O
fechamento do mercado serve para que as profissões criem “necessidades” por seus serviços
e, com isso, tornem-se indispensáveis à sociedade. As profissões controlam a produção e
satisfação de “necessidades” sociais.
Larson dá uma outra grande contribuição à sociologia das profissões ao analisar a
relação entre burocracia e profissões. Mas vamos deixar esta parte para o próximo capítulo.
16
O sociólogo americano Randall Collins (1989) parte de uma análise da relação entre
educação e estratificação e discute as profissões como grupo de status. Educação e economia
são as duas grandes áreas temáticas utilizadas por ele para tentar entender se a educação
contribui para o desenvolvimento econômico de uma sociedade, particularmente a sociedade
norte-americana. Para Collins, as sociedades modernas vão de um sistema de privilégios a
uma meritocracia técnica. Mas ele diminui a importância da educação, do conteúdo do ensino,
na estratificação econômica de uma sociedade moderna. Ele chega a afirmar que a educação é
não só irrelevante para a colocação do indivíduo no mercado de trabalho, como às vezes é até
contraproducente.
Collins vê a meritocracia como uma ideologia7 posta em marcha principalmente pela
classe média e que serve para fazer uma seleção por classes sociais para o mercado de
trabalho. Ninguém mais do que a classe média assumiu o discurso meritocrático como
“verdade”, principalmente porque representaria a possibilidade de mobilidade social da
própria classe média. A classe média, mais do que as outras classes, freqüentou as escolas e se
empenhou em tornar universal e absoluto a ideologia de uma sociedade em que os mais
qualificados teriam seu posto de trabalho garantido e acesso às maiores remunerações. E se
empenhou tanto, principalmente, porque não dispunha de outros recursos, sociais ou políticos,
para alcançar mobilidade social ascendente. E toda vez que se invoca o fator educacional
(qualificação) como fator de seleção para o mercado de trabalho, está-se selecionando entre a
própria classe média. (p. 42) Ele afirma que os certificados são mais valorizados que os
conhecimentos, propriamente ditos. Os certificados seriam as credenciais para atuação
profissional numa sociedade meritocrática, que ele chama de sociedade credencialista. O
sistema de distribuição de credenciais educacionais tem sido o grande catalisador do
desenvolvimento econômico dos Estados Unidos e de expansão das profissões, segundo o
autor.
Mas para ele, só as credenciais (certificados) não bastam para encontrar um posto no
mercado de trabalho, é preciso também se apropriar de uma cultura profissional adequada,
que passa pela identificação entre a cultura escolar (incorporada na faculdade) e a cultura do
empregador. Ele argumenta que o empregador não quer correr riscos nem colocar sua
empresa em risco contratando profissionais que não tenham a cultura escolar com a qual ele
7
Para melhor entender os vários aspectos sociológicos sobre a meritocracia, o que inclui a ideologia
meritocrática, e sobre a “meritocracia à brasileira”, ver Barbosa, 2001, p. 21-103.
17
se identifica. O que mais uma vez retomaria o ponto central de sua tese de que não basta ter
conhecimento, nem qualquer credencial, em suma, que a educação não é tão relevante para a
seleção profissional. Ou melhor, “a educação será mais importante onde a correspondência
seja maior entre a cultura dos grupos de status que surgem das escolas e o grupo de status que
contrata os trabalhadores; será menos importante onde exista uma certa disparidade entre a
cultura educativa e a dos empregadores”8. (1989, p. 46 – tradução livre) Então, ser membro de
um grupo cultural (profissional) é a melhor arma para lutar por uma boa colocação no
mercado de trabalho. Collins também chama atenção para o poder das associações
profissionais na monopolização do mercado de atuação profissional, como veremos em lugar
adequado.
Analisando especificamente a medicina norte-americana, Paul Starr (1991) também
chega a algumas possibilidades de análises das profissões que foram importantes para a
sociologia das profissões como um todo. A contribuição de Starr pode ser identificada com o
conceito de autoridade cultural. Tomando emprestado de Hannah Arendt a noção de
autoridade para tentar entender de onde vem a autoridade cultural, o poder econômico e a
influência política que os médicos têm na sociedade norte-americana, Starr indica um
interessante caminho para pensar a profissionalização como processo de controle profissional.
Partindo das distinções feitas por Arendt9 entre autoridade, poder, força e violência,
Starr entende autoridade como meio mais eficaz de controle, e suas raízes estariam na
legitimidade e dependência. “A primeira está apoiada na aceitação, por parte do subordinado,
da idéia de que deve obedecer; a segunda, na previsão das conseqüências desagradáveis que
poderá acarretar a sua desobediência”.
10
(Starr, 1991, p. 23 – tradução livre) Para ele,
autoridade requer submissão voluntária a alguém, ou alguma coisa, que tenha, efetivamente,
legitimidade para submete-lo. Em outras palavras, a autoridade seria um casamento entre
legitimidade (para o exercício da autoridade) e submissão (ao exercício da autoridade). Não se
poderia ter autoridade sem este binômio.
8
No original: “Así, la educación será más importante donde la correspondencia sea mayor entre la cultura de los
grupos de status que surgen de las escuelas y el grupo de status que contrate a los trabajadores; será menos
importante donde exista uns cierta disparidad entre la cultura educativa y la de los empleadores.”
9
Essa distinção feita por Arendt está no livro “Crises da República”.
10
No original: “La primera descansa em la aceptación por parte del subordinado de la pretensión de que debe
obedecer; la segunda en la previsión de las consecuencias desagradables que tendrá no obedecer”.
18
Aplicando este conceito às profissões, ele afirma que o conhecimento seria a base
principal da autoridade profissional. Afirma ainda que os mais ricos e instruídos validam a
competência dos profissionais porque conseguem dialogar com o profissional, no caso o
médico, e identificar se ele tem competência, conhecimento e credenciamento, ou não.
Segundo ele, os ricos vão ao médico voluntária e freqüentemente. Já os mais pobres vão ao
médico compulsivamente, quando sentem alguma coisa, e não conseguem dialogar com o
médico, não sobrando outra alternativa senão submeter-se ao parecer médico. Os ricos se
submeteriam aos médicos por crença, na medicina e na capacidade do médico, e os pobres,
por dependência, por necessidade.
Utilizando o conceito weberiano de dominação como sinônimo de autoridade Starr
mostra que autoridade (dominação) para Weber tem uma dimensão social e que para analisar
as profissões seria preciso pensar numa dimensão cultural. Para isso, ele cria o conceito de
autoridade cultural. A essência seria a mesma do conceito weberiano de dominação, com a
diferença de que a autoridade social se aplicaria somente aos atores sociais, enquanto a
autoridade cultural se aplicaria também a produtos culturais, como obras de referência,
conhecimentos científicos, leis etc. Os conceitos de autoridade cultural e autoridade social não
seriam excludentes para Starr: freqüentemente o médico tem autoridade cultural (e o fato de
que ele é procurado, consultado, seria uma prova dessa autoridade cultural), mas não tem
autoridade social (visível, por exemplo, em sua incapacidade de impor determinado
tratamento a um paciente que se recuse a faze-lo). A autoridade cultural das profissões
serviria tanto à ordem social quanto aos profissionais.
Para Starr, a autoridade profissional se baseia: 1. na validação da competência (no
sentido de estar apto e de ser capaz) do profissional pela comunidade de seus pares; 2. em que
os fundamentos da competência profissional sejam racionais e científicos; 3. que haja uma
orientação de condutas para valores essenciais. Este último ponto fica mais em aberto na
possibilidade de interpretação do argumento do autor, porque ele defende a existência de
valores essenciais. Mas quais seriam esses valores essenciais? Essenciais pra quem? Para não
deixar de tentar entender o autor, podemos arriscar a dizer que o autor considera como
“valores essenciais” uma atuação profissional que sirva à sociedade como um todo. Ele parece
manter em seu conceito de autoridade cultural o ideal de serviço das profissões em prol do
corpo social, típico dos funcionalistas. Arriscamos esta interpretação porque no texto Starr
define profissão enfatizando aspectos típicos de diferentes escolas sociológicas em seu
19
enunciado: auto-regulação, capacitação universitária, conhecimento técnico-científico e
orientação para o serviço e não para o ganho pecuniário. (1991, p. 30)
A luta das profissões médicas nos Estados Unidos por autoridade cultural e mobilidade
social resultou na conquista não só dos objetivos pretendidos como também na conquista do
controle de mercado, de organizações profissionais e políticas governamentais, segundo o
autor. A autoridade cultural da medicina fora convertida em privilégios. Em outras palavras,
houve uma conversão da autoridade cultural conquistada pelos médicos num longo processo
histórico-estrutural em poder econômico e influência política nos Estados Unidos. A
institucionalização da medicina na sociedade norte-americana trouxera ganhos sociais,
econômicos e políticos para as profissões médicas e seus profissionais.
A principal mudança da medicina do século XIX para a do século XX foi a
institucionalização da medicina, no sentido da institucionalização do saber médico (que
passou a ser vinculado às faculdades de medicina) e das profissões médicas (que passou a ter
associações de representação dos seus interesses, que conquistaram, por exemplo, o
monopólio de atuação). Vamos aplicar o conceito de autoridade cultural quando analisarmos o
poder do Ministério Público na sociedade brasileira após 1988.
Outro importante autor de linha weberiana que ajuda a discutir o poder das profissões
nas sociedades modernas, embora não seja considerado um autor especificamente de
sociologia das profissões, é Norbert Elias11. A sociedade para Elias é um conjunto de
indivíduos interdependentes, mostrando que os indivíduos estão ligados uns aos outros por
teias de inter-relações, desempenhando funções diferenciadas.
Cada pessoa singular está realmente presa; está presa por viver em permanente
dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas,
assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que a
prendem. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São
mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e decerto não
menos fortes. E é essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em
relação a outras, a ela e nada mais, que chamamos sociedade. (Elias, 1994, p. 23)
11
René Moelker, um sociólogo holandês que analisa as profissões militares “descobriu”, no sentido de desvelar
ao público acadêmico, textos de Norbert Elias que estavam esquecidos e que tratavam especificamente das
profissões. No caso, das profissões navais. O trabalho de Moelker foi apresentado no grupo de discussões
“Sociologia das Profissões”, na 6ª Conferência da Associação Européia de Sociologia (ESA), em Murcia,
Espanha, 2003, sob o título “Norbert Elias and the genesis of the naval profession”. Em fevereiro de 2007,
Moelker e Stephen Mennel, um dos maiores estudiosos de Elias, editaram e lançaram em livro os artigos de Elias
sobre as profissões navais. O livro saiu com o título “The genesis of the naval Profession”, pela UCD Press. Este
livro deve contribuir para divulgação da possibilidade de uma análise eliasiana das profissões.
20
Com esta idéia de sociedade, Elias foge da possibilidade de pensar uma sociedade de
estruturas, sem atores sociais históricos, e de pensar uma sociedade unicamente como produto
de interesses individuais, como se a sociedade fosse um pano de fundo das escolhas
individuais. A sociedade apresentada por Elias é histórica e complexa. A complexidade se
manifesta principalmente na distribuição das funções sociais. E função para ele não é a
realização de algo para a manutenção de um todo, mas uma relação de poder. A divisão de
funções gera competição por poder. Deste modo, a sociedade aparece como um conjunto de
indivíduos em luta por poder, o que aumenta a interdependência.
No livro A Sociedade de Corte, Elias exemplifica esta idéia de competição por poder
ao mostrar como a maior ou menor distância dos cortesãos para com o rei, caracterizava
respectivamente um menor ou maior poder dentro da corte, e como o uso dessa distância
servia de instrumento para manutenção das estruturas de poder. Neste aspecto, Elias mostra
que a etiqueta surge como um instrumento de identidade social na corte, fazendo com que as
pessoas se hierarquizem por critérios de poder. Na sociedade de corte havia uma tensão e um
conflito constante por uma aproximação do rei: a competição passa pela aceitação da etiqueta
pelos cortesãos e pelo rei, que não está acima dela, uma vez que ele também faz parte da
interdependência. Elias mostra que,
a interdependência e as correntes em torno da nobreza têm um alcance ainda maior:
o próprio rei [...] tinha interesse na manutenção da nobreza como camada distinta e
separada. Basta a indicação de que ele mesmo se considerava “indivíduo nobre”, “o
primeiro entre os nobres”. [...] Permitir a ruína da nobreza significava também, para
o rei, permitir a ruína da nobreza de sua própria casa. (2001, p. 132)
Embora o rei não esteja acima da etiqueta, ele tem uma parcela maior de poder.
Segundo Elias, “o rei se encontra numa situação única dentro da corte. Qualquer outro
indivíduo está submetido a uma pressão vinda de baixo, dos lados e de cima. Apenas o rei não
experimenta pressão alguma vinda de cima. Mas a pressão dos que ocupam um nível abaixo
do seu certamente não é insignificante”. (2001, p. 134)
Entender o conceito de interdependência em Elias passa pela necessidade de
reconhecer que este conceito tenta resolver a dicotomia indivíduo-sociedade e pressupõe as
noções de função, poder e competição. Todas elas aumentando a interdependência entre os
indivíduos. Este modelo eliasiano permite analisar as profissões pensando os profissionais
como indivíduos inseridos numa interdependência, como ele mesmo explica:
21
Não podemos abandonar o problema da interdependência de Luís XIV, mesmo
tratando-se de um soberano tão poderoso, sem acrescentar algumas palavras sobre o
significado fundamental dessa investigação. Na maneira de pensar cotidianamente,
muitas vezes parece que os súditos são dependentes do soberano, mas que a
recíproca não é verdadeira. Não é fácil mostrar que a posição social de um soberano,
por exemplo, a de um rei, surge das interdependências funcionais de uma sociedade,
exatamente no mesmo sentido que a de um engenheiro ou de um médico. (Elias,
2001, p. 154)
A partir do estudo da etiqueta como instrumento de competição por poder na
sociedade de corte, onde Elias descreve a estratificação social daquela sociedade, ele mostra
também como as etiquetas vão se modificando historicamente através de um maior controle
da conduta (autocontrole). Para ele, a era moderna se caracteriza acima de tudo por uma
mudança da conduta e sentimentos humanos que aconteceu sem planejamento com a
passagem da sociedade de corte para a sociedade moderna através de um maior controle dos
afetos e das pulsões. Segundo a perspectiva dele, “parte das tensões e paixões que antes eram
liberadas diretamente na luta de um homem com outro terá agora que ser elaborada no interior
do ser humano. O campo de batalha foi transportado para dentro do indivíduo”. (1993, p. 203)
O processo civilizador é este processo histórico de racionalização dos afetos e pulsões
que dá origem à modernidade.
Importante salientar que o processo civilizador como a
passagem de um conceito de Cultura para um conceito de Civilização, é um processo que
“aconteceu, de maneira geral, sem planejamento algum, mas nem por isso, sem um tipo
especifico de ordem”. (Elias, 1993, p. 193) Embora não haja uma razão para o processo
civilizador, este processo não é irracional. Há uma ordem nesse processo.
Elias formula uma teoria da modernidade a partir de uma mudança social ocorrida na
Europa ao longo de um processo histórico e sem planejamento dos atores sociais. A etiqueta
da sociedade de corte foi a expressão de um início de constrangimento rumo à Civilização: a
grande concentração de poder acaba favorecendo o surgimento de cerimoniais de socialização
responsáveis pela regularidade das condutas. Mas ocorre também o surgimento de novas
profissões para suprir as crescentes necessidades dos cortesãos. “O que se vê [...] é uma
profusão de criados, uma diferenciação dos serviços prestados”. (Elias, 2001, p. 65)
As profissões podem ser analisadas também segundo esta lógica, realizando uma
competição por poder, incorporando e reproduzindo as regras de competição racionalmente
instituídas, mesmo que esta competição não seja realizada conscientemente pelos indivíduos e
grupos sociais o tempo todo. As regras sociais de competição profissional, assim como as
22
etiquetas na sociedade de Corte, submetem não só as profissões menos prestigiadas da
estrutura social, mas também as profissões dominantes.
No texto em que Elias analisa as profissões navais na Inglaterra ele faz uma espécie de
reconstrução histórica, sem se preocupar muito com datas, do surgimento das profissões
navais, apenas a partir de aspectos que ele considerou importante da evolução das profissões
navais inglesas. Partindo de uma briga entre dois profissionais navais pelo comando de fato de
uma esquadra marítima financiada pelo governo inglês para dar a volta ao mundo12, Elias
mostra que mais do que desavenças pessoais estavam envolvidas na briga também lutas entre
grupos sociais distintos daquela sociedade. A briga envolveu Francis Drake, um marítimo
profissional forjado na prática, e seu ex-amigo Thomas Doughty, um gentleman da corte da
rainha Elizabeth, e aconteceu durante a viagem, resultando no assassinato de membro da
classe dominante, militar formado em boas escolas, por Drake, um membro dos grupos
sociais dominados que, na embarcação que de fato comandava, invertera a hierarquia social.
Tal briga não só expressa uma disputa num campo novo de atuação profissional como teve
conseqüências posteriores no próprio desenvolvimento das profissões navais na Inglaterra,
com a famosa separação entre profissionais formados em escolas apropriadas e os forjados na
lida.
Drake começou a viagem dividido entre os gentlemen e os marujos. Porque ele
desejava ser um gentleman e em alguns momentos “via a si próprio no papel de um
proeminente gentleman” (Elias, 2006, p. 77), mas era visto por todos como um tarpaulin ou
“um súdito de baixa extração de Sua Majestade, a rainha”, segundo citação que Elias faz da
biografia de Drake. (2006, p. 77) Elias afirma categoricamente que Drake “se encontrava,
pelo menos no início, entre ambos os lados, sem na verdade pertencer a nenhum”. (p. 80) Mas
com o decorrer da viagem as tensões entre Drake e Doughty se acirraram até que Drake
assumiu o comando de fato do navio, como esperavam os marujos (tarpaulins). Drake e
Doughty “pertenciam não apenas a grupos sociais e profissionais diferentes, mas também
concorrentes entre si”. (p. 83) Ambos os personagens agiam em conformidade com a
figuração social em que viviam, reproduzindo o ethos de seus próprios grupos sociais.
Quando chegaram à região da Patagônia, “Drake, nas palavras de seu subcomandante,
12
Doughty recebera da rainha a incumbência de comandar a esquadra numa expedição marítima, mas Drake
esperava ser o comandante porque se sentia mais capacitado para isso.
23
‘executou Thomas Doughty’” (p. 88), matando, assim, alguém de um estrato social superior
ao seu.
Recontando os primeiros passos das profissões navais na Inglaterra, Elias mostra que a
arte da navegação deveria ser exercida por pessoas que conhecessem o trabalho manual a ser
realizado num navio e, ao mesmo tempo, por pessoas que fossem hábeis diplomatas. Mas
esses atributos não eram encontrados numa mesma pessoa, senão em pessoas que advinham
de classes sociais distintas, o que representava um problema social levado para dentro dos
barcos através de desentendimentos pessoais e profissionais. A briga de Drake e Doughty foi
expressão da desigualdade de suas origens sociais, principalmente porque gentlemen não
realizavam trabalhos manuais e marujos não comandavam embarcações. Ao longo dos
séculos esta briga foi perdendo sentido na história das profissões navais à medida que as
diferenciações sociais foram mudando13 e as escolas de formação naval passaram a incorporar
em seus currículos a necessidade dos dois tipos de formações exigidas para a boa prática
profissional14.
Mais do que analisar um caso concreto de surgimento de uma nova profissão no século
XVI, Elias propõe, como lhe é peculiar, uma teoria geral para estudo da gênese de uma
profissão ou outra instituição. Para Elias, “o conflito é uma das características básicas de uma
instituição nascente”. (2006, p. 110) Esses conflitos se dão no interior da nova profissão e
entre profissões, numa tentativa de firmar posições de poder nas e das novas instituições. Se
Elias vê os conflitos como condição sine qua non da vida em sociedade, é nas instituições, nas
profissões, por exemplo, que eles se materializam. O estudo das profissões para Elias é a
análise, sobretudo, de conflitos profissionais. Elias ao tentar definir profissões afirma que:
profissões, despojadas de suas roupagens próprias, são funções sociais
especializadas que as pessoas desempenham em resposta a necessidades
especializadas de outras; são, ao menos em sua forma mais desenvolvida, conjuntos
especializados de relações humanas, O estudo da gênese de uma profissão, portanto,
não é simplesmente a apreciação de um certo número de indivíduos que tenham sido
os primeiros a desempenhar certas funções para outros e a desenvolver certas
relações, mas sim a análise de tais funções e relações. (2006, p. 89)
13
“No curso do século XX, ‘gentleman’ tornou-se um termo genérico, vago, que se refere mais à conduta que à
posição social. (...) durante os séculos XVII e XVIII, no entanto, tinha um significado social muito estrito.
Tratava-se, durante o período de formação da profissão naval, da marca distintiva dos homens das classes altas e
de algumas porções das classes médias, uma designação que os diferenciavam do restante do povo”. (Elias,
2006, p. 92)
14
Para Elias, “o novo processo de guerra marítima criou a necessidade de haver pessoas que, em uma nova
esquadra, fossem marinheiros e militares ao mesmo tempo”. (2006, p. 95)
24
Nota-se que a noção de interdependência, vista na definição que Elias faz de
sociedade, é tão importante para sua perspectiva teórico-analítica que reaparece aqui em sua
definição de profissões, colocando o desempenho da atividade profissional como destinada a
atender a “necessidades especializadas de outras” pessoas. No verbete “professions”, escrito
por Elias mais de dez anos após a publicação de seu artigo sobre profissões navais, ele já
incorpora à definição de profissão, além da necessidade de formação adequada e da existência
de competições profissionais, o papel das associações profissionais para mediação das lutas
profissionais, estabelecendo os limites e possibilidades das próprias profissões, bem como
para o condicionamento do ethos dos profissionais. (1964, p. 542)
Outra maneira de analisar as profissões utilizando a teoria de Elias é pensar as lutas
profissionais a partir da figuração estabelecidos/outsiders. Os estabelecidos não seriam apenas
os “melhores”, os donos da situação, eles, de alguma maneira, fazem com que os outsiders se
vejam como inferiores, penetras, excluídos. Elias apela para uma característica de construção
psico-cultural do estigma dos excluídos, dos outsiders, que afetaria a auto-estima do grupo e
dos indivíduos membros do grupo. A inferiorização de um grupo se dá sempre numa relação
de interdependência entre os dois (ou mais) grupos que compõem a luta pelo poder social. O
contato de membros do grupo estabelecido com membros dos outsiders desqualificaria os
primeiros diante de seus pares, como se eles pudessem ser contaminados pela inferioridade e
mediocridade dos segundos. Quando a coesão e o poder do grupo estabelecido são altos, os
indivíduos estabelecidos dão valor à opinião dos outros membros de seu próprio grupo, e
retiram valor, ou tornam-se indiferentes, às opiniões dos outsiders, inclusive evitando-os.
O que produziria esta relação conflituosa entre estabelecidos e outsiders seria a
intolerância para com o diferente, seja ele pobre, rico, branco, negro, amarelo, magro, gordo,
jovem, idoso, estrangeiro, homem, mulher, homossexual etc. Com as categorias sociológicas
em questão (estabelecidos e outsiders), Elias permite analisar como as desigualdades sociais
se estabelecem psicológica e culturalmente nas relações sociais, servindo de suporte para a
reprodução das desigualdades materiais.
A estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders,
associa-se, muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo
estabelecido. Ela reflete e, ao mesmo tempo, justifica a aversão – o preconceito –
que seus membros sentem perante os que compõem o grupo outsider. [...] o estigma
social que seus membros atribuem ao grupo dos outsiders transforma-se, em sua
imaginação, num estigma material – é coisificado. (Elias, 2000, p. 35)
25
Para Elias, o que estaria por trás da relação entre estabelecidos e outsiders seria uma
luta pelas chances de poder, que geraria, inconscientemente, embora não irracionalmente, uma
identidade social binária do tipo “nós” e “eles”. Isto tem um quê de doentio, segundo sua
perspectiva, pois, “um ideal do nós hipertrofiado é sintoma de uma doença coletiva” (p. 43,
44). E ele mesmo apresenta uma solução para esta patologia social ao lembrar, no posfácio à
edição alemã, que a redução da desigualdade nos ou entre os grupos humanos estaria
diretamente ligada à capacidade de redução do temor recíproco, individual e coletivo, dos
estabelecidos e outsiders. A abordagem eliasiana será chave para a interpretação da relação
entre MP e Defensoria Pública no Rio de Janeiro, como veremos no capítulo 4.
Por fim, Pierre Bourdieu entende uma profissão como um grupo social dotado de
recursos sociais específicos para delimitar seu próprio campo no espaço social. Estes recursos
sociais são desenvolvidos e utilizados em duas vertentes ao mesmo tempo: institucional e
individual. Nestes dois eixos pode-se pensar: 1. a força e a importância que as instituições têm
no processo de criação identitária das profissões e; 2. como os indivíduos naturalizam suas
“visões de mundo” profissionais. Para Bourdieu, a construção do mundo está diretamente
ligada à construção de uma “visão de mundo”. E a construção de “visões de mundo” próprias
às profissões e aos profissionais é atributo das profissões enquanto ator coletivo, como
veremos mais à frente em relação ao direito. Para ele, o simbólico é parte do real. O simbólico
é tão vivo quanto o real. Retomaremos de maneira mais aplicada a teoria de Bourdieu no
capítulo 2 para apresentar e analisar as principais questões relacionadas ao campo do direito.
A abordagem bourdieusiana foi importante para o desenvolvimento recente de uma sociologia
das profissões jurídicas.
1.4 SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES JURÍDICAS
As primeiras preocupações acadêmicas com as profissões jurídicas aconteceram já na
segunda metade do século XIX. Mas até o primeiro quartel do século XX os interesses nas
profissões jurídicas ainda estavam centrados na qualidade do ensino jurídico (Brewer, 1896),
na consolidação das profissões jurídicas no mercado de trabalho como um campo de atuação
intelectualmente fecundo e economicamente próspero (Sweet, 1890) e com a ética dos
profissionais (Abbott, 1892; Abbot, 1902). As análises sobre as profissões jurídicas ainda
tinham um caráter mais histórico (Tempany, 1885) e prospectivo (Roscoe, 1885; Randall,
1903) e eram feitas quase sempre por juristas que eram também entusiastas das ciências
sociais. A partir de finais do século XIX e início do XX, seguindo uma linha funcionalista de
26
análise, Blackwell (1895), Platt (1903) e Andrews (1908), entre outros, começaram a
questionar se as profissões jurídicas não estavam se mercantilizando e, portanto, se afastando
do que era considerado um nobre objetivo de luta pela realização do direito, negligenciando o
aspecto vocacional da profissão.
Este tipo de análise foi recorrente ao longo de todo o século XX, seguindo a tendência
também encontrada entre os sociólogos funcionalistas. Basta lembrar dos trabalhos de outros
juristas como Snively (1934), Mc Calpin (1983), Armstrong (1987) e Bowie (1998), sobre a
indefinição dos limites entre profissão e negócio no mundo do direito. Trata-se de uma
discussão que assume um ponto de vista conservador, idealizando as profissões jurídicas e
gerando insatisfação com a realidade porque ela passa longe das expectativas idealizadas. A
profissão jurídica é idealizada como uma profissão nobre, mas, na prática, é descoberta como
um nicho de atuação para ganhar dinheiro, bastante dinheiro. Esta constatação não é bem
assimilada por quem deseja que os profissionais do direito sejam pessoas chamadas
(vocacionadas) a desempenhar sua função social, em detrimento dos ganhos auferidos com
isto. Nesta perspectiva, as profissões jurídicas têm uma espécie de missão na sociedade, lutar
pelo direito posto como única e suficiente maneira de resolução de conflitos15 e defender os
valores liberais, que fundamentam o direito moderno e as profissões jurídicas.
Quase contemporâneo de Parsons (1902-1979), talvez Roscoe Pound (1870-1964)
tenha sido o primeiro a utilizar sistematicamente a sociologia para analisar especificamente as
profissões jurídicas, embora ainda pecando pelo excesso de ideologias profissionais em suas
análises. Desde o início do século XX os textos do proeminente advogado americano Pound,
professor da Universidade de Harvard, chamavam a atenção para o tipo de formação dada aos
estudantes de direito, futuros profissionais do direito. Num artigo escrito em 1940 e publicado
no ano seguinte, Pound (1941) relaciona atuação profissional com formação acadêmica,
criticando o modelo tradicional formalista de ensino do direito nos Estados Unidos e
sugerindo que os estudantes de direito se deparassem, já na faculdade, com análises de casos
concretos que os preparasse para o exercício da profissão. As críticas que ele fez ao ensino
jurídico americano foram bem sucedidas, uma vez que a maioria dos cursos de direito nos
Estados Unidos, ao longo do século XX, passaram a adotar o modelo proposto por Pound de
estudos de caso.
15
Neste sentido, o opúsculo “A luta pelo Direito”, escrito em 1891 por Rudolph Von Ihering é emblemático.
27
No início do século XX, havia também espaço para discussões sobre a desigualdade de
gêneros no acesso às profissões jurídicas (Greig, 1909), embora não fosse muito comum. Este
tipo de preocupação analítica só foi consagrada a partir dos anos 1970, depois do movimento
feminista ocupar espaços nas sociedades, e talvez só tenha efetivamente se firmado a partir de
meados dos anos 1980, como veremos adiante.
Depois da II Guerra Mundial, a sociologia deixou um pouco de lado as profissões
jurídicas, com raras pesquisas e análises sobre o tema, só voltando a produzir análises
relevantes a partir da década de 1960 e 197016. As pesquisas realizadas pelos professores
Mauro Cappelletti, Bryant Garth, David M. Trubek e Marc Galanter, recolocaram as
profissões jurídicas no centro do debate a partir de uma abordagem mais sociológica, embora
eles estivessem mais relacionados à sociologia do direito do que à sociologia das profissões.
Os dois primeiros foram responsáveis pela pesquisa internacional sobre empecilhos ao acesso
efetivo à justiça e as soluções dadas nas diferentes sociedades. A pesquisa, conhecida como
Projeto de Florença, gerou um relatório fabuloso que foi publicado em forma de livro17 e se
tornou referência para o estudo do acesso à justiça. Numa das partes do livro os autores
sugerem mudanças nas profissões jurídicas, com a adoção de profissionais parajurídicos com
treinamento específico para solucionar determinados problemas jurídicos, como forma de
reduzir as barreiras para o acesso à justiça. Já Trubek (1992) e Galanter (1991) se dedicaram a
estudar o ensino do direito nos Estados Unidos e outros temas relacionados às profissões
jurídicas como mercado de trabalho e o direito em sociedades periféricas (Trubek, 1971;
Galanter, 1984).
Dos sociólogos do direito ninguém se dedicou tanto, e com tanto êxito, a estudar as
profissões jurídicas quanto Richard L. Abel, a partir da década de 1980. Abel (1988; 1989;
1995; 1997) destaca-se principalmente pelas coletâneas que organizou para a discussão
teórico-analítica das profissões jurídicas ao redor do mundo. Seus livros intitulados
“Advogados na Sociedade” (tradução nossa), publicados em quatro volumes, tentaram mapear
os advogados e seus papéis em tradições jurídicas tão diversas como a “Civil Law” e a
16
Vale ressaltar a importância dos movimentos de contestação do direito, ocorridos nas faculdades norteamericanas a partir da década de 1960, “Law and Society” e “Critical Legal Studies” como propulsores das
análises sociológicas do direito. Junqueira (1993, p. 38-43) esboça o panorama desses movimentos nos Estados
Unidos e sua repercussão na sociologia do direito brasileira.
17
Parte do relatório foi publicado no Brasil com o título “Acesso à Justiça”, em 1988. O livro foi traduzido e
revisado pela atual ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie Northfleet, primeira mulher a ser
escolhida para o STF.
28
“Common Law” e em sociedades periféricas, além de discutir as teorias adequadas ao estudo
comparado das profissões jurídicas.
Mais recentemente, uma nova leva de estudiosos das profissões jurídicas tem surgido
em toda parte. Mas desta vez as análises sobre as profissões jurídicas estão saindo do campo
da sociologia do direito e tomando o campo da sociologia das profissões. No caso das
profissões jurídicas, a sociologia das profissões tem emergido como um campo autônomo
advindo da sociologia do direito. Autores como a americana, Carrie Menkel-Meadow (1987),
a francesa Anne Boigeol (1989) e a canadense Joan Brockman (2001) vão se firmando como
grandes nomes da sociologia das profissões, dando ênfase ao mundo do direito em suas
análises. Em particular estas autoras têm interesse de pesquisa no papel das mulheres nas
profissões jurídicas, discutindo a feminização destas profissões.
O venezuelano Rogelio Perez-Perdomo (2005) é outro que se destaca nas análises
atuais das profissões jurídicas, dando ênfase às profissões jurídicas na América Latina e sua
relação com a política nacional e às transformações ocorridas nas profissões jurídicas em
tempos de Globalização. Este último trabalho ele editou em parceria com o importante
professor de História do Direito, Lawrence Meir Friedman (2003). Yves Dezalay (1995) é um
sociólogo francês que vem se destacando por estudar as elites jurídicas nas mais diferentes
sociedades, como parte de suas pesquisas sobre Globalização e transformações do campo do
poder. Por fim, outro que merece destaque e que vem analisando as profissões jurídicas,
inclusive com aporte teórico da sociologia das profissões é David S. Clark (1995).
Não podemos deixar de dizer que no Brasil, alguns sociólogos fizeram importantes
trabalhos sobre as profissões jurídicas, tais como, Sérgio Miceli (1979), José Murilo de
Carvalho (1980), Sérgio Adorno (1988), Luiz Werneck Vianna (1997), Eliane Botelho
Junqueira (1997), Edmundo Campos Coelho (1999) e Maria Tereza Sadek (1995), entre
outros. Mas foi Maria da Glória Bonelli (1996; 1998; 1999; 2002) uma das primeiras
pesquisadoras a analisar as profissões jurídicas a partir da perspectiva teórica específica da
sociologia das profissões, utilizando principalmente a teoria freidsoniana para isso. Marli
Diniz (2001) também deu alguma ênfase às profissões jurídicas ao relacioná-las com o estado
brasileiro. Outros pesquisadores começam a trilhar o caminho da sociologia das profissões no
Brasil, escolhendo as profissões jurídicas como seus objetos de pesquisa. Entre eles podemos
29
citar, Cátia Aida Silva (2001), Rogério Bastos Arantes (2002) e Fabiano Engelmann (2006) 18.
Essas novas pesquisas e publicações colocam o campo do direito como importante objeto de
análise da sociologia das profissões também no Brasil e permite um olhar mais atento aos
processos de profissionalização dentro do direito e suas lutas por poder e identidade na
sociedade brasileira19. E é exatamente tratando de maneira mais ampla a sociologia das
profissões no Brasil que encerraremos este capítulo.
1.5 SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES NO BRASIL
No Brasil, os maiores avanços na sociologia das profissões aconteceram com Marinho
(1985), Schwartzman (1987), Simões (1989), Grün (1990), Coelho (1992), Barbosa (1993),
Bonelli (1993), Sadek (1995), Diniz (1995), Machado (1996) e Vianna (1997). Mas os
avanços produzidos por estes autores não seriam possíveis sem o desbravamento do campo da
sociologia das profissões, realizado desde meados dos anos 60, por Nogueira (1967), Durand
(1972), Donnangelo (1975), Pastore (1979), Kawamura (1981), Faria (1983) e Falcão (1984).
Para fazer uma apresentação mais sintética20 dos usos da sociologia para análise das
profissões no Brasil, correndo o risco até de ser simplista, podemos dizer que se formaram,
inicialmente, três eixos de pesquisas e análises sobre profissões no Brasil:
1.
o primeiro eixo seria mais independente e sem muita conseqüência em
termos de institucionalização de uma escola de pensamento em sociologia
das profissões, e aí se incluem os trabalhos de Nogueira, Donnangelo,
Durand, Pastore, Kawamura, Falcão, Schwartzman, Sadek e Simões.
Podemos até chamar este eixo de sociologia que analisa profissões e
18
Podemos incluir nosso trabalho anterior (Santos, 2004) nesta nova leva de análises sociólogas das profissões
jurídicas. Destaque deve ser dado à dissertação de Ribeiro (2005) sobre os magistrados adeptos da corrente
chamada de Direito Alternativo.
19
Junqueira afirma como proposta a possibilidade de uma sociologia aplicada ao direito que pudesse ser, por
exemplo, uma sociologia das profissões jurídicas. (2002, p. 91)
20
Não é nossa intenção fazer uma análise por dentro de cada trabalho dos autores mencionados, uma espécie de
resenha das obras. Bonelli e Donatoni (1996) já tentaram fazer isso.
30
mercado de trabalho e destacar a importância de instituições estrangeiras21
na formação de alguns destes autores, bem como do uso, principalmente, de
variáveis políticas na realização das análises;
2.
2. o segundo eixo, que podemos chamar de eixo da Unicamp, do início da
década de 1990, liderado por Faria e Miceli22, que rendeu os trabalhos de
Grün23, Bonelli e Barbosa; e
3.
3. o terceiro eixo, do IUPERJ, da segunda metade da década de 1990,
liderado por Coelho, e que rendeu os trabalhos de Marinho, Machado e
Diniz24.
Em relação às profissões escolhidas para análise pelos autores brasileiros aqui citados,
as profissões clássicas foram preferidas: medicina – Donnangelo (1975) e Machado (1996);
engenharia – Simões (1989) e Barbosa (1993); e direito – Falcão (1984), Bonelli (2002;
2006), Sadek (1995; 1998; 1999; 2000; 2001; 2003; 2006) e Vianna (1996; 1997; 1999).
Alguns autores analisaram duas destas profissões, todas elas ou algumas delas e outras mais:
Nogueira (1967); Marinho (1985); Schwartzman (1987; 1992); Diniz (1995); Coelho (1999).
Outros autores analisaram os bancários – Grün (1990); e os cientistas sociais – Bonelli (1993).
21
Entre os autores que tiveram suas obras decisivamente marcadas por uma passagem por instituição estrangeira:
Nogueira fez mestrado na Universidade de Chicago, sob orientação de Everett Hughes, expoente do
interacionismo simbólico; Falcão fez mestrado em Harvard, sob orientação de David Trubek, um importante
autor da sociologia do direito que fez análises comparativas sobre profissões jurídicas; Pastore fez doutorado em
Wisconsin-Madison (1968) e em 1973 começou a trabalhar com profissões e mercado de trabalho – quando
produziu duas monografias sobre o tema – e quase sempre usando estratificações ocupacionais para analisar
desigualdades sociais no Brasil; Schwartzman fez doutorado em Berkeley; Sadek fez pós-doutorados na
Universidade da Califórnia e na Universidade de Londres; Simões fez doutorado na LSE, em Londres. Em
Schwartzman parece não haver relação direta entre sua passagem por uma instituição estrangeira e sua produção
sociológica sobre profissões, uma vez que se passaram quase 20 anos entre sua formação no exterior e sua
produção sociológica sobre profissões. Durand foi orientado em seu mestrado na USP por Luiz Pereira,
sociólogo da educação. Kawamura foi orientanda de mestrado de Azis Simão, na USP, que orientou outros
trabalhos que tangenciaram a problemática das profissões, mas cuja área temática principal estava mais próximo
da sociologia do trabalho. Ele foi também seu orientador de doutorado. Não conseguimos identificar a formação
de Donnangelo.
22
Durante o início da década de 1990 Faria e Miceli, junto com o grupo de alunos do doutorado em Ciências
Sociais da Unicamp se constituíram num grupo de pesquisa sobre o tema das profissões. O Idesp, dirigido por
Miceli, e o Cebrae, dirigido por Faria, eram instituições de pesquisa que davam suporte a pesquisadores que
enveredavam pela área da sociologia das profissões.
23
Embora Grün tenha sido orientado por Miceli no doutorado, não podemos esquecer que ele havia sido
orientado por Maria Andréa Loyola no mestrado, que tinha feito um pós-doutorado em Sociologia da Saúde e
das Profissões Médicas na EHESS, França, tendo rendido um importante trabalho de análise das profissões
médicas (L'éspirit et lê corps: des thérapeutiques populaires dans la banlieue de Rio), em 1983, e que foi
traduzido para o português no ano seguinte, e publicado pela Difel, como: Médicos e Curandeiros: conflito social
e saúde.
24
Diniz foi orientada por Coelho no mestrado e seu doutorado foi concluído sob orientação de Nelson do Valle
Silva, embora tenha sido iniciado sob orientação de Coelho.
31
Quanto à relação entre formação superior e escolha do objeto de pesquisa (profissão a
ser analisada) dos autores aqui mencionados, devemos considerar que os sociólogos
brasileiros tiveram, em geral, o cuidado de se distanciar do objeto escolhido, analisando
profissões que não faziam parte das profissões de sua formação original. Bourdieu salienta a
necessidade do sociólogo se afastar dos objetos de pesquisa:
Os artifícios das pulsões são inúmeros, e fazer a sociologia do seu próprio universo
pode ser a maneira mais perversa de satisfazer, por caminhos sutilmente desviados,
essas pulsões reprimidas. Por exemplo, um teólogo que se fez sociólogo pode,
quando começa a estudar os teólogos, proceder a uma espécie de regressão e pôr-se
a falar como teólogo ou, pior, servir-se da sociologia para acertar suas contas de
teólogo. (2003, p. 51)
Dos autores brasileiros mencionados, somente Falcão (1984), Bonelli (1993) e Vianna
(1997) analisaram em algum momento suas formações/profissões de origem: direito, ciências
sociais e direito, respectivamente. Mas fizeram isso com a cautela esperada por Bourdieu.
Sobre as principais abordagens teóricas utilizadas pelos autores brasileiros, temos
desde o interacionismo simbólico de Hughes, em Nogueira (1967), até o neoweberianismo
(ou neomarxismo?) de Larson, em Diniz (1995), passando pelo funcionalismo de Abbott, em
Bonelli (1993). A relação entre profissão e poder está sendo cada vez mais utilizado nas
análises brasileiras sobre profissões. Mas os autores brasileiros costumam mesclar mais de um
autor da sociologia das profissões na hora de fazer análises da realidade profissional
brasileira, entendendo mesmo o conceito de profissão como histórico-contextual, um conceito
“folk”, como afirma Coelho (1999, p. 26), referindo-se a uma observação feita por Freidson
sobre o conceito de profissão.
Os sociólogos brasileiros procuram aproveitar as melhores contribuições que os
autores da sociologia das profissões deram para este campo de análise. Esta utilização pouco
ortodoxa da teoria sociológica tende a tornar a análise mais rica de detalhes ao considerar
diferentes aspectos teórico-metodológicos dos principais autores da sociologia das profissões
e diferentes aspectos analíticos da historicidade brasileira. Mas há sempre o risco de ser feito
um “balaio de gato”, como se dizia antigamente de alguma coisa mal realizada ou realizada de
maneira confusa. Em geral os autores fazem análises quantitativas e qualitativas das
profissões escolhidas, reconhecendo as limitações de cada um destes dois instrumentos, e a
possibilidade de ampliação do olhar sociológico na utilização dos dois conjuntamente.
32
Infelizmente, os dois principais polarizadores da sociologia das profissões no Brasil já
morreram: Coelho (1939-2001) e Faria (1941-2001). Mas felizmente, eles fizeram discípulos,
que já são responsáveis pela formação de uma terceira e/ou quarta geração de sociólogos que
analisam as profissões como objeto de pesquisa sociológico.
Mais recentemente destacam-se novos pólos de pesquisa e análise em sociologia das
profissões. Entre eles, devemos citar: 1. os trabalhos realizados na Escola Nacional de Saúde
Pública da Fiocruz, sob a direção de Maria Helena Machado, na linha de pesquisa “Profissão,
Trabalho e Formação em Saúde”, com algumas dissertações e teses já defendidas sobre os
profissionais de saúde; 2. o grupo de pesquisadores da UERJ, do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais e do Instituto de Medicina Social, entre eles Jane Dutra Sayd e Kenneth
Rochel Camargo Júnior, que tem avançado no tema, principalmente, da relação entre
formação e atuação profissional na área de saúde; 3. as pesquisas desenvolvidas e orientadas
por Maria Ligia de Oliveira Barbosa, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da UFRJ, na linha de pesquisa “Produção e Efeitos de Desigualdades Sociais”,
que começa a mostrar bons resultados nas análises das profissões e suas relações com as
desigualdades sociais; e 4. as linhas de pesquisa da UFSCar, já mais consolidadas,
conduzidas, principalmente, por Grün (“Mudanças de interesses simbólicos operantes entre os
gerentes”) e Bonelli (“O mundo profissional do direito e as relações entre profissionalismo e
estado” e “Processos de profissionalização no Brasil contemporâneo”)25. Mais recentemente,
Fabiano Engelmann foi admitido como professor adjunto do Departamento de Ciências
Sociais da UFSCar, reforçando o time da sociologia das profissões.
A sociologia das profissões está de fato se expandindo bastante no Brasil. Hoje já
temos pesquisas de profissões de enfermagem a prostitutas, passando por agrônomos,
arquitetos, economistas, jornalistas, psicólogos e astrólogos, entre outros. Há também no
encontro anual dos cientistas sociais (ANPOCS) e nos encontros da Sociedade Brasileira de
Sociologia (SBS) grupos temáticos próprios para a sociologia das profissões e suas
problemáticas. Foi criada em 27/07/2005 a comunidade virtual “Sociologia das Profissões”,
no site de relacionamentos Orkut. Dois anos depois a comunidade contava com 27 membros
de todo o Brasil, entre interessados na área e pesquisadores.
25
Não incluímos as produções derivadas das orientações feitas por Sadek como um dos novos eixos da
sociologia das profissões porque o interesse dela pela ciência política parece marcar também a obra de seus
pupilos. Embora os trabalhos produzidos por Arantes (2002) e Nunes (2001), entre outros, sejam importantes
para a sociologia do direito e para a sociologia das profissões jurídicas, eles não utilizam eminentemente
abordagens sociológicas em suas análises, dando ênfase às abordagens e métodos da ciência política.
33
Neste capítulo empreendemos um esforço para demarcar o terreno da sociologia das
profissões a partir de uma breve apresentação dos principais tipos de abordagens teóricas
deste novo campo da sociologia. Nem todas as abordagens aqui apresentadas e discutidas
serão utilizadas para lançar luz sobre alguns problemas específicos a serem analisados mais à
frente, sendo o caráter instrumental da teoria invocado mais restritamente quanto aos autores
de linha weberiana. Em especial as abordagens de Elias, Larson e Bourdieu. Mas essa
reduzida instrumentalidade das teorias apresentadas não diminui a importância deste capítulo
e nem das demais abordagens da sociologia das profissões que não serão usadas nos próximos
capítulos. A descrição e discussão de diferentes abordagens teóricas, num plano mais
histórico e resenhístico, como fizemos, é importante não só para mostrar o desenvolvimento
da sociologia das profissões como para demonstrar uma expectativa particular de
desenvolvimento desse novo campo da sociologia também no Brasil, como já vem
acontecendo. Mas, sobretudo, permite chamar atenção para a importância de nosso objeto e
para a forma escolhida de análises.
34
2 DIREITO E PROFISSÕES JURÍDICAS: análises da estrutura e do
funcionamento do campo jurídico e descrições do campo jurídico brasileiro.
Iniciaremos o capítulo discutindo a relação entre direito e burocracia na teoria sociológica e
dando algumas definições que nos ajudarão no decorrer dos próximos capítulos.
Posteriormente, faremos uma breve explanação da abordagem bourdieusiana dos campos,
mais especificamente sobre o campo jurídico, o que inclui o ensino do direito e as profissões
jurídicas. Em seguida, passaremos a uma descrição mais detalhada das profissões jurídicas no
Brasil, utilizando o Código Brasileiro de Ocupações como base. Discutiremos e
descreveremos ainda a importância das associações profissionais para as profissões e os
profissionais. Por fim, descreveremos o cenário atual das instâncias de consagração das
profissões jurídicas brasileiras.
2.1 DIREITO E BUROCRACIA
Antes de passarmos propriamente ao campo do direito, é preciso ressaltar que não há
como discutir a expansão do direito – aqui pensado como sistema de justiça26 –, dos direitos –
como lutas político-jurídicas por reconhecimento e por distribuição dos bens sociais27 – e das
profissões jurídicas nas sociedades modernas sem tratar, mesmo que brevemente, da
importância das burocracias para estas transformações sociais que envolvem o direito. O
direito moderno é burocrático e necessita de uma estrutura burocrática para se realizar.
Quando Weber pensa a burocracia como elemento que expressa a racionalidade
característica do mundo moderno, afirma que a burocracia seria o modelo mais bem acabado
de dominação racional e legítima: a burocracia seria a melhor maneira de gerir o poder e
organizar o trabalho nas sociedades complexas. A burocracia, para Weber, baseia-se numa
crença na legalidade ou racionalidade de uma ordem, rompendo com a perspectiva religiosa
do mundo. Para Weber, a burocracia teria um caráter democrático, uma vez que seus
procedimentos (os procedimentos burocráticos) são universais, não se destinando a nenhum
indivíduo em particular, nem atendendo a interesses particularistas e casuísticos. Esta mesma
burocracia, racionalizada, lançaria as bases do direito moderno, racional e sistematizado.
26
“O sistema de justiça é mais amplo do que o poder judiciário”. (Sadek, 1999, p. 11)
27
Fraser, 1998.
35
Na sociologia das profissões havia um debate sobre o papel do estado no processo de
profissionalização. Alguns autores entendiam que as profissões entre os anglo-saxões se
desenvolveram sem a participação do estado, voltando-se para o mercado, o que caracterizaria
as profissões liberais típicas, medicina e advocacia. Já a profissionalização nas sociedades
européias continentais, França e Alemanha, por exemplo, teria sido atrelada ao estado, o que
retiraria o poder e a autonomia das profissões. Fora o etnocentrismo deste tipo de análise, que
dá maior valor a um modelo de desenvolvimento que a outro, ao coloca-lo como padrão,
precisamos considerar que ao fim e ao cabo o estado foi importante para os dois modelos,
mesmo que ele tenha aparentemente atuado menos em um modelo que em outro.
Larson afirma a necessidade do estado em ambos os processos de profissionalização,
desfazendo a idéia de que a sociedade norte-americana teria sido berço das profissões liberais,
enquanto a sociedade francesa teria dado à luz as profissões burocráticas. As profissões, para
ela, só podem atuar no mercado e se organizar como grupo social porque, em última instância,
o estado permite isso, seja pelo reconhecimento e regulamentação de uma profissão, seja pelo
oferecimento de sua estrutura, a estrutura burocrática estatal, para a realização das atividades
profissionais de determinadas profissões, como é o caso do direito. Prazos, cargos, funções,
editais, concorrências, atestados, hierarquias, enfim, toda a estrutura burocrática do estado e
seus procedimentos típicos podem ser um espaço em potencial para o desenvolvimento de
uma atuação profissional específica. Neste sentido, a autora mostra que não há contradição
entre burocratização e profissionalização. Pelo contrário, provavelmente não há e nem haveria
profissionalização e atuações profissionais sem a existência desta estrutura de suporte e
possibilidades que é a burocracia estatal. Burocratização e profissionalização são partes do
processo de racionalização capitalista. Barbosa (2003) afirma que Larson “mostra como a
burocracia é um dos recursos sociais mais relevantes para as profissões modernas
assegurarem seus nichos no mercado de trabalho e seu poder social”. (p. 598)
Outro aspecto que precisa ser considerado é o espaço (e a liberdade) de atuação de
alguns profissionais na estrutura burocrática, particularmente, dos intelectuais. Para a análise
que faremos no capítulo 3 sobre os intelectuais na estrutura burocrática, a abordagem de
Merton se mostra adequada28. Merton (1970) discute a relação entre direito e burocracia a
partir da relação entre intelectuais e burocracia pública, considerando os intelectuais como
28
Referência para análise dos intelectuais na sociedade brasileira tornou-se o trabalho de Miceli (2001). Este
trabalho contém importante artigo em que o autor discute de maneira crítica os principais estudos empreendidos
sobre intelectuais brasileiros.
36
“especialistas no campo do conhecimento social, econômico e político” (p. 288) que
desempenham papéis sociais. Intelectual para ele é uma categoria de pensador presente nos
mais distintos campos do conhecimento. Ele inclui os advogados, lato sensu, profissionais do
direito de uma maneira geral, entre os intelectuais de uma sociedade29. Para ele, há dois tipos
básicos de intelectuais, os burocráticos e os independentes. A burocratização exige pessoal
intelectualmente especializado e converte estes intelectuais absorvidos na estrutura
burocrática em técnicos com o passar do tempo. O intelectual burocrático, agora técnico,
deixa de reconhecer seu papel no todo, dedicando-se à realização de tarefas. “Não chega a ver
que a ação traz implícitas as suas conseqüências”. (p. 292)
Para Merton a burocracia traz mudanças graduais no intelectual, “transformando-o em
técnico apolítico, cujo papel é servir a qualquer estado social que aconteça estar no poder”. (p.
293) Para ele, o intelectual burocrático vai perdendo sua criatividade e poder social, prestígio
acadêmico, por exemplo, e se tornando um servo da estrutura burocrática, em última
instância, do político, tendo que pensar soluções práticas para os problemas estudados. Por
outro lado, o intelectual independente tem maior capacidade de escolha, autonomia para
decidir seus projetos, e, por isso, seria mais idealista, menos preocupado em dar uma resposta
concreta a um problema analisado, em forma de política pública, por exemplo. Estas
considerações de Merton se parecem um pouco com as análises de Bourdieu sobre as lutas por
dominação nos campos, em particular sobre liberdade de escolha e determinismo entre
dominadores e dominados do campo.
Analisando a dominação no campo da arte, Bourdieu (2005) mostra como os artistas
que produzem para o mercado são restringidos em sua capacidade de escolha porque
dominados pelo próprio mercado, que demanda um determinado tipo de arte que seja
vendável, por exemplo. Já os artistas que produzem a chamada “arte pela arte”, que não
produzem para os mercados, que produzem arte com uma preocupação mais estética que
mercadológica, têm maior liberdade de escolha na produção de suas peças. Exatamente
porque não devem satisfação a ninguém, apenas à sua capacidade criativa e estética. Estes
últimos acabam sendo mais valorizados por seus pares, por sua “independência” e sendo
elevados às posições dominantes do campo da arte. Já os artistas “mercadológicos” são
desvalorizados por seus pares, por faltar a “independência” criativa, e assumem posições
29
Há um problema de tradução da palavra lawyer (advogado) para o português. Lawyer em inglês é mais amplo
do que advogado, referindo-se também a outros profissionais do direito, como era comum também no Brasil até
meados do século XX, em que as pessoas se referiam aos formados em direito como advogados.
37
dominadas no campo da arte, onde a liberdade de escolha é menor. Bourdieu aponta o papel
ideológico dessas proposições estéticas de valorização e desvalorização das artes na França,
mostrando que as posições no campo da arte respeitavam posições de classe. Esta discussão
sobre burocracia e dominação irá retornar de maneira mais sucinta e aplicada quando
analisarmos a atuação das profissões e dos profissionais do direito durante a ditadura militar
brasileiro.
2.2 CAMPO JURÍDICO
O conceito bourdieusiano de campo aplicado ao direito dá a dimensão da força do
campo jurídico como o que melhor permite entender a construção de poderes nas sociedades
modernas. O campo jurídico é o campo mais próximo do campo político, sendo indispensável
para a caracterização deste último campo. A proximidade entre estado e campo jurídico dá a
este uma força só comparável à força daquele. Collins afirma que a proximidade entre as
profissões jurídicas e o estado permite aos juristas “perpetuar sua cultura distintiva, suas
técnicas aparentemente próprias”. (1989, p. 197)
A garantia legal que o estado dá à sociedade (através de leis universais e abstratas)
ajuda a fortalecer a importância do campo do direito. Esta “necessidade” social do direito
reforça o poder do campo jurídico, que é autônomo para definir as regras do próprio campo e,
pelo seu papel dominante, para definir as regras de organização da sociedade. O poder de
nomeação que o direito tem, poder de “criar” ao dar nome às coisas coloca a dimensão da
autoridade social deste campo30, que é garantida pelo estado.
Para Bourdieu (2004), a formação do estado acontece pela via estrutural e simbólica
ao mesmo tempo. Ele entende que o estado moderno surge como construção simbólica, de
uma estrutura universal e democrática incutida nos cidadãos pela educação, num longo
processo histórico. A educação, segundo Bourdieu, servirá para ensinar as leis aos cidadãos
do estado e para criar uma visão de mundo unificada que se pudesse chamar de nacional. A
visão que o cidadão nacional tem do estado seria a visão culturalmente forjada pelo próprio
estado e transformada em natural. A naturalização da idéia de estado foi feita com
investimento nas estruturas mentais dos cidadãos a fim de introduzir uma percepção da
30
A autoridade no campo jurídico é o lugar por excelência da violência simbólica legítima. O conceito de
violência simbólica como imposição de uma “visão de mundo” próprio a todos os demais grupos sociais se
aproxima do conceito weberiano de dominação.
38
“necessidade” do estado para os iguais, os concidadãos, os nacionais, unificando assim, o
estado e a idéia de estado. A cultura nacional teria sido inculcada nas estruturas mentais dos
membros da sociedade pela via educacional – homogeneizando formas de comunicação,
como leis, idioma e medidas –, resultando na criação de uma auto-imagem comum aos
nacionais, uma identidade nacional.
Bourdieu vai além e aponta a relação estreita dos juristas com a criação das ideologias
legitimadoras do estado moderno durante o processo histórico que fez nascer este novo
modelo de estado, racionalizado e universal, na França. O estado nascente tomou emprestado
do campo jurídico o poder de nomear e transformou-se numa “instância central de
nomeação” (2004, p. 110 – em itálico no original), atribuindo honrarias válidas nos mercados
controlados pelo estado e criando realidades, com a criação de leis estatais, por exemplo. Este
poder de nomeação do estado, e do direito, é quase divino, segundo o sociólogo francês, e só
ressalta a proximidade do campo jurídico e do campo burocrático com o campo do poder.
Para compreender a dimensão simbólica do efeito do Estado, [...] é preciso
compreender o funcionamento específico do microcosmo burocrático; é preciso
analisar a gênese e a estrutura desse universo de agentes do Estado, particularmente
os juristas, que se constituíram em nobreza de Estado ao institui-lo e, especialmente,
ao produzir o discurso performativo sobre o Estado [...]. É preciso deter-se
especialmente na estrutura do campo jurídico, examinar os interesses genéricos do
corpo de detentores dessa forma particular de capital cultural, predisposto a
funcionar como capital simbólico, que é a competência jurídica [...]. Compreende-se
assim que esses agentes tinham interesse em dar uma forma universal à expressão de
seus interesses particulares [...], eles foram levados a produzir um discurso de
Estado que, oferecendo-lhes justificativas de sua posição, constituiu e instituiu o
Estado, fictio juris, pouco a pouco, deixou de ser uma simples ficção de juristas para
tornar-se uma ordem autônoma, capaz de impor amplamente a submissão a suas
funções, e a seu funcionamento, e o reconhecimento de seus princípios. (Bourdieu,
2004, p. 121, 122)
A educação, que exerceu importante papel na formação do mundo social moderno e na
conformação da visão sobre o mundo social moderno, segundo Bourdieu, assume uma
importância capital também na entrada para o campo do direito.
2.2.1 O Ensino Jurídico
Como vimos no capítulo anterior, a formação é um dos elementos mais importantes da
construção e da análise das identidades profissionais. A importância da formação, aliás, é
ressaltada quase unanimemente pelas diferentes abordagens sociológicas para análise das
profissões. No caso das profissões jurídicas a formação além de preparar tecnicamente o
futuro profissional, realiza o papel de adequação do olhar, da visão de mundo do futuro
39
profissional às expectativas do grupo profissional. As profissões jurídicas têm, historicamente,
uma relação direta com o estado. A oficialização das profissões jurídicas pelo estado,
reconhecidas como necessárias para o bom funcionamento da estrutura burocrática, se
desenvolve também pelo viés do ensino jurídico. O ensino do direito serve para capacitar
(treinar) os profissionais do direito para a utilização da linguagem jurídica e para que estes
profissionais ingressem na burocracia pública, como técnicos ou como usuários desta
estrutura (como os advogados, que acompanham seus processos judiciais tramitando na
estrutura do sistema de justiça).
As faculdades de direito seriam, dessa perspectiva, um dos responsáveis pela
transferência de algum capital simbólico para os novos ingressantes do campo e pela
disseminação do habitus apropriado ao campo do direito. As faculdades de direito
produziriam produtores do campo.
O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o
direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam
agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste
essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos
livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do
mundo social. (Bourdieu, 2003, p. 212)
As trajetórias dos formados em direito também vão ser fortemente condicionadas por
sua formação superior, porque as instituições podem moldar comportamentos, criar tradições
intelectuais, modos particulares de pensar. Para Bourdieu, nas sociedades modernas, a escola
teria uma função integradora, a partir da padronização do pensamento e da linguagem, mas
também uma função distintiva, a partir da diferenciação que realiza entre os alunos nos modos
de classificar e entender as coisas da vida, de construir uma visão de mundo, que varia de
acordo com as trajetórias pessoais (oportunidades) e com as diferentes escolas. Nas palavras
do próprio Bourdieu,
A escola não cumpre apenas a função de consagrar a “distinção” – no sentido duplo
do termo – das classes cultivadas. A cultura que ela transmite separa os que a
recebem do restante da sociedade mediante um conjunto de diferenças sistemáticas:
aqueles que possuem como “cultura” (no sentido dos etnólogos) a cultura erudita
veiculada pela escola dispõem de um sistema de categorias de percepção, de
linguagem, de pensamento e de apreciação, que os distingue daqueles que só tiveram
acesso à aprendizagem veiculada pelas obrigações de um ofício ou a que lhes foi
transmitida pelos contatos sociais com seus semelhantes. (2005, p. 221)
Mesmo que o sistema escolar oferecesse oportunidades idênticas, o mesmo ensino, a
todos os alunos, ainda assim o capital cultural prévio dos alunos será sempre diferente uns dos
40
outros, distinguindo os alunos, permitindo uma maior ou menor capacidade do aluno construir
seu conhecimento.
Bourdieu sempre se mostrou crítico em relação ao papel desempenhado pela educação
nas sociedades, em particular na sociedade francesa, evidenciando como a educação pode
acirrar desigualdades sociais e reproduzir as elites. No caso da educação superior, Bourdieu
(1989) mostra, por exemplo, como os alunos da Escola Nacional de Administração (ENA)
ocuparam as melhores posições do mercado tornando-se parte da elite. O acesso escolar a
essas posições sociais elitizadas se tornou tão difícil quanto era restrito o acesso à nobreza
durante o Antigo Regime. Os alunos oriundos das Escolas Superiores (Grandes Écoles)
tornaram-se verdadeira Nobreza de Estado (Noblesse d’Etat).
Ainda sobre a questão da educação, em particular sobre a expansão do sistema de
ensino e suas relações com o sistema econômico, Bourdieu e Boltanski (1998), mostram como
o sistema de ensino é autônomo em relação ao sistema econômico, tendo cada um sua lógica
própria de operação. O diploma estaria para o sistema de ensino assim como o cargo, para o
sistema econômico. Diploma e cargo seriam as “unidades monetárias” dos sistemas de ensino
e econômico, respectivamente. Para eles, a relação entre o sistema de ensino e o sistema
econômico seria conflituosa. O primeiro sistema tenderia a querer valorizar seus diplomas
enquanto o segundo, tenderia a desejar comprar pelo menor preço as capacidades
profissionais atestadas pelos portadores de diplomas. Os economistas “têm interesse em
suprimir o diploma e seu fundamento, ou seja, a autonomia do SE [sistema de ensino];
interessa-lhes a confusão completa entre o diploma e o cargo”. (Bourdieu; Boltanski, 1998, p.
136) Isso permitiria a ocupação de um cargo sem a necessidade de um diploma conferido pelo
sistema de ensino, o que dá maior poder ao sistema de ensino. A passagem por um sistema de
ensino e a posse de um diploma dá uma certa liberdade aos portadores de diplomas e reforça o
poder social do sistema de ensino, fazendo o sistema econômico, de certa maneira, refém do
sistema de produção dos produtores. “Quanto maior for a autonomia da instância produtora de
diplomas em relação à economia, menor será a dependência do diploma que ela assegura em
relação à economia. Daí, o sonho patronal de uma escola confundida com a empresa, de uma
escola ‘da casa’”. (p. 136)
A inflação de diplomas e certificados pode gerar uma luta por maiores distinções
sociais entre os portadores de diplomas inflacionados, que pode ser entendido também como
luta por estabelecer maiores distâncias sociais para com determinados grupos sociais
41
diplomados, o que pode produzir ainda inflação de profissões ou de cargos, mesmo que
nominalmente. A simples mudança de nome de uma profissão ou de um cargo é uma
estratégia de diferenciação e mobilidade. A inflação de diplomas e a de cargos estão
interligados numa tentativa de reordenação do campo profissional. O sistema econômico tenta
dar respostas, o mais rápido possível, às variações do mercado de trabalho provocadas pelo
sistema de ensino, no caso, pela inflação de diplomas. As respostas do sistema econômico
podem ser respostas produzidas nos próprios campos profissionais inflacionados de diplomas.
Voltando ao ensino do direito e às profissões jurídicas em suas relações com o estado,
garantidor da possibilidade de desenvolvimento e expansão do campo jurídico, pelo
reconhecimento da “necessidade” do direito para a ordem burocrática e social, não podemos
deixar de considerar ainda o papel das associações no campo jurídico. Para isso,
apresentaremos as contribuições de Merton e dos outros autores que tratam do tema.
2.2.2 As Associações Profissionais
Merton (1984) entende a associação profissional como uma organização unida pela
realização de interesses próprios aos profissionais associados e, em alguns momentos, até dos
não associados. Ele explica que as associações geralmente são voluntárias, mas que algumas
profissões constrangem os profissionais a se associar. Seria o caso dos advogados, que
precisam se vincular a sua associação profissional para exercer a advocacia. Para Merton, a
associação dos advogados, assim como qualquer associação profissional, tem funções sociais
manifestas e latentes. Isso porque nem sempre os objetivos propostos pelas associações
profissionais coincidem com o que eles efetivamente realizam.
Entre as funções manifestas das associações profissionais dos advogados, estaria a
“promoção da administração da justiça” (1984, p. 200) ou o bem estar dos clientes, que
poderiam escolher um profissional chancelado pela associação. Entre as funções latentes,
estaria o cuidado, em sentido amplo, com os próprios profissionais do direito: aposentadoria
confortável, assistência à saúde, padronização de honorários etc. As associações de advogados
e de outros profissionais do direito criam motivos os mais variados para justificar a
“necessidade” de suas profissões para a sociedade e da associação para os advogados. “Os
objetivos expressos por uma associação profissional não necessitam coincidir com suas
funções reais”. (Merton, 1984, p. 202)
42
O autor em questão demonstra ainda como algumas realizações das associações
profissionais se refletem: 1) na vida dos membros da associação, e indiretamente na vida de
sua clientela, que seria o caso das funções de apoio (moral e social) e proteção (econômica)
exercidos pelas associações profissionais; 2) na profissão como um todo, proveniente da
padronização da seleção dos ingressantes na profissão, da reciclagem técnica dos
profissionais, da prática profissional e das pesquisas que ampliem as áreas de atuação das
profissões; 3) na sociedade como um todo, em que a associação profissional se colocaria
como intermediário entre o profissional e a sociedade, gerando unidade na ação e coesão
social. As associações profissionais são organizações coesas que olham para dentro e para
fora das associações, para os associados e para a sociedade, para o bem estar dos profissionais
que representam e para cuidar da imagem das profissões na sociedade como um todo.
Para Collins (1989), as associações profissionais realizam um “trabalho político” de
criação de identidades profissionais, pela via de produção de uma cultura própria a cada
profissão, que a distinga das outras profissões, e pela via da normatização profissional.
Autonomia ante as outras profissões e controle interno são os objetivos maiores, e o que se
espera, das associações profissionais. As profissões são, para ele, grupos de status, baseados
na prática de certas atividades esotéricas e monopolizáveis e usam procedimentos misteriosos
ao leigo. As profissões precisam agir coletivamente, através das associações, para manter a
imagem de profissão ideal diante da sociedade. (p. 152, 153) Ele mesmo chega a afirmar que
as associações profissionais são como pequenos governos privados, tamanho o poder que
detém. (p. 201)
O tema das associações profissionais assumiu maior destaque a partir das abordagens
weberianas, que enfatizam, no processo de criação dos campos profissionais, o papel das
associações. De Larson a Bourdieu, passando por Collins e Starr, este tema tem sido
recorrente. É com a participação da associação profissional que se elabora e executa o projeto
profissional.
Mas não são apenas associações profissionais que atuam no campo do direito. As
associações voluntárias de luta por direitos, principalmente as ONGs de defesa de direitos,
também ocupam um importante espaço no campo jurídico. A atuação das ONGs no campo do
direito daria um interessante problema de pesquisa, já que ainda faltam análises sobre a
atuação e conseqüência das associações voluntárias no campo jurídico. Às vezes as lutas
profissionais por poder social estão “embaladas” pelo discurso da luta por direitos. Há uma
43
interconexão entre os objetivos dos dois tipos de associações, as associações profissionais e as
voluntárias, de modo que um tipo de associação pode reforçar ou enfraquecer o outro tipo,
dependendo da composição associativa no campo jurídico.
2.3 BREVE DESCRIÇÃO DO CAMPO JURÍDICO BRASILEIRO: ensino do direito,
profissões jurídicas, associativismo e instâncias de consagração.
Neste tópico iremos apresentar uma breve descrição sobre as formas de organização
das principais áreas do campo jurídico brasileiro, quais sejam: ensino do direito, profissões
jurídicas, associativismo e instâncias de consagração. Procuramos com isso apresentar o
campo jurídico para além do mercado de trabalho. Um campo jurídico autônomo em relação a
outros campos sociais e com uma dinâmica própria de competições por poder e distinção. As
descrições deverão dar uma dimensão mínima de conhecimento dessas lutas que acontecem
no campo jurídico brasileiro e da organização deste campo. As fontes dessa avaliação são um
misto de experiência de quem está também no campo jurídico e de bibliografias sobre o tema.
2.3.1 Ensino do Direito no Brasil
No Brasil, em maio de 2008, havia 1.085 cursos/habilitações em direito. Reportagem
da Folha de São Paulo de 09/03/2007 ressaltava o crescimento do número de faculdades de
direito no Brasil. Naquela época, o Brasil contava com 1.038 cursos de direito em
funcionamento (tabela 1). Três anos antes, em 2004, o Brasil tinha 790 cursos de direito. Os
mais alarmistas chegaram a fazer previsão de 4600 cursos de direito em 2010.31 Coisa que
muito provavelmente não acontecerá devido à mobilização das próprias profissões jurídicas
com vistas a conter o avanço das faculdades de direito a partir de 2007, e que trataremos no
próximo capítulo.
31
Baseado em dados divulgados pelo MEC, em 2007, sobre a expansão dos cursos de direito, o site “Última
Instância” chegou a publicar um artigo em que cogitava estatisticamente de 4.600 cursos de graduação em direito
em 2010. É claro que a previsão catastrófica serviu como argumento para pressionar o MEC pela contenção da
expansão do ensino do direito, o que aconteceu no mesmo ano com a participação direta da OAB, como veremos
no próximo capítulo.
44
Tabela 1: Evolução do número de cursos/habilitações em direito no Brasil.
2007 2008
Estado
Acre
03
03
Alagoas
10
13
Amapá
06
06
Amazonas
10
11
Bahia
47
55
Ceará
17
17
Distrito Federal
22
21
Espírito Santo
35
34
Goiás
32
38
Maranhão
16
16
Mato Grosso
28
30
Mato Grosso do Sul
20
21
129
136
Pará
14
16
Paraíba
15
16
Paraná
82
84
Pernambuco
24
28
Piauí
24
25
100
101
Rio Grande do Norte
13
14
Rio Grande do Sul
73
71
Rondônia
10
11
Roraima
03
04
Santa Catarina
60
60
225
232
Sergipe
09
11
Tocantins
11
11
Minas Gerais
Rio de Janeiro
São Paulo
Total
1.038 1.085
Fontes: Folha de São Paulo e MEC.
Dos mais de mil cursos de direito em 2007, apenas 87 receberam o chamado selo
“OAB Recomenda”32. (tabela 2) O selo foi criado em 2001 pela OAB para diferenciar as
melhores faculdades de direito das demais. O selo de qualidade da OAB recebeu uma série de
32
A lista com os nomes das faculdades de direito que receberam o selo de qualidade “OAB Recomenda” está no
anexo I.
45
críticas quanto à metodologia utilizada pela OAB para avaliar as faculdades de direito33 e
quanto a uma não-atribuição da instituição para avaliar a qualidade das faculdades de direito.
Ainda mais que a avaliação do ensino superior estava sendo feita pelo MEC desde 1996.
Tabela 2: Evolução do número de faculdades de direito que ganharam o selo “OAB
Recomenda” no Brasil
Ano “OAB Recomenda”
2001
52
2004
60
2007
87
Fonte: OAB
As faculdades de direito são estruturadas para serem cursadas em pelo menos cinco
anos. Os currículos das faculdades de direito são muito parecidos com os currículos dos
primeiros cursos de direito do Brasil, no início do século XIX. Em texto de meados da década
e 1980, Falcão afirmava que das nove disciplinas do primeiro currículo de 1827, seis ainda
eram obrigatórias naquela década. (1984, p. 140) Hoje não há mais os currículos mínimos,
mas diretrizes curriculares para os cursos de direito. Tais diretrizes dão maior liberdade para
as faculdades de direito criarem seus cursos, permitindo, por exemplo, que uma matéria seja
dada sob novos nomes de disciplina. Mas pouquíssimas faculdades arriscam inovar na
estrutura do curso ou na forma das aulas, reforçando “o mesmo papel cultural do curso de
direito e a mesma formação generalista do bacharel em direito do século XIX”. (Junqueira,
1999, p. 4)
A estrutura curricular ainda mais comumente encontrada é a que coloca as chamadas
disciplinas propedêuticas (Sociologia, Sociologia Jurídica, Filosofia, Filosofia do Direito,
Ciência Política, Português, Direito Romano, Teoria Geral do Estado, Introdução ao Estudo
do Direito, Economia Política etc.) no início do curso de direito e as disciplinas
profissionalizantes (Direito Penal, Direito Civil, Direito Constitucional, Direito Tributário,
Direito Comercial, Direito do Consumidor, Direito do Trabalho, Direito Processual) mais no
final. As disciplinas propedêuticas pretendem dar uma formação cultural ampla ao estudante
de direito concentrando-se mais no início do curso e perdendo espaço na medida em que o
curso avança. Já as disciplinas profissionalizantes pretendem uma capacitação profissional e
33
Nunes, 2001.
46
vão ganhando espaço paulatinamente a partir do terceiro período até se tornarem dominantes
ao final do curso.
Os professores são quase todos profissionais do direito e, por isso, em suas aulas
priorizam a prática e técnica jurídica. As aulas são predominantemente expositivas com
avaliações da capacidade do aluno reproduzir o discurso do professor. Faria e Campilongo
resgatam o seguinte diagnóstico sobre as faculdades de direito, realizado pelo CNPq em
meados da década de 1980: “os professores mais falam de sua prática forense do que das
doutrinas e da jurisprudência dos tribunais. O casuísmo didático é a regra do expediente das
salas de aula dos cursos de Direito”. (...) (1991, p. 28) Isso não mudou muito de lá para cá.
Os alunos, em geral, entram na faculdade de direito com o pensamento pragmático que
caracteriza as atuais gerações de jovens submetidos à cultura do consumo. No decorrer do
curso o tecnicismo juridicista dos professores de direito se associa ao pragmatismo trazido
pelos alunos numa mistura bombástica que produz um estudante avesso à crítica e à reflexão
e, no futuro, um profissional descomprometido com a realidade social brasileira. Faria afirma
que as faculdades de direito no Brasil não passam de “escolas de legalidade” e que “ao tentar
forjar a mentalidade estritamente legalista em flagrante contradição com uma realidade nãolegalista, os cursos jurídicos condenam os estudantes a uma (in)formação burocrática e
subserviente, incapaz de perceber as razões dos conflitos e das tensões sociais”. (1989, p. 104)
A estrutura curricular das faculdades de direito também não ajuda muito na produção
de conhecimento crítico sobre o direito: o lugar da crítica no curso de direito é mitigado pela
imensa parte destinada à reprodução de conhecimentos normativos, traduzidos pelas
discussões dos códigos legais e da “vontade do legislador”, expressão que define bem a
submissão do modelo hegemônico de ensino aos aspectos legais do direito. Faria afirma que,
os fatos nos mostram que não mais se devem confinar a cultura jurídica aos limites
estreitos e formalistas de uma estrutura curricular excessivamente dogmática, na
qual a autoridade do professor representa a autoridade da lei e o tom da aula
magistral permite ao aluno adaptar-se à linguagem da autoridade. (1999, p. 19)
Os professores têm se qualificado mais e novos movimentos no interior do campo
jurídico têm contribuído para um aumento da crítica no campo do direito. No entanto,
professores, estudantes e profissionais do direito com um olhar mais crítico em relação ao
direito ainda estão longe de ser maioria no campo do direito.
47
2.3.2 Profissões Jurídicas no Brasil
A partir da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), publicação oficial do
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), é possível listar as profissões jurídicas brasileiras e
suas principais atribuições. Utilizar um código oficial de classificação das ocupações é
problemático porque o código está impregnado de ideologias profissionais, uma vez que cada
profissão quer dar sua própria contribuição na descrição de suas atividades profissionais34. Os
autores incluídos na abordagem sociológica bourdieusiana discutem e analisam como um
grupo social estabelece as formas socialmente dominantes e negociam suas entradas nos
códigos oficiais. As discussões e análises feitas por Boltanski (1984) e Thévenot (1982; 1984)
são fundamentais para o aprofundamento desse problema importante para a sociologia das
profissões feita pelos bourdieusianos que é como se faz o reconhecimento das profissões nas
classificações oficiais das profissões. Estes sociólogos vão dizer que a entrada nas listagens
oficiais de ocupações é um processo de lutas sociais em que o grupo tenta, quando está
organizado, mostrar e receber o apoio oficial às suas próprias definições de seu trabalho. Com
isso, eles lutam para definir, oficialmente, o seu lugar na estrutura ocupacional das
sociedades. Isso pode acontecer, por exemplo, conseguindo um artigo constitucional que
defina a importância de uma profissão, como veremos no próximo capítulo em relação ao
poder
social
conquistado
pelas
profissões
jurídicas
brasileiras
a
partir
da
Constituição de 1988.
A luta por reconhecimento profissional é uma luta por receber do estado uma chancela
de poder para atuar em determinados segmentos, o que passa pela tentativa de autodefinição
da profissão, que é uma espécie de autoproclamação de relevância social da profissão, de
autoproclamação de poder. Quer dizer, todas as ocupações querem mostrar à sociedade sua
“importância”, e o fazem também através do reconhecimento legal de sua profissão. E a CBO
pode ser considerada esse reconhecimento legal. Este mesmo motivo que faz com que o uso
da CBO seja vista com desconfiança num trabalho sociológico, também permite a exploração
das competições interprofissionais, já que essas lutas também se expressam em forma de leis.
A CBO explicita os resultados das lutas profissionais por classificação35. Aparece como uma
34
Se não utilizássemos a CBO para fazer uma breve descrição das profissões jurídicas no Brasil, provavelmente
precisaríamos usar um livro de dogmática jurídica, o que talvez fosse mais problemático porque além das
ideologias profissionais, teríamos de lidar também com o hermetismo da linguagem jurídica e legal dos
doutrinadores do direito. Preferimos diminuir os problemas.
35
A lista de profissões destinadas aos formados em Direito, segundo a CBO, está no Anexo II.
48
espécie de equivalente geral. Tentaremos, à medida que formos desenvolvendo o texto,
demonstrar algumas dessas ideologias profissionais presentes na CBO.
Na CBO as profissões de ingresso exclusivo para formados em direito estão divididas
em seis grandes famílias ocupacionais, quais sejam: magistrados, advogados, procuradores e
advogados públicos, membros do Ministério Público, delegados de polícia e defensores
públicos e procuradores da assistência judiciária. Há ainda a família ocupacional dedicada aos
tabeliães e registradores, que são profissões destinadas aos formados em direito, mas que
podem ser exercidas também por pessoas não formadas em direito mas que tenham dez anos
de experiência cartorária.
Na primeira grande família ocupacional destinada aos bacharéis em direito, a dos
magistrados (cód. 1113) há nove ocupações: ministro do Supremo Tribunal Federal (111305); ministro do Superior Tribunal de Justiça (1113-10); ministro do Superior Tribunal Militar
(1113-15); ministro do Tribunal Superior do Trabalho, onde se inclui o juiz do Tribunal
Regional do Trabalho (1113-20); juiz de direito, categoria que inclui os desembargadores
(1113-25); juiz federal, que inclui o juiz do Tribunal Regional Federal (1113-30); juiz auditor
federal (justiça militar) (1113-35); juiz auditor estadual (justiça militar), e os juízes dos
tribunais militares estaduais (1113-40); e juiz do trabalho (1113-45).
Segundo a CBO, os magistrados
Atuam na área da administração pública, defesa e seguridade social. A partir da
segunda instância, executam suas funções em equipe, organizados em órgãos
colegiados de pares. No caso dos juízes de direito, juízes federais e juízes-auditores
federais da justiça militar, trabalham também de forma individual. O cargo de juiz
eleitoral é transitório, sendo exercido por juízes convocados de diferentes instâncias.
Nas comarcas de menor porte, o juiz local exerce também essa atividade. (CBO
2002)
Em relação à formação e experiência necessárias ao exercício da magistratura, “o
acesso a essas ocupações ocorre por concurso público aberto a bacharéis em direito. A partir
de mais de cinco anos, podem ascender à função de ministro de tribunal por indicação do
Presidente da República”. (CBO 2002) Sobre o recrutamento dos juízes brasileiros Vianna
afirma que há “uma tendência ao ingresso precoce na magistratura, à feminização da carreira
e, muito especialmente, a uma elevação do percentual de juízes recrutados em famílias com
escolaridade superior – essas três variáveis se apresentando como interdependentes,
reforçando-se entre si”. (1997, p. 108)
49
Na segunda grande família ocupacional, os advogados (cód. 2410) têm oito ocupações
diferentes para definir a profissão: advogado, advogado generalista ou assistente jurídico
(2410-05); advogado de empresa ou advogado empresarial (2410-10); advogado (direito
civil), advogado (direito de família e sucessões), advogado civilista, advogado comercial ou
advogado
contratualista (2410-15);
advogado
(direito
público),
advogado
(direito
administrativo), advogado constitucionalista, advogado fiscal (direito fiscal), advogado
previdenciário ou advogado tributarista (2410-20); advogado (direito penal), advogado
criminalista, criminalista ou penalista (2410-25); advogado de áreas especiais, como
advogado (abuso do poder econômico), advogado aeroespacial, advogado (agente de
propriedade
industrial),
advogado
ambientalista,
advogado
(arbitragem),
advogado
(biodireito), advogado (concorrência desleal), advogado esportivo, advogado (direito
internacional), advogado dos direitos da criança e do adolescente, advogado dos direitos do
consumidor, advogado (energia elétrica), advogado (propriedade intelectual), advogado
(recursos hídricos e minerais), advogado (telecomunicações) ou advogado (direito eletrônico)
(2410-30); advogado trabalhista (2410-35); e consultor jurídico, assessor jurídico, consultor,
jurisconsulto ou jurista (2410-40).
Pela CBO os advogados
Postulam, em nome do cliente, em juízo, propondo ou contestando ações,
solicitando providências junto ao magistrado ou ministério público, avaliando
provas documentais e orais, realizando audiências trabalhistas, penais comuns e
cíveis, instruindo a parte e atuando no tribunal de júri, e extrajudicialmente,
mediando questões, contribuindo na elaboração de projetos de lei, analisando
legislação para atualização e implementação, assistindo empresas, pessoas e
entidades, assessorando negociações internacionais e nacionais; zelam pelos
interesses do cliente na manutenção e integridade dos seus bens, facilitando
negócios, preservando interesses individuais e coletivos, dentro dos princípios éticos
e de forma a fortalecer o estado democrático de direito. (CBO 2002)
O exercício da advocacia está atrelado à aprovação no Exame da OAB do estado de
domicílio civil do bacharel em direito.
Na terceira grande família ocupacional, intitulada procuradores e advogados públicos
(cód. 2412), há sete ocupações: advogado da União (2412-05); procurador autárquico (241210); procurador da Fazenda Nacional (2412-15); procurador do estado (2412-20); procurador
do município ou procurador municipal (2412-25); procurador federal (2412-30); e procurador
fundacional ou procurador de fundação (2412-35). Essas ocupações
50
Representam a administração pública na esfera judicial; prestam consultoria e
assessoramento jurídico à administração pública; exercem o controle interno da
legalidade dos atos da administração; zelam pelo patrimônio e interesse público, tais
como, meio ambiente, consumidor e outros; integram comissões processantes;
geram recursos humanos e materiais da procuradoria. (CBO 2002)
Esses profissionais precisam, além de aprovação em concurso público de provas e
títulos nas devidas instâncias de atuação, federal, estadual e municipal, ter a carteira da OAB,
quer dizer, precisam ter sido aprovado antes no Exame da Ordem.
Na quarta grande família ocupacional, os membros do Ministério Público (cód. 2422)
dispõem de dez ocupações para defini-los como profissão jurídica. Das dez ocupações, nove
tem o nome de procurador. São elas: procurador da república (2422-05); procurador de justiça
(2422-10); procurador de justiça militar (2422-15); procurador do trabalho (2422-20);
procurador regional da república (2422-25); procurador regional do trabalho (2422-30);
promotor de justiça (2422-35); subprocurador de justiça militar (2422-40); subprocuradorgeral da república (2422-45); e subprocurador-geral do trabalho (2422-50).
Para a CBO, os membros do MP
Atuam em favor da sociedade e da cidadania, defendendo a ordem jurídica, o regime
democrático, os interesses difusos e coletivos e os interesses individuais,
promovendo, privativamente, a ação penal pública e as ações civis públicas.
Exercem suas funções no âmbito federal e estadual, perante a Justiça Civil,
Criminal, Militar, do Trabalho e Eleitoral. Para tanto, reprimem a criminalidade,
propõem ações civis públicas em defesa de direitos individuais indisponíveis,
difusos e coletivos; exercem a titularidade de ações constitucionais e de ações civis;
fiscalizam o cumprimento da legislação e desempenham atribuições judiciais e
atribuições extrajudiciais
O ingresso na carreira se dá pela aprovação em concurso público de provas e títulos,
para aqueles que completaram o curso de direito. O MP tornou-se uma das mais prestigiadas
profissões jurídicas brasileira após 1988. Arantes mostra que a elevação do Ministério Público
de “braço institucional do regime autoritário” (2002, p. 38) a defensor de uma sociedade
incapaz de defender-se sozinha deveu-se a um poderoso lobby do MP na Assembléia
Nacional Constituinte e a um ambiente ideológico favorável, decorrente do anseio social pela
restauração da democracia.
Diríamos, desde já, que o trauma social gerado pela ditadura militar – trauma que o
próprio MP ajudou a criar ou, pelo menos, não fez muito para não acontecer – foi importante
aspecto ideológico para que o MP se colocasse como novo guardião da ordem e da justiça,
saindo da sombra do autoritarismo para a luz da democracia numa nova sociedade que estaria
51
sendo construída. Silva (2001) chega até a mencionar “um projeto institucional muito bemsucedido” do MP na Constituinte, o que prefiro chamar de projeto profisional, utilizando a
abordagem larsoniana. No último capítulo daremos um maior enfoque ao MP e a estas
questões aqui já antecipadas.
Na quinta grande família ocupacional estão os delegados de polícia (cód. 2423),
autoridade policial ou delegados regionais de polícia (2423-05). Aqui entramos nos “primos
pobres” das profissões jurídicas, o que se manifesta já no fato de não haver muitas variantes
da categoria ocupacional na CBO. Os delegados de polícia
Presidem com exclusividade as atividades de polícia judiciária; dirigem e
coordenam as atividades de repressão às infrações penais para restabelecer a ordem
e segurança individual e coletiva. Administram atividades de interesse da segurança
pública. Expedem documentos públicos e administram recursos humanos e
materiais. (CBO 2002)
O ingresso na carreira se dá pela aprovação em concurso público de provas e títulos e
pela aprovação nos cursos de especialização realizados pelos aprovados na etapa do concurso
público. Desde a Constituição de 1988 é uma profissão destinada exclusivamente aos
bacharéis em direito, conforme art. 144, § 4º da Constituição. Embora ainda haja delegado
não formado em direito, a tendência é que daqui a um tempo os delegados sejam todos
formados em direito, o que de certa forma justifica a abertura de faculdades de direito
destinadas a classes populares. São os formandos por estas instituições que vão ocupar, por
exemplo, as ocupações dominadas no campo das profissões jurídicas, como a profissão de
delegado de polícia, por exemplo. “A ‘nata’ dos bacharéis que freqüentou as faculdades
tradicionais e mais competitivas estigmatiza a formação do delegado, cuja maioria é
proveniente de cursos de baixa competitividade”. (Bonelli, 2002, p. 205, 206)
Nem precisaria salientar que o risco que corre um delegado de polícia no Brasil, tanto
nos grandes centros urbanos quanto em cidades menores, é enorme. O perigo vem da
criminalidade, organizada ou não, e dos comandados, os policiais e funcionários da delegacia,
que lidam com um alto nível de corrupção, o que inclui traições, ameaças, chantagens,
denúncias e outras atitudes que tentam intimidar a boa atuação policial. Por esses motivos, o
nível de estresse a que está submetido um delegado também é enorme. Sem dúvida, é a mais
perigosa das profissões jurídicas, e a profissão que recebe a menor remuneração. Bonelli,
utilizando hipótese tipicamente eliasiana, acrescenta que “o fato de o delegado lidar com a
52
‘escória social’ e o de estar sujeito a imprevistos que ameaçam sua vida também se somam
para desvalorizar a profissão”. (2002, p. 206)
Na sexta grande família ocupacional, a dos defensores públicos e procuradores da
assistência judiciária (2424), estão previstas na CBO duas ocupações: defensor público,
defensor público estadual ou defensor público federal (2424-05); e procurador da assistência
judiciária (2424-10). Segundo a CBO, os defensores públicos e procuradores da assistência
judiciária,
Prestam assistência jurídica - integral e gratuita - aos cidadãos carentes de recursos
econômicos, por meio de orientação e de medidas judiciais e extrajudiciais,
possibilitando seu acesso à justiça em todas as instâncias. Para tanto, exercem
funções ordinárias, defendem o economicamente necessitado nas áreas penal, cível e
trabalhista. Propõem ações em defesa de direitos especiais, desempenham
atribuições extrajudiciais; exercem a curadoria especial. Desempenham funções
especiais e gerem a defensoria. (CBO 2002)
O ingresso na Defensoria Pública se dá por aprovação em concurso público de provas
e títulos. No Rio de Janeiro o concurso para a Defensoria está entre os mais difíceis e
concorridos para profissões jurídicas do estado. Essa situação não é muito diferente nos
demais estados brasileiros que possuem Defensoria Pública.
Dos estados brasileiros apenas Santa Catarina e Goiás ainda não possuem uma
Defensoria Pública montada e atuante. Nos estados com melhores indicadores econômicos e
sociais, como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, por exemplo, as defensorias são
compostas majoritariamente por mulheres. Segundo o diagnóstico “Defensoria Pública no
Brasil”, nestes estados o gênero feminino responde por 63,7% dos defensores públicos, com
uma média de idade em torno de 40 anos. (Brasil, 2004, p. 87) É provável que no Rio de
Janeiro, onde a Defensoria é a mais antiga do país, o percentual de mulheres seja ainda maior
que isso.
A sétima e última grande família ocupacional, a dos tabeliães e registradores (cód.
2413), não é de ingresso exclusivo a bacharéis em direito, podendo, concorrentemente,
desempenhar a profissão pessoas com experiência cartorária de pelo menos dez anos. A
família ocupacional conta com as seguintes ocupações: oficial de registro de contratos
marítimos, registrador de contratos marítimos ou tabelião de contratos marítimos (2413-05);
oficial do registro civil de pessoas jurídicas ou registrador civil de pessoas jurídicas (241310); oficial de registro civil de pessoas naturais ou registrador civil de pessoas naturais (241353
15); oficial do registro de distribuições (2413-20); oficial do registro de imóveis ou
registrador imobiliário (2413-25); oficial do registro de títulos e documentos ou registrador de
títulos e documentos (2413-30); tabelião de notas ou notário (2413-35); tabelião de protestos
ou tabelião de protesto de letras e títulos (2413-40).
A descrição sumária do grupo ocupacional, constante da CBO, diz que os tabeliães e
registradores,
Formalizam juridicamente a vontade das partes, no exercício da fé pública delegada
pelo Estado e de acordo com as determinações previstas em lei. Registram atos e
fatos jurídicos, tais como nascimentos, casamentos, óbitos e outros e também as
sociedades civis, associações e fundações, os títulos e documentos públicos e
particulares, as operações imobiliárias, os contratos marítimos e as embarcações
marítimas, a distribuição de títulos, feitos ajuizados e outros documentos; averbam
alterações em todos estes atos e fatos. Reconhecem a veracidade de documentos e
fatos, conferindo aos documentos forma e autenticidade legal e pública; aconselham
e prestam informações ao usuário do serviço. Conservam o acervo e gerenciam a
serventia. Prestam informações.
A fé pública para o exercício notarial e de registro é delegada por concurso público de
provas e títulos destinado a bacharéis em direito. Pode concorrer também pessoa não formada
em direito, desde que comprove dez anos de exercício em serviço notarial ou de registro,
normalmente como titular, substituto ou escrevente juramentado, legalmente nomeado. A
Constituição de 1988 permitiu a participação desses práticos do cartório com experiência
como forma de amenizar a passagem da profissão para o campo das profissões jurídicas,
mantendo os tabeliães e registradores que já estavam estabelecidos, e devido a uma possível
carência de bacharéis em direito no interior do país. Acabou se tornando uma profissão
semijurídica, se é que podemos falar assim.
2.3.3 Associações no Campo Jurídico Brasileiro
No Brasil, o associativismo no campo do direito vem se multiplicando nos últimos
anos, defendendo interesses profissionais e/ou direitos. Entre as associações profissionais, fica
a cargo dos advogados a maior expansão nessa área. Isso se deve à multiplicação de
especialidades advocatícias, que acaba gerando uma expansão das associações profissionais,
tendo uma (ou mais) associação para cada especialidade. Há de associação de advogados
tributaristas a advogados assalariados, passando por associação de advogados defensores de
54
médicos, odontólogos e hospitais e de advogados espíritas36. Há outras importantes
associações profissionais, como Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Associação
Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), entre os juízes. Ou, entre
os promotores e procuradores de justiça, a Associação Nacional dos Membros do Ministério
Público (Conamp).
Nas associações voluntárias do campo do direito, podemos destacar de entidades que
defendem direitos humanos a direitos do consumidor, passando por associações de defesa dos
animais e do meio ambiente. A intensificação das atividades associativas voluntárias pode ser
um indicador importante de democratização social na medida em que um aumento desse tipo
de associativismo pode significar uma apropriação social do direito como instrumento de luta
por transformações sociais e uma maior capacidade organizativa dos atores políticos
(cidadãos). No entanto, assim como ocorre com as cooperativas, que freqüentemente se
tornam fachadas de empresas privadas, algumas associações voluntárias foram cooptadas, ou
mesmo criadas, por corporações de interesses privados ou profissionais37.
2.3.4 Instâncias de Consagração das Profissões Jurídicas Brasileiras
As instâncias de consagração podem ser entendidas como espaços sociais destinados à
exaltação e exultação de figuras representativas em suas áreas de atuação ou em determinadas
atividades. Uma instância de consagração acaba servindo como espaço de conversão de uma
espécie de capital em outro, reforçando poder e status profissionais. No campo do direito as
instâncias de consagração por vezes extrapolam o próprio campo jurídico, realizando-se em
outros campos conexos, como o campo político, cultural ou social, por exemplo38. Não que
não haja instâncias de consagração própria ao campo jurídico. Para descrever brevemente
algumas dessas instâncias de consagração em que se realizam os profissionais do direito no
36
No anexo III há uma lista de associações que dá uma idéia da explosão do associativismo no campo jurídico
brasileiro. E o Anexo IV traz um breve levantamento de algumas Associações (Profissionais e/ou Voluntárias)
que compõem o campo jurídico do Rio de Janeiro.
37
Há uma série de estudos sobre essa questão, dos quais indico um mais recente que trata do tema de forma
bastante crítica: Koslinski, 2007.
38
A Academia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo, foi historicamente um importante reduto de
consagração para os profissionais do direito que se arriscavam também no campo cultural. Entre os bacharéis em
direito que já fizeram parte da ABL podemos destacar, entre outros, Clóvis Beviláqua, Joaquim Nabuco, Oliveira
Vianna, Pontes de Miranda, Raymundo Faoro e Rui Barbosa. Entre os atuais membros que são formados em
direito, destacamos Evaristo de Moraes Filho, Alberto Venâncio Filho, Afonso Arinos de Mello Franco, Candido
Mendes de Almeida, José Sarney e João Ubaldo Ribeiro. Sobre a ABL funcionar como instância de consagração
dos cientistas, a obra recente mais apropriada talvez seja Sá, 2006.
55
Brasil precisávamos reafirmar essa interconexão entre os campos próximos ao campo
jurídico. No entanto, vamos tentar enfatizar as instâncias de consagração próprias do campo
do direito no Brasil39. Nem todas as instituições que serão apresentadas ou citadas aqui são
apenas instâncias de consagração. Mas todas elas funcionam, de alguma maneira, também
como instâncias de consagração. A escassez de trabalhos analíticos sobre instâncias de
consagração do direito no Brasil faz com que empreendamos uma análise apoiada em grande
parte em nossa própria experiência.
Falar em instâncias de consagração no campo jurídico é falar de um modelo de
“sucesso” para as atividades profissionais ligadas ao direito. Este modelo de sucesso é
definido pelo próprio campo do direito ou por seus subcampos profissionais, como veremos.
No campo jurídico brasileiro, as instâncias de consagração profissional são subdividas em
seus respectivos subcampos profissionais. Assim, há instâncias de consagração referentes a
cada uma das profissões destinadas exclusivamente ao ingresso de formados em direito:
magistratura, MP, Defensoria, delegados de polícia. E há instâncias de consagração que
reúnem diferentes profissões jurídicas, como as academias de letras jurídicas ou o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). Às vezes a própria eleição para a diretoria de uma associação
profissional ou de luta por direitos já se constitui numa instância de consagração para os
profissionais do direito.
Na advocacia, a maior instância de consagração é o Instituto dos Advogados
Brasileiros (IAB), embora Bonelli (2002) o considere uma associação. Para ser membro do
IAB é preciso candidatar-se a uma vaga. Os requisitos para a candidatura são: 1) ser advogado
inscrito na OAB; 2) ser proposto por um dos membros efetivos, há mais de 5 (cinco) anos no
pleno exercício de seus direitos sociais; 3) ter trabalhos publicados, exceto peças forenses; 4)
Curriculum Vitae; e 5) certidão da OAB. Se a candidatura cumprir todos os requisitos, será
levada à votação pelos membros do instituto a fim de saber se o candidato será aceito ou não
como membro.
O IAB foi tido por Almeida, a partir de uma análise gramsciana, como “uma das
principais referências da cultura jurídica nacional” (2007, p. 21), um verdadeiro intelectual
orgânico no campo do direito, embora oscilando entre a crítica e a submissão à realidade
político-jurídica do país. O trabalho de Almeida demonstra que o IAB fora criado em 1843
39
No Anexo V há uma lista com algumas instâncias de consagração do campo jurídico brasileiro.
56
com o objetivo de que a instituição criasse a Ordem dos Advogados. Segundo ela, a
instituição foi criada originariamente como órgão governamental, mas “teria adotado uma
trajetória autônoma, entre outras razões, pela predisposição crítica assumida em relação à
Monarquia Imperial”. (2007, p. 19) Almeida afirma ainda que o IAB era uma “agremiação
com propósitos mais culturais do que disciplinares”. (2007, p. 74) E é este aspecto específico
que vamos relacionar com os artigos de Bonelli sobre o tema.
Sobre a história do IAB e da OAB e suas relações com o estado brasileiro, há além do
texto de Almeida, outros dois artigos de Bonelli (1998/1999; 2002) que precisam ser
mencionados. O primeiro artigo foi usado pela primeira vez num encontro da Associação de
Estudos Latino-Americanos, realizado em Chicago, em 1998 e foi publicado, com pequenas
modificações, na Revista Brasileira de Ciências Sociais um ano depois; o segundo, foi
publicado em 2002 num livro da própria autora em que publicou alguns de seus artigos sobre
o “mundo do direito”, como ela mesma chama. O primeiro artigo (Bonelli, 1998) está
disponível na internet com uma epígrafe usada deselegantemente para atacar as idéias da
autora epigrafada com a seguinte frase inicial: “Este artigo apresenta uma interpretação
distinta da acima sobre o processo de profissionalização dos bacharéis-advogados no Brasil,
durante o período imperial”. (Bonelli, 1998, p. 2) Uma versão modificada do segundo artigo
(Bonelli, 2002) foi publicada em inglês, em 2003, na prestigiosa revista Law & Social
Inquiry.
A autora busca estabelecer uma linha tênue entre as duas instituições, coisa que não
acontecia do ponto de vista do campo jurídico brasileiro que sempre teve o IAB como espaço
das elites intelectuais da advocacia brasileira. Bonelli vê profissionalização onde não havia,
como se a profissionalização da advocacia fosse a grande obsessão destas instituições. A
profissionalização da advocacia em muitos momentos, principalmente até à criação da OAB,
na década de 1930, não chegou a ser a principal preocupação do IAB, como demonstra
Almeida (2007) ao salientar o papel do IAB na política nacional. Aliás, as duas instituições
(IAB e OAB) sempre desempenharam papéis políticos na sociedade brasileira, mais até do
que papéis corporativos de classe.
57
Os artigos de Bonelli (1998/1999; 2002) sofrem, além de análises enviesadas40 e
anacrônicas41, de algumas inconsistências históricas. A autora, por exemplo, chama o IAB de
IOAB, mas o IAB só foi chamado de IOAB durante aproximadamente 35 anos de seus mais
de 160 anos de história, mais especificamente entre 1899 e 1934, o que torna a nomenclatura
usada por Bonelli incabível e incoerente.
A separação de atribuições destas instituições (IAB e OAB) foi resolvida durante o
processo recente de redemocratização política brasileira, em que ficou destinado ao IAB o
papel de palanque político da elite advocatícia, papel histórico da instituição, e à OAB, o de
instituição responsável pela defesa da profissão em seus aspectos mais técnicos, como bem
salienta Bonelli. (2002, p. 73, 74) Nos anos 1990, após mudança no Estatuto da Advocacia, o
IAB, que historicamente foi uma casa política de divulgação e consagração das idéias de
eminentes advogados brasileiros, passou a uma atuação crítica da sociedade brasileira, da
política brasileira e da própria OAB. É claro que estamos falando do IAB nacional, com sede
no Rio de Janeiro. Porque há também IABs estaduais, cuja importância no campo do direito é
quase nenhuma.
Há outras importantes instâncias de consagração na advocacia, como vagas nas
academias de letras jurídicas e nos tribunais de justiça dos estados pelo quinto constitucional.
As academias de letras jurídicas são instituições criadas pelos próprios profissionais do direito
como forma de produção de um status social e de reprodução de uma cultura iluminada. Já o
quinto constitucional, para desespero dos magistrados de carreira42 e até de advogados43, é um
40
A crítica que Bonelli faz a Larson (1977) é descabida porque apresenta de maneira equivocada as idéias de
Larson sobre projeto profissional e porque critica o que ela chama de um modelo típico-ideal descaracterizado
“por perder a dimensão de generalização que lhe é indispensável”. (Bonelli, 1999, p. 62) Bonelli parece não
reconhecer, por exemplo, a contribuição de Larson para a discussão do papel do Estado na profissionalização,
como apresentamos no início deste capítulo. Bonelli tenta demonstrar, mas não consegue, o que ela chama de
uma “fragilidade dos modelos analíticos centrados no mercado de trabalho” (1999, p. 63), modelo que ela
associa, erradamente, a Larson.
41
Para Bonelli, o que ela chama de IOAB revelava desde a sua origem uma certa “tendência à difusão da
ideologia do profissionalismo” (2002, p. 62), o que nos parece forçado. A autora inclusive usa de forma
equivocada o termo longa duração (longue durée) tão caro às primeiras gerações da Escola dos Annales. Ao
recuar até o Brasil Império para fazer sua análise sobre a profissionalização da advocacia, a autora diz que “se
trata de um período histórico de longa duração” (1999, p. 62), mas fica no nível dos eventos que apontem algum
contato com sua hipótese central de um profissionalismo no que ela chama de IOAB, sem descer ao nível das
estruturas, como queria Braudel.
42
A ANAMATRA, a partir de 2002, sob a presidência do Juiz Hugo Melo Filho, e a AMB, algum tempo depois,
entraram na luta política para derrubar o instituto do quinto constitucional na discussão da Reforma do
Judiciário, mas não obtiveram sucesso.
43
Cf. Haidar, 1999.
58
meio de ingresso de advogados e membros do MP, na segunda instância das magistraturas
estaduais ou nos tribunais superiores, visando, segundo o que consta, renovar a ótica das
decisões jurídicas. Conseguir uma indicação para assumir a vaga destinada ao quinto
constitucional da advocacia é tarefa nada fácil, o que requer um certo reconhecimento, dos
próprios pares, na atividade profissional da advocacia e/ou uma certa dose de articulações
políticas com vistas a ter seu nome escolhido, quer dizer, reconhecido pelos próprios pares.
Na magistratura as maiores instâncias de consagração profissional são, sem dúvida, os
tribunais superiores, STJ e STF. Mas a elevação do magistrado a desembargador do Tribunal
de Justiça de seu estado é uma grande honra para o profissional. Há ainda algumas academias
destinadas apenas aos magistrados, como, por exemplo, a Academia Paulista de Magistrados
(APM). O magistrado também pode ser eleito para mandatos nas associações profissionais da
categoria, como AMB, ANAMATRA ou associações estaduais de magistrados, por exemplo,
ou ainda ser escolhido para compor a corregedoria.
No MP, a promoção a procurador é a distinção mais esperada por um promotor de
justiça que tenha muitos anos na carreira. Mas não há duvidas de que este tipo de promoção
não obedece a critérios meramente objetivos, de antiguidade ou desempenho, por exemplo,
sendo a articulação política dos promotores indispensável para que seja elevado ao cargo de
procurador de justiça. Aliás, os arranjos políticos costumam dar a tônica em quase todas as
promoções que acontecem no campo jurídico brasileiro, acompanhando uma característica
comum às instituições brasileiras de consagração profissional e reforçando a proximidade do
campo do direito com o campo da política.
O membro do MP pode também ser eleito por seus pares para cargos da administração
institucional. O cargo mais importante, Procurador Geral de Justiça do Estado, é eleito pelos
membros do MP, normalmente depois de acirrada disputa interna, mas fica sujeito à lista
tríplice em que o governador escolhe entre os três mais votados pela instituição aquele que ele
julga mais adequado a ser nomeado para o cargo máximo do MP estadual44. Trata-se de cargo
político alinhado à política do governador, embora não submetido ao governo estadual,
podendo inclusive discordar desse governo. Mas isso normalmente não acontece,
transformando, na prática, o Procurador Geral em membro do secretariado do governador,
portanto, também submetido à sua política de governo.
44
No caso do Rio de Janeiro, só membros do MP com pelo menos dois anos de carreira podem candidatar-se ao
cargo máximo do Ministério Público.
59
Outra instância de consagração dentro do MP são os Conselhos Superiores dos
Ministérios Públicos estaduais, cujos conselheiros são eleitos entre membros do MP que
estejam na ativa, por seus próprios pares, para mandatos de um a dois anos, conforme cada
estado. (Brasil, 2006, p. 31) O Conselho Superior do Ministério Público é órgão de cúpula dos
MPs estaduais, responsável por discussão de políticas institucionais que visem a melhoria dos
serviços prestados pelo MP e, embora não abertamente, os rumos político-ideológicos
tomados pela instituição45. Há ainda a possibilidade de eleição dos membros do MP para o
quadro diretivo da associação profissional da categoria nos referidos estados de atuação ou em
nível nacional, o que não deixa de ser também uma instância de consagração, como já
dissemos. Na estrutura do Ministério Público da União (MPU), há quatro MPs com áreas de
atuação e estruturas organizacionais distintas: Ministério Público Federal (MPF), Ministério
Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Militar (MPM) e Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios (MP-DFT). Os três primeiros têm seus próprios conselhos
superiores, que servem também de instâncias de consagração. O MPU também tem seu
Conselho de Assessoramento Superior.
Por fim, os membros do MP podem ser escolhidos para integrar a corregedoria da
instituição, verdadeira instância policial na instituição, responsável pela investigação de
“deslizes” cometidos por promotores e procuradores de justiça no exercício ou não de sua
atividade profissional. Em geral, são os membros mais antigos do MP que são escolhidos para
a corregedoria, o que torna este espaço de atuação mais conservador, como veremos no
capítulo 4.
Na Defensoria Pública as instâncias de consagração estão mais distantes dos
defensores públicos, ficando restrita à participação na estrutura administrativa da instituição, o
que decorre de uma candidatura e eleição pelos próprios pares. Não há mudança de status
profissional fora das disputas internas das chapas fechadas que se candidatam aos cargos da
estrutura administrativa da instituição. Não há uma categoria especial de defensor público,
como o MP tem os procuradores de justiça. Todos os defensores são defensores públicos,
independente do tempo de casa. Só se tornam Defensor Público Geral ou Sub-Defensor
Público Geral os eleitos para esses cargos, para um mandato de quatro anos, após apresentar
candidatura e fazer campanha entre os pares. Podem ser eleitos também para as associações
45
No estado do Rio de Janeiro o Conselho Superior do Ministério Público é composto de oito membros eleitos e
dois membros natos, o Procurador Geral e o Corregedor Geral.
60
profissionais da categoria em níveis estadual ou nacional e para os Conselhos Superiores das
defensorias estaduais. A Defensoria Pública da União foi criada a partir da Constituição de
1988 e ainda está se estruturando, não contando com um Conselho Superior, embora essa
tendência deva ser seguida. A corregedoria também pode ser um caminho de consagração
para os defensores públicos.
Entre os delegados de polícia, que é a mais nova profissão de acesso exclusivo a
bacharéis em direito, as instâncias de consagração estão diretamente relacionadas à luta da
categoria por melhores salários e status. Portanto, destacam-se os diretores dos sindicatos da
categoria e os eleitos para as associações profissionais ou corregedorias de polícia. Assim
como os defensores públicos, os delegados de polícia também não têm muitos espaços
destinados ao exercício da consagração profissional na carreira, provavelmente pela dimensão
menor de poder que exerce dentro dos campos das profissões jurídicas e do direito, o que está
também diretamente ligado ao volume de trabalho e ao risco na execução desses trabalhos.
Dentro do campo das profissões jurídicas, os delegados ocupam a base da estrutura de
estratificação, segundo seus próprios pares. (Cf. Brasil, 2004, p. 107)
No caso dos tabeliães e registradores, há uma coincidência entre atuação profissional e
instância de consagração. Porque os “donos de cartórios”, como são chamados esses
profissionais, ainda tem um grande poder social no Brasil. Sua atividade profissional e sua
instância de consagração se realizam no mesmo lugar, no próprio cartório. Às vezes a
instância de consagração nesse ramo profissional está ligado à infra-estrutura e localização
dos cartórios, valendo como moeda de diferenciação social a própria riqueza material auferida
com a atividade, o que pode ser também demonstrado pelo embelezamento ou ampliação dos
cartórios.
Encerramos este capítulo afirmando a complexidade organizativa e de atuação das
profissões jurídicas brasileiras e a importância da estrutura burocrática para o sistema de
justiça, para abrigar as diferentes carreiras jurídicas e permitir seu desenvolvimento funcional.
Outro aspecto que fica marcado é que a diferenciação entre as carreiras jurídicas implica um
alto nível ideológico e de poder social das profissões do direito. Embora esse poder das
profissões jurídicas se estabeleça sobre a sociedade brasileira como um todo, ele não é
uniforme em todas as carreiras jurídicas, como veremos melhor no último capítulo. Há
carreiras mais prestigiadas e outras menos prestigiadas dentro do campo do direito. E são as
entidades representativas das diferentes profissões que mediam as lutas por poder dentro da
61
sociedade e do campo do direito. Por fim, fica clara a importância do campo político para o
campo jurídico, na composição política dos poderes alcançados e almejados por cada carreira
jurídica e na legitimação do poder social do campo do direito. A seguir faremos uma
discussão sobre as profissões jurídicas no Brasil, com ênfase nos períodos da ditadura militar
e da redemocratização política do país.
62
3 EXPANSÃO DAS PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL: elaboração e
execução de um projeto profissional a partir da redemocratização política.
Neste capítulo argumentaremos que as profissões jurídicas realizaram, mesmo que de
maneira não-homogênea e um pouco incompleta, a partir do processo de redemocratização
política do país, um projeto profissional organizado principalmente em torno da
monopolização do mercado de serviços jurídicos e de aumento do prestígio social das próprias
profissões jurídicas, sob a égide da ideologia da democratização social após anos de
autoritarismo. Num certo sentido pode-se dizer que o trauma social produzido pela presença
da ditadura militar teria sido utilizado pelas profissões jurídicas, mesmo que sem consciência
disso, como instrumento ideológico para expansão da legitimidade e do poder social das
próprias profissões jurídicas, o que se realizou efetivamente na Constituição de 1988. Este
projeto profissional foi idealizado e executado na própria prática social dos profissionais do
direito, individual e coletivamente. Provavelmente sem que os profissionais do direito
soubessem onde iria dar suas reivindicações, muitas delas legítimas. Talvez eles desejassem
apenas maior liberdade para sua atuação profissional, mas acabaram conquistando mais que
isso: foram elevados à categoria de agentes indispensáveis à democracia e ao estado
democrático de direito, com previsão constitucional e tudo. O poder conquistado pelas
profissões jurídicas a partir do processo de redemocratização política do país teve
conseqüências sobre o campo jurídico e o campo político. Antes de chegarmos a esse aspecto
central de nosso argumento nesse capítulo, precisaremos dar uma passeada pela história das
profissões jurídicas no Brasil.
3.1 PRIMEIROS JURISTAS BRASILEIROS
No Brasil, por muito tempo, fazer direito era garantia de empregos em cargos públicos
e de ascensão social. (Micelli, 2001) O termo bacharel, que caracteriza os formados em cursos
superiores, já foi sinônimo de pessoa formada em direito. Antes da Coroa se estabelecer no
Brasil, os brasileiros que queriam fazer curso superior tinham de ir para a Europa,
principalmente para Coimbra. Foi em Coimbra que se formaram os primeiros advogados
brasileiros46 e que alguns dos chamados inconfidentes (Cláudio Manoel da Costa, Silva
Alvarenga e Tomas Antonio Gonzaga, por exemplo) tomaram conhecimento de idéias que os
estimularam a nutrir a esperança de um Brasil livre de Portugal. Mesmo que Coimbra não
46
Neder (2000) faz um bom apanhado dos estudantes de direito em Coimbra até o século XIX.
63
representasse um grande modelo de circulação das idéias liberais, como afirma Carvalho,
(2006, p. 183), e que os inconfidentes não tivessem um projeto democratizante para o Brasil, a
formação deles em Coimbra, principalmente por sua socialização, serviu como esteio do
questionamento da relação Metrópole-Colônia.
Após a independência do Brasil, foram criados dois cursos de direito a partir de 1827,
um em São Paulo e outro em Olinda, posteriormente transferido para Recife. Neste mesmo
contexto histórico foram criados os cursos de medicina, Academia Imperial de Medicina
(1835), e engenharia, Escola Militar da Corte (1839). Mas fazer um curso superior era algo
reservado às elites.
A independência do Brasil criou condições necessárias à implantação dos cursos de
direito e permitiu um aumento do número de bacharéis nesta área devido à carência de
profissionais para montar a estrutura burocrática do incipiente estado brasileiro. Os cursos de
direito foram criados pelo Império e inicialmente regulados pelos estatutos do Visconde de
Cachoeira, que foi o autor dos estatutos de funcionamento de um curso jurídico na Corte,
criado por um decreto de nove de janeiro de 1825, mas que não chegou a sair do papel.
Segundo Venâncio Filho,
os estatutos do Visconde de Cachoeira colocam no início como objetivo dos cursos
jurídicos “formar homens hábeis para serem um dia sábios magistrados e peritos
advogados de que tanto se carece” e outros que possam vir a ser “dignos deputados e
senadores para ocuparem os lugares diplomáticos e mais empregos do Estado”.
(1982, p. 31)
Raymundo Faoro, analisando a educação superior no império, assinala que o “governo
preparava escolas para criar letrados e bacharéis que se incorporavam à burocracia, regulando
a educação de acordo com os seus fins”. (1973, p. 224) No mesmo sentido, mas referindo-se
às faculdades de direito durante a República Velha, Sérgio Miceli afirma que a
faculdade de direito era a instância suprema no campo de produção ideológica,
concentrando inúmeras funções políticas e culturais. [...] ocupava posição
hegemônica por força de sua contribuição à integração intelectual, política e moral
dos herdeiros de uma classe dispersa de proprietários rurais aos quais conferia uma
legitimidade escolar. [...] atuava ainda como intermediária na importação e difusão
da produção intelectual européia, centralizando o movimento editorial de revistas e
jornais literários; fazia as vezes de celeiro que supria a demanda por elementos
treinados e aptos para assumir os postos parlamentares e os cargos de cúpula dos
órgãos administrativos, além de contribuir com o pessoal especializado para as
demais burocracias, o magistério superior e a magistratura. (2001, p. 115)
64
José Murilo de Carvalho (2006, p. 84) demonstra com números como os bacharéis
ocuparam gradativamente os cargos públicos no Brasil ao longo do século XIX. Muitos
bacharéis eram oriundos das elites rurais brasileiras. Basta lembrar que o Brasil colônia era
eminentemente rural, com intensas atividades extrativistas e agrícolas destinadas à
exportação. As elites rurais ficaram então responsáveis pela urbanização e modernização do
novo país que surgia ao assumir cargos na administração do estado.
Aqui as profissões liberais se tornaram uma estratégia das elites rurais para tentar
revigorar seu decadente prestígio47, mesmo que se transformasse em outra elite – urbana ou
intelectual, por exemplo48. Holanda afirma que “com o declínio do velho mundo rural [...]
essas novas elites estariam naturalmente indicadas para o lugar vago. Nenhuma congregação
achava-se tão aparelhada para o mister de preservar [...] o teor essencialmente aristocrático de
nossa sociedade tradicional”. (1995, p. 164)
Mas se as elites rurais brasileiras formaram as primeiras gerações de bacharéis no
século XIX, o aumento da produção de bacharéis ao longo do mesmo século colocou em
cheque a própria intelectualidade bacharelesca. Sérgio Miceli afirma que quase todos os
escritores modernistas eram originários de antigas famílias dirigentes e que a partir da década
de 30 houve uma inflação de cursos de direito em decorrência de reformas educacionais
promovidas pela República Velha. Para ele,
O diploma superior deixara de ser um símbolo de apreço social como o fora para os
proprietários de terras, ou então, um sinal de distinção capaz de validar lucros
provenientes de outras atividades econômicas das famílias dirigentes. [...] O
contingente de bacharéis que pressionava o mercado [...] começou a utilizar o
diploma como sendo uma prerrogativa da qual só se podia esperar vantagens
estritamente profissionais. (2001, p. 119)
Os bacharéis tinham uma grande visibilidade social em fins do século XIX e início do
século XX porque alcançavam postos na burocracia estatal, na política nacional, na imprensa
47
Leal (1975) mostra que a força do coronelismo decorria do enfraquecimento do poder privado local frente ao
avanço do poder público federal a partir de 1930. A saída encontrada pelas elites rurais decadentes foi promover
uma associação política com o poder público, servindo eles mesmos de intermediários entre o estado e os
indivíduos atomizados. A dificuldade que o estado tinha de se fazer chegar ao interior do país era minimizada
por essa associação política entre governo e elites rurais, o que devolveu poder às elites rurais até então
decadentes e deu origem ao chamado coronelismo.
48
Assim como Norbert Elias fez no capítulo VIII de “A sociedade de Corte” (2001), podemos apontar uma
relação entre o Romantismo na literatura brasileira e a constituição das novas elites intelectuais vindas do espaço
rural brasileiro para o urbano. Temas recorrentes do Romantismo são a saudade do campo, a simplicidade e a
idealização do passado perdido.
65
e na literatura49. Tal visibilidade talvez tenha contribuído para a sensação de que os bacharéis
estavam se proliferando na sociedade brasileira. Interessante que naquela época o prestígio do
bacharel estava mais atrelado ao desempenho de suas atividades político-partidárias e
artísticas na sociedade do que propriamente de sua atuação profissional, como advogado,
magistrado ou outro profissional do direito. Carvalho (2006), ao demonstrar a homogeneidade
da elite imperial brasileira pela via de sua formação, de certa forma acaba dando a Adorno
(1988) a hipótese para desenvolvimento de sua pesquisa de doutorado, onde reafirma o papel
mais político-cultural das primeiras faculdades de direito.
Outro fator que contribuiu para a idéia de que o bacharel estava tomando conta da
realidade social das grandes cidades brasileiras do final do século XIX era que, naquela
época, havia uma subcategoria de advocacia desempenhada por práticos do foro, que não
precisavam passar por uma faculdade de direito, o que aumentava ainda mais o número de
profissionais do direito. Eram os advogados provisionados e os solicitadores. Edmundo
Campos Coelho resume bem as características e atribuições destes práticos e os problemas
relacionados ao aumento deste contingente de profissionais:
Advogados provisionados, aqueles que, não tendo graus acadêmicos das escolas de
direito, submetiam-se a exames teóricos e práticos da jurisprudência pelos
presidentes dos tribunais da Relação. Podiam procurar penas nos tribunais de 1ª
instância e nos lugares onde não houvesse advogado formado ou os houvesse em
número insuficiente para o bom andamento da justiça. Finalmente havia os
solicitadores, sem diplomas como os provisionados, que submetiam-se pelos juízes
de direito a exames apenas sobre a prática do processo. Tantos estes quanto os
advogados provisionados necessitavam requerer renovação de suas licenças ou
provisões no prazo de dois a quatro anos. [...] Na prática, interesses os mais diversos
criavam desvios que os repetidos avisos ministeriais eram incapazes de corrigir.
Presidentes de Relação concediam número exagerado de provisões, presidentes de
província usurpavam a atribuição de concedê-las ou eram as provisões concedidas
para lugares onde já era bastante o número de bacharéis. O advogado provisionado
podia livrar-se da inconveniência da renovação periódica de sua licença pagando a
taxa de 60$ (em 1841) pelo “emprego vitalício de advogado não formado” ou
provisão vitalícia e tendo notório saber e influentes relacionamentos, poderia obter
do governo a condição de doutor em leis. (Coelho, 1999, p. 167, 168)
Um terceiro fator explicativo da expansão dos bacharéis no início do século XX foram
as reformas educacionais de Benjamim Constant, de 1891, que acabaram com o monopólio
dos dois cursos jurídicos do Brasil e a reforma Rivadávia Corrêa, de 1911, que retirou do
estado o poder de interferência no setor educacional, e que ficou conhecido como “ensino
livre”. Sérgio Miceli mostra que as reformas pedagógicas implementadas durante a República
49
Já mostramos em artigo (Santos, 2007) como a obra de Lima Barreto, entre outros intelectuais e artistas do
início do século XX, pode servir como fonte para reflexão sobre a visão que se tinha dos bacharéis naquela
época.
66
Velha estimularam o aparecimento de novas faculdades de direito, afetando “diretamente as
reservas do mercado de postos até então monopolizados pelos detentores de diplomas
concedidos pelos cursos superiores oficiais”. (2001, p. 117) De qualquer maneira havia sim
um aumento da produção de bacharéis e da visibilidade desses bacharéis na sociedade
brasileira.
3.2 PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL APÓS O FIM DA REPÚBLICA
VELHA
A imagem dos profissionais do direito até o início do século XX era um tanto quanto
denegrida para alguns intelectuais e escritores da época, como mostramos em artigo anterior.
(Santos, 2007) Ao longo daquele século os profissionais do direito no Brasil consolidaram sua
posição e seu papel na sociedade brasileira, contribuindo também para a consolidação da
própria profissão que escolheram. Mas não alteraram muito sua imagem social. Em torno da
década de 1930, período em que o Brasil passava por transformações sociais decisivas50, os
profissionais do direito e alguns intelectuais brasileiros debatiam os rumos da estrutura
política brasileira e o papel dos juristas, além dos cargos a serem ocupados por estes, no
projeto político brasileiro após o fim da República Velha. Personagem importante neste
momento foi Oliveira Vianna.
Dono de posições polêmicas, como a atribuída a ele de defesa da eugenia, Oliveira
Vianna, foi importante intelectual nacionalista e que exerceu bastante influência nos governos
Vargas. Em 1930, ainda durante a campanha presidencial, reuniu e publicou em livro alguns
de seus artigos, que haviam sido originalmente escritos para jornais brasileiros a partir de
1918, defendendo uma reforma na estrutura política brasileira. O livro intitulou-se “Problemas
de política objetiva”.
Na quarta parte do livro, em que trata dos “conselhos técnicos nos governos
modernos”, escrito em 1928, ele defende a organização das profissões para atuar em
conselhos técnicos a fim de exercer um papel mais efetivo de influência e pressão sobre os
50
Miceli afirma que: “As décadas de 1920, 1930, e 1940 assinalam transformações decisivas nos planos
econômico (crise do setor agrícola voltado pra exportação, aceleração dos processos de industrialização e
urbanização, crescente intervenção do Estado em setores-chave da economia etc.), social (consolidação da classe
operária e da fração de empresários industriais expansão das profissões de nível superior, de técnicos
especializados e de pessoal administrativo nos setores público e privado etc.), político (revoltas militares,
declínio político da oligarquia agrária, abertura de novas organizações partidárias, expansão dos aparelhos do
Estado etc.) e cultural (criação de novos cursos superiores, expansão da rede de instituições culturais públicas,
surto editorial etc.)”. (2001, p. 77)
67
políticos, numa clara referência ao corporativismo51. Quando Oliveira Vianna fala de
profissões não está dando ainda o enfoque que a sociologia das profissões viria a dar
posteriormente, embora a noção de vocação à realização de um serviço voltado para a
sociedade já estivesse presente, como nos funcionalistas.
Profissões para ele são grupos sociais, pensados como grupo de pessoas que se
identificam em torno de sua atuação profissional, como grupos que criam identidades no (e
para o) exercício do trabalho. A noção de profissão de Oliveira Vianna é muito próxima do
senso comum, pensando a profissão como possibilidade de atuação num mercado de trabalho.
Assim, profissão e trabalho são praticamente sinônimos52, sendo um locus de
desenvolvimento de um saber prático, um saber voltado para o fazer: fazer algo para a qual só
o profissional está habilitado. Ele toma a ideologia do avanço da ciência como ponto
axiomático e obedece a uma lógica do progresso inexorável conduzido pelo saber técnicocientífico: só o profissional, técnico capacitado e habilitado, pode dar parecer sobre sua área
de atuação.
Uma das grandes causas da falência de muita legislação no Brasil, ou da ineficiência
de muita medida administrativa, está justamente em que umas e outras têm sido
feitas sem essa consulta prévia às classes interessadas, sem a audiência e o conselho
dos “profissionais”, dos “técnicos”, dos “práticos do negócio”53. (Oliveira Vianna,
1974, p. 116)
A criação dos conselhos consultivos cumpriria um papel democrático na sociedade
brasileira porque, segundo ele, é nas organizações profissionais que se encontrariam “as
fontes de informações mais seguras dos interesses coletivos”. (p. 116) Com isso, ele acredita
que os grupos profissionais, como atores sociais coletivos, se colocariam em igualdade de
condições diante do poder político (estado), discutindo e reivindicando de igual para igual
com outros atores sociais coletivos (profissões). Profissões elitistas e aquelas que eram pouco
prestigiadas se colocariam em pé de igualdade simplesmente porque todas elas seriam
importantes para a manutenção da funcionalidade do corpo social.
51
Contemporâneo de Oliveira Vianna, Felix Contreiras Rodrigues (1933) defende que antes de pensar em
representação profissional seria preciso organizar as profissões, porque, segundo ele, o Brasil não tinha classes
nem profissões organizadas. E porque, segundo ele, naquela época a representação dos trabalhadores estava
sendo bem feita pelos sindicatos católicos.
52
Para não tratar profissão e trabalho como sinônimos completos em Vianna, podemos dizer que ele pensa as
profissões como agrupamentos identitários e o trabalho como atividade, ação. Às vezes ele dá a entender que
profissão é coletividade e trabalho exercício individual.
53
Vianna afirma isso sem atentar para o fato de que a maioria dos legisladores brasileiros e grande parte dos
membros da burocracia estatal eram formados em direito, como mostra Carvalho (2006).
68
Fica evidente na quarta parte do livro de Oliveira Vianna a referência ao (ou
preocupação com o) espaço de atuação dos profissionais do direito na estrutura política
brasileira. Para ele, é preciso distinguir política de técnica. E criar leis seria um ato típico dos
técnicos, dos especialistas do assunto, no caso, os juristas. Ele chega a afirmar, em itálico, que
“por toda parte a competência técnica vai substituindo a competência parlamentar”. (p. 121)
Fica a dúvida sobre qual seria a função do político numa sociedade praticamente governada
por técnicos, como ele propõe. Numa longa nota de rodapé ele esboça uma resposta a esta
questão, citando Finney, mas que não vai além de uma divagação, não se coadunando com
seu espírito pragmático, objetivo:
O homem-de-estado vê em conjunto; o técnico vê em detalhe. O técnico conhece o
seu setor, sabe o que contém dentro dele; mas, não sabe o que pertence a outros
setores, a outras especialidades. O homem-de-governo, o estadista, este, ao
contrário, tem pela própria altitude do seu espírito de homem-de-estado,
possibilidade de conhecer e aprender as “relações”, como diria Finney, entre todos
estes setores, numa visão panorâmica e integral – e decide, então, de acordo não
rigorosamente com o parecer do técnico (limitado na sua visão justamente por ser
um especialista), mas de acordo com esta visão complexiva e de conjunto. (p. 142)
A análise de Oliveira Vianna está focada sobre a realidade brasileira, fazendo jus ao
seu nacionalismo, mas ele garante que este tipo de atuação técnica das profissões está em
franca expansão no mundo todo, naquela época, citando até alguns países, como Inglaterra,
Bélgica e França, por exemplo54. O uso dos conselhos técnicos seria um dos aspectos
responsáveis por tornar modernos os governos destes países citados por ele. Parece que ele,
em alguns momentos, confunde burocratização, num sentido mais weberiano de avanço da
técnica e organização/administração da sociedade, com corporativismo, no sentido de corpos
intermediários entre o estado neutro e os indivíduos e grupos sociais55.
Schwartzman (1987b) afirma que “no Brasil houve muito de paternalismo, cooptação
de lideranças sindicais, formalismo e burocratização do ensino e organização das profissões,
mas pouco, efetivamente, de corporativismo”. Talvez isto tenha acontecido em decorrência da
confusão que os próprios intelectuais defensores do corporativismo faziam daquele sistema
sócio-político, como no caso de Oliveira Vianna. Carvalho chega a afirmar que “o
54
Em relação à Inglaterra, Oliveira Vianna fala do papel do Gabinete e do Secretariado do Gabinete, que
auxiliariam tecnicamente o Primeiro-Ministro a tomar decisões políticas. Em relação à Bélgica, Vianna destaca
as “sondagens” feitas para elaboração de leis sociais. Na França, Itália e Alemanha ele destaca os Conselhos
Econômicos como Conselhos técnicos encarregados de ouvir os interesses econômicos e de classe a fim de dar
suporte a políticas nacionais mais próximas das expectativas sociais.
55
Nunes apresenta o corporativismo como “processo racional, legalmente protegido, de acumulação de riqueza e
poder”. (2001, p. 75)
69
autoritarismo para ele [Oliveira Vianna] era uma técnica, uma engenharia social, um caminho
para países como o Brasil chegarem ao moderno capitalismo. A ele cabia com propriedade a
definição de autoritário instrumental”. (1991, p. 14) Outra confusão que Oliveira Vianna
parece fazer é entre conselhos técnicos e associações profissionais. Mas não podemos dizer
que as expectativas de Oliveira Vianna por um aumento de poder das profissões jurídicas a
partir da adoção de um modelo mais tecnicista não tenham se realizado na sociedade
brasileira, mesmo que num momento posterior, graças também às suas próprias contribuições,
como veremos mais adiante.
3.3 PROFISSÕES DO DIREITO E DITADURA MILITAR
Durante a ditadura militar os profissionais do direito desempenharam papel ambíguo
na sociedade brasileira e no combate à repressão militar: uma parte ousou desafiar a ditadura
militar, outra parte preferiu seguir a vida e fingir que nada acontecia. Era um período de
exceção e os direitos fundamentais eram negados pelos famigerados Atos Institucionais e pela
Lei de Segurança Nacional, que instituiu a pena de morte para os traidores do regime
ditatorial vigente56. Neste momento era difícil atuar como advogado num estado que nem era
democrático, nem de direito. Parte da OAB e alguns importantes advogados brasileiros
defenderam os presos políticos ou militaram contra a ditadura, tendo sido perseguidos e
torturados pelos militares ou a mando deles. Alguns desapareceram ou foram assassinados.
Outros foram cassados. E outros ainda foram tolerados em suas atividades políticoprofissionais pela ditadura militar, mais pela importância que seus nomes tinham no cenário
nacional, como é o caso de Raymundo Faoro, Técio Lins e Silva e Heleno Fragoso, por
exemplo.
A OAB, institucionalmente, tentou por várias vezes, pela via político-jurídica,
restabelecer o estado democrático de direito, porque a ditadura militar feria a ordem jurídica
democrática e a moral, e interferia diretamente na atuação profissional dos advogados. Em
1980, o episódio da carta-bomba endereçada ao presidente do Conselho Federal da OAB,
Eduardo Seabra Fagundes, e que explodiu nas mãos da funcionária Lyda Monteiro da Silva,
matando-a na hora, parece ter sido emblemático da pressão que a OAB fazia pela restauração
56
Importante ressaltar que o período da ditadura militar não foi homogêneo, havendo diferentes fases na ditadura
militar, passando de governos moderados a governos linha dura, e vice-versa, como destacam Carvalho (2001, p.
157, 158) e Fico (2001, p. 18).
70
da democracia no país e do quanto esta pressão incomodava alguns setores favoráveis à
ditadura.
É claro que nem todos os advogados e membros das diretorias da OAB foram
militantes contra a ditadura. Houve quem apoiasse veladamente e quem apoiasse abertamente
o terror militar. Mas, no campo do direito os advogados talvez tenham sido os mais
prejudicados em sua atuação durante aquele período, e os mais perseguidos. Juízes e outros
profissionais do campo do direito não tiveram tanta atuação durante a ditadura militar, ou
porque eram nomeados pelo governo, ou porque apoiavam o regime autoritário, ou porque
eram indiferentes à ordem vigente.
Merton (1970) diria que aqueles magistrados perderam a consciência de seu papel na
sociedade porque se dedicaram demais à realização de tarefas burocráticas. Muitos juristas
que faziam parte da estrutura burocrática brasileira se tornaram parte da própria estrutura57.
Talvez tenham perdido de vista a dimensão política de suas tarefas e atuado como técnicos
apolíticos, que precisavam cumprir as ordens, sem se dar conta de que a estrutura políticojurídica não era mais democrática. Respeitaram cegamente o princípio da inércia da jurisdição
e ficaram esperando os cidadãos brasileiros ativarem os órgãos jurisdicionais em busca da
desconstituição do regime autoritário vigente. Ou talvez tenham se sentido incapazes de fazer
diferente, porque foram talhados para servir e não para questionar a ordem vigente ou a
origem do poder político que dirige, em última instância, a estrutura burocrática a que ele
serve.
José Reinaldo de Lima Lopes afirma que o “Judiciário aceitou e de certo modo
legitimou esta intromissão de um outro poder nas suas funções mais próprias, isto é, nas
funções de dizer o direito. Este período histórico deixa patente como, através de seus órgãos
de cúpula, o Judiciário abdicou de sua autonomia”58. (1989, p. 128)
57
Carvalho, analisando os magistrados que eram políticos no Brasil Império mostra que eles desempenharam
papel ambíguo por ficarem refém da estrutura burocrática a que serviam, preocupados em “votar contra o seu
governo”, e foram derrotados em projeto de lei que proibia funcionários públicos, leia-se também juízes, de se
candidatarem a cargos políticos. (2006, p. 181)
58
José de Souza Martins (1980, p. 27; 1983, p. 16) afirma que durante a ditadura militar intensificou-se a
grilagem de terras nas áreas rurais e na Amazônia Legal, expropriando as terras dos antigos posseiros. Essas
expropriações eram feitas com decisões judiciais e, muitas vezes, com a presença do juiz in loco. A atuação
desses juízes apoiava o projeto dos militares de ocupação da Amazônia para fins econômicos, principalmente,
para ampliação da pecuária de corte com vistas à exportação.
71
O Ministério Público também não desempenhou papel tão relevante no enfrentamento
da ditadura militar. Pelo contrário, serviu à ditadura militar, principalmente através de seu
órgão de comando, a Procuradoria Geral da República. O MP naquela época estava vinculado
ao Executivo e teve seus poderes ampliados pela própria ditadura militar com vistas a
legitimar o governo autoritário a partir de um controle da legalidade, de uma legalidade
arbitrária. (Arantes, 2002, p. 39) Se a noção de justiça não tivesse passado tão longe dos
intelectuais-burocratas do direito, poderiam ter invocado a teoria da imprevisão em sua
atuação profissional: os pactos devem ser cumpridos, desde que não se alterem as condições
(sociais, políticas, econômicas e/ou jurídicas) em que eles foram celebrados.
3.3.1 O Terror Militar
Embora nem todos os militares apoiassem o terror como forma de fazer política, ou de
dominação, a ditadura militar acabou passando para a história como um regime repressor e
torturador. Segundo Carvalho, “a montagem dos aparelhos de repressão criara dentro das
forças armadas um grupo quase independente que ameaçava a hierarquia. Esse grupo
envolvera-se em repressão e tortura, jogando sobre os militares como um todo o estigma de
torturadores”. (2001, p. 174, 175) Kushnir é mais radical e entende que a ditadura militar deve
ser responsabilizada pela imagem social que ficou dos militares, uma vez que foi a própria
ditadura militar que montou a estrutura repressiva e que os militares estiveram por trás dos
atos de repressão e terror. Analisando especificamente os censores ela afirma que
Esses funcionários públicos [os censores] foram sempre executores de medidas,
nunca os formuladores. Verdadeiros cães de guarda, durante a vigência de censura
prévia, ligavam para as redações dos jornais de todo o país para instruir o coibido.
Iniciavam afirmando: “De ordem superior, fica proibido...”. (2004, p. 23)
A ditadura militar foi, sem dúvida, um trauma na sociedade brasileira. Fico afirma que
“a ditadura militar, de algum modo, continua nos assombrando, tantos são os ‘cadáveres
insepultos’”. (2004, p. 10) E Carvalho fala em “experiência traumática”. (2006B, p. 119) A
censura, a repressão, a tortura, o exílio, as apreensões e destruições de “materiais
subversivos”, as denúncias anônimas, o cerceamento de direitos básicos, como o de ir e vir e o
de associação voluntária, foram sinais claros de um poder que deixou marcas profundas na
72
sociedade brasileira59. Marcas que precisarão ser reconhecidas, assumidas, e enfrentadas,
tratadas, para, quem sabe, um dia serem apagadas.
O professor Afonso Carlos Marques dos Santos, em sua tese de doutoramento em
História pela USP, justifica, de certa forma, a ausência de movimentos contestatórios à
dominação colonial no Rio de Janeiro do final do século XVIII a partir do terror/medo da
Metrópole. Ele argumenta que os cariocas, e também os mineiros, passaram a conviver com o
medo da Metrópole após presenciarem o terror da realização da devassa e da execução de
Tiradentes no Rio de Janeiro. Santos demonstra que mesmo com todo o medo presente na
sociedade havia uma insatisfação dos cariocas, principalmente por parte da elite colonial, com
o governo do vice-rei, o conde de Resende. Mas essa insatisfação não se transformava em
ação concreta de oposição política à Metrópole porque a desmobilização de um possível
levante era feito pela cooptação e pelo terror. Santos utiliza a perseguição sofrida pelo juiz de
fora Baltasar da Silva Lisboa e um grupo de letrados do Rio de Janeiro para, como ele mesmo
diz, “penetrar um pouco mais na ambiência política e social dessa fase que pretendemos
compreender”. (1992, p. 43)
Segundo ele, a violência pública já era amplamente utilizada como instrumento de
desmobilização social pela via do terror estatal em outras colônias portuguesas, como em
Goa, por exemplo. (1992, p. 58-62) Para Santos, o projeto de nação no Brasil nunca saiu do
papel, não deixou de ser apenas um rascunho, como um papel rabiscado, amassado e jogado
num canto qualquer, sem importância. E isso porque as forças repressivas e cooptativas da
Metrópole souberam muito bem desarticular os movimentos de independência da colônia
portuguesa na América. Por fim, ele afirma que o antilusitanismo e os movimentos
autonomistas no Brasil já tomavam conta da sociedade brasileira a partir da última década do
século XVIII quando Portugal começou a discutir a idéia de Império no Brasil. Para Santos,
“a idéia de império luso-brasileiro foi a contrapartida mais eficaz para arrefecer as tendências
autonomistas no Brasil na última década do século XVIII”. (1992, p. 132) Ele apresenta como
documento histórico uma carta, datada de 30 de maio de 1801, do marquês de Alorna a D.
João em que o marquês chama o príncipe regente a vir para o Brasil com toda a Corte para
59
Tema que provavelmente renderá importantes contribuições para o estudo da ditadura militar brasileira é o do
impacto da ditadura nas instituições brasileiras pela via das permanências históricas de práticas comumente
realizadas durante a ditadura militar, como a espionagem, o denuncismo, a perseguição política ou a censura. Em
particular, as práticas autoritárias que continuam vivas nos dias de hoje no interior das instituições brasileiras,
algumas das quais foram ícones da resistência à ditadura militar, como universidades públicas e instituições
político-jurídicas, por exemplo.
73
administrar o Império, também como forma de contenção da insatisfação colonial a fim de
que não se perdesse a galinha dos ovos de ouro da Metrópole.
A tese de Santos sobre a repressão política no século XVIII foi defendida no final da
ditadura militar, e pode ser lida como um paralelo à própria ditadura militar brasileira, embora
não haja nenhuma referência mais explícita a isso. Outro aspecto que permite uma leitura da
tese de Santos como uma crítica à repressão militar pós-1964 está na sua outra paixão, a vida
e a obra de Lima Barreto, de quem admirava o jeito obscuramente debochado de criticar o
pseudo-intelectualismo das elites brasileiras em seus textos literários e jornalísticos. Santos
organizou um magnífico trabalho em dois volumes sobre “O Rio de Janeiro de Lima Barreto”.
Talvez Santos tenha utilizado o mesmo tipo de estética barretiana na escrita de sua tese,
fazendo ponderações sobre a ditadura militar nas entrelinhas do texto acadêmico.
O último aspecto que permite esse paralelismo entre o Rio de Janeiro do século XVIII
e o Brasil da ditadura militar na tese de Santos está numa referência que ele faz a um artigo de
Antonio Candido,
escrito numa conjuntura de medo e opressão, em janeiro de 1972, [em que ele]
esboçou, com o auxílio da literatura e do cinema, os mecanismos de imposição
psicológica usados pela repressão. Neste texto, fazia a distinção entre o
comportamento da polícia de um soberano absoluto com a de um Estado
constitucional, onde a primeira pode ser ostensiva e brutal, porque o soberano
absoluto não precisa se preocupar em justificar demais os seus atos; mas a segunda
tem de ser mais hermética e requintada e, por isto, ela vai se misturando
organicamente com o resto da Sociedade e estabelecendo uma rede sutil de
espionagem e de delação irresponsável, acobertada pelo anonimato, como alicerce
do Estado60. (Santos, 1992, p. 79 – grifo nosso)
O que pretendemos destacar aqui com a referencia à tese de Santos é o papel que o
terror exerceu na sociedade carioca do século XVIII e, se aceitarmos a hipótese do
paralelismo da tese de Santos com a ditadura militar brasileira, aconteceu também na
sociedade brasileira dos grandes centros urbanos durante o regime ditatorial militar. Vamos
voltar a este trauma social provocado pela ditadura um pouco mais adiante, para completar o
argumento sobre o papel do trauma da ditadura no discurso das profissões jurídicas durante a
redemocratização política e, em particular, durante a Assembléia Nacional Constituinte
(ANC). Por hora, podemos adiantar que o trauma social provocado pela ditadura militar foi
instrumentalizado pelas profissões jurídicas, principalmente por advogados e promotores de
60
O texto de Antonio Candido em questão intitulava-se “A verdade da repressão”, e foi publicado no semanário
Opinião.
74
justiça, para garantir mercado profissional na nova sociedade pós-ditadura e para promover o
prestígio social das profissões jurídicas a partir de sua associação com a defesa da
democracia. Enfim, para elaboração/execução do projeto profissional do Direito. Mas agora,
voltemos ao período da ditadura militar.
3.3.2 O Ensino Jurídico durante a Ditadura Militar
O período autoritário também exerceu influências na imagem do profissional do
direito e na formação profissional dos juristas. As faculdades de direito e carreiras jurídicas
sofreram muito com a ditadura militar: não havia prestígio nenhum em cursar direito e em
exercer a profissão jurídica naquele período. A intervenção dos militares no mercado de
atuação das profissões jurídicas atuou como um fator limitador do campo do direito,
desestimulando os jovens da época de ingressarem nas faculdades de direito e nas profissões
jurídicas61. Só a partir da década de 1980 é que as profissões jurídicas começaram a retomar
seu prestígio na sociedade brasileira, o que coincide com o declínio da ditadura militar e com
a redemocratização política do país.
Falcão realizou pesquisa em São Paulo e no Rio de Janeiro com estudantes de direito
nos anos de 1973/74. Na pergunta sobre os motivos que levaram o estudante a cursar direito,
em torno de 6% apenas das respostas apontavam o prestígio social do advogado como um
fator relevante para a escolha da formação em direito. Esse percentual baixo dá uma dica do
desprestígio das profissões jurídicas durante a ditadura militar. Se a pergunta sobre o prestígio
dos advogados gerou esse percentual de respostas, como seria o percentual de respostas se a
pergunta fosse sobre o prestígio dos juízes ou promotores de justiça? As faculdades de
ciências sociais e jornalismo eram mais prestigiadas que as de direito durante a ditadura. O
que não quer dizer que as faculdades de direito estivessem às moscas. Pelo contrário, as
faculdades de direito, assim como as outras, estavam cada vez mais cheias, como parte de um
projeto educacional do regime ditatorial militar, como veremos a seguir.
Embora haja interpretações bastante variadas sobre a reforma educacional realizada
pela lei 5.540/68 e uma série de discussões sobre o modelo adotado para a educação superior
brasileira a partir de 1969, é preciso refletir sobre alguns aspectos da expansão do ensino
61
Junqueira analisando o papel da Assembléia Nacional Constituinte no estímulo ao estudo do Direito
Constitucional a partir de meados da década de 1980, afirma uma década antes: “os alunos de direito não se
sentiam atraídos pelo estudo de uma Constituição outorgada e uma ordem jurídica autoritária”. (1993, p. 27)
75
superior que acontece a partir daquele momento. Alguns analistas mostram, por exemplo,
como as ciências brasileiras puderam se desenvolver ao ser adotado na lei 5.540/68 um
modelo norte-americano de expansão do número de vagas no ensino superior e criação de
novos cursos de graduação e pós-graduação. Perdeu-se a politização da atividade acadêmica,
mas experimentou-se uma grande transformação62 e expansão do ensino superior, sob a égide
do profissionalismo63 nas ciências brasileiras. Mas é claro que a reforma de 1968 estava em
consonância com o projeto econômico estabelecido pelos militares para o país, projeto esse
que depois ficou conhecido como “milagre econômico”, embora posteriormente tenha gerado
conseqüências talvez não esperadas, como veremos adiante.
A lei 5.540/68 expandiu o ensino superior privado, atrelou o ensino superior à
necessidade de atender uma demanda de mercado, dividiu as universidades em
departamentos, permitiu as matrículas dos alunos por disciplinas e instituiu os cursos por
períodos semestrais, entre outras mudanças implementadas pela lei64. Os críticos da reforma
implementada pelos militares associam a lei 5.540/68 a uma tentativa de desorganizar
qualquer atividade política antigovernamental. Para Falcão (1984, p. 100), as classes médias
urbanas gritaram por um aumento das vagas no ensino superior para seus filhos e foram
atendidas com uma expansão desenfreada que acabou afetando a qualidade da educação
superior. Para ele, a lei 5.540/68 foi uma tentativa bem sucedida de calar os estudantes,
retirando-os das ruas, e as classes médias, adiando a crise de legitimidade do regime ditatorial.
Acrescenta ainda que a expansão do ensino superior contrariou o plano decenal elaborado por
Roberto Campos dois anos antes, que previa a limitação do acesso às áreas de ciências
humanas do ensino superior como forma de controlar a reprodução das elites intelectuais e do
pensamento crítico. (Falcão, 1984)
Na mesma linha de mostrar que os militares tentaram mesmo controlar ou cooptar os
intelectuais, Fabiano Santos (2000, p. 93) fala em projeto político dos militares para alteração
62
Schwartzman afirma que “a Reforma Universitária introduzida pela lei 5.540 em 1968 alterou profundamente
o funcionamento interno das Instituições de Ensino Superior no Brasil, mas deixou intacta a estrutura de controle
centralizada e corporativa estabelecida no Estado Novo”. (1985, p. 37)
63
Uso o termo profissionalismo para designar a ideologia da necessidade de desenvolvimento da atividade
científica brasileira, com vistas a torná-la, desculpe-me pela tautologia, mais desenvolvida, o que significaria
também mais competitiva, no cenário (ou mercado) mundial. Tal desenvolvimento se daria a partir, por exemplo,
da especialização dos saberes, da expansão da produção científica e da relação mais pragmática entre ciência e
mercado.
64
Nunes (2001) questiona como este modelo de ensino superior implementado pelos militares não fora revisto
após a redemocratização política do país.
76
da formação das lideranças políticas brasileiras. O que se faria pela adoção de um modelo
tecnocrata de formação e recrutamento dos políticos. Ele afirma isso quando trata dos
legisladores brasileiros, mas esse projeto pode ser entendido, por extensão, a todo tipo de
liderança política, o que incluiria os futuros profissionais do direito da . A mudança do ensino
superior implementada pela ditadura militar permitiu uma expansão também dos cursos de
direito65 e um aumento da oferta de bacharéis sem que houvesse um aumento da demanda
pelos formados em direito, o que de certa forma também desprestigiou as profissões jurídicas.
O desprestígio das profissões jurídicas aconteceu no bojo de um estreitamento do mercado de
trabalho para pessoal de nível superior, que se deu enquanto se descobria que o “milagre
econômico” era artificial, que escondia, ou tentava esconder, enormes desigualdades.
Schwartzman entende que a expansão do ensino superior pareceu dar certo num primeiro
momento, “enquanto se ampliava, no país, o mercado de trabalho para pessoal de nível
superior” mas que gerou como conseqüência posterior uma “ampliação progressiva de um
exército de diplomados de nível superior desempregados, frustrados pelos anos perdidos em
cursos superiores ritualizados e inúteis, na busca de privilégios profissionais garantidos por
lei, mas negados pela realidade da economia”. (1985, p. 39)
A partir da ditadura militar o ensino do direito se tornou excessivamente tecnicista,
diminuindo a importância das faculdades de direito como espaços de crítica do estado
brasileiro e transformando os profissionais do direito em técnicos do direito. A tentativa de
tecnicização do ensino superior brasileiro e, no que nos interessa mais de perto, do ensino do
direito durante a ditadura militar pode ser entendido como expressão do avanço do sistema de
reprodução sobre o sistema de ensino, da economia sobre a educação, como discutimos no
capítulo anterior a partir do texto de Bourdieu/Boltanski (1998)66.
A partir da década de 1970, a proliferação de faculdades de direito e de credenciais
para o campo do direito (diplomas) e o aumento das disputas e reivindicações por maior
criação de postos de trabalho na estrutura burocrática brasileira (cargos) podem ser entendidos
como uma tentativa do sistema econômico dar uma resposta à produção do sistema de ensino,
o que, de certa maneira, precipitou também a crise da ditadura. Quer dizer, com mais pessoas
65
Segundo José Eduardo Faria, o ensino do direito sofreu um duro golpe com a reforma introduzida pela lei
5.540/68, que “impôs um sistema educacional completamente dissociado do contexto socioeconômico
brasileiro”. (1987, p. 17)
66
Do ponto de vista mais da sociologia do conhecimento, Mannheim (1974) discute o conflito entre dois
modelos principais de cultura nas sociedades modernas, o ideal de cultura humanista, baseado na valorização do
ócio e na relação esotérica com o conhecimento, e a cultura democrática, baseada na técnica, na especialização.
77
tendo acesso ao ensino superior e, particularmente, às faculdades de direito, maior a luta por
um cargo na estrutura burocrática e maior a pressão por uma abertura política que
possibilitasse também uma expansão da própria burocracia, da capacidade de absorção dos
bacharéis na estrutura do estado. Isso só pra falar de fatores político-econômicos, sem
considerar aspectos culturais de uma expansão do ensino superior, que exerce influência
decisiva sobre os universitários, fazendo-os questionar a ordem estabelecida. São os próprios
universitários, entre outros, que vão às ruas reivindicar mudanças políticas, eleições diretas
para presidente da república e anistia política aos perseguidos pela ditadura militar. ntes de
tomar as ruas para pressionar o governo esses jovens já incomodavam os familiares, os
amigos, os colegas de classe e os de trabalho e os sacerdotes, entre outros, com suas
expectativas de mudanças sociais. Quer dizer, estava sendo gerado, no final da década de
1970, um amplo movimento social por mudanças políticas que reforçava a arena política e
tomava as ruas, e cuja maior expressão foi o movimento “Diretas Já!”, já na década de 1980.
3.4 O PERÍODO DA REDEMOCRATIZAÇÃO POLÍTICA E A CONSTITUIÇÃO
DE 1988
Durante a ditadura militar houve uma intensa mudança na estrutura ocupacional
(Faria, 1986) e processos importantes de mobilidade social, estrutural e circular. (Silva, 1979)
No processo de redemocratização política vamos nos deter na ascensão das profissões
jurídicas no Brasil a um patamar elevado de poder econômico e social, o que acontece em
meio a um processo social de mudança estrutural da sociedade brasileira. Tal ascensão se deu,
basicamente, pela transformação das lutas políticas em que a sociedade brasileira estava
envolvida no final da ditadura em lutas jurídicas, o que aconteceu em dois lances capitais: 1) a
cooptação dos movimentos sociais e de suas bandeiras de luta política para dentro da
Assembléia Nacional Constituinte e 2) a participação direta dos juristas, via consultorias
técnicas e pressões corporativas, na elaboração da nova Constituição. Para fazer a análise da
dimensão política desse processo seguiremos em parte as idéias do professor Miguel
Lanzellotti Baldez (2006), professor de direito processual na UERJ e na Candido Mendes,
78
militante político de esquerda e ex-procurador do estado do Rio de Janeiro durante o governo
Brizola67.
As passeatas e manifestações públicas pelo fim da ditadura militar e por eleições
diretas marcaram a transição dos governos militares para os governos civis68, mas ainda era
nos bastidores que as coisas iam sendo resolvidas. Foi nos bastidores que as eleições diretas
foram negadas aos brasileiros e que o parlamento escolheu o primeiro presidente da república
após vinte anos de ditadura militar, o mineiro Tancredo Neves, que acabou falecendo antes de
assumir a presidência.
Preocupados com a doença do presidente escolhido e com a transição de um regime
ditatorial para um regime democrático, políticos dos mais diferentes matizes ideológicos
uniram-se para assegurar a posse do vice-presidente José Sarney, mesmo que
provisoriamente, até que o presidente escolhido pudesse se recuperar e assumir a presidência.
Juridicamente havia entendimentos de que o vice-presidente não poderia assumir no lugar do
presidente, devendo haver nova eleição. Mas a vontade de que a transição política fosse
completada, e o medo de uma reação em favor de nova votação no parlamento para escolha de
outro presidente era tão grande que o vice-presidente acabou assumindo em lugar do
presidente escolhido. Não se pode esquecer também que o candidato derrotado no Colégio
Eleitoral havia sido Paulo Maluf, que já vinha historicamente apoiando os militares e sendo
apoiado pela ditadura militar, o que dava uma dimensão mais dramática à doença, e posterior
falecimento, de Tancredo Neves. Maluf havia sido derrotado por Tancredo por 480 votos a
180.
A sociedade brasileira acompanhava, comovida e preocupada, o desenrolar da doença
do presidente Tancredo Neves. Havia sobre Tancredo uma aposta de um Brasil democrático
após mais de vinte anos de ditadura militar. Com a doença, passou a haver uma preocupação
de que não se completasse a transição política esperada, uma vez que era grande o trauma
social da experiência ditatorial militar no Brasil. A preocupação com uma retomada do poder
por parte dos militares foi diminuindo paulatinamente. O primeiro evento responsável pela
67
Foi Baldez o responsável pela implantação do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de
Janeiro, ainda no início da década de 1980, durante o primeiro governo Brizola. Ele foi também responsável,
juntamente com o juiz Sergio Verani, pela criação do curso de Direito Social da UERJ, voltado para a formação
político-jurídica de lideranças de áreas carentes do Rio de Janeiro. Trata-se de um curso aberto à comunidade
não-acadêmica destinado a ensinar populações carentes a usar politicamente o direito em suas lutas cotidianas.
68
Kushnir afirma que as “Diretas Já” ensaiaram “os primeiros passos de reocupação do espaço urbano para a
contestação política”. (2004, p. 30)
79
tranqüilização do cenário político foi a posse do vice-presidente José Sarney. Mas nos
primeiros anos do governo Sarney o clima ainda foi tenso em relação a uma indesejável, e
cada vez menos provável, volta dos militares ao poder69. Em 1987, o agora presidente, Sarney
anunciou a convocação da Assembléia Nacional Constituinte, que fora uma promessa de
campanha de Tancredo70.
Para Baldez, a luta política que estava nas ruas exigindo a construção de um novo
estado e de novas instituições sociais foi levada para dentro da Assembléia Nacional
Constituinte, o que de certa maneira deu legitimidade social ao texto constitucional
promulgado em 1988. Demandava-se nas ruas uma nova estrutura política, “verdadeiramente
comprometida com as necessidades e lutas populares”. (2006, p. 44) Em sua perspectiva
marxista, as elites brasileiras souberam retirar das ruas essas demandas políticas e levá-las
para dentro do palácio legislativo, colocando a luta política debaixo do império da lei,
“antecipando a tutela jurídica da ação política”, como diz o próprio autor. (2006, p. 44)
“Capturava-se assim, a força política do povo em movimento para abrandá-la em formas
jurídicas e direitos, de pressupostas políticas públicas”. (p. 44) E ele vai exemplificar essa
juridificação do político ocorrida durante a redemocratização política do país com a própria
idéia de cidadania, que passou a nortear as discussões da época e deu título à constituição de
1988. Para Baldez, o brasileiro fora transformado em cidadão, no sentido jurídico, antes de se
tornar um cidadão político. O tempo do povo nas ruas exigindo mudanças foi tão curto quanto
deveria ser para que a ordem fosse alterada sem ser transformada, digamos assim.
Concordamos em parte com o argumento do professor Baldez porque ele acaba dando
um peso maior para os fundamentos econômicos das ações. Vendo de uma perspectiva
eliasiana, diríamos que provavelmente o povo nas ruas representasse uma ameaça à ordem,
orgulho da política brasileira desde tempos imperiais, como mostra Carvalho (2006), mas que
esse mesmo povo não foi calado com fins de imperialismo econômico, como deixa claro o
autor ao afirmar que “à espreita, de longe no tempo, estava a sombra do liberalismo radical,
ou neoliberalismo”. (Baldez, 2006, p. 45) Para Baldez a judicialização das lutas políticas
daquele contexto fora um plano a priori para um posterior desmonte da própria Constituição
69
Textos produzidos por intelectuais brasileiros durante o período da redemocratização política do país e
publicados em jornais e revistas de grande circulação demonstravam a preocupação das elites intelectuais com
um possível retrocesso na redemocratização em curso. Carvalho, por exemplo, escreve, tentando também “lutar
pela redemocratização do país”, que sobre a relação entre militares e civis “será mais inteligente, embora menos
atraente, se nos corrigirmos agora para reduzir a probabilidade nova intervenção no futuro”. (2006B, p. 9 e 152)
70
Faria afirma que na época a convocação da Constituinte foi uma unanimidade nacional. (1989, p. 15)
80
através de emendas constitucionais (EC). Algo como dividir (a luta política) para melhor
dominar. Estando o povo cooptado seria mais fácil dominar os representantes políticos do
Congresso Nacional e desmontar a constituição promulgada e sua legitimidade.
Entendemos que a retirada das lutas populares das ruas para a ANC não foi obra de um
maniqueísmo economicista, mas da complexidade da vida social cotidianamente vivida. Quer
dizer, não é que o povo tenha sido retirado da arena política para facilitar a dominação
econômica do país, mas o povo vai se retirando da luta política todo dia na medida em que
vai, concomitantemente, dando respaldo a atores políticos (individuais ou coletivos) para a
elaboração de uma Constituição que atendesse aos diferentes interesses de classes e grupos
sociais71. Ainda mais depois de tantos anos de ditadura militar, em que todos estavam tão
traumatizados com tudo o que havia acontecido e ninguém queria correr o risco de reviver o
passado recente.
Os constituintes foram eleitos para representar o povo na condução da
redemocratização política, que seria sacramentada pela Constituição elaborada. O povo não
abandonou a arena política. Ele provavelmente apostou que a arena política daquele momento
era outra e que ninguém queria mais voltar à ditadura, que o tempo de liberdades e direitos
havia chegado e que já estava vivendo numa democracia política. E de fato assim foi, vivemos
cada dia com um olho no passado, convivendo com a sombra do autoritarismo recém
destituído, mas sem tirar o outro olho do presente, sem deixar de sonhar com um futuro
diferente e viver como se esse futuro já tivesse chegado. Essa complexidade do viver
cotidiano, que é cheio dos mais diferentes interesses e problemas, não nos paralisa, mesmo em
meio aos traumas do passado, e vai dando um sentido para a existência de cada um e
conduzindo a história de uma sociedade para um determinado sentido.
Em síntese, a inserção das expectativas populares daquele contexto histórico no texto
constitucional posteriormente promulgado, inclusive com participação efetiva dos
71
Importante destacar que não discordamos da idéia de que o movimento popular pode ter sido cooptado pela
convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Só não concordamos que tal cooptação tenha sido
planejada para fins de posterior dominação econômica ou política. A cooptação tem em si uma vontade de
controle em determinado contexto histórico, mais do que um plano para o futuro. O futuro, aquilo que se alcança
depois, entra mais como conseqüência, resultado, de um projeto de controle já. Como Schwartzman (1970)
mostrou, a cooptação dos movimentos sociais no Brasil já tem uma certa tradição, como no caso da CLT, em que
podemos afirmar que Vargas unificou em texto de lei conquistas dos próprios trabalhadores brasileiros em suas
lutas por melhorias salariais e de condições de trabalho, conseguindo aquele presidente amainar os movimentos
sindicais e leva-los para dentro da estrutura do estado, portanto, para debaixo dos olhos, do controle, do próprio
governo e com a graça dos trabalhadores. Esta é uma razão suficientemente forte para não desprezarmos a
hipótese da cooptação dos movimentos sociais pela ANC.
81
movimentos sociais em sua elaboração, acabou restituindo a importância da arena política,
que andara esvaziada durante a ditadura, como fórum para construção de uma nova sociedade.
Isso não foi feito sem a sombra aterrorizadora da ditadura militar e sem a participação dos
técnicos do direito, que ajudariam a construir uma barreira contra uma possível volta do
autoritarismo ao poder político no Brasil, como argumentaremos agora.
3.4.1 A Participação dos Profissionais do Direito na Elaboração da Nova Constituição
Brasileira
Com a convocação da primeira constituinte, após tantos anos de governo autoritário,
veio também a convocação dos técnicos que ajudariam a confeccionar a nova Constituição: os
especialistas na criação de leis, os especialistas do direito, os profissionais do direito. A
atuação dos bacharéis em direito na elaboração da Constituição se deu através das
consultorias legislativas e dos grupos de pressão para estabelecimento de alguns direitos no
texto final da Constituição72. Talvez possamos considerar este período como marco da
retirada das profissões jurídicas do ostracismo em que se encontravam até o final da década de
1970, e começo da elaboração de um projeto profissional para elevar as profissões jurídicas a
um locus de poder na nova sociedade brasileira que surgia. Importante relembrar que falar em
projeto profissional não significa falar num projeto pré-concebido, mas de um projeto que vai
se apresentando na mesma medida em que é executado. Não precisa haver consciência da
elaboração e execução desse projeto por parte dos atores sociais implicados no processo, mas
isso não quer dizer que não haja uma racionalidade neles, no projeto e nos atores sociais73.
Ressalto essa idéia para não criar nenhuma expectativa falsa sobre este trabalho, no sentido de
esperar por um levantamento documental que comprove a elaboração de um projeto
profissional no contexto da redemocratização brasileira. Esse tipo de comprovação histórica
poderia ser feita, por exemplo, com análises de discursos dos grupos que posteriormente se
tornariam dirigentes. Mas como o projeto profissional não se resume a um plano político
72
Arantes (2002), por exemplo, vai salientar a pressão exercida pelas associações profissionais do Ministério
Público. E Silva, também falando do Ministério Público, afirma que a “CONAMP desempenhou um papel
fundamental durante todo o processo constituinte, defendendo a proposta [...], fazendo articulações políticas e
mobilizando outras associações da categoria”. (2001, p. 55, 56)
73
Há uma longa discussão sobre os limites da racionalidade no plano coletivo da ação. O avanço da teoria social
contemporânea permite falar de racionalidade e escolha dos atores que, como sujeitos socializados em
determinados padrões – por exemplo, geracional ou escolar – podem agir segundo esquemas similares sem
necessidade de combinar previamente a ação ou de serem regidos por um maestro. Entre os autores favoráveis a
essa concepção coletiva da escolha racional podemos mencionar, por exemplo, Elias (1993), Bourdieu (2004),
Larson (1977) e Barbosa (1993). Em sentido contrário, entendendo que seria preciso uma organização racional
dos atores sociais para uma agência racional, Boudon (1995), Reis (2000) e Coelho (2005).
82
arquitetado intelectualmente, esse tipo de análise tornar-se-ia inviável e desnecessária. O
projeto profissional pode ser medido a partir do fim, quer dizer, do poder real alcançado pelas
profissões jurídicas brasileiras a partir de 1988.
Como já dissemos antes, talvez os profissionais do direito, principalmente os
advogados, tenham sido um dos grupos mais penalizados com a ditadura militar que se
estendeu por mais de 20 anos. E, provavelmente pelo mesmo motivo, tenham sido durante o
processo de redemocratização política do país um dos grupos mais atuantes na defesa da
liberdade política e de um estado de direitos. Uma mudança do regime ditatorial para o
democrático significaria o restabelecimento de suas mais amplas possibilidades de atuação
profissional, sem medo nem perseguições, retomando o princípio da advocacia moderna, ser
uma profissão liberal.
A condução do processo de elaboração e execução do projeto profissional de
dominação social dos profissionais do direito se deu até de maneira tranqüila. Quer dizer,
olhando a expansão das faculdades de direito e das profissões jurídicas a partir do processo de
redemocratização política percebemos uma certa ordem, uma certa uniformização dos
números que demonstram a ampliação das profissões jurídicas. Por exemplo, em 2005 o
número de concluintes em direito foi de mais de 73 mil74, segundo dados do MEC/INEP
daquele ano. Dez anos antes, o número de concluintes em direito era quase três vezes
menor75. A expansão dos concluintes em direito pode dar uma idéia do próprio mercado de
trabalho das profissões jurídicas. Mesmo sem dados quantitativos confiáveis podemos
afirmar, baseado na própria experiência e sem medo de errar, que o número de concursos
públicos destinados a bacharéis em direito aumentou vertiginosamente a partir da década de
1990. Mas se olharmos mais atentamente a expansão das profissões jurídicas, se olharmos as
relações sociais no interior do campo jurídico, veremos uma grande conflituosidade, como
demonstraremos no próximo capítulo.
Como fruto do projeto profissional das profissões jurídicas, o poder alcançado pelos
profissionais do direito no Brasil após 1988 não se misturaria mais com o exercício do poder
político-partidário. Não seria mais necessário aos profissionais do direito ocupar a presidência
da república e outros cargos político-partidários para obter poder social. Bastaria aos
74
Mais precisamente, 73.323.
75
Em 1994, o número de concluintes em direito era de 27.198, segundo o próprio MEC/INEP.
83
profissionais do direito fazer aquilo que eles mais sabem, ou deveriam saber, atuar
profissionalmente como especialistas em direito. Despendendo um esforço bem menor, agora
os profissionais do direito poderiam alcançar o mesmo poder que antes, ou um poder até
maior, na sociedade brasileira. E é isso que pode ser chamado de um projeto profissional.
Pode-se hipotetizar, neste quadro, que, graças à participação direta dos próprios
profissionais do direito na discussão e elaboração do texto constitucional, os novos direitos
incluídos na chamada “Constituição Cidadã” aumentaram também o espaço de atuação das
profissões jurídicas. Os direitos conquistados politicamente na Constituinte e incluídos na
Constituição colocaram os profissionais do direito como mediadores da anunciada
redemocratização da sociedade brasileira. O Judiciário, o MP, a Defensoria e outros órgãos e
instituições do sistema de justiça ganharam capítulos e artigos constitucionais específicos,
confirmando a elevação dos profissionais do direito a garantidores da realização do estado
democrático de direito e substituindo o regime de exceção pelo império da lei76.
Utilizando uma nomenclatura mertoniana, podemos dizer que a redemocratização
política do país foi a função manifesta da participação dos profissionais do direito na luta pela
abertura política e na elaboração de uma nova Lei Maior; a função latente foi a expansão do
mercado de atuação das profissões jurídicas no Brasil e do prestígio dos profissionais do
direito após 1988.
Em todos os períodos da vida republicana brasileira os profissionais do direito
estiveram presentes. Seja no governo ou na oposição, seja para ser admirado ou repudiado, as
profissões jurídicas desempenharam importante papel na sociedade brasileira. Para se ter uma
idéia da importância das profissões jurídicas no cenário político brasileiro, até os dias de hoje
tivemos cinqüenta governos republicanos, com quarenta homens diferentes ocupando este
cargo máximo, dos quais um metalúrgico, um sociólogo, um engenheiro, um médico, três
76
O Capítulo III do Título IV da Constituição é dedicado à organização do Poder Judiciário, definindo as
atribuições e funções dos juízes e tribunais. E o Capítulo IV do mesmo Título dispõe sobre as funções essenciais
à Justiça, onde estão inseridas seções próprias ao Ministério Público (Seção I), à Advocacia Pública (Seção II) e
à Advocacia e Defensoria Pública (Seção III). O artigo 127 diz que o “Ministério Público é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado”; o artigo 133, que “o advogado é indispensável à
administração da justiça”; e o artigo 134, que a “Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional
do Estado”. (Brasil, 2008 – grifos nosso)
84
jornalistas, quinze militares de carreira e vinte advogados77. Importante salientar que os
presidentes Ranieri Mazzilli e José Sarney formaram-se em direito e jornalismo. Interessante
que depois da Constituição de 1988 nenhum jurista foi eleito presidente ou assumiu a
presidência. Isso talvez, não seja apenas um indício de democratização do acesso ao poder
político central, mas uma transferência do prestígio social dos cargos políticos para cargos
político-jurídicos, como argumentaremos a seguir.
Após a constituição de 1988, e talvez por causa dela, os profissionais do direito
tenderam a se retirar um pouco do cenário político-partidário, o que não quer dizer que eles
tenham deixado de fazer política78, e a se dedicar a seu espaço de atuação profissional. Assim
como os militares voltaram aos quartéis79 os profissionais do direito voltaram-se para suas
profissões, despolitizando bastante suas práticas e reforçando a ideologia do profissionalismo
e o processo de profissionalização do campo do direito. Como vimos antes, a despolitização
das profissões jurídicas acompanha a tecnicização do ensino do direito e da prática jurídica.
Falbo, quando analisa criticamente a prática jurídica descomprometida com o social, e que se
aprende também nas escolas de direito, afirma que a cultura jurídica “privilegia a pureza da
forma e a força dos discursos” (2002, p. 73), demonstrando como o ritualismo e a retórica dão
a tônica das práticas jurídicas, numa encenação de lutas político-jurídicas por mudanças
sociais80. Adiante vamos mostrar que para Falbo uma democratização do acesso ao poder
judiciário passa pela transformação dessa cultura dominante nas práticas jurídicas.
Para investigar a participação dos formados em direito no atual cenário político
brasileiro levantamos o número de governadores, prefeitos e deputados federais formados em
direito. O objetivo principal era identificar se está havendo um esvaziamento do campo
político por parte dos bacharéis em direito, o que daria maior força ao argumento do projeto
77
O caso do Chile é ainda mais drástico que o do Brasil, como demonstra Iñigo de la Maza em sua tese de
doutorado, apresentada em Stanford sob orientação de Perez-Perdomo. Por lá, de 1831 a 2000 houve 33 períodos
de governo presidencial. Destes, 21 foram exercidos por profissionais do direito, quase todos advogados. Os
outros 12 períodos foram governados por médicos, engenheiros ou militares. Assim como no Brasil, a
participação de graduados em direito na presidência da república vem diminuindo: “entre 1851 e 1952 o Chile
teve 20 presidentes eleitos democraticamente, 19 deles eram graduados em direito”. (Maza, 2001, p. 89) Da
segunda metade do século XX até 2000 foram dois militares, dois engenheiros, dois médicos e um “juristaeconomista”. A atual presidente, Michelle Bachelet Jeria, é médica pediatra. O autor, ao contrário de nossa
hipótese, analisa essa queda do número de bacharéis em direito no poder máximo do país como declínio do
prestígio das profissões jurídicas.
78
Foram e são inúmeras as críticas à atuação política do Ministério Público e dos tribunais superiores (STF e
STJ) na política brasileira recente, constituindo-se até problemas de identidades profissionais.
79
D’Araújo; Soares; Castro, 1995.
80
Para Kant de Lima (2004) essa é a ética própria de produção da verdade no Direito.
85
profissional. Em relação aos governadores de estado, em julho de 2007, apenas cinco
governadores dos 27 estados brasileiros eram formados em direito81. Não conseguimos dados
que pudessem mostrar comparativamente o ritmo de diminuição dos formados em direito no
governo dos estados brasileiros. Mas a partir dos próprios dados apresentados por outros
autores sobre determinados períodos da política nacional, como Figueiredo e Limongi (1999)
e Rodrigues (2002; 2006), não há dúvidas de que houve uma redução na participação dos
bacharéis também nos governos estaduais.
Atualmente, alguns dos mais importantes estados brasileiros, em termos de
participação na economia nacional, não são governados por bacharéis em direito, mas por
políticos com formação superior em cursos mais próximos das ciências exatas, mais técnicos,
como economia e engenharia. Este é o caso, por exemplo, de São Paulo (José Serra), Rio
Grande do Sul (Yeda Crusius), Pernambuco (Eduardo Campos) e Minas Gerais (Aécio
Neves), todos governados por economistas; e da Bahia (Jaques Wagner) e do Distrito Federal
(José Roberto Arruda), governados por engenheiros82. Este tipo de formação mais técnica é
uma tendência entre os políticos brasileiros, como veremos nos outros dados a serem
apresentados, de certa maneira respondendo ao avanço da técnica no sistema de ensino
brasileiro, inclusive com contribuição dos governos militares para isso, como dissemos antes.
Maria Alice Rezende de Carvalho (1998), ao estudar a biografia intelectual de André
Rebouças, mostra como o engenheiro negro do século XIX tinha um projeto de engenharia do
Brasil, uma construção do estado e da sociedade brasileira a partir de marcos técnicos das
ciências exatas, como medições, cálculos, obra etc83. Ele, que era culto, naquele sentido
antigo do termo, homem que conhecia culturas, viajado, não se agradava nem um pouco de
alguns aspectos culturais que afetavam as cidades brasileiras. A autora mostra a visão que
Rebouças tinha do Rio de Janeiro, visão, sem dúvida, influenciada pela ideologia profissional
típica da engenharia: “Desse modo, o Rio de Janeiro que se apresentava aos olhos e à olfação
daquele bacharel em ciências era, na verdade, um pestilento arraial, cuja observação
81
Ver no anexo VI o quadro completo dos governadores e vice-governadores dos estados, em julho de 2007, e
suas formações superiores.
82
O Rio de Janeiro é governado por Sergio Cabral Filho, que é formado em Jornalismo, outra área que tem
sofrido bastante com o avanço da técnica. Sobre formação e atuação política do jornalismo no Brasil, ver os
livros da década de 70 de José Eduardo Faria (1979; 1979b), embora não sejam em sociologia das profissões.
Mais recentemente, Bonelli orientou dissertação e tese sobre o jornalismo já numa perspectiva da sociologia das
profissões.
83
Hardman (2005) mostra que engenheiros e bacharéis encaravam ideais distintos de modernidade a partir do
século XIX.
86
sistemática iria se tornar uma primeira via de aproximação intelectual de Rebouças com a
situação do país”. (1998, p. 86) Rebouças pretendia um novo Brasil, que se construiria a partir
de uma engenharia de civilização, bem aos moldes tecnicistas.
Tomando os prefeitos municipais para analisar suas formações superiores,
encontramos situação parecida: um número pequeno de políticos formados em direito, embora
ainda seja o curso mais encontrado entre os prefeitos em julho de 2007. Dos cem municípios
mais populosos do país, apenas 17 prefeitos terminaram direito; 16 fizeram alguma
engenharia; 13 são médicos; 10 concluíram economia; 7 cursaram administração; e outros 22
fizeram faculdades diversas como arquitetura (1), ciências sociais (4), filosofia (3), farmácia
(1), geografia (1), história (3), jornalismo (1), matemática (2), medicina veterinária (1),
pedagogia (1), psicologia (3) e terapia ocupacional (1)84. Vinte prefeitos não têm formação
superior e de cinco não conseguimos informação sobre graduação, o que provavelmente
aumenta o número de prefeitos sem formação superior.
Dos cinco maiores municípios brasileiros em população quatro deles são chefiados por
economistas. Se ampliarmos um pouco o recorte, nos dez maiores municípios, cinco prefeitos
são economistas e dois são engenheiros, reforçando o argumento do avanço da tecnocracia na
política brasileira. O atual prefeito da maior cidade do Brasil, Gilberto Kassab, é a síntese
perfeita da expansão da técnica no campo da política, porque ele é formado em economia e
engenharia. Apenas dois prefeitos são formados em direito. Ampliando ainda mais o recorte
para alcançar os vinte maiores municípios brasileiros em número de habitantes, teremos aí um
aumento do número de médicos por formação nas prefeituras de importantes cidades
brasileiras. Os médicos, depois de curar pessoas e ver a sociedade tão enferma, se arriscaram
no campo da política. A medicina já é a terceira ocupação que mais aparece na formação dos
prefeitos municipais brasileiros, posição que deve ser semelhante em outros níveis do campo
político. Outro percentual que aumenta entre os vinte maiores municípios brasileiros é o de
prefeitos sem curso superior. Neste aspecto, o mais espantoso é que três dos cinco prefeitos
sem formação superior são de municípios fluminenses. Nesta faixa os prefeitos formados em
direito mantêm a média de 20% do recorte anterior.
Nos dez maiores municípios do Rio de Janeiro não há nenhum prefeito formado em
direito: há três formados em medicina, um em economia e um em matemática. Os outros
84
O quadro completo dos prefeitos municipais dos cem mais populosos municípios brasileiros segundo suas
formações superiores, está no anexo VII.
87
cinco prefeitos não têm formação superior, todos prefeitos de municípios da baixada
fluminense e próximos a Niterói que compõem o chamado Grande Rio. Aumentando o recorte
para os vinte maiores municípios do estado fica em nove o número de prefeituras dirigidas por
políticos sem graduação, oito deles dos municípios periféricos à capital. São os prefeitos dos
municípios de São Gonçalo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo, São João de
Meriti, Magé, Itaboraí e Nilópolis85. Municípios que somados tem mais de 4 milhões de
habitantes. Continuam sem aparecer os bacharéis em direito. Mas há seis médicos, um
engenheiro, um jornalista, um economista e dois professores, um de matemática e um de
educação física86.
Não há nada contra um prefeito não ter ensino superior, embora se possa prever que
este dado tenda a diminuir no Brasil com a expansão do ensino superior e com a
complexificação das relações sociais. O acesso aos cargos políticos é direito dos brasileiros
independente de seus níveis de instrução. Os próprios eleitores, na medida em que aumentam
seus graus acadêmicos tendem a exigir políticos mais qualificados do ponto de vista
acadêmico. Além do mais, a própria complexidade cada vez maior dos fenômenos sociais
acaba exigindo um maior grau de qualificação dos políticos. O problema é quando os políticos
sem instrução superior aparecem aglutinados numa determinada região, como na pesquisa que
fizemos, parecendo indicar aí a prevalência de um tipo de ação política muito tradicional.
Esse dado aponta mais para o tipo de política realizada nas chamadas cidadesdormitórios, que ficam nas periferias da cidade do Rio de Janeiro, com uma força ainda
grande do poder das famílias na sucessão política local em detrimento da valorização dos
estudos: subir na vida em lugares como esses ainda está mais atrelado a ter bons compadrios
políticos do que se dedicar aos estudos ou a uma carreira profissional. Ainda é um tipo de
política mais emocional e populista que prevalece, bem ao estilo getulista: “aos amigos, tudo;
aos inimigos, a lei”. Alguns desses lugares ainda são assombrados pelo “voto de cabresto” e
pelo “acerto de contas” com eleitores e políticos, fiéis e infiéis. A “queima de arquivo” e os
crimes encomendados para atender a fins políticos ainda estão presentes na maioria dos
municípios do Grande Rio.
85
Além dos prefeitos desses municípios do chamado Grande Rio, o prefeito de Barra Mansa, no sul do estado,
também não possui instrução superior.
86
Ver no anexo VIII o quadro dos prefeitos das vinte maiores cidades do Rio de Janeiro de acordo com suas
formações superiores.
88
Para não ficar só nos governos federal, estadual e municipal, resolvemos fazer um
levantamento, diga-se de passagem, trabalhoso, dos representantes políticos no legislativo
federal segundo seus graus superiores e ocupações declaradas. Foram pesquisados os
deputados federais que passaram pela Câmara dos Deputados entre 1959 (41ª legislatura) e
2007 (53ª legislatura). Como não era possível levantar todos os tipos de formações superiores
nos concentramos nas ocorrências de graduados em direito. Desprezaremos os deputados que
tiveram alguma passagem pela faculdade de direito, mas que não completaram o curso. Pode
ser que tenha ocorrido algum erro na identificação e contagem dos bacharéis em direito, mas
não será nada que afete as análises que estamos propondo, principalmente devido ao volume
de dados. De imediato é preciso afirmar que o percentual de participação de bacharéis em
direito na Câmara dos Deputados é decrescente no período analisado, partindo de mais de
50% na 41ª legislatura e chegando a pouco mais de 25% na atual legislatura. (tabela 3) O
número de deputados federais formados em direito vai caindo desde a 47ª legislatura,
conforme tabela abaixo.
Tabela 3 - Deputados formados em direito por legislatura.
Legislatura
Período
41ª
42ª
43ª
44ª
45ª
46ª
47ª
48ª
49ª
50ª
51ª
52ª
53ª
1959-1963
1963-1967
1967-1971
1971-1975
1975-1979
1979-1983
1983-1987
1987-1991
1991-1995
1995-1999
1999-2003
2003-2007
2007-2011
Total de Deputados Deputados Formados em Direito Percentual
462
578
487
339
397
484
571
589
620
636
642
629
536
239
51,73
282
48,78
247
50,71
289
85,25
237
59,69
275
56,81
319
55,86
257
43,63
231
37,25
198
31,13
191
29,75
196
31,16
149
27,79
Fonte: Bandep, 2007.
Seria de se esperar que os formados em direito, já acostumados ao campo político e
bons entendedores do processo legislativo continuassem lutando por vagas nas mais diversas
disputas eleitorais depois da redemocratização política, mas não é isso que vem acontecendo.
O número de bacharéis em direito na Câmara dos Deputados decresce a cada legislatura87.
Isso também acontece nos governos federal, estadual e municipal. A expansão do ensino
87
O percentual de bacharéis em direito entre os deputados federais aumentaria um pouco se descartássemos os
deputados que não tem formação superior.
89
superior brasileiro em todas as áreas de formação e a criação de novas ocupações força a
redução do número de graduados em direito entre os políticos brasileiros e intensificam a
profissionalização no campo do direito. Mas os formados em direito vão também encontrando
espaços aparentemente mais interessantes de atuação, principalmente na burocracia estatal.
A redemocratização política serviu também para abertura de um grande mercado de
atuação para os profissionais do direito: a expansão da estrutura burocrática da nova
sociedade brasileira. A expansão das faculdades de direito iniciado na década de 1970
encontrou seu coroamento na redemocratização política, que criou novos cargos destinados
aos bacharéis ou que pudessem ser ocupados por eles. Essa ampliação de mercado se deu a
partir de uma restrição do acesso a determinados cargos a bacharéis em direito, o que não foi
feito de maneira aleatória, mas decorreu de um projeto profissional das próprias profissões
jurídicas a partir da redemocratização política do país, utilizando também os anos de chumbo
como instrumento ideológico para conseguir tal poder, como vimos. O poder das profissões
jurídicas foi conquistado já na Assembléia Nacional Constituinte, quando os próprios
profissionais do direito foram chamados a participar como atores privilegiados da construção
de um estado democrático de direito. Num estado modificado para ser reconhecido como
“Império da Lei”, até para evitar novos autoritarismos, quem melhor do que os formados em
direito para ocupar cargos na estrutura deste novo estado (inclusive nos cargos não
exclusivamente destinados a bacharéis em direito)?
Há um sem número de graduados em direito nos mais diferentes espaços sociais e
níveis hierárquicos. No campo da política, é sensível que os profissionais do direito saíram do
palco e foram para os bastidores, atuando como consultores legislativos, chefes de gabinete,
assessores parlamentares e por aí vai. Deixaram de lado as disputas político-eleitorais, mas
não abandonaram o campo político. Os profissionais do direito monopolizaram um mercado
de atuação profissional, mediando ideologicamente a construção de um estado democrático de
direito depois de anos de autoritarismo. Dedicando-se mais à atividade profissional num nicho
próprio, e com menos risco do que quando disputavam uma vaga na arena política, acabaram
reforçando a profissionalização no campo jurídico, acirrando as disputas internas entre as
diferentes carreiras e se tornando tecnicamente mais preparados para a atuação profissional.
Tudo isso junto valorizou as profissões jurídicas e o campo do direito na sociedade brasileira
após 1988.
90
A transformação de uma sociedade sem direitos, como era durante boa parte da
ditadura militar, para uma sociedade com direitos, com todos eles, até com os que não
tínhamos familiaridade alguma e que não fizeram parte do nosso processo histórico de
conquista de direitos, consagrou um grupo, um grupo que conseguiu elaborar e executar um
projeto de dominação social: os profissionais do direito. O domínio da técnica do direito
passaria a ser fator de distinção social dentro do campo jurídico brasileiro, e isso foi
construído antes da promulgação da Constituição de 1988, nos bastidores da Assembléia
Constituinte, na participação dos técnicos do direito nas comissões para elaboração do projeto
constitucional e no lobby feito pelas associações profissionais e entidades de defesa de
direitos. Talvez, em alguma medida, neste contexto histórico as idéias de Oliveira Vianna
sobre a distinção entre política e técnica e sobre a importância dos juristas na criação das leis,
segundo ele, ato típico dos técnicos, dos especialistas do assunto, tenham sido levadas adiante.
A tecnicização do direito brasileiro como elaboração de um discurso esotérico, excludente, é
parte da estratégia de dominação dos profissionais do direito na sociedade brasileira, e passa
também pelo ensino jurídico, semelhantemente ao que aconteceu, por exemplo, nos Estados
Unidos. (Larson, 1977; Glendon, 1994)
3.5 EXPANSÃO DO ENSINO DO DIREITO APÓS 1988 E CONTROLE DE
MERCADO
Não podemos deixar de analisar o contexto social brasileiro pós-88, no que diz
respeito à expansão do campo do direito, sem apontar para a importância da expansão
educacional, em particular do ensino superior, como fator de ampliação da democracia e do
acesso à justiça a partir do reconhecimento de direitos. Afinal a expansão do direito, e do
debate sobre o direito, na sociedade brasileira contribui também para a expansão do mercado
de cursos jurídicos. Mas precisamos considerar, sobretudo, que o controle do sistema de
ensino e do mercado são partes intrínsecas da execução de um projeto profissional, como
vimos na teoria de Larson. Quer dizer, a expansão do campo do direito em todos os sentidos
significa também uma expansão do poder das profissões jurídicas.
Fruto da expansão das faculdades de direito que começou na década de 1970, houve, a
partir de meados da década de 1980, por um lado, uma maior dificuldade para a colocação dos
formados em direito no mercado de trabalho. Mas, por outro lado, houve uma democratização
do acesso às carreiras jurídicas, acelerando o processo de profissionalização do campo do
direito e, pela própria democratização do ensino superior, mudando o perfil dos profissionais
91
do direito. Vianna, falando da magistratura, mostra como “o acesso ao ensino superior foi o
principal responsável pela democratização do recrutamento da magistratura”. (1997, p. 91) É
preciso considerar ainda que essa democratização do acesso às faculdades de direito e às
profissões jurídicas foi acompanhada de uma maior tecnicização do ensino jurídico e da
atuação profissional no campo do direito, efetivando a ideologia do profissionalismo. Se
pensarmos, mais uma vez utilizando a abordagem larsoniana, que os profissionais do direito
no Brasil converteram recursos escassos, como uma formação de baixo nível crítico e alto
grau técnico, em outra ordem de recursos (econômicos e de poder) durante e após a
redemocratização política do país, podemos afirmar que tal projeto profissional foi bem
sucedido.
Na década de 90, já com um início de revalorização do campo do direito e das
profissões jurídicas devido à promulgação da Constituição de 1988, a OAB passou a controlar
o fluxo de entrada no mercado de trabalho advocatício com a obrigatoriedade de habilitação
no Exame de Ordem para ser advogado. O Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados
do Brasil, Lei 8906 de 4 de julho de 1994, estabeleceu nos artigos 3º e 8º a aprovação no
Exame de Ordem como requisito compulsório para o exercício da advocacia. Antes de 1994,
o Exame da Ordem existia, mas como requisito subsidiário, não compulsório, para os
ingressantes que não cumprissem outros requisitos de comprovação de treinamento e prática
profissional.
A partir de 1996 entrou em cena o Exame Nacional de Cursos, o chamado provão, que
permitiu ao Ministério da Educação fazer uma avaliação metódica dos cursos superiores com
provas aplicadas aos formandos e avaliação das condições estruturais das faculdades, e com a
possibilidade de fechamento e descredenciamento das Instituições de Ensino Superior (IES)
que não obtivessem um desempenho satisfatório. Mas a avaliação feita pelo MEC não
diminuiu a atuação da OAB no sentido de controlar o mercado de cursos jurídicos, de
produtores de produtores do campo do direito. Posteriormente, o provão sofreu algumas
alterações metodológicas mas a avaliação do ensino superior continua sendo feita, agora com
o nome de Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).
92
A OAB se mostrou preocupada com a qualidade do ensino de direito e cobrou um
maior poder de interferência no controle da expansão das IES e na qualidade do ensino88,
como mostra a nota do presidente da entidade Rubens Approbato Machado, retirada do site da
OAB, em janeiro de 2002:
Em face da repercussão da notícia de um candidato não alfabetizado ser aprovado
em vestibular para curso de Direito em instituição de ensino sediada no Rio de
Janeiro, o CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO
BRASIL reitera a sua preocupação não apenas com a qualidade do ensino, como
também com a quantidade dos cursos jurídicos no Brasil, que chegou a uma situação
de descontrole. Nesse sentido, exorta publicamente o Ministério da Educação a
suspender de imediato os processos de autorização para funcionamento de novos
cursos jurídicos pelo prazo, no mínimo, de um ano.
Com isso, não está a OAB preconizando a extinção dos cursos já existentes, mas,
antes, conclamando as autoridades de ensino a uma reavaliação do quadro atual, que
enseja a adoção de critérios mais rigorosos para a criação de novas faculdades. Para
não frustrar o sonho de milhares de alunos que investem tempo e dinheiro, espera-se,
entre outras coisas, que esses cursos contem com uma infra-estrutura compatível
com uma instituição de ensino superior.
A preocupação da OAB decorre de situações concretas, como faculdades sem corpo
docente adequado nem projeto didático-pedagógico em plena atividade, algumas
delas mais preocupadas com interesses financeiros próprios. O Brasil conta hoje
com mais de 400 cursos jurídicos, o que já é muito, mas no ritmo atual esse número
poderá dobrar até 2004. É bastante alto, se comparado a países de população bem
maior do que a nossa, como os Estados Unidos, onde existem apenas 181 cursos
jurídicos em suas universidades.
Como conseqüência, a qualidade do ensino torna-se precária. Essa precariedade
influencia o comportamento dos futuros profissionais e reflete sobre todas as
carreiras jurídicas, com sérios prejuízos para a sociedade.
Ao fazer essa advertência, a OAB age de acordo com as atribuições que lhe foram
conferidas pela Lei nº 8.906/94 (art. 54, XV), segundo a qual compete ao Conselho
Federal, por intermédio de sua Comissão de Ensino Jurídico, "colaborar com o
aperfeiçoamento dos cursos jurídicos e opinar previamente nos pedidos apresentados
aos órgãos competentes para a criação, reconhecimento ou credenciamento desses
cursos".
Infelizmente - e necessário se faz que toda a sociedade tome conhecimento - o
parecer da OAB, produzido com critério e rigor, não tem poder impeditivo,
prevalecendo a autorização das autoridades de ensino. O resultado, como se pode
ver, em nada dignifica a tradição dos cursos jurídicos no Brasil. Constitui, em última
palavra, um vexame.
A tentativa da OAB de controlar a criação de novos cursos de direito no país foi bem
sucedida. No início de 2007 a OAB finalmente conseguiu do MEC uma autorização para
88
Importante ressaltar a crítica de Nunes (2001) ao modelo de ensino superior brasileiro, que entrega a formação
superior ao controle corporativo das próprias profissões, promovendo um “processo deletério e perverso de
profissionalização precoce dos jovens brasileiros” (p. 20), uma vez que o jovem tem de escolher sua profissão já
no ato da inscrição no vestibular.
93
decidir quais faculdades poderiam ser abertas e quais não poderiam, inclusive utilizando um
critério, no mínimo duvidoso, de “relevância social”. Segundo o inciso I, do art. 3º, da
portaria 147, de 2 de fevereiro de 2007, que autorizou a OAB e o Conselho de Medicina a
controlar a abertura de faculdades em suas áreas de atuação, a decisão pela abertura de um
novo curso deve passar por uma “demonstração da relevância social, com base na demanda
social e sua relação com a ampliação do acesso à educação superior, observados parâmetros
de qualidade”. Schwartzman (2007), em seu blog, mostrou-se indignado com o teor da
portaria, afirmando que o inciso em questão é “controle de mercado puro e simples”. Ele
complementa:
Por este critério, um projeto excelente de criação de uma nova faculdade de direito
ou de medicina, sem custos para o setor público, pode ser vetado se os advogados ou
médicos acharem que já tem faculdades demais naquela localidade. Isto não é
controle de qualidade, é controle de mercado, da mesma forma que antes se proibia a
abertura de uma padaria se tivesse outra por perto.
Isso nos relembra que todo domínio social é objeto permanente de disputas e que os
diversos agentes envolvidos nas disputas precisam trabalhar constantemente para manter sua
posição dominante ou para alcançar outras posições sociais. O projeto profissional das
profissões jurídicas brasileiras está em andamento, ele não foi completamente executado com
a (na) Constituição de 1988.
Enfim, no Brasil, a partir da Constituição de 1988, depois de tantos anos de ditadura
militar, os profissionais do direito ficaram ainda mais fortalecidos com a garantia legal
(constitucional) de novos direitos. Mas, como alertou José Murilo de Carvalho, o surgimento
desses novos direitos não se deu sem uma expansão educacional. “Quer dizer, à medida que
aumenta a escolaridade, sobem todos os indicadores, seja de consciência de direitos, seja de
participação política, seja de envolvimento em associações profissionais e voluntárias”. (2002,
p. 27) E essa expansão se deu apenas no setor privado da educação superior. Dados do
MEC/INEP/SEEC mostram que em 1988 as IES públicas respondiam por 27% das IES do
Brasil e em 1998 esse número encolheu para 22%. (2000, p. 20)
Em número de vagas oferecidas pelas IES brasileiras a história se repete: em 1988 as
IES privadas respondiam por 68% das vagas do ensino superior brasileiro, e em 1998 esse
número saltou para 73%. (2000, p. 54) Essa expansão do ensino superior privado pode reduzir
a qualidade da formação em alguns casos. Tratando especificamente das faculdades de direito,
mostramos em trabalho anterior que “embora tenha aumentado o número de estudantes de
94
direito entre 1997 e 2002, o percentual de participação dos matriculados em direito no total de
matriculados no ensino superior vem caindo desde 1999”. (Santos, 2004, p. 20) Mais
recentemente as universidades públicas federais vêm se expandindo, como decorrência de
uma política do governo Lula e diminuindo, de forma quase imperceptível, o avanço do setor
privado no ensino superior brasileiro.
Concomitante à expansão do ensino do direito e das profissões jurídicas no Brasil pós88, acontece, não só no Brasil como em outros lugares do mundo, um fenômeno social que
ficou conhecido como “judicialização da política”, numa referência à perda do poder político
e expansão do poder jurídico nas sociedades modernas. Este será o objeto do próximo item.
3.6 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DAS RELAÇÕES SOCIAIS
Boaventura de Sousa Santos (1996) associa a expansão do direito à crise do EstadoProvidência dos países centrais, que ocorreu a partir de fins da década de 70 devido aos
seguintes fatores enunciados por ele: incapacidade financeira do estado para atender às
despesas sempre crescentes da previdência estatal; criação de enormes burocracias com
elevado nível de desperdício e ineficiência; clientelização e normalização dos cidadãos;
revoluções tecnológicas que causaram alterações nos sistemas produtivos e na regulação do
trabalho; difusão do modelo neoliberal; proeminência das agências financeiras internacionais
(Banco Mundial e FMI) e globalização da economia. Para Santos, a crise do EstadoProvidência causou alguns impactos sobre o sistema jurídico, a atividade dos tribunais e o
significado sócio-político do poder judicial nos países centrais: 1) Sobrejuridificação das
práticas sociais; 2) Explosão da litigiosidade89; 3) Complexificação dos litígios; 4) Aumento
das desigualdades sociais e enfraquecimento dos movimentos sociais; e 5) Crise da
representação política (sistema partidário e representação política).
Segundo o mesmo autor, enquanto os países centrais enfrentavam a crise do EstadoProvidência, os países periféricos, como o Brasil, passavam por regimes autoritários. Após a
redemocratização, estes países foram obrigados a queimar etapas e incluir em suas
constituições direitos conquistados pelos países centrais num longo processo histórico. Luiz
Werneck Vianna (1999) mostra que a sociedade brasileira, especialmente os mais pobres, vem
colocando no Judiciário suas esperanças de verem resolvidos seus conflitos, o que aumenta
89
Vianna, citando Antoine Garapon, diz que “a explosão do número de processos não é um fenômeno jurídico,
mas social”. (1999, p. 25)
95
ainda mais a importância deste poder estatal frente aos outros poderes90.
Mas essa
valorização do Poder Judiciário é fruto da introdução dos novos direitos constitucionais
brasileiros mais que do aparelho burocrático judicial, que continua sendo alvo de críticas por
sua morosidade e por denúncias de corrupção interna. Mario Grynszpan (1999), mostra em
resultado de pesquisa a baixa legitimidade social do Judiciário brasileiro.
Já Gisele Cittadino afirma que “a expansão do poder judicial é vista como um reforço
da lógica democrática”. (2001, p. 2) Criações como os Juizados Especiais Cíveis e Criminais,
proporcionaram “um canal novo de expressão ao processo de democratização social, pela
facilitação do acesso à justiça”91 . (Vianna, 1999, p. 48) Para Vianna, a judicialização das
relações sociais no caso brasileiro desempenha o papel democrático de organização social,
depois de décadas de autoritarismo, fortalecendo ainda mais o Poder Judiciário e as profissões
ligadas à justiça. Mas é precisamente isso que propalam os juristas.
Cittadino afirma o consenso em torno de princípios jurídicos após o fim da ditadura
militar, embora não ressalte que esse consenso tenha sido mediado e influenciado pelos
próprios profissionais do direito e que a construção do estado de direito se interessou à
sociedade como um todo, interessou ainda mais às profissões jurídicas.
Se hoje nos permitimos discutir o processo de “judicialização da política” é porque
fomos capazes de superar o autoritarismo e reconstruir o Estado de Direito,
promulgando uma Constituição que, nesse processo, representa um consenso, ainda
que formal, em torno de princípios jurídicos universais. (Cittadino, 2001, p. 10)
Mas não é consensual esta visão “positiva” da expansão do direito: Habermas (1989),
por exemplo, acha que essa expansão do direito nas sociedades modernas reduz a autonomia
privada de participação política, acarretando uma desmobilização da sociedade.
Não podemos esquecer que profissionalização de um grupo significa acesso a mais
poder para esse grupo na sociedade. Barbosa (2003, p. 601), vai retomar o texto de Mary Ann
Glendon (1994) para lembrar que esta autora fez uma análise da expansão do direito na
90
Bernardo Sorj, ao falar da relação conflituosa entre os três poderes da República, diz que o Poder Judiciário é
colocado “no centro do sistema político, em grande parte em confronto com os outros dois poderes, que sofrem
uma erosão de legitimidade e transferem para o Judiciário (entre outros através da crescente privatização dos
serviços públicos) os conflitos que antes se resolviam na arena política. Essa confrontação produz, por sua vez,
uma reação dos poderes Executivo e Legislativo, que tentam novos mecanismos de controle do Judiciário
(através do orçamento, da nomeação de juízes, de sistemas externos de auditoria)”. (2001, p. 108-109)
91
É preciso ressaltar que a legislação constitucional brasileira prevê outras maneiras facilitadas de acesso à
justiça, como a Ação Civil Pública, a Ação Popular e a Iniciativa Popular para elaboração de leis, mas, sem
dúvida, são os JECs os mais bem sucedidos instrumentos de democratização do acesso à justiça.
96
sociedade norte-americana ressaltando que tal judicialização marcou naquela sociedade não
só um processo de maior democratização do acesso à justiça, como também uma ampliação
do poder dos juristas, que garantiram uma expansão sobretudo de seu mercado de atuação
profissional. Este tipo de análise talvez tenha faltado no livro de Vianna (1999), que às vezes
parece sucumbir ao canto da sereia das ideologias produzidas pelos próprios profissionais do
direito, que ressaltam o tempo todo a “necessidade” das profissões jurídicas para a
democratização do país. O slogan da campanha publicitária da OAB-RJ no início dos anos
1990, “Sem Advogado não há Justiça, sem Justiça não há Democracia”, é emblemático da
produção de ideologias profissionais para valorização das próprias profissões jurídicas.
Mas está em Falbo (2002, p. 22, 23) a crítica mais acertada, mesmo que de maneira
polida, sem citar nomes, às análises que atribuem ao Judiciário um papel democratizante na
nova sociedade brasileira. Para Falbo, não se pode identificar (ou atribuir) nenhuma
característica democrática ao Judiciário no pós-88 sem investigar se houve mudanças em sua
cultura político-jurídica. Só haverá democratização do Judiciário quando houver uma
mudança cultural que permita aos atores político-jurídicos implicados nesse poder de estado a
capacidade de olhar a sociedade e de se deixar ser vista por ela. Só haverá democratização do
Judiciário quando a sociedade se sentir à vontade para procurar a justiça estatal e o Judiciário
procurar atender mais de perto a sociedade, se tornando menos formalista, por exemplo. O
aumento do número de processos no Judiciário pode não indicar uma democratização deste
poder de estado se estiver sendo ampliado também os espaços extra-estatais (e antiestatais) de
resolução de conflitos sociais. A democratização do Judiciário está no contexto de
democratização da sociedade, que vai além de uma democratização político-eleitoral. Seria no
mínimo duvidosa uma análise sobre democratização da sociedade que não considerasse os
altos índices de desigualdades sociais em que vivemos. Segundo a perspectiva de alguns de
nossos entrevistados, como veremos, o Brasil não seria uma sociedade democrática devido à
sua ainda enorme desigualdade social.
A expansão do direito na sociedade brasileira após 1988 também acontece devido a
outros fatores além dos já citados, como por exemplo, a urbanização do Brasil – a Carta
Cidadã é a primeira Constituição de um Brasil eminentemente urbano – o que requer “maior
formalização e objetivação das relações interindividuais” (Pierucci, 2000, p. 136). E a
expansão da política concomitantemente à expansão do direito – Santos (1996) afirma que ao
mesmo tempo em que acontece uma judicialização dos conflitos políticos, acontece também
97
uma politização dos conflitos judiciários92, uma vez que os tribunais são responsáveis por
apenas uma pequena parte dos conflitos sociais existentes, sendo a maioria dos conflitos
resolvidos em outras instâncias não-oficiais (nem todo conflito social se torna jurídico).
Por tudo que foi dito neste capítulo, esperamos que tenha ficado claro que houve uma
expansão das profissões jurídicas e do campo do direito a partir da redemocratização política
do país, por vários motivos. A expansão não se deu como um passe de mágica, ela foi sendo
construída num logo processo a partir, principalmente, do declínio da ditadura militar, o que
inclui o declínio da legitimidade social do regime ditatorial, e do surgimento de lideranças
políticas contestadoras e de lutas pela redemocratização do Brasil. A expansão do poder das
profissões jurídicas ainda está em andamento e responde ao que chamamos de projeto
profissional. O projeto profissional das profissões jurídicas reforçou o campo do direito como
um todo, faculdades de direito, mercado de trabalho das profissões jurídicas, associações
profissionais etc.
A Assembléia Nacional Constituinte e seu maior produto, a Constituição Cidadã,
evidenciaram o projeto das profissões jurídicas brasileiras. Investigando a atuação dos
bacharéis em direito identificamos um recuo destes profissionais no campo da política e um
fortalecimento das profissões jurídicas, o que pode ser medido a partir do aumento do número
de concursos públicos destinados às áreas jurídicas e pela maior presença dos profissionais do
direito na mídia, principalmente magistrados e membros do MP. A partir do que já dissemos
sobre as profissões jurídicas durante a redemocratização política do país, e aplicando mais
especificamente ao MP, podemos afirmar que a “autoridade cultural” (Starr) conquistada pelo
MP após 1988 serviu tanto à sociedade, que provavelmente nunca tenha visto antes uma
instituição tão bem armada para fiscalizar ações e omissões políticas e o cumprimento das
leis, quanto à própria instituição, reforçando a imagem e o papel atribuído ao MP após a
redemocratização política.
Toda a expansão demonstrada das profissões jurídicas e do campo do direito após
1988 esconde conflitos no interior do campo jurídico e competições inter e intraprofissionais
deste campo. Os conflitos existentes no interior do campo do direito não são percebidos com
macro-análises ou só com métodos quantitativos. É preciso baixar ao nível das
92
E Cittadino diz que “é preciso não esquecer que a crescente busca, no âmbito dos tribunais, pela concretização
de direitos individuais e/ou coletivos também representa uma forma de participação no processo político”. (2001,
p. 3)
98
intersubjetividades, conhecer o que pensam os profissionais do direito e como se vêem e uns
aos outros para captar um pouco do clima de disputa no campo jurídico, o que justifica o
próximo capítulo.
99
4 MINISTÉRIO PÚBLICO VERSUS DEFENSORIA PÚBLICA NO RIO DE
JANEIRO: identidades e desigualdades.
Até aqui estivemos discutindo e analisando a expansão dos direitos e das profissões
jurídicas como um todo no Brasil após 1988, enfatizando o papel do “trauma” da ditadura
militar no condicionamento ideológico da nova ordem político-jurídica da sociedade brasileira
durante a redemocratização política do país. Embora o trauma da ditadura militar tenha
norteado de alguma maneira o fortalecimento dos direitos, e, por conseqüência, das próprias
profissões jurídicas após 1988, como vimos, foram as próprias profissões jurídicas que
empreenderam a expansão do campo do direito valendo-se para isso da redemocratização
política do país. O trauma causado pela ditadura entrou nesse processo de redemocratização
política como recurso ideológico usado pelas profissões jurídicas para ampliar seus próprios
poderes, inclusive com previsão constitucional de suas prerrogativas. Algumas dessas
garantias constitucionais conquistadas por certos setores profissionais do campo do direito são
verdadeiros monopólios de atuação, privilégios que colocam essas profissões como
indispensáveis à democracia, como se não pudesse haver democracia sem algumas dessas
profissões, o que traz à tona as ideologias profissionais e seu significado.
Apesar da aparente evolução do poder das profissões jurídicas na sociedade brasileira
a partir da redemocratização política, a expansão das profissões jurídicas não acontece de
maneira homogênea em todo país, nem em todas as carreiras jurídicas. Algumas carreiras
jurídicas têm mais prestígio e poder que outras, o que pode ser medido pelos níveis de
remuneração, mas também por outros aspectos como níveis de qualificação e capacidade de
organização política para lutar por melhores condições de trabalho e remuneração, por
exemplo.
As lutas entre as diferentes profissões jurídicas por espaços monopolizados de atuação
profissional (fechamento) representam disputas por poder no campo do direito. Artigos
jornalísticos e acadêmicos evidenciam essas lutas que podem soar irreais para um cidadão
comum que reclama da morosidade da justiça, do formalismo do direito ou do
comprometimento da Justiça com determinadas classes sociais, mas que não imagina que tudo
100
isso pode se aliar às lutas corporativas por poder, gerando barreiras ao acesso à justiça93.
Carvalho (2008, p. 31), por exemplo, afirma que “há o corporativismo dessas instituições, da
polícia, delegados, juízes, advogados e, mais recentemente, o Ministério Público. São
corporações brigando entre si por privilégios, por equiparações de salários. E onde fica o
interesse do cidadão?”.
Em artigo intitulado “Em defesa da Defensoria Pública” e publicado na Folha de São
Paulo, em 3/08/2008, o reconhecido advogado José Carlos Dias afirma que “como advogado,
rejeito a idéia de pertencer a uma entidade [OAB] que se posta de maneira corporativa, muito
mais preocupada em preservar os interesses de seus membros, ainda que respeitáveis, do que
perseverar na sua grande missão de compromisso com a ordem pública”. (p. A3) Mais
recentemente, em 9/11/2008, o mesmo jornal trouxe uma reportagem grande intitulada
“Crescem atritos entre juízes e advogados”, em que mostra uma luta por poder entre essas
duas profissões jurídicas, que segundo análise do presidente da OAB-SP, decorreria da
expansão das faculdades de direito no Brasil, que produzira profissionais de baixa qualidade
técnica e ética. Segundo a reportagem, para D’Urso “o aumento no número de profissionais
ligados ao direito também levou ao crescimento proporcional dos casos de atrito”. (p. A10)
Para mostrar essas lutas profissionais um pouco mais de perto, escolhemos duas
instituições jurídicas que tiveram seus poderes institucionais reforçados com a Constituição de
1988: Ministério Público e Defensoria Pública. Mais especificamente vamos esmiuçar alguns
aspectos do MP e da Defensoria do Rio de Janeiro, mostrando como se dão as lutas por poder
no interior do campo profissional do direito e o papel das ideologias profissionais nesse
processo. Nesta parte da pesquisa, priorizamos o levantamento e análise de dados qualitativos,
uma vez que dados quantitativos não nos permitiriam uma percepção clara das lutas que
acontecem no interior do campo jurídico, particularmente entre defensores públicos e
promotores/procuradores de justiça no estado do Rio de Janeiro.
93
Baldez afirma que “a democratização do processo só será concreta, primeiro, quando a juris-dição deixar de
ser um monopólio da magistratura, abrindo-se espaços para juízes de outros cortes e culturas sociais, que não
restritamente a burguesia. Não basta, pois, que os juízes sejam melhor equipados intelectualmente, como
recomenda Boaventura de Sousa Santos, mas que outras culturas atravessem as decisões judiciais, e esse objetivo
poderá ser perseguido a partir do art. 98 da Constituição Federal e dos Juizados Especiais com juízes leigos” (...)
(1999, p. 260)
101
4.1 INSTITUIÇÕES JURÍDICAS ESCOLHIDAS
Escolhemos MP e Defensoria porque ambas as profissões se apresentam como
“defensoras da sociedade” e porque queríamos analisar duas instituições que estivessem em
competição direta uma com a outra e que estivessem num mesmo patamar hierárquicoadministrativo. Imaginamos que os profissionais dessas instituições tivessem posições
equivalentes no jogo da justiça94, atuando como “advogados” (lato sensu) diante do juiz. Ledo
engano, como se vai ver.
4.1.1 Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPGE-RJ) foi criada em 1954 e
regulamentada por lei estadual em 1977. A DPGE-RJ era, inicialmente, parte do Ministério
Público. A estrutura de trabalho e de atendimento ao público da DPGE-RJ é uma das
melhores, senão a melhor, das Defensorias do Brasil, o que não significa dizer que estejamos
falando de uma estrutura primorosa. Pelo contrário, a estrutura tende a se mostrar precária na
comparação com a estrutura do MP. A Defensoria do Rio tem um edifício sede emprestado na
capital, mas seu atendimento ao público é feito de maneira descentralizada em vários pontos
da cidade do Rio de Janeiro, estando, portanto, próxima de sua clientela, as populações
carentes. A Defensoria fluminense assiste nas áreas de consumidor, direitos humanos,
regularização fundiária, idoso, mulheres, sistema prisional, infância e juventude, entre outros.
(Brasil, 2006b, p. 83) Há ainda Defensoria Pública em todas as comarcas do estado do Rio de
Janeiro. (Brasil, 2004, p. 53)
Os espaços físicos ocupados pelos defensores são sempre precários, mal conservados
ou apertados. Ou tudo isso ao mesmo tempo. O material utilizado pelos defensores é escasso
ou obsoleto. Um membro do MPF que foi defensor antes de entrar para o MP afirmou que “na
Defensoria eu tinha as promessas de melhoria da infra-estrutura, mas não tinha previsão de
data para isso acontecer. Já no MPF, quando se prometia melhoria de infra-estrutura, ela vinha
com data marcada. E era rápido. Isso faz uma diferença...!”. (promotor 8)
94
Se pensarmos que as definições do Ministério Público e da Defensoria Pública estão dentro do Título IV da
Constituição da República, que trata das Funções Essenciais à Justiça, podemos sim concluir que as instituições
escolhidas estão em posições equivalentes diante do magistrado. No mesmo Título IV estão também a
Advocacia e a Advocacia Pública.
102
Em termos remuneratórios, o defensor público do Rio de Janeiro é o mais bem
remunerado entre os defensores públicos estaduais do Brasil, mas esse não é o quadro do país
todo95. Por esses motivos, os quase 700 defensores96 do Rio de Janeiro são excelentes
profissionais, formados nas melhores faculdades de direito e selecionados em rigorosos
concursos públicos de provas e títulos. Há mais mulheres que homens na atividade
profissional da Defensoria, segundo dados já apresentados no capítulo 2. (Brasil, 2004, p. 87)
O volume de trabalho da Defensoria chega a ser desumano. Segundo dados do
Ministério da Justiça cada defensor do Rio de Janeiro realiza em média 2.572,1 atendimentos
anuais (Brasil, 2006b, p. 85); ajuízam ou respondem em média 151,5 ações anuais (2006b, p.
87); e realizam em média 143,3 audiências por ano. (2006b, p. 89) E esses dados
provavelmente estão defasados.
O trabalho da Defensoria Pública do Rio de Janeiro não seria realizado sem a
participação direta dos mais de mil estagiários de direito em atividade97. A seleção dos
estagiários se dá por concurso público e conta com uma demanda crescente de jovens
estudantes de direito que se candidatam e são selecionados através de prova escrita de
conhecimentos jurídicos. Os estagiários são tão importantes para a execução do trabalho da
Defensoria que há um setor específico na DPGE-RJ para cuidar da seleção e
acompanhamento dos estagiários. Os estagiários da Defensoria fazem tudo que um defensor
faz98, exceto assinar peças processuais e receber remunerações mensais, pois o estágio na
Defensoria não é remunerado.
95
A remuneração inicial na carreira do Ministério Público de Minas Gerais, por exemplo, chega a ser 768%
maior que a da Defensoria Pública, para dar uma idéia da desigualdade de remuneração entre as instituições. A
menor razão entre o rendimento inicial do MP e da Defensoria está no Acre (87%), onde um promotor recémaprovado ganha em torno de R$ 11.000,00. Já no Rio de Janeiro, um promotor ganha inicialmente algo em torno
de 200% a mais que um defensor, segundo dados de 2006. (Brasil, 2006, p. 74) Em 2007 houve uma tentativa de
equiparação de vencimentos entre as duas instituições no Rio de Janeiro, mas tal isonomia ainda não demonstra
ser definitiva, como veremos mais à frente.
96
Segundo o estudo diagnóstico “Defensoria Pública no Brasil”, havia no Rio de Janeiro 698 defensores na ativa
em 2004. (2004, p. 49)
97
Os dados de 2007 davam conta de aproximadamente 1.100 estagiários em atividade na DPGE-RJ, segundo a
própria Defensoria.
98
Embora o Regulamento do Estágio Forense da Defensoria, em seu artigo 27, prescreva que cabe ao Defensor
“designar o estagiário para, a seu lado e sob a sua orientação direta, participar de audiências” (grifo nosso), há
casos de estagiários que compareceram à audiência em substituição ao defensor. Isso acontece principalmente
em audiências para entrega de provas documentais.
103
O volume e a diversidade de causas jurídicas é o maior atrativo do estágio na
Defensoria99. Nenhum outro estágio dá ao estudante de direito a possibilidade de aprender
tanto sobre a prática jurídica quanto na Defensoria. E o melhor para o estagiário é que ele
aprende na prática, realizando o trabalho de atendimento ao público e confecção de
petições100. O estágio na Defensoria Pública é um verdadeiro laboratório de capacitação de
futuros profissionais do direito, que tomam contato com os mais diferentes conflitos jurídicos
e podem atuar como verdadeiros advogados, embora sem o mesmo peso de responsabilidade
de um profissional do foro. Podemos acrescentar ainda que o trabalho voluntário na
Defensoria ensina mais do que a prática jurídica. Ensina também sobre relações humanas, já
que o estagiário está em contato direto com as partes do processo, e sobre as relações entre
desigualdades econômicas e acesso à justiça, já que os clientes da Defensoria são, em geral,
membros das classes populares, que não têm condições de arcar com um advogado particular.
Para conhecer minimamente o nível de satisfação dos assistidos pela Defensoria
Pública, fizemos uma pesquisa de opinião com cem pessoas que aguardavam atendimento na
sala de espera do prédio da Defensoria que fica ao lado do fórum101. Um detalhe sobre esse
prédio é que ali funcionava o arquivo do Tribunal de Justiça, que foi desocupado para dar
lugar à Defensoria. Com essa mudança, desocuparam-se as salas que eram utilizadas pela
DPGE no interior do fórum. A discussão sobre a mudança de local da Defensoria gerou certa
polêmica porque o presidente do Tribunal de Justiça queria (e conseguiu) implantar sistemas
eletrônicos para controle do acesso ao fórum. Falou-se muito à época, e até hoje se fala
quando se provoca a discussão do tema, que o presidente do tribunal queria cercear o acesso
da população pobre, que ele pessoalmente não gostava da “bagunça” que havia no entorno da
Defensoria, numa relação clara da pobreza com sujeira e caos.
Independentemente dos motivos que levaram o presidente do TJ a solicitar o
esvaziamento do espaço da Defensoria no interior do fórum e sua remoção para um prédio
99
Um atrativo menor é o fato do estágio na Defensoria ser realizado geralmente duas tardes por semana, o que
sobra tempo para o estudante fazer outras atividades de capacitação universitária ou cultural. Ou mesmo fazer
outro estágio.
100
Os estagiários dos escritórios de advocacia, embora sejam remunerados, comumente se queixam de realizar
trabalho não condizente com a técnica do direito, como carregar processos, protocolar petições, intermediar
negociatas ou executar tarefas administrativas consideradas menores no interior dos próprios escritórios. Esse
tipo de estagiário é freqüentemente chamado de “Officeboy de Luxo”. O nível de descontentamento com o tipo
de trabalho executado é sensivelmente menor entre os estagiários da Defensoria, principalmente porque já sabem
de antemão o que deverão fazer sem nada receber.
101
A folha com o roteiro para realização das entrevistas com assistidos da Defensoria Pública encontra-se no
Anexo IX.
104
anexo, emprestado pelo próprio TJ, uma coisa precisa ser dita: a impressão que se tem ao
acompanhar as atividades dos defensores é de que quanto mais espaço se der à Defensoria
mais vão aparecer assistidos reivindicando direitos. Isso porque o espaço da Defensoria no
fórum estava sempre lotado, embora não fosse tão pequeno. Agora ocupando um prédio
inteiro de dois andares têm-se a mesma impressão de que o espaço é apertado.
Há no espaço da Defensoria reservado à espera do público um burburinho coletivo
misturado com rostos cansados e sonolentos e odores variados, alguns dos quais
desagradáveis. Os alto-falantes que anunciam os próximos atendidos ficam num volume
muito alto para sobrepor o burburinho, o que faz aumentar também o volume das conversas
entre os que esperam. A chamada aos atendidos é feita por uma funcionária que quase nem
precisaria do microfone, tão alta sua voz, ou por estagiários da Defensoria sempre em tom
grave, como quem está dando ordens.
No dia em que fizemos as entrevistas102, e todo dia é assim, havia umas 400 pessoas
no saguão de espera, sentadas ou em pé. Era difícil até passar entre as pessoas para realizar as
entrevistas. Mas quase todas foram muito simpáticas ao receber o entrevistador. Queriam falar
até além do que estavam sendo perguntadas, esbravejando contra algum aspecto do
atendimento ou da morosidade da justiça. Após um “é o seguinte:” começavam a contar seus
processos judiciais e suas angústias pessoais, num desabafo sincero, mesmo que não seja
legal, de uma gente sofrida. Muitos estavam ali desde as nove da manhã, e haviam saído de
suas casas bem mais cedo que isso, sem comer nada.
Em meio a essa intensa e tensa atividade de chamadas e esperas, realizamos uma
pesquisa de opinião com os assistidos sobre seus níveis de satisfação e insatisfação com o
trabalho executado pela Defensoria. Os resultados dessa pequena pesquisa servem mais para
pontuar algum tipo de impressão sobre esses profissionais que estamos analisando e nada
melhor para isso do que perguntar aos próprios destinatários das atividades profissionais da
Defensoria o que eles acham dessa instituição e de seus profissionais. Foram três perguntas
levantadas: 1) você está satisfeito com o trabalho da Defensoria Pública? S/N; 2) de 0 a 10,
que nota você daria para o seu Defensor?; e 3) pra você, qual o maior problema da Defensoria
Pública? As perguntas foram feitas na seqüência acima apresentada após a resposta dada à
102
As entrevistas foram feitas no dia 28/08/2007, entre as 13 e 15h, aproximadamente.
105
pergunta anterior. O instrumento idealizado para tabulação dos dados permitia uma captação e
visualização rápida das respostas dadas, como pode ser visto no Anexo IX.
Os resultados são os seguintes: aproximadamente metade dos entrevistados declarou
estar satisfeito com a Defensoria (52,12%); a média total das notas atribuídas ao trabalho da
Defensoria (5,21) foi coerente com o nível de satisfação declarado; quando perguntamos qual
seria o maior problema da Defensoria, houve 140 respostas espontâneas em cem pessoas
entrevistadas. Porque várias pessoas apontaram mais de um problema em sua resposta. Os
maiores problemas apontados foram: a demora para ser atendido (68/140); a morosidade
processual (37/140); o fato de não conhecer seu defensor ainda (7/140); o atendimento
desrespeitoso ou grosseiro dos funcionários (6/140); a falta de informação adequada dos
funcionários ou dos estagiários (3/140); a incapacidade técnica do defensor ou do estagiário
(3/140); a falta de atenção ao processo (2/140); a falta de defensor (2/140); a desorganização
(1/140); a falta de conforto (1/140); a falta de divulgação dos serviços da Defensoria (1/140);
a falta de ética do defensor (1/140); a marcação muito longa (1/140); a troca constante de
defensor (1/140).
Das cem pessoas entrevistadas 68 reclamaram da demora para ser atendido, o que já
demonstra um pouco o problema do excessivo número de assistidos por defensor, dando
aquele aspecto caótico à sala de espera da Defensoria. A morosidade processual, que ficou em
segundo lugar, não é “culpa” direta do defensor na maioria dos casos, mas do sistema de
justiça brasileiro, embora seja percebido pelos assistidos como problema da Defensoria.
Importante ressaltar que a sociedade brasileira percebe o sistema de justiça brasileiro como
lento e parcial na resolução de conflitos, como mostra, por exemplo, Grynszpan (1999). Há
uma representação social de que a Justiça no Brasil funciona melhor para certos setores mais
abastados do que para os mais empobrecidos. Se levarmos em conta essa representação social
sobre a Justiça brasileira, isso diminuiria os problemas que apareceram nas entrevistas como
próprios da Defensoria, porque este é um problema de todo o sistema de justiça brasileiro e
não especificamente só da Defensoria.
Se descartarmos a segunda posição e juntarmos as reclamações de “não conhecer seu
defensor ainda”, de “falta de informação adequada dos funcionários ou dos estagiários”, de
“falta de defensor”, de “desorganização”, de “falta de divulgação dos serviços da Defensoria”,
de “marcação muito longa” e de “troca constante de defensor”, teremos mais ou menos 16
ocorrências de problemas relacionados à gestão da comunicação com o público-alvo,
106
elevando esta nova categoria para a segunda posição no número de reclamações. Se
pensarmos que os economicamente hipossuficientes podem ter mesmo alguma dificuldade
maior para entendimento das mensagens, provavelmente pela baixa escolaridade que
caracteriza as classes que tem menos recursos financeiros no Brasil, a DPGE-RJ deveria
investir mais na tentativa de solucionar este tipo de problema. Precisaria ser um investimento
da instituição no sentido de tentar facilitar o diálogo com os assistidos, porque a impressão
que temos é que essa comunicação com o assistido fica apenas a cargo de defensores,
estagiários e (poucos) funcionários.
Sobre o mau atendimento dos funcionários, conversamos com dois funcionários que
estavam de plantão sobre a queixa de sete pessoas e eles reclamaram dos assistidos dizendo
que “eles perguntam a mesma coisa trezentas vezes; se a gente diz isso eles querem aquilo; se
a gente diz aquilo, eles querem isso; acho que eles só sabem mesmo é reclamar”. (funcionário
1) Um deles justificou, de certa maneira, o “mau atendimento” ao apontar um problema
comum a esses funcionários que são terceirizados e tem de trabalhar em outros turnos e em
outras instituições de atendimento ao público: “eles não querem saber dos problemas da
gente; ninguém quer saber que eu saio daqui correndo para pegar no hospital à noite e só
chego em casa às 2h; e que no dia seguinte começa tudo de novo às 9h. Mas reclamar eles
sabem. Falta um pouquinho de consideração geral, não acha?”. (funcionário 1) A outra
funcionária confirmou com certo ar de indignação: “É sim, a gente também tem as nossas
dificuldades, entende?”. (funcionário 2) Para o volume de gente atendida por dia, ficamos
com a nítida impressão de que o número de funcionários era mesmo insuficiente. Havia uma
meia dúzia de funcionários para orientar um público ainda mais carente de informações que
de direitos.
4.1.2 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
O Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) é instituição antiga, existe desde a
década de 1930. Mas é só na década de 1970, após a fusão dos antigos estados do Rio de
Janeiro e da Guanabara, que o MP-RJ passa a desempenhar papel mais relevante no sistema
de justiça estadual. O MP-RJ conta com praticamente o mesmo número de profissionais103 da
Defensoria e com uma estrutura de trabalho bem melhor que a dos defensores. Sobre a
participação de gêneros na composição do MP-RJ não há dados específicos disponíveis, mas
103
Em 2004, o número de membros em atividade do MP-RJ, segundo Diagnóstico do Ministério Público do
Estados, era de 756, entre promotores e procuradores. (2006, p . 71)
107
o Diagnóstico do Ministério Público nos dá uma idéia regional que não deve ser muito
diferente do caso do Rio de Janeiro. Segundo o Diagnóstico, os MPs da região sudeste são
compostos de 74,8% de homens e 25,2% de mulheres. Mesmo que esse índice não se
mantenha no caso do Rio de Janeiro – porque nossa percepção é de que haja um número
menor de homens104 – podemos afirmar que o percentual de homens no MP fluminense é
equivalente ao percentual de mulheres na Defensoria. Isso torna o MP antagônico à
Defensoria na composição de gêneros na atividade profissional dessas instituições escolhidas.
Há uma relação de servidores por membro de quase um para um, segundo dados do
Diagnóstico do Ministério Público105. (Brasil, 2006, p. 46) O edifício onde funciona a sede do
MP-RJ é um dos mais modernos e seguros dentre as sedes de instituições jurídicas do Rio de
Janeiro, equipada com sensores magnéticos, aparelho de raio-x, câmeras sofisticadas,
elevadores de última geração, seguranças armados, uniformizados e à paisana, entre outras
parafernálias. Um promotor, em tom de brincadeira, disse que ali era “o FBI do Rio de
Janeiro”. O acesso à sede do MP-RJ não é para qualquer um.
A remuneração dos promotores e procuradores de justiça do MP-RJ sempre foi maior
que a dos defensores, sendo uma das maiores remunerações entre os Ministérios Públicos
estaduais106. Em 2007 houve uma equiparação de rendimentos entre a DPGE-RJ e o MP-RJ.
Sobre a tal equiparação ainda há uma desconfiança por parte de promotores e defensores
sobre a duração desta medida. Os primeiros se mostraram até mais céticos que os segundos
sobre a isonomia de rendimentos, afirmando que o aumento dos defensores não está amparado
constitucionalmente e que não passa de um jogo de cena político. A seleção dos promotores
de justiça é feita também a partir de criteriosos concursos públicos de provas e títulos.
O interior do edifício-sede do MP-RJ é organizado, limpo e silencioso a maior parte
do tempo. Há um clima de segredo na instituição que faz com que as pessoas conversem
baixo ou parem de conversar quando um “intruso” se aproxima, o que nos faz lembrar dos
filmes de espionagens e conspirações. Os promotores e funcionários da sede são, em geral,
reservados e pouco espontâneos. Mas também são atenciosos quando se buscam informações.
104
Embora nos postos de comando do MP seja perceptível um aumento da concentração de homens, devendo
chegar a equivaler aos dados para a região sudeste.
105
Havia 756 membros para 582 servidores em 2004, ficando a relação servidores por membro em 0,77.
106
A pesquisa do Ministério da Justiça publicada em 2006 sob o título Diagnóstico Ministério Público dos
Estados compara as remunerações dos MPs e das Defensorias nos estados e aponta a desigualdade de renda entre
essas instituições. (2006, p. 74)
108
A falta de pessoas esperando atendimento contribui bastante para essa tranqüilidade, que só é
quebrada nos horários de entrada e saída, principalmente dos estudantes que fazem no
edifício-sede cursos preparatórios para concursos públicos. Em outros prédios onde o
Ministério Público está instalado a segurança, a calma e a organização também estão
presentes. Os que têm atendimento ao público também são assim, o contrário da Defensoria.
Há um silêncio no ar que talvez expresse um certo receio ou respeito dos atendidos por estar
ali, em tão poderosa instituição.
4.2 IMPRESSÕES E COMENTÁRIOS SOBRE AS ENTREVISTAS
Para melhor entender a relação entre essas duas instituições jurídicas, decidimos
entrevistar profissionais de cada uma delas. A escolha dos profissionais entrevistados
aconteceu da seguinte maneira: entramos em contato com as instituições escolhidas e
solicitamos a indicação de alguns profissionais que satisfizessem nosso critério inicial de
variação de áreas de atuação, de gênero e de idade. Recebemos uma lista com
aproximadamente trinta nomes de cada instituição e guiado por um pragmatismo quanto à
exeqüibilidade das entrevistas, levando-se em conta fatores geográficos de proximidade e a
disponibilidade dos próprios profissionais, fizemos cortes nos nomes até chegar a uma lista de
dez nomes em cada instituição. Da lista de dez nomes, nem todos puderam ser entrevistados
por problemas operacionais do próprio dia em que se marcou as entrevistas e outros
entrevistados foram incorporados à lista depois, quando já estávamos em campo. Vamos falar
dessas exceções em cada caso.
As entrevistas com profissionais das instituições escolhidas servirão para que
tenhamos testemunhas-chave, já que estão inseridos nos grupos profissionais escolhidos, das
competições inter e intraprofissionais que alcançam promotores e defensores. Com as
entrevistas poderemos não só entender melhor como se dão as competições profissionais, mas
também caracterizar minimamente como se posicionam os profissionais das instituições
escolhidas quanto à sociedade brasileira e seus problemas sociais e quanto às próprias
competições profissionais. No total, foram feitas dezoito entrevistas com profissionais do MP
e da Defensoria. Ao final de cada entrevista era comum uma conversa mais solta com os
profissionais sobre suas atividades profissionais, suas maiores dificuldades profissionais e
sobre nossa pesquisa de uma maneira ampla.
109
Começamos a fazer as entrevistas pelo MP-RJ. Esgotamos a agenda de entrevistas
com promotores de justiça para, em seguida, passarmos aos defensores. Talvez o melhor
método fosse intercalar as entrevistas com promotores e defensores, mas tivemos que optar
por esgotar uma categoria antes de passar à outra porque precisávamos remir o tempo.
Começando pelos promotores pudemos fazer quase todas as entrevistas no mesmo dia e no
mesmo prédio, na sede do MP-RJ. Já as entrevistas com os defensores foram feitas em locais
de trabalho próximos um do outro, todos no centro do Rio.
Durante as análises das respostas dos entrevistados vamos lançar algumas falas dos
próprios entrevistados entre aspas. Só não utilizaremos mais esse recurso de colocar entre
aspas o conteúdo das entrevistas porque as entrevistas não foram gravadas. Até fomos
preparados pra realizar as entrevistas, mas como os promotores de justiça não permitiram a
gravação de seus depoimentos, resolvemos não gravar também os defensores. Esse fato já
demonstra o maior nível de poder e preocupação dos promotores em relação aos defensores.
Os membros do MP-RJ se mostraram, claramente, mais preocupados com a escolha das
palavras e com as conseqüências do que estava sendo dito. Expressões como “não vai publicar
isso, hein?” ou “só não vale falar que eu disse isso!” não apareceram entre os defensores e
foram comuns entre os promotores. Talvez estes profissionais queiram ser coerentes com um
suposto papel atribuído ao MP de instituição “responsável pela redemocratização do país”,
como disse um dos promotores entrevistados107.
Se gravássemos apenas uma categoria profissional teríamos um volume hipertrofiado
de dados e, naturalmente, uma maior possibilidade de análise de uns que de outros. Isso
poderia soar como se estivéssemos privilegiando uns em detrimento de outros. Os
depoimentos foram anotados com a máxima ligeireza e, ao final das entrevistas, repassava
para o computador as anotações e as lembranças ainda frescas. Tentando, desse modo,
minimizar as perdas de uma entrevista não gravada. Por esses motivos, pode ser que uma ou
outra palavra do texto não seja a mesma utilizada pelos entrevistados, mas a ênfase e o sentido
das falas estão intactos.
107
Silva descreve algumas dificuldades que encontrou para realizar as entrevistas com promotores de São Paulo,
afirmando que “os promotores de justiça não constituem um grupo de fácil acesso” (2001, p. 23) e tenta
relacionar essa dificuldade a um certo “receio de expor de forma inadequada a instituição” (p. 23). Prefiro, desde
já, afirmar que esse retraimento do promotor está relacionado a um condicionamento (controle) ideológico
exercido pela instituição, como veremos.
110
Em geral fomos muito bem recebido pelos profissionais, que demonstraram até certa
empolgação com as pesquisas e fizeram elogios. Apenas dois profissionais, ambos do MP,
demonstraram
não
estar
muito
satisfeitos
em
conceder
entrevista,
mostrando-se
desconfortáveis, e até aborrecidos, com o enunciado das perguntas. Talvez porque esperassem
perguntas mais próximas da técnica de execução dos trabalhos do Ministério Público ou
perguntas que permitissem o desenvolvimento de respostas que explicitassem o papel
importante prestado pelo MP à sociedade brasileira, reproduzindo uma ideologia profissional,
como veremos adiante. Arriscamos essa análise, porque ambos tentaram enfatizar, com certa
veemência, a importância do Ministério Público para a sociedade brasileira, mesmo quando
tal resposta não era demandada. Um deles disse que “o Ministério Público está sendo o maior
responsável pela redemocratização do país. As pessoas que sobem ao poder têm medo do
Ministério Público, porque sabem que nós estamos aqui para fiscalizá-los e não nos eximimos
disso”. (promotor 1) Outro afirmou com certa veemência, com o dedo em riste, olhos
arregalados, e testa franzida, que “o MP defende a sociedade; o MP defende a lei!”. (promotor
5)
O roteiro da entrevista foi elaborado em dois grandes blocos de perguntas108. O
primeiro, contendo cinco perguntas, objetivava uma maior compreensão da visão dos
profissionais sobre a sociedade brasileira como um todo e seus principais problemas. Esse
primeiro bloco foi idealizado para tentar diferenciar as instituições escolhidas a partir de uma
maior ou menor proximidade com o conhecimento sobre os problemas sociais, já que ambas
as instituições se apresentam como defensoras da sociedade. O segundo bloco de perguntas,
contendo quatro perguntas, visava conhecer melhor suas visões sobre as instituições que
representavam, Defensoria ou MP, e suas percepções sobre problemas mais relacionados ao
âmbito das instituições escolhidas para análise. Todas as perguntas demandavam respostas
espontâneas, livres, sem imposição de alternativas ou induções de respostas, embora
estivéssemos esperando alguns padrões de respostas. As hipóteses que nortearam a elaboração
das perguntas serão explicitadas enquanto estivermos analisando cada pergunta/resposta.
Na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro entrevistamos nove defensores
previamente selecionados a partir de critérios de variação das áreas de atuação no direito, de
idade e de gênero109. Mas entrevistamos mais mulheres que homens: foram oito mulheres e
108
O roteiro das entrevistas realizadas com Promotores e defensores está no Anexo X.
109
Algumas dessas variações escolhidas aparecerão no quadro disponível no Anexo XI.
111
apenas um homem, respeitando, sem querer, o percentual de mulheres na instituição, como
vimos no capítulo dois. As entrevistas com os defensores públicos ocorreram entre os dias 27
e 30 de agosto de 2007, nos respectivos locais de trabalho dos profissionais escolhidos.
Apenas um defensor foi entrevistado posteriormente, dia 7 de setembro de 2007, por
telefone110.
As entrevistas com membros do Ministério Público foram feitas na mesma semana em
que as realizadas com defensores. Apenas dois promotores foram entrevistados por telefone
em outro momento, dias 12 e 13 de setembro de 2007, respectivamente. Foram oito
entrevistas com membros do MP-RJ, uma entrevista com um membro do Ministério Público
Federal lotado na Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro (MPF-RJ) e uma
entrevista com um promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP). Os oito membros do MP-RJ eram todos promotores de justiça. Como critério de seleção
dos entrevistados procuramos escolher profissionais que atuassem em diferentes áreas do
direito e com variação de gênero e idade111. Só não foi possível variar o local de atuação do
promotor, por uma questão de orçamento e factibilidade, sendo todos eles atuantes no centro
da cidade do Rio de Janeiro, quase todos no edifício-sede do MP-RJ, onde está a estrutura
diretiva e administrativa do Ministério Público fluminense. Essa centralização dos promotores
entrevistados será levada em conta nas análises.
A entrevista com o Procurador Federal foi realizada porque ele havia sido Defensor
Público antes de ingressar no Ministério Público Federal. Julgamos proveitoso entrevistar
alguém que já tivesse sido defensor antes de ser membro do MP. O ideal seria entrevistar um
membro do MP estadual, em vez de um membro do MP Federal. Mas como não conseguimos
entrevistar um membro do MP estadual que tenha sido defensor público antes, apesar de
termos tentado, fizemos opção pelo membro do MPF. Foi feito o exercício de relativizar
algumas respostas dadas por este profissional, ficando a ênfase da análise em seu depoimento
sobre a experiência que teve na Defensoria e as maiores diferenças sentidas por ele entre o
trabalho realizado na Defensoria e no MPF. Um membro do MP-SP foi entrevistado também,
a partir da indicação feita por um certo promotor de justiça, visando uma melhor compreensão
de uma determinada diferença entre o MP de São Paulo e o do Rio de Janeiro quanto ao grau
110
O defensor em questão não pode comparecer no local e horário marcado para a entrevista e pediu pra que a
mesma fosse realizada por telefone, uma vez que “não queria deixar de participar da pesquisa”.
111
Algumas dessas variações escolhidas aparecerão no quadro disponível no Anexo XI.
112
de controle institucional realizados por esses dois Ministérios Públicos estaduais. Essa
diferença foi apontada por alguns promotores do Rio de Janeiro durante as entrevistas.
Detalharemos melhor esse aspecto em lugar adequado.
4.3 ANÁLISES DAS ENTREVISTAS COM DEFENSORES PÚBLICOS E
PROMOTORES DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO112
4.3.1 Problemas Sociais Brasileiros
A primeira pergunta feita nas entrevistas era sobre o maior problema da sociedade
brasileira na visão de cada entrevistado. O objetivo desta pergunta era introduzir as questões
mais gerais sobre a sociedade brasileira e seus problemas, dando ao entrevistado a
possibilidade de expressar livremente seu pensamento crítico em relação a problemas sociais
brasileiros e medir um pouco o grau de conhecimento dos profissionais entrevistados sobre os
mesmos.
Metade dos promotores (5/10) apontou a educação como principal problema do Brasil.
É claro que se estava falando da “falta de educação”, ou da “má qualidade da educação
oferecida aos brasileiros”, ou ainda, da “falta de investimentos públicos em educação”.
Apenas dois defensores (2/9) mencionaram a falta de educação como principal problema
social brasileiro.
A educação como solução para os problemas sociais é amplamente divulgado na
mídia, embora não seja efetivamente uma solução para os principais problemas sociais
brasileiros, como mostra, por exemplo, Coelho (1987) e Zaluar (1999). O apelo midiático pela
educação parece fazer eco em muitos setores da sociedade brasileira e cumprir um papel mais
ideológico de transferência da responsabilidade pela solução dos problemas sociais para o
estado. Reis (2000, p. 146, 147) mostra que as elites brasileiras tendem a atribuir ao estado,
comumente confundido com o governo, o dever de solucionar os problemas sociais brasileiros
e que essas mesmas elites apontam a educação como solução para a maioria desses problemas
sociais113, como também é divulgado pelos meios de comunicação e como aparece na fala da
112
No Anexo XI há um quadro resumido com as respostas das entrevistas realizadas com os profissionais do
MP-RJ e da DPGE-RJ. Neste quadro, colocamos também alguns dados relativos à idade aproximada,
formação/qualificação e trajetória profissional.
113
“Em suma, as elites apostam na possibilidade de melhoria para os pobres sem custos diretos para os nãopobres” (Reis, 2000, p. 147)
113
maioria dos promotores entrevistados. Dois promotores (2/10) apontaram problemas de
administração política: um deles falou em “incapacidade administrativa” e o outro, em “falta
de autoridade do poder público, visto claramente no descumprimento das leis. Falta o
exercício efetivo do Império da Lei, que é pressuposto de um estado democrático de direito”.
(promotor 5)
Interessante é que esse quadro apresentado pelos promotores é bem diferente entre os
defensores. Aliás, é na comparação com as respostas produzidas pelo outro grupo analisado
que se reforça o argumento acima, apoiado em Reis (2000). A maioria dos defensores (4/9)
apontou que “as desigualdades sociais são o maior problema brasileiro”. Essa diferença da
visão dos defensores em relação à visão dos promotores pode indicar um maior conhecimento
dos defensores sobre os problemas sociais brasileiros. Carvalho (2001) também demonstra
como o Brasil tem na desigualdade seu maior problema. Ele chega a afirmar que “a
desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma
sociedade democrática”. (2001, p. 229)
Essa diferença entre as visões dos dois grupos profissionais entrevistados pode
decorrer de um maior nível de qualificação114 (tempo de estudos) dos defensores em relação
aos promotores, hipótese que não conseguimos testar porque o MP-RJ não fora receptivo a
essa iniciativa de pesquisa115. Levando-se em conta os dados produzidos pelo Ministério da
Justiça podemos estabelecer os seguintes dados sobre a posse de títulos nos MPs do sudeste:
29,2% têm especialização; 15,7%, mestrado e; 5,1%, doutorado. Mas não temos dados sobre a
qualificação dos defensores.
Outro fator explicativo da diferença de visões entre as instituições escolhidas pode
decorrer do fato de que os defensores lidam mais diretamente com as desigualdades
114
Uma das defensoras entrevistadas, que já fora membro do MP antes, afirma categoricamente que “os
defensores são mais preparados [qualificados] que os promotores. Pode verificar esse dado que estou lhe
dizendo. Tenho certeza disso. Os promotores abandonam os estudos depois que passam para o MP. Até porque o
MP também não incentiva a qualificação não. Há uma pobreza intelectual no MP! Defensores se dedicam mais
aos estudos que promotores de justiça. Talvez você possa medir isso pelo número de livros consumidos por esses
profissionais”. Outra defensora afirmou ainda que “o MP não é mais técnico que a Defensoria, é mais formal. A
Defensoria, como tem que defender seu cliente, muitas vezes foge à letra da lei para isso. E como o MP foge
menos à letra da lei, acaba se achando mais técnico. Eu digo que é até menos preparado. Aplicar a lei é fácil!”.
115
Foram enviados e-mails ao MP-RJ solicitando dados sobre a formação/qualificação de seus membros. Apenas
um e-mail foi respondido, prometendo os dados para momento posterior, assim que terminassem de organizar
um concurso público para a carreira inicial do MP, mas não aconteceu. Posteriormente enviamos outros e-mails
solicitando os dados prometidos ou um prazo para isso, mas aí nem resposta obtivemos. O e-mail respondido
pelo MP-RJ consta do Anexo XII.
114
brasileiras no exercício de sua atividade profissional de defesa dos pobres e, portanto, tem
uma probabilidade maior de conhecer a sociedade brasileira e seus problemas sociais do que
os promotores, o que é muito provável, como veremos.
4.3.2 Imagens da Pobreza
A segunda pergunta versava sobre a pobreza e estimulava o entrevistado a associar a
idéia de pobreza a alguma imagem ou palavra. O objetivo era testar a hipótese da relação da
pobreza com a imagem de aspectos socialmente considerados negativos, como violência,
sujeira, desordem etc. Nas respostas dadas, não ficou evidente uma valoração negativa da
pobreza. Mais à frente essa hipótese vai voltar em outras perguntas, mas principalmente na
última. Seis defensores (6/9) fizeram relação da idéia de pobreza com pessoas pobres, falando
em “maioria das pessoas”, “massa de pessoas”, “desprovimento” ou “miséria”. Um deles
chegou a mencionar a “miséria assistida diariamente”. E aqui, assistir no sentido de dar
assistência profissional. Isso reforça a idéia de uma defensoria mais próxima da sociedade que
o MP e que, por esse motivo, pode ter um maior conhecimento dos problemas sociais
brasileiros, uma vez que trabalham muito de perto com a pobreza. Mais adiante voltaremos a
essa questão da proximidade dos grupos profissionais escolhidos com a sociedade.
Os dois grupos profissionais mencionaram as “crianças de rua” e as “favelas” como
imagens recorrentes da pobreza. Houve ainda quem se referisse à “fome” e “fome no sertão
nordestino”; ao “desemprego”; e à Igreja Católica, que, nas palavras de um promotor, “é a
maior interessada na manutenção da pobreza. A Igreja alcança a riqueza pela exploração da
pobreza. Isso acontece, por exemplo, quando ela não apóia os métodos contraceptivos,
contribuindo para a proliferação da pobreza. A pobreza gera a riqueza da Igreja”. (promotor
9)
4.3.3 A Pobreza no Brasil
Na terceira pergunta era para o entrevistado falar sobre sua percepção da pobreza no
Brasil e seus principais fatores explicativos. A maioria dos entrevistados, tanto da defensoria
(7/9) quanto do MP (9/10) entende que há uma grande pobreza no país. Os que afirmaram que
não há grande pobreza no Brasil, dois defensores e um promotor, demonstraram conhecer o
mecanismo de geração de pobreza a partir da desigualdade social brasileira, como mostra
Barros, Henriques e Mendonça (2000). Mas apesar dessas três respostas exemplares do
115
conhecimento sobre a relação entre desigualdade e pobreza no país, podemos descartar a
primeira parte desta pergunta porque a percepção do nível de pobreza, muita ou pouca
pobreza, é sempre relativa a aspectos variados da experiência cotidiana dos entrevistados. O
que interessava mais era mesmo a segunda parte da pergunta, que requer um maior nível de
conhecimento sobre as causas da pobreza no Brasil. Neste aspecto, cinco promotores (5/10) e
cinco defensores (5/9) atribuíram, corretamente, se continuarmos tomando como base o texto
de Barros, Henriques e Mendonça (2000), a má-distribuição de renda como principal fator
explicativo da pobreza que há no Brasil. Um promotor chegou a afirmar categoricamente que
“não há grande pobreza no Brasil, há grande desigualdade social”. (promotor 4) E um
defensor público disse que “o Brasil é um país rico; apenas uma parte da população é pobre”.
(defensor 4) Também apareceram outras respostas como “corrupção nos órgãos públicos”;
“corrupção moral”; “falta de educação, falta de oportunidades e desemprego”; “fatores
históricos”; e “falta de vontade política de todos”.
4.3.4 O Comportamento dos Pobres
A quarta pergunta da entrevista realizada com profissionais da Defensoria e MP era
mais especificamente sobre os pobres. O entrevistado era chamado a caracterizar o
comportamento geral dos pobres brasileiros a partir de sua própria observação. O objetivo
desta pergunta era conhecer a visão do entrevistado sobre o comportamento do pobre
brasileiro, tentando identificar se havia em sua resposta algum tipo de pensamento intolerante
ao comportamento do pobre que pudesse justificar algum tipo de aversão ao pobre motivado
por fatores comportamentais.
Às vezes a intolerância à pobreza pode aparecer como resistência ao pobre. A pobreza
às vezes aparece como categoria abstrata e só se materializa na relação cotidiana com o pobre
e apenas para aqueles que têm alguma relação cotidiana com pobres, mesmo que
acidentalmente. Então, o entrevistado pode não conhecer a pobreza, mas conhecer pobres, que
dão pra ele alguma dimensão daquilo que seria problemático na pobreza. Esse tipo de
pergunta pode evidenciar a distância social do entrevistado em relação à pobreza. No caso dos
defensores, que trabalham bem de perto com os pobres, poderia nos dar algum indício de
intolerância com relação aos pobres. Mas a visão dos defensores pareceu ser mais paternalista
em relação à pobreza do que intolerante. O mais problemático no comportamento dos
brasileiros pobres seria, segundo os entrevistados, a “apatia”, “resignação”, “conformidade” e
outros termos sinônimos de inércia política e “aceitação passiva das coisas” da vida como
116
dadas, incluindo as injustiças. A maioria dos defensores (7/9) e promotores (7/10) apontaram
fatores comportamentais de resignação política no pobre brasileiro.
A partir de autores como Carvalho (1987), entre outros, podemos afirmar que se existe
uma “apatia” entre os brasileiros, ela não seria exclusividade dos pobres, mas é característica
da sociedade como um todo116. O estereótipo de um povo “apático” é antigo117 e elitista,
construído por membros da sociedade que não se consideravam parte do que se chama
pejorativamente de “povo”. Tomando por pressuposto esse estereótipo da não-participação
dos brasileiros nas transformações político-históricas, poderíamos considerar como negativos
os tipos comportamentais atribuídos aos pobres pela maioria dos entrevistados. E se ainda
acrescentarmos o depoimento de promotores que acham que o pobre no Brasil “tende a ser
violento” (promotor 7), ou que “a pobreza, a carência de possibilidades materiais, reduz o
nível moral da pessoa” (promotor 5), ou que “os pobres demonstram um baixo nível de
integração cultural” (promotor 10), teremos, então, o aumento do número de traços
“negativos” atribuídos aos pobres.
Essa visão elitista e pejorativa dos pobres torna-se também paternalista na medida em
que o pobre é visto como incapaz de defender-se sozinho. E essa visão o MP já tem da
sociedade brasileira, como mostram Silva (2001) e Arantes (2002). Quer dizer, não fica
dúvida de que a maioria dos entrevistados vê o pobre como alguém destituído dos recursos
para a luta política.
Os defensores vêem os pobres como pessoas sem voz política, mas se vêem como a
voz dos necessitados, que estão “acomodados por cansaço; cansaço de nunca ter direitos”,
como disse uma defensora. (defensora 4) Ou “angustiados e ansiosos porque os atendimentos
dos órgãos públicos são uma m...!”, como disse outro defensor. (defensor 7) Quer dizer, os
defensores pareceram conseguir transformar essa visão que têm dos pobres, que é a mesma
dos promotores, em um instrumento de defesa dos interesses desses mesmos pobres, que é sua
116
Falando da eleição presidencial de 1989, que elegeu Fernando Collor de Mello, Carvalho afirma que
“seguindo velha tradição nacional de esperar que a solução dos problemas venha de figuras messiânicas, as
expectativas populares se dirigiram para um dos candidatos à eleição presidencial de 1989 que exibia essa
característica”. (2001, p. 203 – grifo nosso)
117
O pensamento social brasileiro discutia intensamente a “apatia política” da sociedade brasileira, tentando
inclusive encontrar suas causas. Inúmeros intelectuais brasileiros tentaram explicar a tal “apatia política” dos
brasileiros: de Joaquim Nabuco a Oliveira Vianna, entre outros. José Murilo de Carvalho retira de uma frase
escrita logo após a proclamação da República por Aristides Lobo, e que expressa bem a visão que a elite tinha
(ou tem) dos grupos sociais de menor poder, o título de um de seus mais importantes livros: os bestializados.
117
principal atribuição profissional. Já os promotores parecem não conseguir transpor essa visão
“negativa” do pobre com sua atividade profissional, embora o discurso de defesa da sociedade
esteja presente. Uma sociedade abstrata118, que serve mais como instrumento de retórica,
característica central da cultura jurídica brasileira, como vimos no capítulo anterior.
É importante considerar, como faz Silva (2001) muito bem, que há áreas jurídicas
distintas de atuação dentro do MP e em espaços geográficos distintos. Neste último aspecto, a
autora faz uma diferenciação entre promotores que atuam na capital e em outras cidades, que
ela chama de “interior”119. (p. 84-100) Dessas distinções vêm as definições típico-ideais
criadas por ela de “promotor de gabinete” e “promotor de fatos”. O primeiro tipo seria mais
burocrático e distante da realidade social e nele se enquadrariam, em geral, os promotores da
capital; o segundo seria mais próximo da sociedade e engajado na tentativa de solucionar os
conflitos sociais da sociedade em que vive. Neste último modelo se enquadrariam, em geral,
os promotores do “interior”. Dados do Diagnóstico do MP mostram que os promotores de
justiça tendem a não participar de ONGs, o que dá a dimensão de um reduzido engajamento
social desses profissionais. Segundo o Ministério da Justiça, 9% dos integrantes dos MPs
afirmaram participar de alguma ONG, enquanto 91% não participam de ONG. (Brasil, 2006,
p. 86) Não temos esses dados para a Defensoria, mas o trabalho dos defensores já é realizado
junto à sociedade carente.
A proposta tipológica de Silva pode servir para pensarmos sobre algumas de nossas
análises, como, por exemplo, o distanciamento dos membros do MP em relação à sociedade e
aos principais problemas sociais brasileiros: provavelmente esse distanciamento que estamos
afirmando se deve ao fato de termos entrevistado “promotores de gabinete”. Pode ser que em
outras cidades do estado do Rio de Janeiro a situação seja outra. Pode ser que lá os
promotores de justiça sejam, ou se mostrem, mais próximos da sociedade que defende. Mas
entre os entrevistados, todos promotores na capital, ficou patente a falta de afinidade com o
social. E isso se torna mais preocupante se pensarmos que entrevistamos a elite do MP-RJ,
promotores que estão em órgãos e cargos de comando da instituição, responsáveis pela
promoção de políticas institucionais de expansão das atividades do MP a partir de
justificativas ideológicas que forjam a identidade (e ao mesmo tempo reforça o poder) da
118
Silva também identificou em sua pesquisa a sociedade brasileira como “categoria abstrata” na fala dos
promotores de justiça de São Paulo. (2001, p. 106)
119
Essa distinção entre capital e interior se aplica cada vez menos nos dias de hoje, porque existem municípios
do “interior” que são grandes cidades ou cidades médias. Ainda mais no estado de São Paulo.
118
instituição ante as demais profissões jurídicas e a sociedade como um todo, destinatária final
de suas atividades profissionais.
4.3.5 Rendimentos Profissionais
A quinta pergunta elaborada tinha como objetivo principal saber se o entrevistado
considerava que os salários dos profissionais que lidam diretamente com pobres deveriam ser
maiores do que os que não lidam diretamente com pobres. O objetivo era medir a idéia de
“remuneração justa” associada ao tipo de clientela atendida por determinados profissionais,
aos quais não se fez menção. Quer dizer, quando perguntamos sobre profissionais que lidam
diretamente com pobres, não estamos falando, necessariamente, dos defensores. Existem
outros profissionais que lidam diretamente com pobres, como policiais militares, assistentes
sociais, médicos, dentistas e enfermeiros de instituições públicas etc. Nesta questão, todos os
defensores entrevistados responderam “não”. Entre os promotores, quase todos (8/10) também
responderam que os profissionais que lidam com os pobres não deveriam receber mais do que
os que não lidam diretamente com os pobres. Apenas um não soube responder a pergunta,
preferiu se abster, e o outro respondeu “sim”. Esta pergunta foi elaborada para introduzir o
segundo bloco de perguntas, onde seria perguntado sobre as desigualdades salariais entre
Defensoria e Ministério Público.
4.3.6 Desigualdade de Rendimentos entre Defensoria e MP
O segundo grande bloco da entrevista começa com a sexta pergunta, sobre as razões
da desigualdade de remuneração entre defensores públicos e promotores de justiça na maioria
dos estados brasileiros. Na resposta a esta pergunta as entrevistas começaram a delinear um
contorno de denúncias aos bastidores políticos da atividade profissional, merecendo o MP
uma atenção especial em relação aos meios utilizados para conquistar maior remuneração.
Esta pergunta nos dará condições de fazer uma melhor discussão sobre competições por poder
no campo das profissões jurídicas e como essas disputas se dão.
Entre os entrevistados houve consenso de que a desigualdade de remuneração indica
uma desigualdade de poder. No entanto, nem todos souberam apontar em que se baseia essa
desigualdade de poder entre as duas instituições e nem como se operaria, na prática, a
manutenção da desigualdade econômica impulsionada pela desigualdade de poder.
119
A maioria dos promotores (7/10) analisou a desigualdade de remuneração por
diferenças funcionais, apegando-se às previsões legais e aos regimentos jurídicos para
fundamentar as diferenças funcionais e justificar a desigualdade de remuneração. Esse tipo de
resposta, que também apareceu em um defensor público, não problematiza a desigualdade de
remunerações entre Defensoria e MP, reproduzindo uma ideologia profissional positivada
(escrita) na Carta Magna. Quer dizer, para os entrevistados, se a lei determina atribuições e
funções profissionais diferentes, as remunerações não poderiam ser iguais. A referência era
sempre feita à Constituição, principalmente por parte dos promotores. Como se estivessem
dizendo que a desigualdade de remuneração decorresse de uma vontade do poder constituinte
originário, a Assembléia Nacional Constituinte, que tratou constitucionalmente as carreiras
analisadas como distintas.
A diferença salarial entre essas instituições decorre do fato de que a relevância das
funções realizadas por cada uma é diferente. A responsabilidade do Ministério Público é bem
maior que a da Defensoria, não tenho dúvidas: o MP defende a sociedade; a Defensoria, o
indivíduo. O MP é um poder de estado; o defensor, o advogado dos pobres. (promotor 1)
Na mesma linha de raciocínio, outro promotor disse que “o MP tem maior relevância
devido às suas vedações e garantias constitucionais, que são as mesmas da magistratura desde
a Constituição de 88”. (promotor 3) Essa justificativa não coloca em pauta a pressão que o
MP fez para aprovação de texto constitucional que o interessava, como vimos no capítulo
anterior. E também não reconhece que uma desigualdade de remuneração não pode ser
justificada simplesmente pela existência de uma norma constitucional, ainda mais numa
sociedade em que a Constituição ainda não se efetivou na prática social, em que estamos
longe da tão sonhada cidadania que inclusive batizou a Constituição de 1988.
Wanderley Guilherme dos Santos (1979) fala em “cidadania regulada” ao analisar o
caso brasileiro; para DaMatta (1997), a cidadania ainda não foi conquistada porque na
sociedade brasileira a idéia de indivíduo ainda perde em poder para a noção de pessoa;
Carvalho (2001) fala em Estadania e da aproximação da noção de cidadania com consumo,
direito de consumir120, como enfraquecedores da construção e consolidação da cidadania no
120
De uma perspectiva marxista, Milton Santos (1987) também mostra como a cidadania vai se tornando um
direito ao consumo no Brasil: “em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que também aceita ser chamado
de usuário”. (p. 13) E para José de Souza Martins (2002), o consumo aparenta ser um instrumento de integração
social numa sociedade desigual como a brasileira. Assim, consumir dá ao individuo a aparência de inclusão
numa sociedade capitalista que o exclui da possibilidade de realização da vida, já que morar, comer, vestir, em
120
Brasil; Souza (2003) fala em Subcidadania e em “ralé estrutural” para mostrar que ainda não
conquistamos uma igualdade formal; e, num plano mais histórico, Gomes (2007) fala em
Quase-cidadão, referindo-se, mais especificamente, aos negros na sociedade brasileira pósescravista, só para citar alguns cientistas sociais brasileiros que apontam para uma
democratização incompleta da sociedade brasileira, mesmo após tantas conquistas recentes.
Na prática cotidiana dos brasileiros os direitos constitucionais, que seriam os direitos
socialmente pactuados como básicos para uma vida em sociedade, não são observados. A Lei
Maior brasileira não tem a efetividade esperada para a realização da democratização da
sociedade. Portanto, o que estamos dizendo é que a desigualdade que estamos analisando,
entre MP e Defensoria, provavelmente decorre não de leis ou normas jurídicas, mas de
processos político-culturais de construção e manutenção dessas desigualdades, até porque
estes profissionais também fazem parte da sociedade brasileira. O que não impede, é claro,
que o aspecto legal (constitucional inclusive) seja um recurso utilizado ideologicamente para
levar a cabo as dominações no campo das profissões do direito.
Alguns promotores (3/10) foram mais enfáticos em reconhecer que o MP detém um
importante monopólio profissional que, muito provavelmente, na visão dos entrevistados,
condicione e mantenha as desigualdades de poder e remuneração para com a Defensoria: o
monopólio da denúncia penal. Os mesmos promotores também mostraram como se utiliza, na
prática, esse monopólio para realizar barganha política por melhores remunerações e verbas
orçamentárias, inclusive dando exemplos de políticos que foram pressionados a realizar ou
deixar de realizar algo em troca de arquivamento de inquéritos e/ou de não-oferecimento de
denúncias. Alguns depoimentos, por exemplo, reproduziram um boato amplamente divulgado
entre os profissionais do direito do Rio de Janeiro de que a atual sede do MP-RJ, um prédio
bem seguro e confortável no centro burocrático do Rio de Janeiro, teria sido construída em
troca do arquivamento de inquéritos que investigavam supostos crimes cometidos por
políticos do estado.
Arantes, descrevendo as ações das promotorias de justiça, embora sem relacionar essas
ações às remunerações percebidas pelos membros do MP, nos dá, sem querer, exemplos
claros de como funciona, na prática, a demonstração de poder do MP e a imposição de
condições para ajuizamento ou não da ação penal.
uma palavra, consumir, é sempre mediado por recursos econômicos. Para ele, a cidadania pela via do consumo é
uma impossibilidade à realização da própria cidadania como marco democrático.
121
Eu tentei [...] sensibilizar as universidades no sentido de “olha, vamos cumprir isso
daí”. Mas as universidades respondiam com a defesa de [...] autonomia; [...]
discricionariedade administrativa; [...] problemas orçamentários. [...] qual foi a
minha estratégia? Entrar com a ação. Entrando com a ação, [...] vieram nos procurar
para fazer acordo. Quer dizer, eu tive que criar um fato político – entrar com uma
ação dessa é um fato político – para receber da parte contrária aquilo que a
sociedade precisa. (2002, p. 143)
Outro promotor declara como o “poder de barganha” do MP é passado aos membros
da instituição:
Entre nós aqui, em seminários, cursos, palestras, sempre está se dizendo ao promotor
o seguinte: “olha, vocês têm um instrumento poderoso nas mãos: é o inquérito
civil”. Esse instrumento dá o poder de você requisitar informações, dá o poder para
o promotor colher depoimentos, requisitar documentos, certidões etc. Use esse
instrumento para atingir esse fim e chegue e mostre à administração pública, ao
administrador, fale assim: “olhe, o sr. vai querer se submeter a um desgaste?”
Porque é aquele negócio, se o promotor entra com uma ação, por exemplo,
explorando esse fato, digamos que um determinado município não concede a
gratuidade do serviço de transporte coletivo urbano aos idosos, maiores de 65 anos.
Isso gera para o administrador público, sem dúvida alguma, uma certa repercussão
social negativa: “Olha, aquele administrador público ele não atende um direito dos
velhinhos”. Aí transporta esse raciocínio para a questão do ensino, a questão da
saúde... (Arantes, 2002, p. 147)
Agora transporta isso para a questão do orçamento do MP? Fica evidente nas falas que o MP
utiliza a imagem e o poder conquistados a partir de 1988 para barganhar resultados imediatos.
Se isso é feito em prol da sociedade, por que não seria feito também em causa própria? A
imagem de instituição poderosa que o MP conquistou com a Constituição de 1988 é utilizada
para reforçar ainda mais o poder dessa instituição. Bourdieu diria que o MP usa seu capital
simbólico para cumular mais capital simbólico.
Para utilizar o mesmo tipo de análise que Elias fez sobre as relações que eram
estabelecidas com o rei na sociedade de Corte, podemos afirmar que a maior ou menor
distância das profissões jurídicas em relação aos centros de poder político representa níveis
respectivamente menores e maiores de poder. Quer dizer, tem mais poder na sociedade e no
campo do direito aquelas profissões que estiverem mais próximas do campo político. E isso
quer dizer, no nosso caso, que o MP tem mais poder que a Defensoria porque tem nas mãos o
poder (monopólio) de fiscalizar (investigar/denunciar) o poder político. Trata-se de um poder
originado na própria atribuição legal (constitucional) do MP. Poder esse que é, ou parece ser
até que se crie outra maneira de realizar o controle social do campo político, indispensável
para o bom funcionamento da democracia.
122
A partir da abordagem sociológica da luta por poder no campo profissional, como
vimos no capítulo dois, parece muito provável que o monopólio da denúncia penal exerça um
papel preponderante no condicionamento dos altos salários do MP. E que, em sentido
contrário, a falta de um monopólio importante como esse por parte da Defensoria Pública
explique em parte seus rendimentos mais baixos que do MP.
O monopólio de uma área de atuação profissional representa um fechamento do
mercado de trabalho ao grupo detentor do monopólio. Em conseqüência do fechamento de
parte do mercado de atuação profissional ao grupo detentor do monopólio, há um acúmulo de
poder nas mãos deste grupo e uma retirada de poder dos demais grupos profissionais que não
podem operar naquele nicho reservado aos monopolizadores. Toda vez que se instaura um
monopólio de atuação, há um aumento de poder para dentro, por parte daqueles que detém a
exclusividade de atuação, e uma retirada de poder dos que estão fora daquele círculo
monopolista, porque não estão legitimados a atuar num determinado nicho do mercado de
trabalho. Isso demarca territórios, reforçando identidades profissionais e excluindo os
diferentes, os que não têm acesso à área de atuação monopolizada.
No caso do MP, o monopólio da denúncia penal representa, sem dúvida, um
importante instrumento de barganha por melhores remunerações e maiores verbas e é um
símbolo visível de poder no campo das profissões jurídicas, inclusive para estratificação das
inúmeras carreiras jurídicas. Pelo diagnóstico da Defensoria Pública, feito pelo Ministério da
Justiça, o MP estadual ocupa um lugar de destaque na estratificação das profissões jurídicas,
só ficando atrás das magistraturas (Federal e Estadual) e do MP Federal121. (Brasil, 2004, p.
107)
Um aspecto que foi levantado por uma defensora pública para explicar a maior
proximidade da Defensoria com os pobres, e que ela chama de uma Defensoria “mais
humana”, mas que não poderemos analisar nesse trabalho por falta de dados suficientes para
isso, é a da feminização das defensorias públicas. Menkel-Meadow (1987), entre outros
sociólogos, aponta para a questão de saber se a feminização das profissões jurídicas
significará também uma transformação do tipo de atividade profissional realizada pelas
mulheres: será que o aumento do número de mulheres na atividade jurídica promoverá uma
transformação no modo como o direito é praticado, na estrutura de trabalho e no sistema de
121
Quadro completo no Anexo XIII.
123
justiça? Será que a feminização das profissões jurídicas tornará essas profissões menos rudes,
mais honestas e menos distantes da realidade social? E mais, tendo em vista que o aumento do
número de mulheres nas atividades jurídicas tem significado um certo desprestígio à profissão
ocupada majoritariamente por mulheres no mundo todo, que impacto a feminização das
atividades profissionais do direito terá sobre a remuneração dessas atividades?
No caso da Defensoria Pública brasileira, profissão jurídica largamente ocupada por
mulheres, há um claro desprestígio dessa atividade profissional frente às demais profissões
jurídicas, o que se expressa também pela desigualdade de remuneração. O que precisaríamos
descobrir, com uma pesquisa específica para isso, é se esse desprestígio é anterior ou posterior
à chegada das mulheres na carreira da Defensoria e os motivos dessa feminização. Por ora,
nos parece difícil estabelecer algum nexo causal entre a feminização da Defensoria Pública e
seus baixos status e salários, parecendo-nos mais adequado perseguir a variável do tipo de
clientela atendida pelas instituições em questão, o que aponta para níveis diferenciados de
poder social, hipótese que iremos testar mais adiante.
4.3.7 Isonomia de Rendimentos entre Defensoria e MP
A sétima pergunta incitava o entrevistado a falar, especificamente, se ele acha que
deveria haver isonomia de remuneração entre essas carreiras jurídicas em seus respectivos
níveis hierárquicos. Apenas um defensor público respondeu que não deveria haver isonomia
entre MP e Defensoria, apegando-se à Lei para alegar que as funções são distintas, como
vimos antes. Os demais defensores entendem que há uma equivalência no tipo de trabalho
executado pelos profissionais das duas instituições, o que justificaria uma isonomia de
rendimentos. Alguns defensores chegaram a fazer referência à imagem de um triângulo
eqüilátero em cujos ângulos da base estariam, de um lado, o MP e de outro, a Defensoria,
numa referência à igualdade de posições assumidas por essas instituições. No vértice do
triângulo estaria o magistrado. Interessante que essa imagem do triângulo não era clara para a
124
maioria dos promotores entrevistados. A figura do triângulo evocada por alguns dos
defensores entrevistados remonta aos livros doutrinários de direito122.
A maioria dos membros do MP-RJ (5/8) se pronunciou contra a isonomia, defendendo
as diferenças funcionais. Alguns chegaram a demonstrar certa preocupação de que qualquer
tentativa de comparação do MP com a Defensoria, não só em termos remuneratórios,
signifique algum desprestígio para o MP.
Essa coisa de isonomia entre MP e Defensoria chega a me aborrecer, porque são
instituições com funções e regimes jurídicos diferentes. Portanto, os rendimentos também não
podem ser iguais. Sinceramente, eu acho até que defensor não deveria ganhar mais que um
delegado de polícia, que tem um grande pepino nas mãos, conduzir o inquérito policial. Além
do mais, a Defensoria deixou de cumprir suas funções quando passou a aceitar a classe média
em sua clientela. A Defensoria não foi feita para defender a classe média. (promotor 5)
Mas os promotores não mediram esforços em se comparar com a Magistratura123. Segundo
um deles, “o MP só pode ser comparado à Magistratura, porque têm as mesmas vedações e
garantias constitucionais”. (promotor 3) Mas se perguntarmos a um magistrado se o MP está
no mesmo nível profissional da magistratura, muito provavelmente ele dará risadas, porque os
juízes se consideram hierarquicamente superiores a todas as profissões jurídicas,
desempenhando a função de dizer o direito (jurisdictio), função precípua do sistema de
justiça124.
Elias afirma, como já dissemos, que para os estabelecidos, que aqui pode ser o MP, o
só contato com os outsiders, a Defensoria Pública, seria motivo para desqualificação dos
estabelecidos. Por isso, os membros dos grupos estabelecidos evitam ser vistos com membros
dos grupos outsiders para não serem estigmatizados dentro de seu próprio grupo. Essa chave
122
Entre os livros de direito que apresentam a idéia do triângulo processual talvez o mais importante e conhecido
seja o de Cintra, Grinover e Dinamarco (1999). Os autores afirmam que: “São três os sujeitos principais da
relação jurídico-processual, a saber: Estado, demandante e demandado. (...) Correlativamente, as partes figuram
na relação processual em situação de sujeição ao juiz. (...) Não há acordo na doutrina quanto à configuração da
relação jurídica processual. Em sua formação originária, a teoria desta a apresentava como uma figura
triangular, afirmando que há posições jurídicas processuais que interligam autor e Estado, Estado e réu, réu e
autor. Outros houve, que lhe deram configuração angular, dizendo que há posições jurídicas processuais ligando
autor e Estado e, de outra parte, Estado e réu; esses autores negam que haja contato direto entre autor e réu. Na
doutrina brasileira predomina a idéia da figura triangular (...) O importante, isso é pacífico, é que a relação
jurídica processual tem uma configuração tríplice (Estado, autor e réu). (1999, p. 284, 285)
123
Silva (2001, p. 24) também aponta essa preocupação entre os promotores entrevistados em sua pesquisa.
124
Em relação ao MP os juízes seriam os estabelecidos.
125
interpretativa pode ser usada para entender melhor a relação entre promotores e defensores: os
primeiros não se mostraram nem um pouco satisfeitos por serem comparados aos segundos,
nem no plano da relevância da atuação profissional, nem no plano dos rendimentos. Assim
como, provavelmente, os juízes também não deverão se sentir nada confortáveis se souberem
das declarações dos promotores de justiça tentando o tempo todo justificar que o MP está no
mesmo nível hierárquico da magistratura.
4.3.8 Defensoria versus MP
A oitava pergunta da entrevista era para investigar se o entrevistado percebia algum
tipo de animosidade entre defensores e promotores. Aqui o objetivo era conhecer um pouco
mais a relação entre defensores e promotores, tentando compreender se esta relação se dá em
torno de valores competitivos, da competição interprofissional no campo do direito, o que
inclui os aspectos ideológicos das profissões. Esta pergunta foi crucial para a abertura de
novos caminhos investigativos sobre a construção/afirmação de ideologias profissionais. Ao
responder esta pergunta o entrevistado facilmente atacava a outra instituição comparada com
a sua ou a sua própria instituição, falando abertamente, na maioria das vezes sem se dar conta,
de mecanismos de estigmatização do outro, consolidados no interior das próprias instituições
e reproduzidos das mais diferentes maneiras no bojo das lutas por poder entre as carreiras
jurídicas.
Para que não haja dúvidas de que há uma intensa competição entre MP e Defensoria, e
vice-versa, enquanto estávamos fazendo as entrevistas colhemos depoimentos de defensores
acerca de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN)125 impetrada pela Associação
Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) com vistas a impugnar a permissão
recebida pela Defensoria Pública para propor Ação Civil Pública (ACP)126, em virtude da lei
11.448, de 15 de janeiro de 2007. Esta lei alterou a chamada lei da Ação Civil Pública, lei
7.347 de 24 de julho de 1985, ampliando o rol das instituições legitimadas à proposição da
ACP. A lei de 1985 dava ao MP, à União, aos Estados e aos Municípios e às fundações,
autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e associações – desde que
cumprissem alguns requisitos específicos – a legitimidade para a propositura da ação. A
125
Trata-se da ADI/3943. A petição inicial da ADIN em questão encontra-se no Anexo IX.
126
A Ação Civil Pública (ACP) é um tipo de ação judicial destinada à resolução/redução de desigualdades de
acesso do cidadão brasileiro a bens públicos, como, por exemplo, o meio ambiente. Esse tipo de desigualdade no
uso coletivo de bens públicos seria, para o direito, um dano moral ou patrimonial. Os legitimados a propor esse
tipo de ação acabam atuando em prol da coletividade.
126
alteração de 2007 manteve algumas restrições específicas às associações, mas colocou lado a
lado, além dos legitimados originários (MP, União, Estados e Municípios), a Defensoria
Pública. Além disso, retirou as restrições que havia às fundações, autarquias, empresas
públicas e sociedades de economia mista. Portanto, a Defensoria passou a ser considerada
legítima para proposição da ACP, junto com o Ministério Público e outras instituições.
O MP, conforme vimos no início das análises das entrevistas, se arvora ser o grande
defensor da sociedade, de uma sociedade que não sabe se defender sozinha, o que Arantes
(2002) expôs muito bem. Poderíamos imaginar que o MP fosse ficar satisfeito com a
possibilidade da sociedade estar sendo ainda mais protegida e cuidada, agora também pelos
defensores públicos. Mas não, a lei 11.448/2007 foi recebida pela associação profissional
máxima do MP como uma ameaça, uma ameaça ao poder do MP, uma perda de posição no
concorrido espaço de atores sociais legitimados a propor Ação Civil Pública. Estivemos
acompanhando os andamentos da ADI/3943, que foi distribuída para a Min. Cármen Lúcia
Antunes Rocha em 17/08/2007. Em meados de outubro de 2008 a ADIN encontrava-se, desde
07/10/2008, para conclusão da relatora e já havia se avolumado com o ingresso de instituições
como o Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP) em favor da Defensoria e a
Procuradoria Geral da República, em favor do MP. Independente do resultado final da ação,
não há dúvidas da existência de uma luta por espaço de atuação, por poder, entre Ministério
Público e Defensoria Pública.
Voltando às entrevistas, os defensores do Rio de Janeiro parecem sentir menos a
competição com os promotores: quatro defensores afirmaram não haver, ou melhor, não
perceber, nenhum tipo de animosidade entre promotores e defensores. A melhor explicação
para essas respostas parece ser a de que a Defensoria tem tanto trabalho a realizar, tantos
clientes a atender, que os defensores nem tem tempo para reparar as competições
interprofissionais existentes, em particular com o MP. Talvez essa seja a explicação mais
plausível porque a animosidade existe e é perceptível a um observador mais atento. Inclusive,
para fortalecer ainda mais o argumento da existência das lutas interprofissionais, entre os
promotores houve unanimidade em afirmar que “há rixas entre promotores e defensores”. Até
um dos promotores que havia negado a existência de tal animosidade, depois explicou que
estava querendo dizer que a luta não acontece no plano pessoal, mas que “a briga é
institucional e por verbas”. (promotor 5) O que precisaríamos saber, então, era se eles
127
consideram que essas lutas entre promotores e defensores acontecem de parte a parte ou se
seria uma luta unilateral, e quais os seus fundamentos.
Entre os promotores entrevistados, metade (5/10) afirmou que a animosidade acontece
de parte a parte; outros quatro promotores disseram que defensores têm rixas com promotores
e que “o contrário é menos sentido”. Apenas um promotor, e esse depoimento foi revelador de
alguns aspectos da ideologia profissional produzida pelo MP, afirmou que a animosidade é
mais forte do MP para com a Defensoria. O promotor afirmou que “o defensor público é visto
como inimigo do MP”. (promotor 7) Interessante que outros dois promotores já haviam
mencionado mesmo a frase “o defensor é inimigo do MP”, mas no sentido de que o defensor
odeia o MP e teria esta instituição como sua “inimiga”. Não no sentido de que “o defensor é
inimigo do MP” porque esta instituição o tem como um adversário direto a ser batido.
Essa revelação de um promotor abriu uma janela de novas possibilidades em nossa
pesquisa. Rapidamente pegamos o fio da meada e fomos atrás de indícios de que as
revelações feitas por um único promotor pudessem encontrar eco em outros depoimentos. Já
era a sétima entrevista que estávamos fazendo no MP e durante esse depoimento tão
revelador, começamos a questionar as razões para a imagem de que “o defensor é inimigo do
MP” e de onde viria essa idéia, como ela se construía. O promotor revelou que essa imagem
do defensor era forjada, principalmente, nos encontros com os próprios pares: “isso acontece
muito nos círculos sociais do MP”. (promotor 7) Mas não há dúvidas de que essa atitude
aparentemente casual, decorrente do encontro de profissionais de uma mesma instituição,
tenha reflexos também na prática profissional, em que promotores e defensores estão,
comumente, em lados opostos. Quiçá tenha até implicações psicológicas na vida das pessoas
envolvidas.
O promotor revelou ainda que a estigmatização do defensor público acontece já no
curso oferecido pelo MP aos recém-aprovados no concurso público para a carreira inicial do
Ministério Público. Esse curso costuma durar algumas semanas e serve como rito de
passagem para o neófito do MP, que passa a conhecer a estrutura e funcionamento do MP e,
de certa maneira, parte de sua ideologia profissional. Segundo o promotor, alguns instrutores
do curso fazem piadas sobre a Defensoria e seus membros e usam exemplos tirados da
atuação profissional dos defensores para marcar que um posicionamento antagônico ao deles
é esperado dos novos promotores. O promotor recém-ingresso é chamado a “realizar um
trabalho técnico”, que, segundo os instrutores do MP, seria uma característica bem diferente
128
do trabalho realizado pelos defensores. Atitudes como essa servem não só para denegrir a
imagem do outro como para aumentar a auto-estima dos membros do grupo, que sob o
discurso da técnica acabam se vendo como melhores ou mais capacitados, e para reforçar as
identidades profissionais.
A reprodução da competição com os defensores apenas se inicia no curso oferecido
aos recém-aprovados. Posteriormente, durante o estágio probatório dos novos promotores, que
dura dezoito meses, ele é avaliado constantemente em sua atividade profissional. Avaliação
que, supostamente, acontece em relação às técnicas de produção das peças processuais, que
são petições, pareceres e outros instrumentos jurídicos elaborados para consecução da
atividade profissional. No entanto, freqüentemente a avaliação extrapola o terreno da técnica e
passa a ser uma avaliação política, sendo o promotor que está em estágio probatório sondado
em seus posicionamentos políticos e constrangido a reproduzir em suas peças processuais o
pensamento institucional, que nada mais é do que uma tentativa, bem sucedida, de padronizar
o pensamento dos promotores de justiça, numa clara afronta ao princípio do promotor natural,
que é uma das principais bandeiras de propaganda do MP. Esse princípio reza que cada
promotor é uma instituição e está limitado em suas ações apenas por sua consciência. Uma
defensora que já fora promotora de justiça foi contundente ao afirmar que “o MP faz um
verdadeiro condicionamento da vida dos promotores, uma verdadeira lavagem cerebral.
Conheço promotores que foram impedidos pelo MP de desfilar no carnaval sob alegação de
não ser a passarela do samba um lugar adequado para um promotor de justiça. Agora veja se
isso não é religioso demais?!”. (defensora 5) Outra defensora afirmou que já teve vontade de
fazer concurso para o MP “pela remuneração”, mas quando descobriu o controle social a que
estava submetido um promotor de justiça, excedendo a atividade prático-profissional, desistiu
porque acha que “não vale a pena ganhar mais e sofrer tanto controle”:
Depois que as pessoas são aprovadas no MP elas mudam de postura. É perceptível.
O MP exerce um controle danado sobre seus membros. Não há espaço para
pensamentos divergentes dentro do MP; os que divergem, como Dr. [fulano], sofrem
as conseqüências disso. MP é uma ditadura, embora haja bons exemplos de pessoas
que resistem bravamente. (defensora 9)
Se um promotor em início de carreira tentar, por exemplo, produzir peças processuais
politicamente mais engajadas no reconhecimento de alguns problemas sociais brasileiros e na
tentativa de solucioná-los a partir de sua atividade profissional, provavelmente será exortado
por seu avaliador a mudar o tom de suas petições e lembrado de que uma atuação de tipo
129
garantista127 é linda no papel, mas que na prática não funciona. Que um bom promotor deve
se ater à boa técnica.
Eu mesmo passei por isso. Meu avaliador deu notas baixas às minhas peças
processuais alegando que tinham um tom muito social e que se afastava da boa
técnica prezada pelo MP. Disse também que no MP não é lugar para esse tipo de
peça processual. Que esse tipo de preocupação social é para a Defensoria. (promotor
7)
E as ideologias profissionais continuam se reproduzindo nas práticas profissionais
cotidianas, extrapolando as competições interprofissionais e passando às competições
intraprofissionais, principalmente, no que diz respeito à tentativa de controlar o pensamento
dos profissionais, dos membros do MP-RJ128.
Seguindo a indicação de um promotor de justiça do Rio de Janeiro, resolvemos
entrevistar um promotor do MP-SP que, segundo o promotor do Rio, havia sofrido intensa
perseguição institucional em São Paulo. O promotor do Rio sugeriu a entrevista com o
promotor paulista porque “em São Paulo é ainda pior”. Telefonamos para o tal promotor do
estado de São Paulo, que confirmou que esse tipo de controle institucional do pensamento e
da ação do promotor em início de carreira pode acontecer ainda porque, segundo ele,
os avaliadores são comumente ligados à Corregedoria. E os corregedores
freqüentemente são pessoas mais antigas na instituição e que às vezes ainda
carregam um ranço autoritário da época em que o MP fora impulsionado pelo
regime militar e que agia também para garantir o próprio regime autoritário. Alguns
membros do MP compõem uma ala mais conservadora, porque ainda não tomaram o
banho da Constituição de 1988. (promotor 10)
Um exemplo de controle ideológico no MP-SP pode ser retirado do trecho de um
artigo escrito por um membro do Ministério Público daquele estado e que fora citado por
Silva:
Quero referir-me a um corregedor-geral do Ministério Público de São Paulo que, em
pleno ano de 1994 [...], relatava [...] a forma pela qual tratava, nas suas correições
pelo interior, os jovens promotores de justiça “de nariz empinadinho”, que
desperdiçavam seu precioso tempo na defesa do “tico-tico” [meio-ambiente], mais
preocupados com a eventual repercussão na mídia do que com as atividades
tradicionais da Instituição. (Silva, 2001, p. 113, 114)
127
O termo garantismo vem de uma linha de pensamento crítico do direito penal, desenvolvida e defendido pelo
italiano Luigi Ferrajoli. Essa teoria tem, entre outras características, a defesa de uma atuação profissional movida
por questões de justiça social e direitos humanos.
128
Analisando o MP-SP, Silva ao descrever o que é ser promotor de justiça afirma que: “nas falas, porém, eles se
revelam como uma categoria profissional do campo jurídico, cuja linguagem e cuja postura estão pontuadas por
uniformidades” (2001, p. 71)
130
Outro promotor do Rio de Janeiro confirmou que o MP às vezes tenta mesmo criar um
pensamento homogêneo entre seus membros e que isso é feito de maneira velada, mas
eficiente. Desabafou o promotor:
Eles [o MP] tentam me isolar. Não recomendam o uso de meus livros para estudar
para os concursos do MP, não adotam meus posicionamentos doutrinários nos
concursos para a carreira de promotor, não me chamam para compor bancas de
concursos, para realizar palestras, e por aí vai. (promotor 9)
Afirmou ainda que nos cursos preparatórios para os concursos do MP, que são
ministrados no próprio MP ou na sede da associação do Ministério Público, alguns
professores desaconselham publicamente o uso de seus livros no estudo para concursos: “acho
até honesto dos professores em relação aos alunos, porque não estão enganando os alunos,
estão até evitando que eles percam tempo e dinheiro com um livro meu; mas se pensar do meu
lado...”. (promotor 9)
Esse isolamento institucional que sofre o promotor que tenta levar a cabo um
pensamento divergente sobre temas jurídicos também foi relatado pelo promotor de São
Paulo, que disse que ele mesmo sofreu “esse tipo de isolamento [que] é uma espécie de
censura no interior da própria instituição”, e que isso fora responsável por seu afastamento
dos encontros institucionais, como congressos, palestras etc. O promotor apontou que hoje já
há mudanças para melhor quanto a esse aspecto no MP-SP, mas demonstrou ter sofrido
bastante com o isolamento sofrido dentro da instituição em determinado momento de sua
carreira por defender posicionamentos político-jurídicos distintos da maioria de seus colegas.
Essa tentativa de controlar o pensamento dos membros do MP-RJ é, como vimos em
Bourdieu, um atributo das profissões, que tentam naturalizar o pensamento ao construir, ao
mesmo tempo, um mundo e uma “visão de mundo”. Mary Douglas, no mesmo sentido, afirma
que “as pessoas têm uma forma de consciência da estrutura social. Conciliam os seus actos
com as simetrias e as hierarquias que nela percebem e esforçam-se por impor aos outros
actores a sua visão da estrutura”. (1991, p. 121) Mas talvez possamos melhor entender a
produção de uma cosmologia típica do Ministério Público usando o conceito de autoridade
cultural (Starr, 1991), como visto no primeiro capítulo. Vamos fazer esse tipo de análise mais
à frente.
131
4.3.9 A Clientela da Defensoria
Na nona e última pergunta chegamos ao clímax da entrevista, indagando se o tipo de
clientela atendida pela defensoria, os pobres, seria um fator condicionante das desigualdades
salariais entre defensores e promotores. Esta pergunta testaria a hipótese da relação
estabelecido/outsider, como vimos antes. Analisando as respostas dadas, podemos afirmar que
a maioria dos entrevistados não corrobora essa hipótese de desvalorização material do
trabalho executado pela Defensoria devido ao tipo de clientela atendido por ela. No entanto,
uma defensora disse que “há um projeto para descredibilizar a Defensoria, a gente vê isso na
novela129”. (defensora 9)
Precisamos considerar ainda que essa maioria de depoimentos, discordando da
hipótese levantada a partir do marco teórico eliasiano da relação estabelecidos/outsiders, pode
significar que a desvalorização salarial da Defensoria não seja percebida ou entendida a partir
desta variável explicativa. Isso porque para Elias os estabelecidos fazem com que os outsiders
se vejam como inferiores, penetras, excluídos. Quer dizer precisaríamos saber, seguindo uma
linha de pensamento eliasiana, se a resposta negativa dada à hipótese de desvalorização
econômica da Defensoria a partir do tipo de clientela atendida por ela não significaria a
própria confirmação da relação estabelecido/outsider. O que estamos querendo dizer é que, de
um lado, se o poder do MP, como grupo estabelecido, é alto, isso significaria, por outro lado,
uma conformação da visão dos defensores a uma negação da hipótese levantada, atendendo a
uma exclusão dos outsiders reforçada por eles mesmos. Esse seria um modo eficaz de
dominação, fazer com que o grupo dominado perceba a dominação como natural.
Para aprofundar mais a investigação e testar melhor esta variável, seria preciso pelo
menos saber se os brasileiros atribuem ao pobre um valor negativo, porque se o pobre for
visto de forma pejorativa pela sociedade, provavelmente esse contato dos defensores com os
pobres poderia ser entendido como desvalorizador de seu trabalho. E essa desvalorização
pode ser medida pela desigualdade de remuneração da Defensoria (o grupo outsider) para
com a do Ministério Público (o grupo estabelecido). Não se está com isso querendo discutir
com as fontes ou descredibilizar o que os dados apontam, mas tão somente seguir uma linha
129
A novela a que se referia a defensora era “Paraíso Tropical”, novela de Gilberto Braga, que no capítulo “A
chantagem de Ivan”, exibido no dia 31/08/2007, exibiu um diálogo entre Ivan (Bruno Gagliasso) e Marion
Novaes (Vera Holtz) realizado na cadeia onde Ivan se encontrava preso. Na conversa o personagem exigiu que
fosse contratado um bom advogado para ele, porque não confiava no trabalho da Defensoria Pública. Esse
diálogo gerou uma série de debates no grupo de discussões virtuais dos defensores públicos.
132
de pensamento eliasiana, tentando interpretar/questionar até as análises óbvias impostas pelos
dados levantados, quais sejam, do descabimento da hipótese de desvalorização material da
Defensoria pelo contato com os pobres.
Para saber se há uma construção social de desvalorização da pobreza na sociedade
brasileira vamos lançar mão das análises feitas por Jessé Souza (2006). Utilizando como
aporte teórico, principalmente, as contribuições de Charles Taylor e Pierre Bourdieu, e, como
aporte analítico, textos importantes de autores como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes,
Maria Sylvia de Carvalho Franco e Luiz Werneck Vianna, entre outros, Souza (2006) avança
na discussão de como se produzem e reproduzem as desigualdades brasileiras. Ele parece
querer fugir da interpretação hegemônica da desigualdade brasileira, que transita em torno de
questões econômicas, para apontar a importância de analisar a desigualdade de uma
perspectiva do poder e da moral. (p. 164)
A partir da noção bourdieusiana de habitus, Souza (2006) entende que para analisar a
desigualdade na sociedade brasileira seria preciso pensar num habitus primário, num habitus
precário e num habitus secundário. O habitus primário seria a generalização das pré-condições
sociais, econômicas e políticas para formação do cidadão, graças à chamada “ideologia do
desempenho”. (p. 168, 169) O habitus precário se colocaria abaixo do habitus primário e
representaria a orientação de conduta daqueles que não podem ser considerados úteis numa
sociedade competitiva moderna. O habitus secundário estaria acima do habitus primário e
pressuporia a generalização do habitus primário, uma vez que o habitus secundário institui
critérios classificatórios de distinção social. (p. 167) Em resumo, é como se o habitus primário
representasse o direito à igualdade; o habitus precário, os excluídos do direito à igualdade; e o
habitus secundário, o direito à diferença. E aí se imporia uma questão à sociedade brasileira:
como garantir o direito à diferença numa sociedade que sequer garantiu o direito à igualdade?
Como diferenciar numa sociedade tão desigual?
Usando o exemplo hipotético de atropelamento de um membro da classe baixa por um
membro da classe média, ocorridos na França e no Brasil, ele conclui que a subcidadania
ainda é uma categoria forte nas relações sociais brasileiras, que há cidadãos que são mais
cidadãos que outros. Na França o atropelador seria punido, independentemente da classe
social a que pertencesse, porque já se estabeleceu o direito à igualdade; no Brasil,
provavelmente, o atropelador seria absolvido ou receberia punições brandas.
133
Existe como que uma rede invisível que une desde o policial que abre o inquérito até o
juiz que decreta a sentença final, passando por advogados, testemunhas, promotores,
jornalistas etc, que por meio de um acordo implícito e jamais verbalizado, terminam por
inocentar o atropelador. [...] O que existe aqui são acordos e consensos sociais mudos e
subliminares, mas, por isso mesmo tanto mais eficazes que articulam, como que por meio de
fios invisíveis, solidariedades e preconceitos profundos e invisíveis. (Souza, 2006, p. 174,
175)
O autor amplia a “ralé” nacional da sociedade brasileira para além dos negros, como
afirmava Fernandes, incluindo os despossuídos em geral, de qualquer cor. E chama de “ralé
estrutural”. Fazendo um jogo com a “dominação pessoal”, de Maria Sylvia de Carvalho
Franco, ele afirma que a “ralé estrutural” da moderna sociedade periférica está sob dominação
impessoal. (Souza, 2006, p. 182)
Embora o texto de Souza usado aqui não faça referência à abordagem eliasiana dos
estabelecidos/outsiders, o autor parece ter chegado, por dedução, a proposições muito
semelhantes às de Elias, que discute como a reprodução das desigualdades sociais se apóia
também em aspectos culturais130. A reprodução das desigualdades, para Elias, não se realiza
apenas pelo viés econômico, apenas por uma reprodução econômica da exclusão. Mas
também por uma reprodução cultural das estruturas sociais desiguais131. E é esse ponto que
nos interessa mais de perto.
A sociedade brasileira, e essa não é uma sociedade abstrata, mas a sociedade que se
apresenta nas inter-relações individuais cotidianas, sabe o lugar de cada um. Há um certo
consenso tácito de que “algumas pessoas e classes estão acima da lei e outras abaixo dela”.
(Souza, 2006, p. 174) E quando alguém não reconhece as desigualdades estabelecidas nas
formas de organização das relações sociais no Brasil, há sempre meios sutis, ou nem tão sutis
assim, de lembrar o outro de que a sociedade não é para todos, de coloca-lo no seu devido
lugar, como as piadinhas infames sobre pobres, negros, mulheres, loiras, gays e outras
minorias; o “você sabe com quem está falando?” (DaMatta, 1997); as frases históricas que são
130
Embora Souza prefira atribuir essa reprodução das desigualdades a fatores de poder e moral, utilizando a
teoria de Taylor, preferimos acompanhar a abordagem de Elias e atribuir a reprodução das desigualdades a
fatores culturais, lato sensu. O que incluiria a produção de ideologias tornadas habitus, com as quais se operam
os enfrentamentos cotidianos, muitas vezes sem consciência de que essas ideologias produzem e reproduzem
desigualdades. Seria o caso, por exemplo, das ideologias profissionais.
131
Uma defensora entrevistada disse que “quem lida com pobre, pobre é, meu filho. É só ver a remuneração dos
médicos de hospitais públicos”.
134
repetidas no dia-dia, como “aos amigos tudo, aos inimigos a lei” ou “questão social é questão
de polícia”, por exemplo.
Carvalho (2001) afirma que no Brasil há cidadãos de primeira classe ou “doutores”,
“que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do
dinheiro e do prestígio social.” (p. 215) Para esta categoria, as leis são detalhes. Há os de
segunda classe ou “cidadãos simples”, “que estão sujeitos aos rigores e benefícios da lei”. (p.
216) Para esta categoria as leis são aplicadas de maneira parcial e incerta. E há os cidadãos de
terceira classe ou “elementos”, usando o jargão policial, que “são a grande população
marginal das grandes cidades, trabalhadores urbanos e rurais sem carteira assinada, posseiros,
empregadas domésticas, biscateiros, camelôs, menores abandonados, mendigos”. (p. 216)
Para estes, só existem leis penais.
Podemos afirmar, a partir das análises de Souza (2006), que há sim uma
desvalorização material do trabalho executado por profissionais que lidam diretamente com
pobres, como é o caso dos defensores, uma vez que a sociedade brasileira valoriza
negativamente o pobre, considerando-o “apático”, “violento”, “marginal”, “ralé”, “gentinha”
ou, simplesmente, pobre, num sentido pejorativo132. Provavelmente isso explica também,
junto com outros fatores, os baixos rendimentos de outras categorias profissionais que se
dedicam a atender um público carente de recursos materiais. No entanto, embora a teoria dê
condições de afirmar a desvalorização material das profissões que atuam junto aos pobres no
Brasil, confirmando a relação estabelecido/outsider de Elias, em nossa pesquisa,
especificamente, não conseguimos comprovar essa hipótese. Provavelmente, também por
problemas metodológicos decorrentes do problema de financiamento de nossa pesquisa, como
salientado na introdução. Quer dizer, precisaríamos de outras variáveis além das percepções
dos próprios profissionais sobre a desvalorização de suas atividades ocupacionais. Talvez
devêssemos trabalhar também com as percepções dos intelectuais brasileiros sobre a hipótese
levantada, dos dirigentes de cada uma das profissões escolhidas e da própria sociedade como
um todo, com análises qualitativas a partir de um recorte estatisticamente mais relevante.
132
Os programas humorísticos da TV são sempre bons indicadores de problemas sociais brasileiros. Vale
lembrar os impagáveis primo pobre e primo rico, vividos por Brandão Filho e Paulo Gracindo, respectivamente.
O primo rico sempre encontrava o primo pobre e o humilhava, reforçando sua condição inferior, em vez de
resolver o problema de sua pobreza material, que era o esperado pelo primo pobre. Ou os discursos do deputado
Justo Veríssimo, personagem de Chico Anysio, que dizia o tempo todo: “eu odeio pobre; pobre tem que morrer!;
eu quero que pobre se exploda!” Ou ainda os diálogos elitistas de Caco Antibes, personagem de Miguel
Falabella em Sai de Baixo, que sempre ressaltavam uma certa “pobreza de espírito” das classes baixas
brasileiras. Só para falar de alguns exemplos.
135
Voltando às análises da última pergunta da entrevista realizada com profissionais do
MP e da Defensoria, quatro defensores (4/9) concordaram que o tipo de clientela atendida
pela Defensoria é um fator condicionante da baixa remuneração percebida pelos defensores
no Brasil, se comparado com o MP. Apenas um deles (defensor 2) apontou que isso se explica
pelo fato dos pobres não terem à disposição mecanismos de pressão sobre o governo, ou
melhor, porque “os pobres não representam uma ameaça à destituição do poder político”,
como a denúncia penal, que é monopólio do MP, representa. Quer dizer, pela análise desse
defensor, os governantes não se impressionam com o povo, mas com seus próprios pares, com
outros poderes políticos.
Chegamos, portanto, a dois finais de um mesmo filme: a hipótese da desvalorização
material da Defensoria a partir do tipo de clientela atendida pode ser descabida se levarmos
em conta só os resultados das entrevistas; ou pode ser provável se levarmos em conta outros
fatores, sobretudo, se questionarmos o papel conformador do poder dos estabelecidos sobre os
outsiders. O objetivo não é mesmo chegar a um resultado definitivo quanto a se o pobre
desvaloriza ou não a atividade profissional da Defensoria, mas tão somente realizar reflexões
sobre o cabimento ou não de tal hipótese.
É inegável, como salienta Arantes (2002), que o MP desempenha importante papel
político na sociedade brasileira. Mas precisa ficar claro que a importância e o poder do MP na
arena política é levada, ideologicamente, só para o lado do combate à criminalidade e da
defesa da sociedade, mesmo que esta seja uma abstração para os promotores. Os holofotes do
MP estão focados em sua própria atuação política em prol da sociedade, ficando a atuação
política em prol de seus próprios interesses institucionais na penumbra, como vai fazer
qualquer grupo profissional em competição com outros grupos profissionais. Essa é uma
estratégia de luta profissional. A propaganda política empreendida pelo MP é eficaz em
promover sua imagem de guardiã da lei e da sociedade e em esconder suas lutas (nem sempre
legítimas e nem sempre legais) pela manutenção e ampliação de seus próprios poderes, o que
inclui a questão remuneratória, e pela constituição de uma visão de mundo partilhada dentro
do grupo profissional.
Levando adiante as abordagens de Starr (1991) sobre a medicina nos Estados Unidos –
e ele mostra como os médicos tornaram a vida do cidadão americano muito “medicalizada”,
impondo sua autoridade cultural e social e fazendo com que sua visão de mundo fosse
partilhada por boa parte dessa sociedade – e tentando aplicar o conceito de autoridade cultural
136
ao MP brasileiro, podemos, por um lado, identificar nesta instituição, a partir do processo de
redemocratização política do país, uma tentativa de judicialização da vida e de colocar-se
como porta-voz autorizado de uma sociedade carente de mudanças e, fundamentalmente, de
enfrentamentos aos poderes constituídos e hegemônicos. Como mostra Carvalho (2006;
1987), temos um histórico de manutenção da ordem social por parte de um estado forte, que
serve para organizar uma sociedade desorganizada. O MP hoje se coloca como a nova
instituição produtora da ordem numa sociedade dinâmica e desigual, afirmando agir por uma
sociedade incapaz de transformar-se – quer dizer, politicamente hipossuficiente – e contra um
estado inerte e garantidor de privilégios a certos grupos da sociedade, como já se tornou
constante nas análises sobre o poder na sociedade brasileira133. Mas essa posição social do MP
foi construída num longo processo histórico de lutas ideológicas, inter e intraprofissional.
Por outro lado, o MP tenta produzir essa imagem de instituição guardiã da lei e da
sociedade com investimentos no controle da produção de uma autoridade profissional (Starr,
1991) que, como afirmamos no primeiro capítulo, passa pela validação da competência do
profissional pela comunidade de seus pares (uniformização dos interesses e capacidades
profissionais dos promotores de justiça); pelo estabelecimento de fundamentos racionais e
científicos da competência profissional (tecnicização da atividade profissional do MP); e por
uma orientação de condutas para valores essenciais (fazer crer, por todos os lados, que a
sociedade precisa ser protegida por esses novos agentes político-jurídicos que são os
promotores de justiça). Há, portanto, uma preocupação para dentro da instituição com a
formação, que é também uma conformação, do promotor de justiça na cosmologia oficial,
dominante, como identificado na fala de alguns dos promotores entrevistados.
Não resta dúvida da importância do MP para hoje, como já afirmamos antes. Mas que
também não haja dúvidas de que como toda instituição que alcança poder, o MP está imerso
em conflitos profissionais intensos. O MP se vê e se mostra como defensor da sociedade e se
arvora defensor da ordem democrática pela via da fiscalização do cumprimento das leis, mas
apresenta a contradição de se apresentar autoritária em seu interior ao tentar padronizar o
pensamento dos promotores de justiça. Talvez a instituição tenha medo de que a diversidade
de pensamento reduza a imagem e o poder alcançados após a Constituição de 1988. A
133
Talvez os dois estudos mais célebres nessa chave de interpretação sejam os de Holanda (1995) e Faoro
(1973).
137
produção e reprodução de um pensamento padronizado no interior do MP só mostram a
persistência do autoritarismo na instituição134.
Arantes ao final de seu livro faz o seguinte diagnóstico sobre o MP: “o Ministério
Público encontrará grandes dificuldades para manter intacta sua independência institucional,
quanto mais politizadas forem suas ações em nome da lei”. (2002, p. 305) A partir do
diagnóstico do cientista político levantamos as seguintes questões: será que a tentativa de
constituir uma visão de mundo partilhada pelos promotores de justiça em torno da “boa
técnica jurídica” não enfraquecerá a instituição?135 Quer dizer, será que em médio e longo
prazo um controle ideológico como esse não tenderá a retirar a própria legitimidade do MP
como interlocutor da consolidação da democracia brasileira e a colocá-lo num papel menor de
apenas defender a lei, mesmo que ela seja injusta?136 Aliás, esse papel o MP já desempenhou
antes, durante a ditadura militar.
Assim, a partir de entrevistas realizadas com promotores de justiça e defensores
públicos do Rio de Janeiro, afirmamos que os defensores conhecem mais que os promotores
os principais problemas sociais brasileiros. E isso porque os defensores atuam mais próximos
daqueles que mais sofrem com os problemas sociais brasileiros e menos tem condições de se
defender invocando seus direitos: os pobres. E essa proximidade dos defensores públicos para
com os pobres se deve, particularmente, ao fato dos pobres serem a sua principal clientela. Já
para os promotores de justiça, a sociedade e seus conflitos aparecem como algo abstrato, algo
que não se materializa senão nas páginas de um processo. Silva afirma que para os
promotores, “a participação e a organização da sociedade são medidas pelo número de ações
134
Adorno, ao prefaciar o livro de Cátia Silva, faz importante ressalva de uma convivência identificada no
interior do MP entre discurso democrático e concepções autoritárias sobre a sociedade: “ora, o curioso é que
justamente o que se reivindica como princípio de agir democrático é algo que também pode ser identificado nas
origens do pensamento autoritário brasileiro. Autores como Oliveira Vianna assim justificam a necessidade de
intervenção de um estado forte que organizasse a sociedade contra sua fragmentação interna. Passadas décadas,
sabemos em que tais idéias resultaram. Não se trata, por certo, de estabelecer um nexo causal entre fenômenos
políticos distintos, distanciados no tempo e no espaço. Sequer de estabelecer uma intimidade ideológica onde
elas não existem. O que parece surpreender é essa familiaridade que incomoda”. (2001, p. 19, 20)
135
Já se encontra consolidado nas ciências sociais o reconhecimento da impossibilidade de separação do político
com o jurídico – como gostaria o positivismo jurídico a partir do século XIX – o que não é feito senão em termos
ideológicos. Habermas talvez seja um dos principais pensadores recentes que propõem reflexão sobre essa
impossibilidade de separação. A discussão da relação entre o jurídico e o político criou e sedimentou a
sociologia do direito e remonta a Ehrlich (1986), ainda no início do século XX.
136
Basta lembrarmos que “quando a comunidade é atacada de fora, o perigo exterior desencadeia a solidariedade
no interior. Quando o perigo vem de dentro, de indivíduos sem fé nem lei, há que puni-los e reafirmar assim a
estrutura aos olhos de todos. Mas a estrutura pode destruir-se a si própria”. (Douglas, 1991, p. 165 – grifo
nosso) O MP não pode esquecer da última parte da frase, a grifada.
138
civis públicas propostas”. (2001, p. 107) Os promotores enxergam a sociedade pelas páginas
de um processo judicial, reproduzindo a cultura jurídica formalista dominante no campo do
direito, como vimos no capítulo anterior.
Quanto à desigualdade de rendimentos entre promotores e defensores, ela se coloca no
bojo de uma competição profissional por poder. O principal fator que explicaria tal
desigualdade é que o promotor de justiça detém um importante monopólio de atuação
profissional, a denúncia penal, o que acaba valorizando economicamente também sua
atividade profissional. Quanto à outra hipótese ela não pôde ser confirmada, mas ela poderia
sim ser uma hipótese cabível a partir de um outro instrumento de investigação que pudesse
testá-la melhor.
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tomando por base as transformações ocorridas no direito e, em particular, nas
profissões jurídicas brasileiras após a redemocratização política do país, e a partir da pesquisa
que realizamos, precisamos fazer algumas considerações finais de cunho geral.
Mostramos que as profissões jurídicas brasileiras empreenderam a partir do processo
de redemocratização política do país, que começou com o enfraquecimento do regime militar
em meados da década de 1970, um projeto profissional que reforçou o papel das mesmas
profissões jurídicas para realização da democracia numa sociedade atribulada pelo trauma da
ditadura militar. A construção de um texto constitucional que garantisse a redemocratização
política do país e impedisse o retorno das ditaduras foi feito com intensa participação dos
próprios profissionais do direito e de suas associações profissionais. Entre essas instituições
profissionais do direito, exerceram papel destacado, particularmente, a OAB, a associação dos
magistrados (AMB) e a dos membros do Ministério Público (Conamp). As associações
profissionais e os profissionais do direito utilizaram como argumento principal para tornar
bem sucedido seu projeto profissional o horror social à ditadura militar que precedeu a
redemocratização política do país.
A ditadura militar dava em meados da década de 1970 sinais claros de esgotamento do
modelo político e econômico adotado. O fato das ruas estarem tomadas de manifestações
sociais por redemocratização exemplifica bem essa idéia. O movimento “Diretas Já”, já na
década de 1980, talvez tenha sido o mais importante movimento de luta pela
redemocratização política do país. Argumentamos que os movimentos sociais foram levados
para dentro da Assembléia Nacional Constituinte de 1987, transferindo a luta do campo
político para dentro do campo jurídico. Em meio ao processo de redemocratização política
parecia que o campo jurídico reforçaria o campo político, mas na década de 1990 o direito
emergiu como campo autônomo e reforçado de poder. Se houve uma democratização política
do país a partir do enfraquecimento da ditadura militar e da intensificação da participação
política reivindicando mudanças, o que pode ser um investimento no campo político, houve
ainda mais investimentos no campo jurídico como meio de libertar o próprio campo político
das ameaças autoritárias. No entanto, não se poderia esperar, do ponto de vista dos próprios
atores jurídicos, que o campo jurídico fosse alcançar maior poder social até que o campo
político após a promulgação da Constituição de 1988.
140
Essa discussão da expansão do direito que acontece concomitantemente a uma
expansão do campo político se faz em meio às discussões de judicialização da política e
politização da justiça. Só não podemos deixar de considerar que as profissões jurídicas
participam ativamente na construção daquilo que se chama de judicialização, elaborando e
executando um projeto profissional de ascensão e poder sociais. No caso brasileiro, a
“Constituição Cidadã” foi escrita com intensa participação dos profissionais do direito, em
meio aos clamores populares por redemocratização e junto com os mais variados movimentos
sociais. A previsão constitucional da importância das profissões jurídicas nos artigos da Lei
Maior expressa como esse projeto profissional dos profissionais do direito foi vitorioso a
partir de 1988.
Mas mesmo que as profissões jurídicas tenham saído com poderes reforçados após
1988, isso não significa dizer que a expansão das profissões jurídicas na década de 1990 tenha
se dado de maneira uniforme e harmônica, segundo um modelo previamente elaborado. Pelo
contrário, algumas profissões jurídicas alcançaram maior poder social que outras. Há
inclusive lutas entre algumas profissões jurídicas que se desenham a partir das características
identitárias e remuneratórias. A luta entre a Defensoria Pública e o Ministério Público no Rio
de Janeiro, foi usada como estudo de caso para discussão de alguns fatores desse embate.
Entre esses fatores tentamos mostrar que o tipo de clientela atendida pela Defensoria Pública
funcionaria como desvalorizador de sua remuneração e de seu poder no campo das profissões
jurídicas. Mas não conseguimos comprovar essa hipótese provavelmente por uma falha no
instrumento metodológico utilizado. Embora a teoria dê condições de afirmar a
desvalorização material das profissões que atuam junto aos pobres no Brasil, confirmando a
relação estabelecido/outsider de Elias, não conseguimos comprovar essa hipótese. Mas essa
mesma teoria permitiu-nos verificar a extensão e os efeitos que essas disputas por autoridade
têm para cada grupo no conjunto das profissões do direito.
MP e Defensoria estão em níveis diferenciados de poder no campo das profissões
jurídicas brasileiras e estabelecem conflitos claros por identidades profissionais e
desigualdades de remuneração no Rio de Janeiro. Pelas entrevistas que fizemos com
profissionais dessas duas instituições verificamos inclusive um investimento claro no
compartilhamento de uma visão de mundo por parte do MP. O fato dos promotores de justiça
terem um discurso afinado sobre determinados problemas sociais brasileiros e sobre a
Defensoria Pública apontou para uma preocupação em fortalecer a imagem do MP, embora
141
freqüentemente mascarado sob o discurso de realização de uma boa técnica jurídica ou de
uma defesa da sociedade brasileira. Nos depoimentos tomados junto a promotores de justiça e
defensores públicos evidenciou-se a disputa profissional do MP com a Defensoria, e a
preocupação particular do MP em afinar o discurso de seus membros utilizando um bem
sucedido controle institucional das práticas profissionais do promotor de justiça. O monopólio
da denúncia penal é outro fator que também dá ao MP melhores condições de conquistar
maiores remunerações que a Defensoria, como vimos.
O direito e as profissões jurídicas se expandiram no Brasil após a Constituição de
1988, mas as competições profissionais no campo do direito também se intensificaram,
marcando disputas por identidades e estabelecendo novas desigualdades. Essas disputas fazem
parte da consolidação dos agora prestigiados campos de atuação ocupacionais do direito e
estabelecem um aprofundamento das dinâmicas identitárias no interior do campo jurídico
brasileiro, podendo condicionar novos arranjos institucionais, como o desaparecimento de
algumas ocupações ou a criação de novas ocupações. Mas isso só o futuro nos dirá.
142
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ANEXOS
ANEXO I
Faculdades de Direito que receberam o Selo de qualidade “OAB Recomenda” em 2007.
Acre
Universidade Federal do Acre - Rio Branco
Alagoas
Universidade Federal de Alagoas - Maceió
Amapá
Nenhum curso recomendado
Amazonas Universidade Federal do Amazonas - Manaus
Bahia
Universidade Federal da Bahia - Salvador
Universidade Salvador - Salvador
Ceará
Universidade Federal do Ceará - Fortaleza
Distrito Federal
Centro Universitário de Brasília - Brasília
Universidade de Brasília - Brasília
Espírito Santo
Faculdades Integradas de Vitória - Vitória
Universidade Federal do Espírito Santo - Vitória
Goiás
Universidade Católica de Goiás - Goiânia
Universidade Federal de Goiás - Goiânia
Maranhão
Universidade Federal do Maranhão - São Luís
Mato Grosso
Universidade Federal de Mato Grosso - Cuiabá
Mato Grosso do Sul
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - Dourados
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Campo Grande
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Três Lagoas
Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal - Campo Grande
Minas Gerais
Centro Universitário Newton Paiva - Belo Horizonte
Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Vianna Júnior - Juiz de Fora
Faculdade de Direito Milton Campos - Nova Lima
Fundação Universidade Federal de Viçosa - Viçosa
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Betim
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Poços de Caldas
Universidade Estadual de Montes Claros - Montes Claros
Universidade Federal de Juiz de Fora - Juiz de Fora
Universidade Federal de Minas Gerais - Belo Horizonte
Universidade Federal de Ouro Preto - Ouro Preto
Universidade Federal de Uberlândia - Uberlândia
Universidade Fumec - Belo Horizonte
Universidade Presidente Antonio Carlos - Barbacena
Pará
Centro Universitário do Estado do Pará - Belém
Universidade da Amazônia - Belém
Universidade Federal do Pará - Belém
Universidade Federal do Pará - Marabá
Paraíba
Centro Universitário de João Pessoa - João Pessoa
Universidade Federal da Paraíba - João Pessoa
Paraná
Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro - Jacarezinho
Faculdades Integradas Curitiba - Curitiba
Pontifícia Universidade Católica do Paraná - Curitiba
Universidade Estadual de Londrina - Londrina
Universidade Estadual de Maringá - Maringá
Universidade Federal do Paraná - Curitiba
Pernambuco
Universidade Federal de Pernambuco - Recife
Piauí
Universidade Federal do Piauí - Teresina
Rio de Janeiro
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro
Universidade Cândido Mendes - Rio de Janeiro
Universidade Católica de Petrópolis - Petrópolis
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro
Universidade Federal Fluminense - Niterói
Rio Grande do Norte
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Natal
Rio Grande do Sul
Centro Universitário Ritter dos Reis - Canoas
Fundação Universidade Federal do Rio Grande - Rio Grande
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - Porto Alegre
Universidade de Passo Fundo - Carazinho
Universidade de Passo Fundo - Passo Fundo
Universidade de Santa Cruz do Sul - Santa Cruz do Sul
Universidade Federal de Pelotas - Pelotas
Universidade Federal de Santa Maria - Santa Maria
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Porto Alegre
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - Erechim
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - Frederico Westphalen
Rondônia
Fundação Universidade Federal de Rondônia - Cacoal
Fundação Universidade Federal de Rondônia - Porto Velho
Roraima
Nenhum curso recomendado
Santa Catarina
Universidade da Região de Joinville - Joinville
Universidade do Extremo Sul Catarinense - Criciúma
Universidade do Oeste de Santa Catarina - Joaçaba
Universidade do Oeste de Santa Catarina - São Miguel do Oeste
Universidade do Planalto Catarinense - Lages
Universidade Federal de Santa Catarina - Florianópolis
Universidade Regional de Blumenau - Blumenau
São Paulo
Centro Universitário Salesiano de São Paulo - Lorena
Faculdade de Direito de Franca - Franca
Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo - São Bernardo do Campo
Faculdade de Direito de Sorocaba - Sorocaba
Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente - Presidente Prudente
Pontifícia Universidade Católica de Campinas - Campinas
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo
Universidade Católica de Santos - Santos
Universidade de São Paulo - São Paulo
Universidade Estadual Paulista de Júlio de Mesquita Filho - Franca
Universidade Presbiteriana Mackenzie - São Paulo
Universidade São Judas Tadeu - São Paulo
Sergipe
Universidade Federal de Sergipe - São Cristóvão
Tocantins
Nenhum curso recomendado
ANEXO II
Lista de profissões destinadas aos formados em Direito, segundo a CBO.
1113-05
Ministro do Supremo Tribunal Federal
1113-10
Ministro do Superior Tribunal de Justiça
1113-15
Ministro do Superior Tribunal Militar
1113-20
Ministro do Superior Tribunal do Trabalho - Juiz do tribunal regional do trabalho , Juiz federal
de segunda instância
1113-25
Juiz de direito - Desembargadores , Juiz de alçada , Juiz de direito de primeira instância
1113-30
Juiz federal - Juiz do Tribunal Regional Federal
1113-35
Juiz auditor federal - justiça militar
1113-40
Juiz auditor estadual - justiça militar - Juiz dos tribunais militares estaduais
1113-45
Juiz do trabalho
2410-05
Advogado - Advogado generalista , Assistente Jurídico
2410-10
Advogado de empresa - Advogado empresarial
2410-15
Advogado (direito civil) - Advogado (direito de família e sucessões) , Advogado civilista ,
Advogado comercial , Advogado contratualista
2410-20
Advogado (direito público) - Advogado (direito administrativo) , Advogado constitucionalista ,
Advogado fiscal (direito fiscal) , Advogado previdenciário , Advogado tributarista
2410-25
Advogado (direito penal) - Advogado criminalista , Criminalista , Penalista
2410-30
Advogado (áreas especiais) - Advogado (abuso do poder econômico) , Advogado (aeroespacial) ,
Advogado (agente de propriedade industrial) , Advogado (ambientalista) , Advogado (arbitragem) ,
Advogado (biodireito) , Advogado (concorrência desleal) , Advogado (desportivo) , Advogado
(direito internacional) , Advogado (direitos da criança e do adolescente) , Advogado (direitos do
consumidor) , Advogado (energia elétrica) , Advogado (propriedade intelectual) , Advogado
(recursos hídricos e minerais) , Advogado (telecomunicações) , Advogados (direito eletrônico)
2410-35
Advogado (direito do trabalho) - Advogado trabalhista
2410-40
Consultor jurídico - Assessor jurídico , Consultor , Jurisconsulto , Jurista
2410-45
Advogado da união
2412-05
Procurador autárquico
2412-10
Procurador da fazenda nacional - Procurador distrital , Procurador na Justiça
2412-15
Procurador da fazenda nacional - Procurador distrital , Procurador na Justiça
2412-20
Procurador do estado
2412-25
Procurador do município - Procurador municipal
2412-30
Procurador federal
2412-35
Procurador fundacional - Procurador de fundação
2413-05
Oficial de registro de contratos marítimos - Registrador de contratos marítimos , Tabelião de
contratos marítimos
2413-10
Oficial do registro civil de pessoas juridicas - Registrador civil de pessoas jurídicas
2413-15
Oficial do registro civil de pessoas naturais - Registrador civil de pessoas naturais
2413-20
Oficial do registro de distribuições
2413-25
Oficial do registro de imóveis - Registrador imobiliário
2413-30
Oficial do registro de títulos e documentos - Registrador de títulos e documentos
2413-35
Tabelião de notas - Notário
2413-40
Tabelião de protestos - Tabelião de protesto de letras e títulos
2422-05
Procurador da república
2422-10
Procurador de justiça
2422-15
Procurador de justiça militar
2422-20
Procurador do trabalho
2422-25
Procurador regional da república
2422-30
Procurador regional do trabalho
2422-35
Promotor de justiça
2422-40
Subprocurador de justiça militar
2422-45
Subprocurador-geral da república
2422-50
Subprocurador-geral do trabalho
2423-05
Delegado de polícia - Autoridade policial (delegado) , Delegado distrital de polícia , Delegado
regional de polícia
2424-05
Defensor público - Defensor público estadual , Defensor público federal
2424-10
Procurador da assistência judiciária
ANEXO III
Lista de Algumas Associações (Profissionais e/ou Voluntárias) que compõem o Campo Jurídico Brasileiro
Associação Brasileira da Propriedade Intelectual – ABPI
Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário – ABAMI
Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas – ABRAT
Associação Brasileira de Direito Agrário – ABDA
Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT
Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA
Associação Brasileira dos Advogados Ambientalistas – ABAA
Associação Brasileira dos Agentes da Propriedade Industrial – ABAPI
Associação Brasileira dos Magistrados Espíritas – ABRAME
Associação Brasileira pelo Direito de Brincar – IPA
Associação dos Advogados do Banco do Brasil – ASABB
Associação dos Advogados Espíritas – ADAE
Associação dos Advogados Evangélicos do Brasil
Associação dos Advogados pela Democracia
Associação dos Defensores Públicos da União
Associação dos Estudantes de Direito Ambiental do Brasil – AEDAB
Associação dos Juristas pela Democracia
Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais - AMaJME
Associação dos Magistrados do Brasil – AMB
Associação Juízes para a Democracia - AJD
Associação Nacional de Direito Marítimo e Portuário – ANADIM
Associação Nacional dos Advogados da União – ANAUni
Associação Nacional dos Advogados e Juristas Brasil-Israel - ANAJUB
Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP
Associação Nacional dos Magistrados da justiça do trabalho – ANAMATRA
Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR
Associação Nacional dos Procuradores do Estado – ANAPE
Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais – CEBEPEJ
Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA
Confederação Nacional dos Profissionais Liberais - CNPL
Federação Nacional dos Advogados - FeNAdv
Gay Law Association/Brasil
Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC
Instituto Brasileiro de Direito Bancário – IBDB
Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD
Instituto Brasileiro de Direito do Seguro – IBDS
Instituto Direito e Sociedade – IDES
Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB
Instituto dos Magistrados do Brasil - IMB
Ordem dos Advogados do Brasil - OAB
Rede Nacional Autônoma de Advogados Populares - RENAAP
Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP
ANEXO IV
Lista de Algumas Associações (Profissionais e/ou Voluntárias) que compõem o Campo Jurídico do Rio de
Janeiro
Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro – ADPERJ
Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região – AMATRA 1
Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – AMAERJ
Associação dos Oficiais de Justiça Avaliadores do Estado do Rio de Janeiro – AOJARJ
Associação dos Procuradores do Estado do Rio de Janeiro – APERJ
Centro de Articulação de Populações Marginalizadas - CEAP
Comissão do Advogado com Vínculo Empregatício – CAVE
Cooperativa de Economia e Crédito Mútuo dos Servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio deJaneiro –
COOPJUSTIÇA
Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio de Janeiro – OAB/RJ
Sindicato dos Advogados do Rio de Janeiro – SINDADVOGADOS
Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Rio de Janeiro – SINDJUSTIÇA-RJ
ANEXO V
Lista de Algumas Instâncias de Consagração do Campo Jurídico Brasileiro
Academia Brasileira de Letras
Academia Jurídica de Letras
Conselho Nacional de Justiça
Instituto dos Advogados Brasileiros
Superior Tribunal de Justiça
Supremo Tribunal Federal
ANEXO VI
Quadro de governadores e vice-governadores dos estados segundo suas formações superiores, julho/2007.
UF
Governador
Formação
Superior
Vice-Governador
AC Binho Marques
Historiador
César Messias
AL Teotônio Vilela Filho
Economia
José Wanderley Neto
Formação
Superior
Medicina
Administração
AM Carlos Eduardo de Souza Braga
Engenharia
Omar José Abdel Aziz
AP
Direito
Pedro Paulo Dias de
Carvalho
BA Jaques Wagner
Engenharia
Edmundo Pereira Santos
CE
Cid Ferreira Gomes
Engenharia Civil
Francisco José Pinheiro
DF
José Roberto Arruda
Engenharia
Paulo Octávio Alves Pereira
ES
Paulo César Hartung Gomes
Economia
Ricardo Ferraço
-
GO Alcides Rodrigues Filho
Medicina
Ademir de Oliveira Menezes
-
MA Jackson Lago
Medicina
Luiz Porto
Antônio Ildegardo Gomes de
Alencar
Engenharia Civil
Medicina
História
Administração
Teologia
MG Aécio Neves da Cunha
Economia
Antonio Augusto Junho
Anastasia
Direito
MS André Puccinelli
Medicina
Murilo Zauith
-
MT Blairo Borges Maggi
Agronomia
Silval da Cunha Barbosa
-
PA
Ana Júlia Carepa
Arquitetura
Odair Santos Corrêa
PB
Cássio Cunha Lima
Direito
José Lacerda Neto
PE
Eduardo Henrique Accioly
Campos
Economia
João Soares Lyra Neto
PI
José Wellington Barroso de
Araújo Dias
Economia
Wilson Martins
Medicina
PR
Roberto Requião de Mello e Silva Direito
Orlando Pessuti
Veterinária
Direito
-
Jornalismo
RJ
Sergio Cabral Filho
Jornalismo
Luiz Fernando Pezão
Economia
Administração
RN Wilma Maria de Faria
Letras
Iberê Paiva Ferreira de
Souza
Direito
RO Ivo Narciso Cassol
-
João Aparecido Cahulla
-
RR Ottomar Pinto
Militar
José de Anchieta Júnior
Engenharia Civil
RS
Yeda Rorato Crusius
Economia
Paulo Afonso Girardi Feijó
SC
Luiz Henrique da Silveira
Direito
Leonel Arcângelo Pavan
SE
Marcelo Déda Chagas
Direito
Belivaldo Chagas Silva
SP
José Serra
Economia
Alberto Goldman
Administração
Direito
Engenharia
TO Marcelo Miranda
Pecuarista
Paulo Sidnei Antunes
Arquitetura
ANEXO VII
Quadro dos prefeitos municipais dos cem maiores municípios brasileiros em número de habitantes
segundo suas formações superiores, julho/2007.
Cidade
UF
1.
São Paulo
SP Gilberto Kassab
2.
Rio de Janeiro
RJ César Maia
Economia
3.
Salvador
BA João Henrique Carneiro
Economia
4.
Fortaleza
CE Luizianne Lins
5.
Belo Horizonte
MG Fernando Pimentel
6.
Curitiba
PR Beto Richa
7.
Manaus
AM Serafim Correia
8.
Recife
PE João Paulo Lima e Silva
9.
Porto Alegre
RS José Fogaça
Direito
10. Belém
PA Duciomar Gomes da Costa
Direito
11. Guarulhos
SP Elói Pietá
Direito
12. Goiânia
GO Iris Rezende
Direito
13. Campinas
SP Hélio de Oliveira Santos
Medicina
14. São Luís
MA Tadeu Palácio
Medicina
15. São Gonçalo
RJ Aparecida Panisset
-
16. Maceió
AL Cícero Almeida
-
17. Duque de Caxias
RJ Washington Reis de Oliveira
-
18. Nova Iguaçu
RJ Lindberg Farias
-
19. Teresina
PI Sílvio Mendes de Oliveira Filho
Prefeito
20. São Bernardo do Campo SP William Dib
21. Natal
RN Carlos Eduardo Alves
22. Campo Grande
MS Nelson Trad Filho
23. Osasco
SP Emídio Pereira de Sousa
24. Santo André
SP João Avamileno
25. João Pessoa
PB Ricardo Coutinho
Formação Superior
Engenharia Civil; Economia
Jornalismo
Economia
Engenharia Civil
Economia
-
Medicina
Medicina
Direito
Medicina
Direito
Farmácia
26. Jaboatão dos Guararapes PE Nilton Carneiro
-
27. Uberlândia
MG Odelmo Leão Carneiro
-
28. São José dos Campos
SP Eduardo Cury
29. Contagem
MG Marilia Aparecida Campos
30. Sorocaba
SP Vítor Lippi
Engenharia
Psicologia
Medicina
31. Ribeirão Preto
SP Welson Gasparini
Direito
32. Cuiabá
MT Wilson Pereira dos Santos
Direito
33. Feira de Santana
BA José Ronaldo de Carvalho
Administração
34. Juiz de Fora
MG Carlos Alberto Bejani
35. Aracaju
SE Edvaldo Nogueira
36. Ananindeua
PA Hélder Barbalho
37. Joinville
SC Marco Tebaldi
38. Londrina
PR Nedson Luís Micheleti
39. Belford Roxo
RJ Maria Lúcia Netto dos Santos
40. Niterói
RJ Godofredo Pinto
Matemática
41. São João de Meriti
RJ Uzias Silva Filho
-
42. Aparecida de Goiânia
GO José Macedo de Araújo
-
43. Campos dos Goitacazes RJ Alexandre Mocaiber
Medicina
Engenharia
Filosofia; Ciências Sociais
-
Medicina
44. Santos
SP João Paulo Papa
Engenharia
45. São José do Rio Preto
SP Edson Coelho Araújo
46. Mauá
SP Leonel Damo
47. Caxias do Sul
RS José Ivo Sartori
48. Betim
MG Carlaile de Jesus Pedrosa
49. Florianópolis
SC Dário Berger
50. Vila Velha
ES Max Mauro de Freitas Filho
51. Diadema
SP José de Filippi Jr.
52. Serra
ES Audifax Charles Pimentel Barcelos
53. Carapicuíba
SP Fuad Chucre
54. Olinda
PE Luciana Santos
55. Porto Velho
RO Roberto Sobrinho
56. Campina Grande
PB Veneziano Vital do Rego
57. Moji das Cruzes
SP Junji Abe
58. Macapá
AP João Henrique Rodrigues Pimentel
59. Piracicaba
SP Barjas Negri
60. Cariacica
ES Hélder Salomão
61. Bauru
SP José Gualberto Angerami
62. Itaquaquecetuba
SP Armando Tavares Filho
63. Montes Claros
MG Athos Avelino
Medicina
64. Jundiaí
SP Ary Fossen
Economia
65. Pelotas
RS Adolfo Antônio Fetter Jr.
Direito
Filosofia
Administração
Direito; Administração
Engenharia
Economia
Arquitetura
Engenharia Elétrica
Psicologia
Direito; Ciências Sociais
Engenharia Civil; Matemática
Economia
Filosofia
Psicologia
-
Engenharia Agronômica; Administração
66. Canoas
RS Marcos Antônio Ronchetti
Medicina
67. São Vicente
SP Tércio Garcia
68. Franca
SP Sidnei Franco da Rocha
69. Maringá
PR Sílvio Magalhães Barros
70. Ribeirão das Neves
MG Walace Ventura Andrade
71. Anápolis
GO Pedro Fernando Sahiu
72. Vitória
ES João Coser
73. Rio Branco
AC Raimundo Angelim
74. Caucaia
CE Inês Arruda
75. Petrópolis
RJ Rubens José França Bomtempo
76. Foz do Iguaçu
PR Paulo Mac Donald Ghisi
77. Guarujá
SP Farid Said Madi
78. Ponta Grossa
PR Pedro Wosgrau Filho
79. Paulista
PE Ives Ribeiro
80. Blumenau
SC João Paulo Kleinübing
Administração; História
81. Vitória da Conquista
BA José Raimundo Fontes
História; Pedagogia
82. Governador Valadares
MG José Bonifácio Mourão
83. Uberaba
MG Anderson Adauto
84. Cascavel
PR Lísias de Araújo Tomé
85. Caruaru
PE Tony Gel
86. Suzano
SP Marcelo Cândido
87. Limeira
SP Sílvio Félix da Silva
88. Santarém
PA Maria do Carmo Martins Lima
89. Taubaté
SP Roberto Peixoto
Engenharia
90. Gravataí
RS Sergio Stasinski
-
91. Santa Maria
RS Antônio Valdeci Oliveira de Oliveira
-
92. Barueri
SP Rubens Furlan
93. Viamão
RS Alex Sander Alves Boscaini
94. São José dos Pinhais
PR Leopoldo Costa Meyer
95. Petrolina
PE Odacy Amorim de Sousa
96. Novo Hamburgo
RS Jair Foscarini
97. Volta Redonda
RJ Gothardo Lopes Netto
98. Várzea Grande
MT Murilo Domingos
Direito
99. Boa Vista
RR Iradilson Sampaio
Medicina Veterinária
100. Embu
SP Geraldo Leite da Cruz
Engenharia Agronômica
Direito
Engenharia Civil
Ciências Sociais
Direito
Economia
Terapia Ocupacional
Medicina
Engenharia Civil; Ciências Sociais
Engenharia Civil
Direito
Medicina
Direito
Geografia
Administração
Direito
História
Engenharia
Economia
Engenharia Química; Administração
Medicina
-
A classificação das cidades segue a ordem decrescente do número de habitantes segundo dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicados no Diário Oficial da União (D.O.U.) em 1° de julho de
2006.
A lista exclui Brasília porque a cidade não tem prefeito, mas governador.
A capital do Tocantins, Palmas, é a única capital de estado que não está entre as cem maiores cidades do Brasil.
ANEXO VIII
Quadro da formação superior dos prefeitos municipais dos vinte maiores municípios do estado do Rio de
Janeiro por número de habitantes, julho/2007.
Município
Formação Superior
Economia
1.
Rio de Janeiro
2.
São Gonçalo
-
3.
Duque de Caxias
-
4.
Nova Iguaçu
-
5.
Belford Roxo
-
6.
Niterói
7.
São João de Meriti
8.
Campos dos Goytacazes
Medicina
9.
Petrópolis
Medicina
10. Volta Redonda
Medicina
Matemática
-
11. Magé
-
12. Itaboraí
-
13. Mesquita
14. Nova Friburgo
15. Barra Mansa
16. Cabo Frio
17. Macaé
18. Nilópolis
19. Teresópolis
20. Angra dos Reis
Jornalismo
Medicina
Medicina
Educação Física
Medicina
Engenharia Elétrica
ANEXO IX
FOLHA PARA REALIZAÇÃO DE ENTREVISTAS COM ASSISTIDOS DA DEFENSORIA PÚBLICA.
1. Você está satisfeito com o trabalho da Defensoria Pública? S/N
01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25
26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50
51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75
76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100
2. De 0 a 10, que nota você daria para o seu Defensor? 0/1/2/3/4/5/6/7/8/9/10
01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25
26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50
51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75
76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100
3. Pra você, qual o maior problema da Defensoria Pública?
1.
____________________________
25.
____________________________
2.
____________________________
26.
____________________________
3.
____________________________
27.
____________________________
4.
____________________________
28.
____________________________
5.
____________________________
29.
____________________________
6.
____________________________
30.
____________________________
7.
____________________________
31.
____________________________
8.
____________________________
32.
____________________________
9.
____________________________
33.
____________________________
10.
____________________________
34.
____________________________
11.
____________________________
35.
____________________________
12.
____________________________
36.
____________________________
13.
____________________________
37.
____________________________
14.
____________________________
38.
____________________________
15.
____________________________
39.
____________________________
16.
____________________________
40.
____________________________
17.
____________________________
41.
____________________________
18.
____________________________
42.
____________________________
19.
____________________________
43.
____________________________
20.
____________________________
44.
____________________________
21.
____________________________
45.
____________________________
22.
____________________________
46.
____________________________
23.
____________________________
47.
____________________________
24.
____________________________
48.
___________________________
49.
____________________________
89.
____________________________
50.
____________________________
90.
____________________________
51.
____________________________
91.
____________________________
52.
____________________________
92.
____________________________
53.
____________________________
93.
____________________________
54.
____________________________
94.
____________________________
55.
____________________________
95.
____________________________
56.
____________________________
96.
____________________________
57.
____________________________
97.
____________________________
58.
____________________________
98.
____________________________
59.
____________________________
99.
____________________________
60.
____________________________
100.
____________________________
61.
____________________________
62.
____________________________
63.
____________________________
64.
____________________________
65.
____________________________
66.
____________________________
67.
____________________________
68.
____________________________
69.
____________________________
70.
____________________________
71.
____________________________
72.
____________________________
73.
____________________________
74.
____________________________
75.
____________________________
76.
____________________________
77.
____________________________
78.
____________________________
79.
____________________________
80.
____________________________
81.
____________________________
82.
____________________________
83.
____________________________
84.
____________________________
85.
____________________________
86.
____________________________
87.
____________________________
88.
____________________________
ANEXO X
ROTEIRO DE ENTREVISTAS:
I. Com membros do MP-RJ (Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro)
Tempo previsto para realização da entrevista: 60min.
Esta entrevista é composta de perguntas que demandarão respostas espontâneas, livres, sem imposição de
alternativas ou induções de respostas. Se eu julgar que a pergunta não foi respondida a contento vou ficar à
vontade para reformula-la. A entrevista será utilizada em minha tese de doutorado em sociologia, ficando os
depoimentos reservados ao anonimato. Seu depoimento será uma fonte para melhor compreensão de alguns
aspectos vinculados ao MP. Assim que tiver concluído a tese, posso mandar um e-mail comunicando. Basta
escrever um e-mail de contato aqui nesta ficha.
Queria começar indagando sua visão sobre a sociedade brasileira e, em particular, sobre a pobreza e os pobres.
1.
Pra você, qual o maior problema da sociedade brasileira?
2.
Que palavra ou imagem vem primeiro à sua mente quando eu falo a palavra pobreza?
3.
Como você percebe a pobreza no Brasil? Quer dizer, em sua opinião, existe uma grande pobreza no
Brasil? E, se existe, quais são as causas dessa pobreza?
4.
E sobre os pobres, que características pessoais costumam assumir os pobres brasileiros? Quer dizer,
pela sua observação, que traço(s) há em comum no comportamento dos pobres do Brasil?
5.
Existem profissionais que lidam especificamente com os pobres. Você acha que esse tipo de
profissional deveria ganhar mais que outros profissionais que não lidam diretamente com os pobres?
Agora queria passar a questões sobre a relação do MP com a Defensoria e dos promotores de justiça com os
defensores públicos.
6.
É sabido que os defensores públicos ganham menos que os promotores de justiça na maioria dos
estados brasileiros. A que você atribui essa desigualdade salarial entre defensores e promotores?
7.
Mas você acha que deveria haver isonomia de rendimentos entre defensores e membros dos MPs
estaduais nos respectivos níveis de carreira? Por que?
8.
Você percebe algum tipo de animosidade na relação entre defensores e promotores?
9.
Em sua opinião, as características da clientela da Defensoria Pública condicionam os salários dos
defensores? (Se o entrevistado não entender a pergunta: Em que medida os defensores públicos podem estar
ganhando menos porque seus clientes são economicamente hipossuficientes?)
Complemento para entrevista com membro do MPF que já foi Defensor
Tempo previsto para realização da entrevista: 10min.
10.
Você hoje é promotor, mas já foi defensor. Agora que você está do lado de cá, quais os maiores
problemas que você vê do lado de lá?
11.
Qual a diferença das condições de trabalho entre Defensoria e MP?
II. Com Defensores Públicos da DPGE-RJ (Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro)
Tempo previsto para realização da entrevista: 60min.
Esta entrevista é composta de perguntas que demandarão respostas espontâneas, livres, sem imposição de
alternativas ou induções de respostas. Se eu julgar que a pergunta não foi respondida a contento vou ficar à
vontade para reformula-la. A entrevista será utilizada em minha tese de doutorado em sociologia, ficando os
depoimentos reservados ao anonimato. Seu depoimento será uma fonte para melhor compreensão de alguns
aspectos vinculados à Defensoria. Assim que tiver concluído a tese, posso mandar um e-mail comunicando.
Basta escrever um e-mail de contato aqui nesta ficha.
Queria começar indagando sua visão sobre a sociedade brasileira e, em particular, sobre a pobreza e os pobres.
1.
Pra você, qual o maior problema da sociedade brasileira?
2.
Que palavra ou imagem vem primeiro à sua mente quando eu falo a palavra pobreza?
3.
Como você percebe a pobreza no Brasil? Quer dizer, em sua opinião, existe uma grande pobreza no
Brasil? E, se existe, quais são as causas dessa pobreza?
4.
E sobre os pobres, que características pessoais costumam assumir os pobres brasileiros? Quer dizer,
pela sua observação, que traço(s) há em comum no comportamento dos pobres do Brasil?
5.
Você acha que profissionais que lidam especificamente com os pobres deveriam ganhar mais que outros
profissionais que não lidam diretamente com os pobres?
Agora queria passar a questões sobre a relação do MP com a Defensoria e dos promotores de justiça com os
defensores públicos.
6.
É sabido que os defensores públicos ganham menos que os promotores de justiça na maioria dos
estados brasileiros. A que você atribui essa desigualdade salarial entre defensores e promotores?
7.
Mas você acha que deveria haver isonomia de rendimentos entre defensores e membros dos MPs
estaduais nos respectivos níveis de carreira? Por que?
8.
Você percebe algum tipo de animosidade na relação entre defensores e promotores?
9.
Em sua opinião, as características da clientela da Defensoria Pública condicionam os salários dos
defensores? (Se o entrevistado não entender a pergunta: Em que medida os defensores públicos podem estar
ganhando menos porque seus clientes são economicamente hipossuficientes?)
ANEXO XI
Quadros resumidos de respostas das entrevistas feitas com promotores de justiça e defensores públicos do
Rio de Janeiro.
Quadro resumido de respostas das entrevistas feitas com promotores de justiça do Rio de Janeiro (1ª
parte)
Questão 1
Questão 2
Questão 3
Questão 4
Questão 5
1. Falta de
Educação.
Criança.
Sim.
-
Não.
2. Analfabetismo.
Maioria do Povo.
-
Não.
Sim.
Passividade.
Não.
Falta de Educação.
Aceitação da
realidade.
Fatores Históricos.
Falta de
Educação.
Sim.
Fatores Históricos.
Irresponsabilidade
social.
Falta de vontade política
de todos.
3. Falta de
Educação.
Desigualdade.
Desconhecimento
de direitos.
Falta de Emprego.
Pela própria falta de
educação.
Embora esses
aspectos tenham
melhorado depois
da Constituição
de 1988.
4. Falta de
Educação.
Favelas.
5. Falta de
autoridade.
Fome.
Não há grande pobreza.
Há grande desigualdade
social.
Sim.
Corrupção nos órgãos
públicos.
Falta de
cumprimento da
lei.
A pobreza interessa a
alguns setores políticos.
Falta o exercício
do Império da Lei
(Estado
Democrático de
Direito).
Má distribuição de
renda.
6. Excesso de
conservadorismo
das elites
políticas.
Injustiça.
7. Falta de
capacidade
administrativa.
Favela.
Sim.
Fica esperando a
tutela do Estado.
Não.
Apatia, pela própria
falta de educação.
Não.
Fica esperando a
tutela do Estado.
A pobreza (carência)
reduz o nível moral
da pessoa.
Submissão.
A remuneração
deve decorrer das
funções
exercidas.
Não.
Má distribuição de
renda.
Sim.
Grande parte da
população vive na
pobreza.
Causas:
Individual→As elites
Tende a ser violento. Não.
Remuneração
deve decorrer das
funções.
não vivem com pobres.
Estado→Falta de
investimento estatal
para redução da
pobreza.
8. Injustiça social.
9. Falta de
educação.
Desprovimento das Sim.
condições básicas
Causas econômicas.
de existência.
Concentração de renda.
Falta de educação.
Igreja Católica.
Desconhecimento de Não.
(falta de acesso a)
Isso criaria
bens culturais e
distorções na
materiais.
sociedade.
Talvez porque falte
Deveriam ganhar
educação.
o suficiente para
Esse
exercer sua
desconhecimento
atividade
gera uma sociedade profissional com
pobres.
acéfala, sem
expressão
intelectual.
Maior interessada
Falta de
na manutenção da
investimentos em pobreza.
educação.
A Igreja alcança a
O que gera uma
riqueza pela
falta de
exploração da
consciência
pobreza.
política do povo.
Por exemplo, não
apóia os métodos
contraceptivos
porque quer a
proliferação da
pobreza.
Sim.
Má-distribuição da
renda.
Sim.
Pouca instrução.
A pobreza gera a
riqueza da Igreja.
10. Corrupção é o
grande problema
a ser enfrentado.
Não só a
corrupção em
termos
econômicos, mas
principalmente, a
corrupção moral.
Esta corrupção
gera uma série de
distorções.
Sertão nordestino.
Sim.
O mesmo tipo de
corrupção de que falei
antes, a corrupção
moral, que gera
desigualdades sociais e
a pobreza.
Falta de participação
nas coisas públicas,
o que reflete um
baixo nível de
integração cultural.
Em termos de
condições de
trabalho, sim. Em
termos salariais,
não sei.
Quadro resumido de respostas das entrevistas feitas com promotores de justiça do Rio de Janeiro (2ª
parte)
Questão 6
1
Questão 7
Relevância das Funções. Não.
Responsabilidade do MP
é maior que a da
Defensoria.
Questão 8
Questão 9
Formação/ Observações
Trajetória
profission
al
Individualmente,
não.
Não.
Candido
Mendes.
As pessoas
Institucionalmente, atendidas
sim.
são as
mesmas.
O Defensor é
inimigo do MP. O
contrário é menos
sentido.
MP→Sociedade.
Defensoria→Indivíduo.
MP→Poder de Estado.
Aprox. 35 anos.
Masculino.
Não foi
Defensor.
Defensor→Advogado do
Pobre.
2
MP tem maior parcela
de poder.
Só o MP acusa, função
privativa.
Papel da Defensoria
também é feito pelos
advogados.
3
4
Sim.
Sim.
O concurso é De parte a parte.
tão difícil
quanto o do
MP.
Sim.
Não.
Puc-Rio.
Aprox. 32 anos.
Mas por
atender
pobres a
Defensoria
tem menor
poder de
barganha.
Não foi
Defensor.
Masculino.
Não.
UERJ.
Mestrado
em Direito.
Aprox. 50 anos.
MP→Maior relevância.
Previsão Constitucional.
Sim.
Dentro das
Defensores têm
Defensor→Advogado do possibilidade rixa com
s
promotores. O
Pobre.
orçamentária contrário é menos
Tempo de existência das s.
sentido.
instituições: MP é mais
Regimes
antigo que Defensoria.
jurídicos
Não se pode comparar
similares,
MP a Defensoria.
remuneraçõe
s similares.
Comparação: MP x
Magistratura. →
Mesmas vedações e
garantias
constitucionais.
MP também Não foi
Masculino.
atende
Defensor.
pobres.
Antes do
MP:
bancário e
empresário
.
Maior força política do
MP.
Não.
Sim.
Sim.
Defensores têm
rixa com
promotores.
Não se
Não foi
investe em
Defensor.
direitos para
pobres.
Não deve
Diferenças funcionais:
haver
vinculação
MP→Instituição;
Defensoria→Advocacia. de
rendimentos
Função do MP é mais
da
relevante.
Defensoria
com o MP.
Funções
diferentes.
UERJ.
Aprox. 35 anos.
Masculino.
Regimes
jurídicos
distintos.
5
Estado precisa eleger
suas prioridades.
Defensoria ganha pelo
que representa.
Não.
Não.
Cada carreira A briga é
deve lutar
institucional e por
por seus
verbas.
poderes.
MP ganha mais que
Defensoria porque é uma Funções
das prioridades do
diferentes
Estado.
determinam
salários
Defensoria não é, nem
distintos.
deveria ser, prioridade
do Estado.
Não.
UFRJ.
MP também Não foi
lida com
Defensor.
pobres.
Aprox. 45 anos.
Masculino.
MP defende
a sociedade.
MP defende
a lei.
Defensor não deveria
ganhar mais que
delegado de polícia.
MP ganha bem porque
precisa de uma garantia
(proteção) contra o
Estado.
Crítica contundente à
presença das classes
médias na Defensoria,
emperrando o sistema de
justiça e
descaracterizando a
função da Defensoria.
6
Defensoria não tem
grandes instrumentos de
manobra para
negociação salarial.
Não.
Sim.
Não.
Pode até
ganhar mais.
De lado a lado.
Não há
vinculação
ao fato de
serem
pobres.
Não deve
haver
vinculação
entre estas
instituições.
Mas é uma
minoria.
Candido
Mendes.
Aprox. 45 anos.
Masculino.
Não foi
Defensor.
Mestrado
em Direito.
MP também
atende
pobres.
Fator
principal é o
poder de
barganha.
7
Maior estrutura do MP.
Maior poder do MP
sobre a Administração
Política.
MP é mais antigo que a
Defensoria.
Não
precisava ser
equiparado
ao MP, mas
deveria haver
maior
isonomia,
por respeito
às funções.
Sim.
Não.
UERJ.
Aprox. 27 anos.
Muitos promotores
vêem o MP como
acusador e o
Direito Penal como
solução dos
problemas sociais.
A massa de
pobres
poderia até
ser usada
como
instrumento
de barganha
política por
melhores
Não foi
Defensor.
Masculino.
MP deve ter uma
função mais de
equilíbrio, não
Mestrado
em Direito.
precisa ser,
necessariamente,
sempre acusador.
Defensor é visto
como inimigo.
Isso acontece mais
na esfera social,
nos encontros com
os próprios pares.
Nas palestras
iniciais do recém
aprovado para a
carreira de
promotor de
justiça, há uma
certa
desqualificação da
figura do defensor
público, que
sempre é tomado
como exemplo.
O ingressante na
carreira precisa
assimilar a maneira
de pensar do MP.
As peças
processuais não
podem ter um
cunho muito social
porque não se
coaduna com o
perfil esperado de
um promotor, que
deve se ater mais à
técnica.
O entrevistado
relatou um
controle do
pensamento
profissional no
MP, que passa
pelos cursos
introdutórios à
carreira, pela
avaliação do
estágio probatório
e pelas escolhas
institucionais para
ocupação de
determinadas
vagas e
oportunidades.
O entrevistado
afirmou que o MP
não incentiva a
qualificação dos
promotores de
salários.
justiça.
8
Fatores Históricos.
Sim.
Sim.
Não.
MP é mais antigo que a
Defensoria.
MP e
Defensoria
desempenha
m funções
diretamente
relacionadas
com a Justiça
Estadual.
Há uma rixa
pessoal, e não
institucional.
Sim.
Falta de interesse
político.
De lado a lado.
UERJ.
Foi
Defensor
Entrevistado
antes, por
demonstrou
3 anos.
não saber
responder
Está no
esta
MPF desde
1993.
pergunta.
Tem
doutorado
em Direito
Penal pela
USP.
Aprox. 40 anos.
Masculino.
Segundo
entrevistado, as
maiores
diferenças entre o
MP e a
Defensoria estão
na maior carga de
trabalho da
Defensoria e nas
condições de
trabalho (falta de
espaços
adequados para
trabalhar, de
material etc.).
Entrevistado
afirmou que MP
tem mesmo uma
carga ideológica
maior que a
Defensoria. Disse
ainda que em SP
essa carga
ideológica é
ainda maior.
Chegou a falar
em militarização
do MP de SP,
chamando
atenção para as
características
militares
(hierárquicas e
disciplinadoras)
do MP de SP.
9
Defensores não têm
poder de barganha
porque lidam com
camadas pobres da
sociedade, que não têm
representatividade
política.
Sim.
Sim.
Porque são
carreiras que
estão no
mesmo nível
administrativ
o.
Rixa pessoal e não
institucional.
Não.
Porque não
tem poder
de barganha
Essa rixa é fruto da
frente o
imaturidade dos
Estado.
profissionais.
Pobre não dá voto.
De ambos os lados.
Judiciário e MP têm
poder de barganha junto
aos poderes políticos.
A Defensoria quer
alcançar a
isonomia salarial
com o MP. Por sua
vez, o MP não quer
ganhar o mesmo
que a Defensoria e
fica no rastro da
magistratura.
Foi
porteiro,
vendedor e
policial
civil antes
de fazer
parte do
MP.
Aprox. 50 anos.
Tem
mestrado e
doutorado
em direito.
Principalmente
porque defende
um Direito que
trate ricos e
pobres de
maneira igual.
Masculino.
O entrevistado se
vê como um
pensamento
divergente dentro
do MP.
Entrevistado
afirmou que é
provável que
aconteça algum
tipo de imposição
ideológica aos
recém-ingressos
no MP, numa
tentativa de
produzir um
pensamento
único.
Entrevistado
reconhece que
ele mesmo sofre
represálias na
instituição por
seu pensamento
divergente e, por
isso, não descarta
a possibilidade
de acontecer o
mesmo com
outros
promotores,
principalmente
com recém
aprovados, que
são mais
inseguros, porque
são novatos e não
querem perder o
concurso etc.
Eles tentam me
isolar.
Entrevistado
explicou como a
instituição
promove
retaliação ao seu
trabalho
acadêmico e
profissional: Não
usam nem
indicam meus
livros para as
provas de
concurso do MP,
não me chamam
para bancas de
concursos,
palestras etc.
Nos cursos
preparatórios
para concursos
que são dados
dentro do MP
(Femperj e
Amperj) é
publicamente
desaconselhado o
uso do livro do
Entrevistado.
Segundo
entrevistado, a
contradição é que
embora a
instituição tente
isola-lo, outras
instituições do
país, como os
Ministérios
Públicos de
outros estados e
até as
magistraturas
estaduais vêm
adotando seus
posicionamentos
nos concursos
públicos.
Entrevistado
encontra aí, sua
realização e
incentivo para
continuar
pensando
diferente.
Entrevistado
encontra apoio na
Academia e em
outras
instituições
político-jurídicas.
Promotores não
estudam.
Instituição não
incentiva os
estudos de
qualificação e às
vezes, como foi o
caso do próprio
entrevistado,
tenta não
autorizar o
desligamento
para estudos.
Segundo
entrevistado há
um problema no
recrutamento dos
promotores: o
sujeito vem para
o MP de um
segmento social
que já está
‘preparado’ para
defender-se dos
outros, que vê a
sociedade como
uma ameaça,
porque ele
mesmo não se
sente parte da
sociedade.
10 Há uma preponderância
da máquina repressiva,
que adota uma
concepção inquisitória
no processo penal, por
exemplo, na sociedade
brasileira.
Em contrapartida, a
defesa (Defensoria
Pública) é
historicamente vista
como incômodo,
estorvo, porque
atrapalha o processo.
Sim.
Sim.
Porque deve
haver
direitos
iguais às
partes por
serviço de
qualidade.
É notório.
Uma
Defensoria
bem
estruturada
até legitima
o trabalho do
MP, melhora
A Defensoria é vista
o trabalho do
como um entrave ao
sistema de justiça porque promotor.
não se apega à boa
defesa, a uma defesa
mais técnica.
Entrevistado quis dizer
que como o defensor
tem de defender seu
cliente de qualquer
maneira, precisa abrir
mão daquilo que é
legalmente certo e se
agarrar a argumentos
que muitas vezes se
contrapõem à lei.
Essa visão da Defensoria
acaba desmoralizando a
instituição e
desmobilizando a
participação em
concursos para defensor.
Não.
Inclusive o
MP
De lado a lado.
construiu
A animosidade às sua trajetória
vezes até extrapola institucional
como
o âmbito
instituição
profissional.
de defesa
A defesa é vista
dos hipocomo um estorvo
suficientes.
pelo MP.
USP.
Aprox. 50 anos.
No MP
desde
1989.
Masculino.
Entrevistado
reconhece que
Tem
tem uma posição
mestrado e divergente dentro
doutorado do MP, o que
em Direito gera
na USP.
conseqüências.
Já sofreu
isolamento
institucional, não
sendo convidado
para eventos etc.
Essa tentativa de
isola-lo dentro da
instituição
acabou o
afastando dos
encontros
institucionais.
Mas afirmou que
hoje isso
acontece menos.
O isolamento, a
perseguição, não
é uma política
institucional.
Acha que essa
mudança no MP
se deve ao fato
de grande
número de
promotores se
dedicarem às
pós-graduações,
se qualificarem.
Entrevistado
afirmou que MPSP incentiva a
qualificação
profissional.
Magistratura de
SP não incentiva
os estudos.
Afirmou que
embora as coisas
estejam
mudando,
melhorando,
ainda há setores
extremamente
conservadores
dentro do MP.
É possível que
ainda haja algum
tipo de tentativa
de controle do
pensamento,
principalmente
em relação aos
recém-aprovados
para o MP.
Isso porque o
estágio
probatório fica a
cargo da
corregedoria,
onde estão
pessoas mais
antigas do MP,
que às vezes não
tomaram o banho
da Constituição
de 1988.
Mas falar em
militarização do
MP é exagero,
porque os setores
conservadores
não chegam a
contaminar a
instituição.
Para
entrevistado,
Defensoria do
Rio é
historicamente
mais sólida que o
MP-SP. Têm
raízes mais
firmes de
engajamento
político-social.
Quadro resumido de respostas das entrevistas feitas com defensores públicos do Rio de Janeiro (1ª parte)
Questão 1
1. Violência.
Questão 2
Questão 3
Questão 4
Desemprego.
Não.
Indignação sobre o Não.
funcionamento da
Justiça.
Má-distribuição de renda.
Injustiça.
Questão 5
Falta de
compreensão
sobre o
funcionamento da
Justiça.
Perplexidade.
Crítica ao serviço
prestado pela
Defensoria.
2. Os políticos.
3. Falta de
educação.
Favela.
Sim.
Submissão.
Não.
Falta de moradia.
Falta de educação.
Falta de
consciência.
As diferenças
salariais devem
decorrer das
funções.
Maioria.
Sim.
Acomodação.
Não.
Não.
Dependência.
Não.
O Brasil é um país rico.
Perplexidade.
Uma parte da população é
pobre.
Acomodação por
cansaço.
Há uma falta de condições de
superação da pobreza: falta de
educação, preconceito,
desemprego...
Cansaço de nunca
ter direitos.
Periferia.
Sim.
Resignação.
Crianças de rua.
Má-distribuição de renda.
Aceitação da
realidade com
naturalidade.
Sim.
Comodismo.
Vários fatores: corrupção, falta
de educação, falta de
investimentos na abertura de
novas vagas de trabalho.
Apatia.
Sim.
Desinformação.
Pelo tipo de capitalismo
praticado no mundo.
Angústia.
Má-distribuição de renda.
Falta de vontade política.
4. Falta de
educação.
Indignidade.
Fatores
históricos.
5. Desigualdade
social.
Desigualdade
de
oportunidades.
6. Desigualdade
social.
7. Desigualdades
em todos os
aspectos.
Massa de pessoas
buscando trabalho.
Massa de pessoas.
Desprovimento.
Não.
Não.
Conformismo.
Ansiedade.
Os atendimentos
dos órgãos
públicos são uma
merda!
Não.
8. Perda de
Princípios,
Valores.
Miséria assistida
diariamente.
Sim.
Conformidade.
Não.
Tímidos na luta
por direitos.
Não.
Falta de educação.
Falta de oportunidades.
Desemprego.
9. Desigualdade
social.
Miséria.
Sim.
Existe pobreza até na riqueza.
Desigualdade social.
Falta de empenho dos políticos.
Porque senão
estimula a
desigualdade.
Quadro resumido de respostas das entrevistas feitas com defensores públicos do Rio de Janeiro (2ª parte)
Questão 6
1 Diferentes
funções das
instituições.
MP e
Magistratura têm
funções
privativas.
Defensoria não
tem função
exclusiva.
Questão 7
Questão 8
Questão 9
Formação/Trajet
ória profissional
Observações
Sim.
Não.
Não.
UERJ.
Aprox. 30 anos.
Defensora desde
2003.
Feminino.
Sim.
Santa Úrsula.
Aprox. 40 anos.
Porque a
Defensoria
representa um
papel
importante no
sistema de
justiça.
2 Defensoria lida
com pobres e, por
isso, tem menor
poder de pressão
junto ao governo.
Sim.
Porque
Mais em encontros
desempenham sociais com os
funções
próprios pares.
paralelas.
Porque os
pobres não
têm
mecanismos
de pressão
sobre o
governo.
Defensora desde
1994.
Feminino.
3 MP tem a
exclusividade na
proposição da
ação penal.
Sim.
Não.
UFF.
Aprox. 40 anos.
Defensora desde
1993.
Feminino.
MP ameaça
denunciar crimes
cometidos pelo
governo em troca
de aumento de
salários.
Sim.
Não.
Porque são
trabalhos que
se equivalem.
Não há
hierarquia
entre MP e
Defensoria.
A exclusividade
da denúncia é o
principal fator.
4 Preconceito em
relação ao
trabalho da
Defensoria.
Para manter as
populações
carentes nas
mesmas
condições.
Presidente do
TJ não queria
pobres no
Fórum. Por
isso, tirou a
Defensoria de
lá e instalou
catracas
eletrônicas.
Defensoria
Criminal é
obrigado a
defender
qualquer um,
não só pobres.
Ver parecer da
Drª Enedir
Adalberto dos
Santos.
Sim.
Sim.
Sim.
Candido Mendes.
Aprox. 50 anos.
Ambos são
advogados.
De parte a parte.
Quem lida
com pobre,
pobre é.
Defensora desde
1992.
Feminino.
Lei 11.448, de 15
de janeiro de 2007,
legitimou a
Defensoria Pública
para proposição de
ação Civil Pública.
MP questionou
Ver a
remuneração
dos médicos
de hospitais
públicos.
Antes foi
funcionária do TJ.
Vários
assistidos da
Defensoria não
querem ficar
esperando no
meio dos outros
assistidos
constitucionalidade
A
da Lei.
exclusividade
da proposição
da denúncia
penal é poder
de barganha
política.
5 MP é uma
instituição
fundamental para
preservação dos
interesses do
Estado e do
sistema
capitalista.
Sim.
Porque tem os
mesmos
requisitos para
ingresso na
carreira.
MP atende o
Poder.
Defensoria existe
para atender o
Defensoria
povo.
atende o povo.
MP garante o
funcionamento
do sistema.
Não.
Sim.
porque se
sentem mal,
sendo classe
média, em ficar
junto com os
pobres.
Feminização da
Defensoria
torna-a uma
instituição mais
humana.
Candido Mendes.
Como todo
Defensora desde
serviço para o 1988.
povo, é
Foi do MP-MG
desvalorizado.
antes.
Exemplo:
Mestrado em
Médicos da
rede pública. Direito.
Militante política.
Tem importante
ascensão
política sobre
os defensores.
Aprox. 40 anos.
Feminino.
A técnica do
MP não é maior
que a da
defensoria.
Acha que os
defensores são
mais
preparados
tecnicamente
que os
promotores,
porque os
promotores
abandonam os
estudos, a
pesquisa,
depois de
aprovados no
MP. Por isso,
defensores
estão
intelectualment
e à frente dos
promotores. Há
uma pobreza
intelectual no
MP. Defensores
se dedicam
mais aos
estudos que
promotores. MP
não investe em
cultura. É só
medir por
consumo de
livros.
MP faz um
verdadeiro
condicionament
o da vida dos
promotores,
lavagem
cerebral.
6 Defensoria é
mais recente.
Poder de troca
maior do MP
com o governo.
MP tem o poder
de processar
políticos e usa
isso como
instrumento de
barganha.
7 MP→instrument
o repressor usado
pelo poder das
classes
dominantes.
Sim.
Sim.
Porque há uma
igualdade na
relevância das
funções e
igualdade nos
trabalhos
executados.
Só socialmente,
em encontros
sociais com os
próprios pares.
Sim.
Não.
Não.
Candido Mendes.
Aprox. 30 anos.
Defensora desde
1994.
Feminino.
Candido Mendes.
Aprox. 40 anos.
Defensor desde
1994.
Masculino.
UFF.
Aprox. 40 anos.
Defensora desde
1994.
Feminino.
UFRJ.
Aprox. 30 anos.
Defensora desde
1998.
Feminino.
MP tem rixa com
todos.
Não.
E isonomia
também de
condições de
trabalho.
Defensoria→para
defender os
pobres.
MP é mais
antigo.
MP teve uma
grande atuação
política nos
bastidores da
Assembléia
Constituinte que
promulgou a
Constituição de
1988.
8 Poder político do
MP.
MP tem
monopólio da
ação penal.
Não.
Sim.
Porque as
funções são
distintas.
Da parte dos
promotores para
com os defensores.
Não.
Defensoria
deveria ganhar
mais que MP,
porque o volume
de trabalho é
maior.
9 Porque o pobre é Sim.
sempre visto com
Há uma
maus olhos.
equivalência
Pobre não dá
de trabalho.
voto.
Imagem do
Defensoria não
triângulo
arquiva inquérito jurídico: MP e
(referência ao
Defensoria
Sim.
Sim.
Do MP para com a Embora não
Defensoria.
devesse
acontecer.
As conquistas da
Defensoria são
perseguidas pelo
MP. Ver ADIN do
direito à Ação
Mestrado em
Direito.
MP é
extremamente
elitizado,
distante da
realidade social.
MP) nem vende
sentença
(referência à
magistratura).
O poder de
barganha do MP
é maior que o da
Defensoria.
Os políticos com
problemas na
justiça acabam
barganhando com
o MP o
arquivamento de
processos pelo
aumento de
remuneração.
Diz-se que Marco
Aurélio Allencar,
filho de um exgovernador do
Rio de Janeiro
viabilizou a
construção do
prédio do MP em
troca do
arquivamento de
alguns inquéritos.
Assim como o
pobre, Defensoria
não consegue se
impor por falta de
poder de
barganha.
nos ângulos de Civil Pública
baixo e
conquistado pela
Defensoria.
magistratura
no ângulo de
cima.
Depois que as
pessoas são
aprovadas no
MP elas mudam
de postura. É
visualmente
perceptível.
MP condiciona
o pensamento
de seus
membros.
Não há espaço
para
pensamento
divergente
dentro do MP.
Os que
divergem,
sofrem as
conseqüências
disso.
MP é uma
ditadura, com
poucas chances
de escapar do
pensamento
hegemônico.
Mas é possível
resistir, e há
exemplos de
pessoas que
resistem.
MP não é mais
técnico que a
Defensoria, é
mais formal.
A Defensoria,
como tem de
defender o
assistido de
qualquer
maneira, às
vezes tem de
sair da letra da
lei para fazer
uma defesa
adequada. Em
regra, o MP não
foge à letra da
lei.
Talvez os
defensores
sejam um
pouco mais
preparados que
os promotores
por sua maior
experiência
social, de
contato com a
sociedade.
Há um projeto
para
descredibilizar
a Defensoria.
Ivan,
personagem
vivido
por
Bruno
Gagliasso
na
novela Paraíso
Tropical,
foi
preso em um
capítulo e pediu
que a família
contratasse um
advogado
particular
porque
não
confiava
no
trabalho
da
Defensoria
Pública.
31/08/07
A chantagem
de Ivan
Outro que tenta
se virar é Ivan.
Preso junto a
bandidos de alta
periculosidade,
ele vive um
inferno e quase
não consegue
dormir direito.
É por isso que
manda o
defensor
público chamar
Marion até a
cadeia pra uma
conversinha.
Cara a cara com
a mãe, ele
contra-ataca. Se
a mãe não
arranjar um
jeito de tirá-lo
da cadeia
urgentemente,
ele ameaça
contar tudo que
sabe a respeito
dela: a
cumplicidade
com Taís, o
golpe em
Urbano e outras
falcatruas mais.
Se jogar essas
verdades no
ventilador,
nunca mais
Marion vai
arranjar uma
festinha pra
fazer... Ela
treme na base e
promete
descolar um
bom advogado
e tirá-lo de lá.
Fonte: site da
novela.
ANEXO XII
Cópia dos e-mails trocados com o MP-RJ com vistas ao envio dos dados solicitados para confecção da tese. Os
nomes e os endereços eletrônicos foram preservados para evitar constrangimentos.
De: André Filipe Pereira Reid dos Santos <[email protected]>
Para: Maria do Carmo Casanova <[email protected]>
Em: 24/09/2007 22:39
ok, Dra Casanova,
Aguardo envio dos dados solicitados após término do atual Concurso.
Grato pela atenção,
André Filipe Santos.
Em 21/09/07, Maria do Carmo Casanova <[email protected]> escreveu:
Felipe teremos o maior prazer em lhe atender, mas, no momento estamos
ultimando o XXIX concurso e não dispomos de tempo hábil para lhe atender com
a presteza necessária. Tão logo tenhamos os dados lhe enviaremos.
Atencuiosamente, casanova
----- Original Message ----From: "André Filipe P R Santos" <[email protected] >
To: <[email protected]>; <[email protected]>
Sent: Friday, September 14, 2007 9:16 PM
Subject: dados
Olá,
Sou pesquisador vinculado ao Doutorado em Sociologia do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), da Universidade Federal
do rio de Janeiro (UFRJ). Estou desenvolvendo em parte da minha tese
análises sobre alguns aspectos do MP-RJ. Já estive aí no MP entrevistando
alguns promotores e agora precisava de alguns dados sobre concursos para a
carreira inicial do MP, graduação dos aprovados a partir do XXVI concurso,
inclusive. Em 2001, por ocasião de minha dissertação de mestrado, a Dra
Teresa Serejo, me enviou os mesmos dados, mas até o XXV concurso. Preciso
dos mesmos dados mas sobre os concursos posteriores. Estou mandando em anexo
o arquivo que me foi enviado na época, para que seja seguido o mesmo padrão
para o envio dos dados agora solicitados: número de aprovados por
instituição e por sexo até o último concurso.
Aguardo resposta,
André Filipe Santos.
http://lattes.cnpq.br/9404737943888215
ANEXO XIII
Prestígio social das carreiras jurídicas a partir da média total de notas atribuídas pelos defensores
públicos entrevistados.
Carreiras Jurídicas
Nota
Magistratura Federal
9,0
Ministério Público Federal
8,9
Magistratura Estadual
8,7
Ministério Público Estadual 8,6
Defensoria Pública
6,8
Advocacia Geral da União
6,7
Procuradoria do Estado
6,3
Polícia Federal
6,3
Procuradoria de Autarquias 5,8
Advocacia Privada
5,6
Procuradoria Municipal
5,4
Polícia Civil
3,9
Fonte: Brasil, Ministério da Justiça.
ANEXO XIV
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