A política externa brasileira para o Mercosul e o papel da mídia no governo de Dilma Rousseff (2011-2014) Guilherme Paul Berdu1 Suzeley Kalil Mathias Introdução A nova conjuntura global e o maior destaque da região sul-americana torna o estudo da política externa dos países da região, neste caso precipuamente a do Brasil, necessária para compreender os entraves, as visões de integração e inserção internacional e a possibilidade de compartilhamento de um projeto de integração efetivo. O Observatório de Política Exterior (OPEx) surge para preencher a lacuna de trabalhos autóctones na área ao reunir em um único arquivo as notícias de Política Externa veiculadas nos jornais de grande circulação. Pensado para expandir e internacionalizar o curso, o OPEx é um projeto interinstitucional internacional de extensão da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS), Unesp-Franca, do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), em parceria com 1 Fazem parte do Projeto de Extensão “Observatório de Política Exterior”, atuando na produção dos informes Brasil, Paraguai (até início de 2013) e Venezuela (desde março de 2013) os seguintes estudantes da graduação em Relações Internacionais (FCHS-UNESP): Adriane Gomes Fernandes de Almeida, Alexandre Luís Campos Carvalho, Aline Martins Meschiatti dos Santos, Amanda Ferreira, Bianca Guarnieri de Jesus, Bianca Ribeiro Alves Caetano, Caique Fernandes Oliveira, Camila Gomes de Assis, Camila Oliveira Santana, Débora Akemi Agata, Giovane Gomes Mendes Parra, Henrique Neto Santos, João Alberto dos Santos Junior, Jonathan de Araújo de Assis, Kimberly Alves Digolin, Laís Siqueira Ribeiro Cavalcante, Lucas Eduardo Silveira de Souza, Lucas Estanislau de Lima, Luiza Elena Januário, Patrick Matos Gonçalves, Thiago Eizo Coutinho Maeda, Vitor Garcia de Oliveira Raymundo. A responsabilidade pelas afirmações deste trabalho é inteiramente dos autores. Fazem parte do informe mensal do Brasil o graduando em Relações Internacionais: Lucas Eduardo Silveira de Sozua; os mestrandos em Relações Internacionais (San Tiago Dantas – UNESP/UNICAMP/PUC-SP): Camila Cristina Ribeiro Luis (bolsista CAPES); Giovanna Ayres Arantes de Paiva; José Augusto Zague; Lívia Peres Milani; Raphael Camargo Lima (bolsista CAPES); e o doutorando em Relações Internacionais, Política Internacional e Resolução de Conflitos (Universidade de Coimbra): Tiago Pedro Vales. Contribuíram ainda com os informe utilizados: Analice Pinto Braga, Jéssica Laine Santos de Paula Jacovetto, Karen Oliveira Fassi, Laerte Apolinário Júnior, Laís Siqueira Oliveira Cavalcante, Sarah Machado e Thassia Pedrina Bollis. a Universidad Nacional de Rosário na Argentina, a Universidad de La República no Uruguai e a Universidade Federal do Sergipe. O objetivo é disseminar informações (extensão) sobre a política externa dos países que compõem o Mercado Comum do Sul (Mercosul), fornecer dados que subsidiem decisões em políticas públicas, pesquisas e formação acadêmica (ensino) contribuindo para a introjeção do debate de Política Externa como política pública, e consequentemente para a democratização do setor. Desta forma, fica evidente a importância do OPEx aos três pilares da universidade pública (pesquisa, extensão e ensino) e para seu ciclo: criar conhecimento, promover a profissionalização e interagir com a sociedade, informando-a. O principal diferencial do projeto é apresentar uma maneira particular de definir Política Externa, tomada como um conceito em constante construção e que apresenta diversas facetas. Diferencia-se do informe do Ministério de Relações Exteriores do Brasil (MRE) por buscar a máxima imparcialidade e objetividade. Dessa forma, o OPEx estimula o desenvolvimento de pesquisas em Relações Internacionais e Política Externa, difunde uma cultura democrática e de paz através da produção cooperada, além de reunir informações, sistematizar, veicular, analisar a imprensa e as prioridades do governo. A finalidade última do OPEx é conceber um serviço de documentação e uma rede que envolva instituições do Mercosul ampliado.2 O presente artigo é resultado da interseção entre dois projetos, um de extensão, Observatório de Política Exterior (OPEx) e um de pesquisa, “A política externa como diplomacia e segurança: cooperação regional na Unasul.” Pretende-se analisar a Política Externa Brasileira, através de seu eixo diplomático, relativamente a seus vizinhos de Mercosul e da União das Nações Sul-americanas (Unasul), e avaliar em que medida tais atores convergem cooperativamente no setor. Dessa forma, o artigo avalia a Política Externa do governo Dilma Rousseff (2011-2014) a partir dos informes semanais e mensais produzidos pelo OPEx, aborda o tratamento dado por periódicos de grande circulação (os jornais brasileiros Correio Braziliense, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Valor Econômico e Zero Hora e as revistas Carta Capital e Veja), as posições assumidas e 2 Para saber mais sobre o OPEB, iniciativa com a contribuição dos autores deste trabalho, consultar Pádua e Mathias (2010) e acessar o site do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES): www.gedes.org.br. os temas priorizados, assim como analisa o papel da mídia na formação da opinião pública e na concepção da ação diplomática. O recorte temático foi estabelecido com base nos assuntos de maior recorrência nas fontes utilizadas nos últimos quatro anos, que foram as relações bilaterais com a Argentina, suas implicações para o Mercosul, para a integração regional e para o acordo entre Mercosul-União Europeia, e a entrada da Venezuela no Mercosul após a suspensão do Paraguai do bloco, com o argumento de rompimento da ordem democrática com a deposição do ex-presidente paraguaio Fernando Lugo. Mídia e poder Antes de abordar a política externa brasileira para os demais membros do Mercosul e a análise feita pelos jornais sobre tal política, destacaremos o papel que a mídia, mais especificamente a mídia imprensa, exerce como formador de opinião pública, e assim como mecanismo de pressão sobre a formulação da Política Externa, mesmo que o órgão responsável, Ministério das Relações Exteriores (MREItamaraty) apresente- como uma instituição de pouca porosidade. O caso brasileiro é ainda mais complexo visto que os meios de comunicação encontram-se concentrados nos domínios de grupos de interesse, como empresários, que encontram relativamente maior abertura no MRE, seja por influência ou conhecimento técnico em determinadas áreas, como nas secretarias de assuntos econômicos e tecnológicos (FIGUEIRA, 2010, p.14). Para este fim, utilizaremos a abordagem de Luís Felipe Miguel sobre prática política relatada na mídia e o conceito de “Sistemas Peritos” aplicado ao jornalismo, e da relação entre mídia e poder de Marilena Chauí no ensaio “Simulacro e Poder: uma análise da mídia”. Prática Política e Sistemas Peritos Luís Felipe Miguel defende que os meios de comunicação são vistos como meros transmissores dos discursos dos agentes políticos e das informações sobre a realidade, logo, neutros. Portanto, a mídia é um fator central da vida política contemporânea. Apesar da atual banalização do debate político, os meios de comunicação aumentam a proximidade com os agentes políticos e seus discursos, que expõem falhas, equívocos e desmistifica o mundo político como aqueles dos “grandes homens”, recheado de glamour. Tal desconstrução pode ser considerada como um progresso à democracia. Em contrapartida, verifica-se o , na medida em que a cobertura das ações políticas constitui uma estratégia pela disputa do poder, em detrimento de discussões sobre os projetos da e para a sociedade. Esta afirmação é ratificada pela recorrente ênfase em escândalos políticos, com vistas a minar a legitimidade de governantes e do próprio Estado. O cientista político italiano Giovanni Sartori aponta a influência excessiva da televisão e a caracteriza como o principal obstáculo enfrentado pelas democracias ocidentais (SARTORI apud MIGUEL, 2002, p. 159). Segundo o filósofo há dois problemas interligados: o controle excessivo do governo pela opinião pública e o controle desta opinião pela mídia eletrônica. O primeiro reduziria a racionalidade e o planejamento em questões de médio e longo prazo, e o segundo, através da televisão, deturparia o raciocínio, que para o cientista apenas a palavra seria capaz de promover (SARTORI apud MIGUEL, 2002, p. 160). No que podemos considerar uma visão cética sobre a possibilidade de reforma dos meios de comunicação eletrônicos, o caminho apontado por Sartori é de redução da influência popular sobre as decisões políticas, em consonância com a democracia defendida como aquela em que há incompetência das massas na tomada de decisão e que através do sufrágio elege o “melhor preparado” para o poder (SARTORI apud MIGUEL, 2002, p. 160). Habermas advoga que em um contexto de conflito de interesse é inconcebível a ideia de meios de comunicação imparciais ao debate político e defende, por outro lado, que o conformismo deve ser substituído pela pressão da sociedade prejudicada pela gestão da comunicação (HABERMAS apud MIGUEL, 2002, p. 160). Mas é claro que tal pressão só ocorrerá na medida em que haja a necessidade e a sensação de inconformismo ante uma carência neste setor (SOUSA, 2002, p.257). Miguel defende em primeiro lugar que a passividade política das massas é construída, e apenas sai da apatia esporadicamente, ou seja, “[...] a plateia invade o palco e tumultua aquilo que fora acertado nos bastidores.” (MIGUEL, 2002, p. 161). O desafio atual é justamente incluir os diferentes interesses sociais na pauta dos mandatários, logo, é necessário buscar soluções para os problemas gerados pela participação política fundada na representatividade. Neste sentido, o autor destaca que os próprios meios de comunicação são esferas da representação política, uma vez que é através dela que ocorre a difusão dos projetos políticos, do mundo social e dos grupos e interesses sociais. Porém, esta não consegue abarcar a totalidade dos discursos, alternativas e interesses sociais, o que é nocivo à democracia. “A democratização da esfera política implica, portanto, tornar mais equânime o acesso aos meios de difusão das representações do mundo social.” (MIGUEL, 2002, p. 164) O mercado midiático está, por outro lado, em um caminho oposto através da concentração e internacionalização. Seu domínio representa um grande e crescente peso na economia. Ocorre assim a “convergência tecnológica” que agrupa indústrias de entretenimento, informação e de aparelhos eletrônicos e telefonia. Pretende-se elucidar que a mídia é dependente de suas anunciantes, outras empresas capitalistas (MIGUEL, 2002, p. 164). O problema da representação política na mídia tem influências econômicas, porém, é também próprio à organização política de sociedades complexas. Portanto, mesmo em um contexto de inexistência de desigualdades materiais a característica de desigualdade entre emissor e receptor não deixará de existir, ou seja, “[...] os emissores formam um conjunto razoavelmente restrito em relação ao universo de receptores.” (MIGUEL, 2002, p. 165). Os campos político e midiático, para Miguel, em contraposição a Bordieu, formam campos distintos, com relativo grau de autonomia e influência que não é absoluta ou livre de resistências, mas sim um processo de mão dupla. A mídia, por exemplo, é premida pelo campo econômico, pois na mesma medida em que busca credibilidade também pretende ampliar seus lucros, que compromete sua autonomia. Miguel diminui a crítica ao defender que a mídia mantém certa autonomia devido ao compromisso com a verdade e a objetividade, que determinariam a competência e a respeitabilidade. Não atentar a estes pontos ao buscar atender anseios econômicos e pressões políticas é frequente, porém implicam em custos que não podem ser ignorados. Neste sentido, destaca-se a existência de pseudoeventos: acontecimentos não espontâneos, planejados para tornarem-se notícias. Este recurso é utilizado não apenas por governantes e candidatos, mas também por movimentos sociais e pela sociedade civil em manifestações, passeatas e convenções de partido, que ressalta a expressividade da mídia como ator político. É possível afirmar então que o jornalismo, por exemplo, deixou de registrar os fatos e passou a reproduzi-los (BOORSTIN apud MIGUEL, 2002, p. 171). “A influência mais evidente dos meios de comunicação sobre o campo político está na formação do capital político.” (MIGUEL, 2002, p. 168) Neste sentido o autor utiliza-se das definições de Bordieu de capital “delegado”, referente a um cargo institucional que confere prestígio ao ocupante, que pode continuar sua carreira política. O capital “transferido” é a conversão para a política de capital de outros campos, como artístico, musical e intelectual. A mídia promove assim, o principal instrumento de concepção de capital político, na medida em que proporciona visibilidade (BOURDIEU apud MIGUEL, 2002, p. 168-169). Porém, não há um monopólio da distribuição deste capital. Podem-se citar políticos representantes de interesses corporativos e os agentes mais tradicionais que buscam limitar a influência midiática ao desvalorizar a notoriedade ligada a tais meios de comunicação. Mais tocante à temática de política externa, os meios de comunicação também influenciam a definição da agenda e dos temas em debate. Este próprio artigo possui debate delimitado pelo que foi abordado pelos principais meios de comunicação impressos, que acaba por atribuir relevância e visibilidade a determinadas temáticas, moldando as preocupações públicas. Mais do que isso, utilizando da definição de Erving Goffman, os meios de comunicação determinam a abordagem e a visão (framing) sobre os acontecimentos através da escolha de esquemas narrativos. (GOFFMAN apud MIGUEL, 2002, p. 171) Miguel afirma que não há um questionamento do que é “a política” por parte da mídia, e por extensão do que é a “política externa”, assim, os meios de comunicação adaptam-se ao determinado pelos agentes políticos. Observa-se assim a primazia de parlamentares, governantes e líderes partidários em detrimento de movimentos sociais, lutas de minorias e ambientalistas. “Em suma, a mídia é deferente em relação às principais instituições políticas [...]” (MIGUEL, 2002, p.175), assim os políticos teriam uma grande influência sobre as notícias. A relação entre jornalistas e políticos pode ser simplificada, em que os primeiros determinam o que é interessante e os segundos aquilo que é mais importante sobre o que foi apontado como mais relevante, mas o trabalho do repórter torna-se dependente do político, na medida em que este fornece o conteúdo das notícias, o que acarreta em submissão da mídia ao definido pelo campo político. Porém, ao final, o próprio Miguel reconhece que não há como reduzir a relação entre jornalista e político ao predomínio de um ator sobre o outro. Ou seja, na mesma medida que o jornalista precisa manter certo discurso e padrões de notícia com vista a manter sua fonte, esta deve manter o redator atualizado com informações úteis ao seu trabalho. Miguel reconhece assim que o próprio discurso é formatado de acordo com as regras midiáticas. Há assim um processo de embate entre o campo midiático e o campo político. Compreender esta relação significa ter consciência de que a mídia funciona como um mecanismo de pressão política em busca de objetivos, majoritariamente objetivos econômicos transnacionalizados de grandes empresários que detém também o controle sobre os meios de comunicação. Em outro ensaio, Luis Felipe Miguel defende porque a mídia, especificamente o jornalismo, pode ser enquadrada como “Sistema Perito”. O jornalismo pode ser visto como um sistema perito, que é “[...] um sistema de excelência técnica cuja efetividade repousa na confiança depositada por seus consumidores.” (MIGUEL, 1999, p.197). A principal característica dos sistemas peritos é a elevada autonomia sobre aqueles submetidos por ele, na medida em que por falta de conhecimento específico do sistema, o consumidor possui uma capacidade muito pequena de influenciá-lo, o que ocorre apenas pelo mecanismo de mercado; dessa maneira, implicam em crenças, dos consumidores, em sua competência especializada. Assim descrito, Miguel argumenta que enquadrar o jornalismo, no sentido amplo, como um sistema perito não é uma tarefa complicada. O leitor mantém uma relação de confiança quanto à veracidade das informações fornecidas, quanto à seleção e hierarquização de atores e elementos relevantes para o fato e quanto à própria seleção e hierarquização das notícias diante de uma infinidade de temáticas disponíveis. A primeira característica que distingue o jornalismo dos demais sistemas é “[...] a relativa incapacidade de comprovação da correção desta confiança.” (MIGUEL, 1999, p. 200) Em outras palavras, os sistemas peritos devem sujeitar-se às provas de efetividade. O jornalismo acaba por impor restrições a tal prova devido suas características. Os fatos relatados, por exemplo, na maioria das vezes, não permitem verificação, logo, a postura adotada pelos jornais é de apresentar-se e apresentar verdades ditas absolutas. A verificação dos elementos que compõem a notícia também é de difícil exercício. Por último, a seleção das notícias também é algo que está fora do alcance dos consumidores. Além de selecionar os fatos e seus aspectos mais relevantes, a longo prazo os meios de comunicação passam a “[...] estabelecer os valores que presidirão a apreciação desta realidade construída.” (MIGUEL, 1999, p. 201). É o que acontece quando analisamos a mídia impressa brasileira, tanto revistas (Carta Capital e Veja) quanto os jornais (Correio Braziliense, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo), que em suas matérias e linhas editorais buscam moldar a opinião pública através da introjeção de valores próprios e do interesse nacional apropriado pelos periódicos. Miguel afirma que a mídia não possui o controle absoluto sobre a agenda, realidade e valores, mas que sua posição de “agregador/difusor” de informação confere ao jornalismo um papel fundamental neste processo. A crença no sistema perito é também sustentada pelas forças reguladoras, que atuam como metassistemas peritos, que através de pareceres técnicos ratificam os sistemas peritos. Os metassistemas, por sua vez, também repousam sua legitimidade na crença dos consumidores. Dessa forma, o jornalismo também constitui um metassistema perito, pois o contato com as notícias contribui para legitimar ou deslegitimar crenças em outros sistemas peritos. Curioso notar, que o próprio jornalismo é metassistema dele mesmo, ou seja, “[...] apenas o próprio jornalismo [enquanto sistema perito] pode controlar a si mesmo. Ou seja, a responsabilidade é colocada nas mãos da concorrência.” (MIGUEL, 1999, p. 202) Assim, o único controle regulatório da mídia seria a concorrência entre as agências de notícias, que funciona, segundo Miguel, de maneira ineficaz, pois prevalece a visão compartilhada sobre o mundo pelos jornalistas, grandes empresários, pecuaristas e anunciantes. A reflexividade significa maior autoconsciência, que é a marca positiva da sociedade moderna, (GUIDDENS apud MIGUEL, 1999, p. 2004) o “[...] crescente poder dos agentes sociais sobre as estruturas da sociedade.” (MIGUEL, 1999, p. 204). A problematização é de que a imprensa constitui a principal operadora de reflexividade nas sociedades contemporâneas, pois dissemina o conhecimento sobre a vida social. A mídia, central nas sociedades contemporâneas, constitui assim um sistema perito isento dos mecanismos de aferição, ela própria é metassistema perito, pois valida a crença em outros sistemas, além de principal operadora da reflexividade. Demonstrado o poder da mídia, mas também reconhecido sua tarefa informativa nas sociedades complexas, a questão passa a ser como compatibilizar mídia e democracia. O debate sobre esta questão não aponta a comunicação como fulcral à possibilidade democrática, mas constitui uma variável dependente, ou seja, à medida que se aprofunda o regime democrático este deve ser acompanhado por uma expansão das fontes de informação e contração da distância entre produtores e consumidores. Porém, as duas variações parecem inconcebíveis, uma vez que o mercado é ineficaz na pluralização dos meios de comunicação, pelo contrário, este homogeneíza opiniões e exclui discursos fora do eixo delimitado. A própria concentração do mercado impede que sua reforma seja inserida no debate, o que pode ser evidenciado pela ausência de discussões sobre uma “Lei de Meios de Comunicação” no Brasil (como a que ocorreu na Argentina), que quando suscita é questionada como uma medida para conter a liberdade de expressão e comum em regimes autoritários e ditatoriais. A diminuição da distância entre redatores e leitores parece caminhar para o mesmo caminho. A internet apresenta a proposta de constituir um mecanismo de participação, em que é possível comentar notícias, encaminhar questões e divulgar opiniões. Porém, “[...] ela pode ser apropriada de muitas e diferentes formas.” (MIGUEL, 1999, p. 206), como de fato ocorreu. Uma alternativa para democratizar a imprensa seria inverter sua tendência de concentração e partir para um reforma mais profunda: [...] talvez fosse preciso romper com um dogma liberal básico – que reconhece apenas indivíduos na sociedade – e redistribuir os meios de comunicação entre diferentes grupos representativos, Seja como for, a questão de controle da informação não pode mais permanecer fora da pauta daqueles que lutam por sociedades mais democráticas e igualitárias. (MIGUEL, 1999, p. 207, destaque do autor). Propaganda e Sistemas de Comunicação Multimídia Marilena Chauí caracteriza os meios de comunicação como um objeto tecnológico, um meio, para transmitir à massa a mesma informação. É possível estabelecer uma analogia entre os meios de informação, mais especificamente no caso deste trabalho a mídia impressa, com a propaganda. A propaganda é, para Chauí, um meio de difusão de ideias, valores, princípios, opiniões. Chauí reafirma, o anteriormente destacado por Miguel, de que a pauta jornalística é determinada pelos patrocinadores, ou seja, pelas empresas que veiculam seu produto no espaço do meio comunicativo. Os meios passam a funcionar dessa maneira, como metassistemas peritos, também baseado na confiança de seus consumidores. A autora constata dessa forma que operações da propaganda comercial são aplicadas à propaganda política (marketing), em que o político é reduzido a um produto a ser consumido, exposto na prateleira, cabendo ao cidadão escolher entre aqueles disponíveis, reduzindo-o a consumidor. A função do marketing político é aproximá-lo do cidadão, através de suas características e história de vida. É possível inferir que da mesma maneira que a televisão e o rádio constituem aparelhos eletrodomésticos, para os consumidores, a mídia constitui muitas vezes mero entretenimento, utilizando para isso da espetacularização e da ridicularização dos atores e atos políticos. Para os produtores, porém, estes são centros de poder econômico e político, de controle social e cultural. Chauí constata ainda a função de metassistema perito do jornalismo para os anunciantes, na medida em que o patrocinador não aparece apenas no intervalo comercial, uma vez que conteúdo, forma, horário de apresentação já exprimem a imposição do patrocinador, além dos demais programas, como de notícias, em que notícias desfavoráveis não são divulgadas. A autora também destaca a dificuldade de aferição do jornalismo como sistema perito e metassistema ao afirmar que a principal característica de noticiários de rádio e televisão, e que podemos estender à mídia impressa, é a desinformação, apresentadas de maneira a impedir que ouvintes as localizem no tempo e no espaço, a partir da acronia e da atopia, em que se perde o referencial temporal dos acontecimentos, destituindo-os de causa e consequências, assim como se perde o referencial espacial, com a desconstrução das distâncias. A atopia e a acronia são utilizadas para controle cultural, político e social em que condições materiais, econômicas, sociais, políticas, históricas dos acontecimentos são renegadas. Das dez regras da manipulação da mídia, segundo (ECO apud CHAUÍ, 2002, p. 49), julgamos relevantes destacar duas características mais diretamente aplicáveis à mídia impressa: 1) comente-se o que se pode ou se deve, ignore o resto; 2) não há necessidade de debate aberto, escolha os adjetivos, utilize jogos de contraposições e assim construção de imagens. Há no mercado da mídia, a formação de sistemas informacionais com a capacidade de organizar todas as informações em um sistema comum, em que o próprio pensamento e a idiossincrasia das pessoas tornam-se mercadorias. A tecnologia digital acarreta em uma aumento exponencial nos dados transmitidos e modifica totalmente a forma de comunicação. A tecnologia também é apropriada pelos tradicionais meios de comunicação, que se adaptam e se utilizam rapidamente das novas possibilidades propiciadas pela tecnologia da informação, assim, há o desenvolvimento de sistemas multimídia integrados, que atendem a interesses comerciais de poucos conglomerados empresariais, como ocorre no caso dos jornais impressos brasileiros. Ponto importante apresentado por Chauí é de que sendo a cultura uma ordem simbólica que opera com a distinção entre presença/realidade e ausência/virtualidade, a peculiaridade da mídia, é que esta produz realidade virtual ou virtualidade real, ou seja, torna indistinto o que sempre foi distinguido pela cultura. Distinção entre presença e ausência se reduz em última análise a estar presente ou ausente na rede ou no sistema multimídia. A filósofa apresenta assim o conceito dos Sistemas de Comunicação Multimídia: sistema em que a própria realidade é inteiramente captada, absorvendo no mesmo texto o tempo passado, presente e futuro, como em um ponto único do universo. De acordo com Chauí, o exercício do poder pelos meios de comunicação de massa ocorre sob dois aspectos: econômico e ideológico. Sob a perspectiva econômica a mídia é constituída por empresas privadas que formam uma indústria cultural, logo, são regidas pelos imperativos do capital. Neste mercado de distribuição da comunicação e do poder fusões e aquisições levaram a profundas mudanças estruturais, com companhias globais dominando os setores de comunicação. A rentabilidade faz com que canais de televisão, jornais impressos e rádios sejam adquiridas por indústrias de outros setores. Maria Rita Khel e Eugênio Bucci destacam que o sujeito do poder não são os proprietários dos meios, mas o próprio capital; os proprietários apenas sustentam o capital, exibem poder, mas não o constituem (KHEL, BUCCI apud CHAUÍ, 2006, p. 74). Para Claude Lefort, a ideologia contemporânea é a ideologia invisível, esta não é construída nem proferida por um agente determinado, mas converte-se em um discurso anônimo e impessoal, parece pulular espontaneamente da sociedade, como se fosse reflexo direto da opinião pública, o próprio discurso da sociedade. Na verdade, tal relato é uma construção dos que expressam poder, dirigindo-se ao todo indeterminado da sociedade com a finalidade de homogeneizá-la, criar imagem de reciprocidade entre emissor e receptor, que deve aparecer como reciprocidade verdadeira e definida nas relações sociais. A imagem criada é duplamente eficaz: exalta a comunicação e simula a presença de pessoas ao adotar um discurso com nuances políticas para conferir-lhe generalidade e travestir-se de representante do auge democrático com a possibilidade de expressão (LEFORT apud CHAUÍ, 2006, p.74-76). O sujeito da comunicação, na era tecnológica, torna-se o próprio meio, pois com a introdução das novas tecnologias da comunicação, observa-se a transformação da ciência e da técnica em forças produtivas, assim como o surgimento da intitulada Sociedade do Conhecimento, que representa a identidade entre poder e informação, em que em ambos, o discurso assume a forma de um discurso do conhecimento em que age a ideologia da competência. Esta, por sua vez, pode ser resumida como o poder da emissão de discursos, ou seja, na explicação de Chauí, não é qualquer um, em qualquer lugar, em qualquer ocasião que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso competente é assim aquele que determina quem deve falar e quem deve ouvir, lugares e circunstâncias, forma e conteúdo, estabelece a divisão entre ditos detentores de conhecimento e os desprovidos dele, além de reforçar a divisão social entre competentes, que sabem e mandam, e incompetentes, que obedecem. Neste sentido, os meios de comunicação operam como sistemas peritos, o que é respaldado por Marilena Chauí através da constatação de que enquanto discurso do conhecimento, essa ideologia opera com a figura do especialista. Os meios de comunicação aproveitam-se dessa figura e a instituem como sujeito da comunicação, que é ao mesmo tempo formador de opinião e comunicador. Por conseguinte, ideologicamente o poder da comunicação não é o mesmo da ideologia burguesa, que inculcava valores e ideias, mas aquele que nos diz que nada sabemos sobre pensar, sentir, falar e agir, e nos intimida social e culturalmente. Tal intimidação e operação dos especialistas é possibilitada pela onipresença (explícita ou difusa) nas esferas de existência, e pela competência, que como forma, confere sentido racional às divisões sociais e interioriza a ideologia na sociedade. Ademais, fazem acontecer o mundo por meio da atopia, da acronia, dos procedimentos de encenação e persuasão (sensacionalismo), pela manifestação reiterada e estruturada, ao mesmo tempo em que detém os últimos instrumentos tecnológicos para tal. Essas capacidades são a competência suprema, a forma máxima de poder, que é o de criar a realidade, que graças a instrumentos técnico-científicos, torna a realidade virtual ou a virtualidade o próprio real. Dessa maneira: “[...] o poder ideológico-político se realiza pela produção de simulacros.” (CHAUÍ, 2006, p. 78) Relações bilaterais com a Argentina e as implicações para o Mercosul Os primeiros temas a serem analisados são as relações brasileiras com a Argentina, a política comercial de ambos os países, as consequências para a construção da confiança entre as unidades do Mercosul e, por destaque dado pelos periódicos brasileiros, a atual situação do acordo Mercosul-União Europeia. Em seu discurso de posse, a presidente eleita do Brasil, Dilma Rousseff, destacou como objetivo da Política Externa do país a continuidade no aprofundamento das relações com os vizinhos sul-americanos e latino-americanos (aos quais o desenvolvimento econômico, social e político do Brasil estariam vinculados), caribenhos, africanos, países do Oriente Médio, da Ásia, com os Estados Unidos da América (EUA) e com a União Europeia (UE), o que denota a amplitude da agenda diplomática e o multilateralismo como uma diretriz da política externa de seu governo. A presidente destacou ainda o anseio por transformar a região em um ator importante no cenário internacional através da busca de consistência do Mercosul, da União das Nações Sul-americanas (Unasul), e de uma postura intervencionista nos principais fóruns multilaterais.3 A política externa brasileira para a Argentina apresentou como principal pauta os litígios de fluxos comerciais e barreiras tarifárias impostas ao Brasil e as consequências para o Mercosul. No segundo mês do governo Rousseff, o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) brasileiro, Fernando Pimentel, reuniu-se com a ministra da Indústria argentina, Débora Giorgi. Na ocasião, os ministros acordaram que caso a suspensão das licenças automáticas fosse necessária, esta ocorreria de acordo com os prazos delimitados pela Organização Mundial do Comércio (OMC), o que na prática não se verificou, 3 Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2011/01/leia-integra-do-discurso-deposse-de-dilma-rousseff-no-congresso>. Acesso em: 24 de mar. 2014. conforme os eventos sucedidos em maio do mesmo ano.4 Uma primeira comissão brasileira foi instaurada para analisar as barreiras argentinas, após a ampliação da lista de itens sem licenças automáticas de importação pelo país. Pimentel declarou que os governos decidiram avançar no debate ao invés de transformar a questão em contencioso para equilibrar o comércio bilateral e reduzir o déficit argentino de cerca de US$ 4 bilhões.5 A primeira ação mais enérgica durante o governo de Rousseff ocorreu em maio de 2011, em que o Brasil comunicou o fim das licenças automáticas para produtos automobilísticos argentinos (autopeças e automóveis), de um mercado que representa 80% dos veículos exportados pela Argentina e metade da produção nacional. A medida foi adotada em resposta à política do país vizinho, que tem suspendido as licenças automáticas de importação para diversos produtos brasileiros desde 2008, no contexto da crise econômica mundial.6 Pimentel afirmou que a medida não se trata de uma retaliação à Argentina, mas possui o objetivo de combater o déficit comercial no setor automobilístico brasileiro e proteger a indústria nacional. Em resposta, no dia 12, Giorgi, declarou que tal medida dificulta o diálogo entre os países. Pimentel convidou a ministra argentina para uma reunião em Brasília, mas Giorgi condicionou a conversa à suspensão das barreiras pelo Brasil. O ministro brasileiro informou que as medidas não serão retiradas e que estas se aplicam a todos os países que exportam carros ao Brasil.7 O secretário executivo do MDIC do Brasil, Alessandro Teixeira, e o Secretário da Indústria da Argentina, Eduardo Bianchi, reuniram-se a fim de solucionar o contencioso comercial e acordaram a liberação de alguns produtos presos na fronteira. As negociações foram retomadas pelos representantes dos dois países, 8 e no dia 27 de maio, os Ministérios das Indústrias de ambos os países acertaram a liberação de US$ 40 milhões em produtos retidos nas fronteiras. 9 Sobre as negociações, a Argentina divulgou, através de nota, que o avanço do acordo bilateral promove o desenvolvimento integrado entre os países. 10 4 Informe Mensal de Política Externa Brasileira, n. 15, 2011. Informe Semanal de Política Externa Brasileira, n. 292, 2011. 6 Informe Mensal de Política Externa Brasileira, n. 15, 2011 . 7 Informe Semanal de Política Externa Brasileira, n. 304, 2011. 8 Idem, n. 305, 2011. 9 Idem, n. 306, 2011. 10 Informe Mensal de Política Externa Brasileira, n. 15, 2011. 5 Fernando Pimentel reuniu-se novamente com Giorgi, em Brasília. O encontro, realizado em junho, resultou em declarações de boas intenções de ambos os governos, que se comprometeram a agilizar a liberação de produtos na fronteira à espera de concessão de licença de importação. Porém, tais compromissos não foram assinados e prazos não foram estabelecidos.11 No final de julho, Rousseff recebeu, em Brasília, a presidente argentina, Cristina Kirchner. As mandatárias debateram a situação regional, a necessidade de protegê-la das crises econômicas dos EUA e da UE, e criaram o Conselho Empresarial Brasil-Argentina, com o objetivo de resolver as barreiras comerciais entre os países, além de inaugurarem a nova embaixada argentina em Brasília. 12 Desde a adoção pela Argentina da exigência de licença prévia de importação, contrária à regra de união aduaneira do Mercosul, as relações entre Brasil e Argentina encontram-se tensas. Mesmo após o Brasil aceitar as restrições aplicadas a uma lista de seiscentos produtos, o país vizinho descumpriu o prazo de sessenta dias estabelecido pela OMC para a liberação de produtos. Mesmo após as reuniões entre os representantes dos países, a Argentina retomou as restrições aos produtos brasileiros. Um exemplo disso foi a retenção na alfândega, que chegou a 210 dias, de calçados brasileiros, quando o prazo estabelecido pela OMC era de 60 dias. O MDIC do Brasil, no entanto, não estabeleceu medidas de reciprocidade. Representantes argentinos afirmaram que as medidas atingem outros países, e que o Brasil recebe tratamento diferenciado, uma vez que suas mercadorias são liberadas em tempo reduzido em relação aos demais países.13 O ano de 2012 foi marcado pela estagnação das negociações, reuniões sem resultados concretos e discursos conflitantes, excetuando-se o do G-20, em junho, entre os países e entre diferentes setores governamentais internos, como o discurso do ministro do MDIC brasileiro, Fernando Pimentel, e do assessor especial para assuntos internacionais da Presidência da República do Brasil, Marco Aurélio Garcia. Em janeiro de 2012, Fernando Pimentel declarou que a Argentina tem sido um problema permanente. A ministra argentina Débora Giorgi rebateu as 11 Informe Semanal de Política Externa Brasileira, n. 307, 2011. Idem, n. 315, 2011. 13 Informe Mensal de Política Externa Brasileira, n. 19, 2011. 12 declarações de Pimentel ao afirmar que as considerações são injustas, visto que o Brasil apresenta um superávit de seis bilhões de dólares na balança comercial relativa aos dois países, o que representa um aumento de 25% nos últimos sete anos.14 Em uma tentativa de retomar as negociações, em fevereiro, a secretária do Comércio Exterior do MDIC do Brasil, Tatiana Prazeres, reuniu-se com Giorgi para discutir os impactos das medidas protecionistas sobre o mercado brasileiro, porém, sem maiores resultados.15 Por fim, contrariamente ao declarado por Pimentel, o assessor Marco Aurélio Garcia afirmou, em fevereiro, que os problemas entre Brasil e Argentina são bons.16 Tal episódio representa além da dificuldade de negociação bilateral, uma confusão diplomática entre os representantes brasileiros devido uma interposição de funções. O ministro da Agricultura do Brasil, Mendes Ribeiro, buscou uma negociação para o trânsito de alimentos entre os países e o fim das retaliações. Em junho, em visita à Argentina, Ribeiro declarou que o Brasil busca uma política de integração que não prejudique os produtores dos países. Segundo o ministro, as medidas de restrição às importações adotadas pelo país vizinho incomodam e atingem de forma visível o Mercosul.17 Em maio, o governo brasileiro incluiu mais dez produtos à lista de itens com licença não automática de importação.18 Com vistas a debater a relação comercial e as medidas entre os países, os ministros brasileiros das Relações Exteriores, Antonio Patriota, do MDIC, Fernando Pimentel e da Agricultura, Mendes Ribeiro, reuniram-se na sede do Itamaraty, com os ministros argentinos das Relações Exteriores, Héctor Timerman, e do Comércio Interior, Guillermo Moreno.19 Os representantes acordaram que os litígios comerciais devem ser resolvidos em um prazo de cento e vinte dias. Curioso notar a proposta argentina de adotar mais medidas de restrição às importações aos países externos ao Mercosul com o aumento das tarifas ao máximo permitido pela OMC. O Brasil, por sua vez, declarou que estudará a possibilidade.20 14 Idem, n. 23, 2012. Idem, n. 24, 2012. 16 Ibidem. 17 Informe Semanal de Política Externa Brasileira, n. 340, 2012. 18 Idem, n.348, 2012. 19 Informe Mensal de Política Externa Brasileira, n. 27, 2012. 20 Informe Semanal de Política Externa Brasileira, n. 348, 2012. 15 Durante a reunião do G-20, no México, em junho (19), Rousseff e Kirchner defenderam o crescimento e o desenvolvimento. Na ocasião, a presidente brasileira cobrou a reabertura da Rodada de Doha e o fim da cláusula contra a criação de barreiras comerciais.21 Segundo Timerman, porém, houve coincidência entre as posturas das mandatárias.22 Em 2013, as cotas do acordo automotivo bilateral deveriam ser substituídas pelo livre comércio, porém, a Argentina manifestou que desejava manter o regime de cotas e reivindicou a extensão dos benefícios (créditos e redução de impostos) concedidos às indústrias brasileiras para os empresários argentinos. Assim, o ano foi marcado pela estagnação dos acordos sobre barreiras tarifárias atribuindo maior destaque às negociações de aumento dos investimentos da Petrobras na Argentina, ao acompanhamento da estatização da YPF, subsidiária da espanhola Repsol, e à suspensão dos investimentos da empresa brasileira, Vale, no país vizinho, para a extração e produção de potássio, elemento que ambos os países importam para a produção de fertilizantes. Rousseff e Kirchner voltaram a se reunir em abril e trataram sobre a suspensão dos investimentos da empresa brasileira, Vale, na Argentina, e do comércio bilateral.23 Acompanhada pelos ministros brasileiros do MRE, Antonio Patriota e do MDIC, Fernando Pimentel, Rousseff não se comprometeu a intervir junto à Vale para reverter a decisão da empresa. Nenhum avanço foi divulgado sobre as negociações comerciais. Em 2014, as tratativas para solucionar o litígio comercial iniciaram-se em fevereiro durante reunião dos países-membros do Mercosul com a finalidade de discutir o acordo de livre-comércio com a UE . A informação final e que demonstra o papel da mídia como influente no planejamento da Política Externa é que apesar de já estabelecido 90% dos produtos a terem tarifas liberadas, o Brasil decidiu realizar uma oferta em separado, caso o consenso não fosse alcançado no bloco. As críticas à Política Externa brasileira no tocante à UE também tiveram papel importante na reconsideração da presidente Dilma Rousseff em não comparecer à Cúpula BrasilUnião Europeia. 21 Idem, n. 353, 2012. Informe Mensal de Política Externa Brasileira, n. 28, 2012. 23 Idem, n. 38, 2013. 22 Durante a VII Cúpula Brasil-União Europeia, Rousseff declarou que o acordo de livre-comércio Mercosul-UE está cada vez mais próximo de concretizar-se, sendo real e concreta a possibilidade de acerto após catorze anos de negociação. A mandatária brasileira ressaltou a posição brasileira de que a Argentina não constitui um entrave ao acordo.24 Em março, o novo ministro do MDIC, Mauro Borges, juntamente com o assessor especial, Marco Aurélio Garcia, viajaram à Argentina e reuniram-se com a ministra da Indústria, Débora Giorgi, o vice-ministro da economia, Axel Kicillof, o chefe de gabinete da Casa Rosada, Jorge Capitanich, e o presidente do Banco Central argentino, Juan Carlos Fábrega. O objetivo foi tratar mais uma vez sobre o comércio bilateral. A posição brasileira foi de ressaltar a importância do país vizinho, com que mantém um comércio superior a trinta bilhões de dólares que deve ser fortalecido, e declarar que os países estão caminhando para apresentar uma oferta conjunta, através do Mercosul, à UE.25 No final do mesmo mês, os esforços resultaram na assinatura de um novo acordo entre Argentina e Brasil com vistas a facilitar o comércio. Mauro Borges e Kicillof assinaram um memorando de entendimento que determina o comprometimento dos países em analisar a emissão de títulos com correção cambial com prazos compatíveis com financiamentos à exportação. O ministro da economia argentina destacou a importância do memorando, ao afirmar que os países passam a atuar como facilitadores das operações financeiras privadas e assim estimulam a proteção cambial do importador.26 Em visita de Giorgi e Kicillof ao Brasil, em reunião com os ministros do MDIC, Mauro Borges, e o ministro brasileiro da Fazenda, Guido Mantega, os representantes debateram os entraves ao comércio bilateral com foco no setor automobilístico. A única decisão, porém, foi o estabelecimento de um cronograma de encontros.27 O ministro das Relações Exteriores brasileiro, Luiz Alberto Figueiredo, também manifestou-se sobre os litígios com o país vizinho, ao afirmar em audiência pública na Câmara dos Deputados que as negociações entre Mercosul e UE não se 24 Idem, n. 425, 2014. Idem, n. 428, 2014. 26 Idem, n. 430, 2014. 27 Idem, n. 432, 2014. 25 encontram atrasadas, que na verdade o acordo sairá em semanas, e que é um mito atribuir o atraso para troca de ofertas entre os blocos à Argentina.28 Novo acordo entre Argentina e Brasil foi estabelecido em junho, novamente em visita de Borges a Giorgi e Kicillof, estipulando os termos do comércio de automóveis e autopeças de julho até agosto de 2015. Nos novos termos o Brasil não poderá ter um superávit maior do que 50% em relação ao vizinho; ultrapassado este percentual o Brasil voltará a pagar taxas de exportação. Mesmo o acordo anterior tendo o percentual de 95%, Borges afirmou que o objetivo é liberalizar o comércio bilateral.29 Política externa para o Paraguai, Venezuela e as ações no Mercosul Outro tema de grande repercussão nos quatros anos (ainda por concluir) de governo Rousseff foi a suspensão do Paraguai do Mercosul e da Unasul devido ao impeachment do ex-presidente paraguaio, Fernando Lugo, ao qual os demais membros do bloco consideraram uma ruptura democrática, de acordo com os Protocolos de Ushuaia I e II. O parlamente paraguaio constituía a única oposição à entrada da Venezuela no Mercosul, mas com o Paraguai suspenso, o país andino foi incorporado sem consultá-lo, tema também muito debatido na grande mídia brasileira. Dessa forma, abordamos aqui as relações brasileiras, bilateralmente e por meio de organismos internacionais com os dois países, assim como a ação externa brasileira no que concerne à nova composição do Mercosul. Para tal utilizamos também do dossiê produzido pelo OPEx intitulado “Crise Paraguaia: análise do jogo político e midiático”, apresentado no Ceinladi, no ano de 2012. No dia 15 de junho de 2012, em Curuguaty, uma localidade rural no nordeste do Paraguai, forças policiais tentaram desalojar um grupo de camponeses sem terra que ocupavam uma propriedade de 2 mil hectares pertencente ao Estado desde 1967 e apropriada por Blas Riquelme, um empresário e político da época do governo Stroessner. A polícia interveio e iniciou um combate que acabou com 17 mortos (11 camponeses e 6 policiais) e mais de 20 feridos. Foi a mais grave tragédia desde o fim da ditadura no Paraguai, que tocou um dos temas mais sensíveis no país: a alta 28 29 Idem, n. 433, 2014. Idem, n. 436, 2014. concentração das terras e a grande pobreza no campo. Poucos momentos após o incidente, líderes do Partido Colorado acusaram o então presidente da República, Fernando Lugo, como responsável pelas mortes em questão, e o Congresso do Paraguai resolveu formar uma comissão para investigar os acontecimentos. Esse cenário foi o estopim para um processo de impedimento das funções presidenciais de Lugo, que ocorreria dias depois, em 22 de junho. Na manhã do dia 20 de junho, mesmo dia em que Fernando Lugo ordenou a criação de uma comissão especial de investigação a fim de esclarecer o confronto entre policiais e camponeses em Curuguaty, a segunda maior força política no Paraguai, o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), pediu seu impeachment. No dia seguinte, 21 de junho, a Câmara dos Deputados aprovou por unanimidade o processo alegando como motivo principal má administração pública pelo presidente Fernando Lugo. Outras razões, como o mau uso de quartéis militares, a ineficácia na redução da insegurança e a assinatura do Protocolo de Ushuaia II, que segundo o PLRA atingia a soberania paraguaia, culminaram na aprovação do processo. No mesmo dia, a Unasul decidiu enviar uma missão diplomática composta por chanceleres dos países-membros ao Paraguai para encontrar uma solução para a situação política, notícia que não foi bem vista por setores da oposição ao governo de Lugo, que interpretaram o impedimento do presidente como questão interna à situação do país. Os ministros, que estavam no Rio de Janeiro participando da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), viajaram a Assunção com o intuito de se reunirem com Fernando Lugo. A delegação foi liderada pelo então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antonio Patriota, e contava com os chanceleres Héctor Timerman (Argentina), Alfredo Moreno (Chile), María Ángela Holguín (Colômbia), Ricardo Patiño (Equador), Rafael Roncagliolo (Peru), Luis Almagro (Uruguai), Nicolás Maduro (Venezuela), além da ministra de Desenvolvimento Rural da Bolívia, Nemesia Achacollo, e do secretário-geral da Unasul, Ali Rodríguez. Na manhã do dia 22 de junho, mesmo dia em que a Organização dos Estados Americanos (OEA) convocou uma reunião extraordinária para discutir os acontecimentos no Paraguai, a defesa de Fernando Lugo entrou no Supremo Tribunal com uma ação de inconstitucionalidade contra o processo de impeachment. A medida, que visava suspender o julgamento político no Senado alegando que o prazo concedido para a defesa e apresentação de provas era muito curto, foi imediatamente rejeitada. Poucas horas depois e sem a presença do presidente paraguaio, o Senado deu início, por volta das 12 horas e 30 minutos locais, ao julgamento que decidiria sua permanência no cargo. Para representá-lo, cinco advogados compareceram. Os assessores jurídicos de Lugo usaram uma hora e quarenta e cinco minutos das duas horas concedidas pelo Senado para a exposição. Entretanto, o Senado, com 39 votos a favor da condenação, decidiu pela deposição de Lugo de seu cargo de presidente do Paraguai, num julgamento que durou cinco horas. Desse modo, o vice-presidente de Lugo, Federico Franco, tomou posse na noite do mesmo dia 22 de junho como novo presidente do Paraguai. Após o fracasso nas negociações, para tentar evitar o impeachment de Fernando Lugo, os chanceleres da Unasul afirmaram, em comunicado oficial, que a deposição do mandatário configurou ameaça de ruptura do ordenamento democrático. Afirmaram ainda que as ações entravam em conflito com os artigos 1, 5 e 6 do Protocolo Adicional do Tratado Constitutivo da Unasul sobre o Compromisso com a Democracia, demonstraram total solidariedade ao povo paraguaio e respaldo constitucional ao presidente Fernando Lugo. A maioria dos países da América Central e do Sul demonstrou repúdio à destituição de Lugo. Os governos da Argentina, Bolívia, Cuba e Equador classificaram a destituição como um golpe de Estado. Brasil, El Salvador, Nicarágua, Panamá, República Dominicana e Uruguai também rechaçaram a saída de Fernando Lugo. Chile e Colômbia também condenaram a deposição do mandatário.30 O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, não reconheceu o governo de Franco, classificando-o como inválido e ilegal. A Costa Rica também condenou a decisão tomada pela maioria oposicionista no Congresso e ofereceu asilo a Fernando Lugo e aos membros de seu gabinete. O governo do México considerou que o processo de destituição de Lugo não foi justo, ao não conceder a ele espaço para sua defesa. O presidente peruano, Ollanta Humala, chamou o ocorrido como um revés ao processo democrático na região. Em oposição a este cenário, o departamento de Estado dos EUA, assim como os governos da Alemanha, do Canadá, e a sede da Igreja Católica no Vaticano reconheceram o impeachment e pediram calma ao povo paraguaio. 30 Informe Mensal de Política Externa Brasileira, n.36, 2013. No dia 23 de junho, o governo argentino decidiu retirar seu embaixador no Paraguai como forma de demonstrar rejeição ao novo governo. O governo brasileiro anunciou a convocação do embaixador em Assunção e condenou como ruptura da ordem democrática o ocorrido no Paraguai. No dia seguinte, o Mercosul decidiu suspender a participação do país na cúpula de chefes de Estado do bloco. Ao mesmo tempo em que Federico Franco realizava o juramento de seu cargo, Fernando Lugo concedia entrevista coletiva na qual reiterava sua intenção de retomar o poder. No dia 26 de junho, representantes do governo paraguaio foram ao Brasil com a intenção de buscar apoio da presidente Dilma Rousseff para o novo governo, logo após Franco declarar que sua prioridade era restaurar o equilíbrio interno do Paraguai e não o respaldo da política internacional. No dia 27 de junho, a Secretaria Geral da Unasul informou que foi suspensa a participação de representantes paraguaios na reunião extraordinária na cidade argentina de Mendoza. No dia 28, o chanceler brasileiro, Antonio Patriota, declarou que os países do Mercosul decidiram suspender o Paraguai dos órgãos do bloco até as novas eleições presidenciais no país, marcadas para abril de 2013, mas esclareceu que não serão aplicadas sanções econômicas. Chefes de Estado do Brasil, Uruguai e Argentina reuniram-se na 43ª Cúpula do Mercosul, em Mendoza, na Argentina, e entraram em um consenso pela incorporação da Venezuela ao grupo. No dia 30 de junho, em consonância com as decisões do Mercosul, a Unasul também optou pela suspensão temporária do Paraguai do grupo até abril de 2013. Os senadores paraguaios consideraram ambas as determinações ilegais e ilegítimas, além de rejeitarem a incorporação da Venezuela como membro pleno do bloco sem contar com a unanimidade dos Estados-membros, uma vez que o Paraguai, mesmo suspenso, não participou da votação. O governo paraguaio afirmou que diante das graves evidências de intervenção por parte de funcionários venezuelanos em assuntos internos do Paraguai, pede-se a retirada do embaixador da Venezuela do país. Após a declaração, Hugo Chávez ordenou a retirada do pessoal militar destinado à embaixada do país no Paraguai devido às ameaças contra a delegação, que estaria sendo acusada de preparar um golpe de Estado em Assunção. Em julho, o governo paraguaio recorreu ao Protocolo de Olivos perante o Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul para pedir a inaplicabilidade da suspensão do país e a anulação da entrada da Venezuela no bloco. O Paraguai afirmou que houve violação do direito internacional no que diz respeito aos princípios de igualdade jurídica entre os Estados e de não intervenção. Também em julho, uma delegação do Parlamento Europeu reuniu-se com o presidente Federico Franco, e seu antecessor, Fernando Lugo, para averiguar suas versões sobre o processo de troca de poder. O presidente da Corte Suprema da Justiça do Paraguai, Víctor Núñez, afirmou que Lugo pode se candidatar a senador nas próximas eleições, mas está impossibilitado de concorrer à presidência do país por conta de seu impeachment. O Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul apresentou no dia 23 de julho a deliberação definitiva de rejeitar o recurso apresentado pelo Paraguai para anular a suspensão do país do bloco. Assim, o presidente paraguaio, Federico Franco, declarou que o Mercosul foi golpista e qualificou de nula a entrada da Venezuela. Franco mencionou que uma das alternativas que restaria ao Paraguai, em relação ao assunto, seria recorrer à Corte Internacional de Haia, mas afirmou que será o governo que assumir em 2013 que tomará medidas em relação ao assunto. No mesmo dia, deputados da Argentina, do Brasil, e do Uruguai, durante visita a Assunção, recusaram-se a reunir-se com Franco, por não reconhecerem sua legitimidade. Durante reunião no dia 30 de julho, ministros das Relações Exteriores do Mercosul reiteraram o desejo de o Paraguai retornar ao bloco a partir das eleições de abril de 2013, reafirmando que o fim da suspensão paraguaia está condicionado à plena vigência das instituições democráticas. A entrada da Venezuela ratificou-se com a Cúpula Extraordinária do Mercosul, realizada no dia 31 de agosto, em Brasília, em que os chefes de Estado declararam oficialmente a entrada do país andino. Na ocasião, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, afirmou que com a Venezuela o Mercosul torna-se a quinta potência econômica mundial, discurso reiterado por Dilma, além de fortalecer a democracia no Mercosul. Rousseff acrescentou que a expansão do bloco amplia suas capacidades internas, reforça seus recursos e abre oportunidades para inúmeros empreendimentos.31 31 Idem, n. 30, 2012. O Uruguai, ao tratar da adesão venezuelana ao Mercosul, subsequente à suspensão paraguaia devido ao impeachment do ex-presidente Fernando Lugo, considerou o aceite do país andino como membro pleno do bloco talvez a mais grave agressão institucional nos seus 21 anos de existência, em 2012. O vicepresidente uruguaio, Danilo Astori, considerou que a aprovação do ingresso venezuelano atingiu o coração do Tratado de Assunção, ao lembrar que uma das regras condiciona a entrada de um novo membro ao consenso entre todos os membros plenos. O ministro das Relações Exteriores, Luís Almagro, declarou que o presidente uruguaio, José Mujica, era favorável à adesão da Venezuela, mas considerou a ocasião imprópria. Mesmo assim, Mujica aceitou a entrada da Venezuela no bloco com o argumento de que novos elementos políticos superavam amplamente o âmbito jurídico.32 Por outro lado, as mudanças no bloco também representariam uma oportunidade para avaliar os procedimentos e acordos, fortalecendo ainda mais as relações regionais e, com isso, preparando melhor o Mercosul para as negociações com seus congêneres, como está acontecendo com a União Europeia, defendeu Mujica. Ao receber o aviso de suspensão do Mercosul e da Unasul, o Paraguai reclamou da falta de espaço para a defesa do país, procedimento que não adotou com o ex-presidente Lugo. Como o congresso paraguaio era a única oposição à adesão da Venezuela no Mercosul, o país foi incorporado ao bloco.33 Com a eleição de Horácio Cartes (Partido Colorado) à Presidência do Paraguai, o país foi reincorporado ao Mercosul. No entanto, o governo paraguaio rejeitou a oferta, prorrogando a situação de incerteza do bloco até dezembro de 2013. Neste mês, no dia 10, o Senado guarani aprovou a incorporação da Venezuela e sinalizou que o país estava preparado para voltar ao bloco, o que foi formalizado em 20 de dezembro de 2013. A Unasul adotou medidas semelhantes, ao cancelar a suspensão paraguaia na ocasião da posse de Cartes, em agosto. Uma análise dos periódicos brasileiros 32 33 Idem, n. 29, 2012. Ibidem. A revista Carta Capital abordou a relação Brasil-Argentina e as consequências para o Mercosul apenas em um editorial no mês de fevereiro de 2012, reconhecendo as atuais dificuldades entre os países, mas apontando também para a cooperação entre os vizinhos frente à crise econômica mundial. Em reportagem, a revista tratou sobre o que chamou de rusgas entre Brasil e Argentina devido à adoção de medidas de restrições às importações (fim das licenças automáticas de renovação e ampliação do prazo de liberação dos produtos na alfândega) adotadas por Kirchner. Sobre a declaração de Marco Aurélio Garcia, de que os contenciosos entre Brasil e Argentina seriam positivos, a revista interpretou que o assessor visou destacar que os países não se encontram em rota de colisão, e que o apoio brasileiro a seu vizinho na questão das Malvinas e na cooperação para a reconstrução do Haiti representam uma postura de contracorrente à crise econômica mundial.34 O jornal Correio Braziliense abordou a Política Externa Brasileira para a Argentina e os litígios comerciais entre os países em janeiro de 2012 ao retomar que tanto Fernando Henrique Cardoso como Lula enfrentaram o protecionismo argentino em seus governos com negociações diplomáticas. Logo, defende o diário, as declarações do ministro do MDIC, Fernando Pimentel, de que a Argentina constitui um problema permanente ao Brasil sugere uma mudança de abordagem pelo governo Rousseff. Em 2011, a presidente brasileira suspendeu as licenças automáticas para automóveis, afetando principalmente a Argentina, o que fez com que o vizinho suspendesse as medidas restritivas às importações feitas anteriormente. O jornal destacou a importância que o Mercosul possui para ambos os países, assim como a relevância do mercado argentino, terceiro maior importador de produtos brasileiros. Feitas estas observações, o Correio pontuou que mesmo que nos últimos meses a balança comercial tenha sido favorável e crescente ao Brasil, houve momentos de recessão, o que exige um planejamento de longo prazo para o contencioso. O periódico parece apresentar uma visão mais consciente sobre o Mercosul, que não se limita a liberalizar o comércio, mas representa um espaço para repensar o modelo de integração e de relação regional, e mesmo com o litígio comercial, o debate representa o amadurecimento do órgão(OPEx).35 Apenas em abril de 2014, o Correio Braziliense retornou a abordar o tema, criticando a 34 35 Idem, n. 24, 2012. Idem, n. 23, 2012. passividade brasileira frente às medidas de restrição à importação da Argentina e defendeu que o Brasil busque novos mercados.36 O jornal Folha de S. Paulo defendeu que as medidas brasileiras de restrição à importação de produtos automobilísticos, como a adotada em maio de 2011, constituem retaliações às medidas argentinas, que por outro lado, também representam uma forma de engajar o acerto entre os países e atenuar as assimetrias.37 Defendeu que as medidas restritivas ao comércio são lesivas ao Mercosul. Por outro lado, destacou que as medidas do país vizinho são provisórias e que a postura brasileira de consentimento é compreensível devido à importância argentina ao comércio brasileiro.38 O jornal apresentou também a importância do Mercosul à economia brasileira (representa 10% do comércio externo brasileiro) e da Argentina dento do bloco (responsável por 80% das negociações brasileiras, em que 90% delas são de produtos manufaturados). Dessa forma, afirmou que evitar a derrocada da Argentina é de interesse estratégico para o Brasil. Por outro lado, fez uma ressalva de que tal descompromisso da Casa Rosada com as regras básicas de livre-comércio e a complacência do Palácio do Planalto são ao final repassados às empresas brasileiras na forma de prejuízos financeiros. Tais ações ocorrem no contexto da suspensão paraguaia do bloco e adesão da Venezuela, logo, a manutenção do apoio brasileiro à Argentina pode ser interpretada também como busca por respaldo político para as ações brasileiras. 39 Em 2014, a Folha defendeu que, de maneira muito próxima ao O Estado de S. Paulo, o Brasil deveria dedicar-se aos acordos com EUA e UE prescindindo Brics, Mercosul, mas sem abandonar a construção de um centro competitivo na América Latina através da inovação e desenvolvimento de tecnologia para alavancar a integração regional. 40 Em abril reiterou-se a falta de ímpeto do Brasil em buscar acordos de livre comércio e em negociar com os EUA, sugerindo uma Política Externa mais estratégica, não partidarizada e mais democrática.41 O jornal O Estado de S. Paulo foi aquele que mais abordou o tema comercial Brasil-Argentina, quiçá pelo fato do periódico paulista representar um mecanismo de 36 Idem, n.50, 2014. Idem, n. 15, 2011. 38 Idem, n. 27, 2012. 39 Idem, n. 29, 2012. 40 Idem, n. 49, 2014. 41 Idem, n. 50, 2014. 37 pressão do empresariado nacional ao governo federal. A recorrência dos editoriais e matérias sobre o tema possibilita também uma análise mais profunda da visão do periódico sobre o tema. No ano de 2011, a visão inicial sobre o governo Dilma, após a retaliação à Argentina com medidas de restrição à importação de produtos automotivos e automóveis, o jornal esboçou elogios ao afirmar que a medida representa uma mudança de direção na Política Externa brasileira. Porém, em meados do mesmo ano o periódico retomou as críticas ao que chamou condescendência brasileira com o país vizinho, opinião que manteve e recrudesceu em 2012, 2013 e 2014. A percepção do jornal O Estado de S. Paulo sobre a relação entre Brasil e Argentina é de que há uma postura continuísta na política de ceder às medidas protecionistas adotadas por seu vizinho. Em relação à Argentina, o jornal destaca que a exigência de licenças prévias para os produtos brasileiros constituem uma afronta às normas do Mercosul. O Estado de S. Paulo reiterou ao longo do governo Rousseff sua visão de uma postura brasileira excessivamente tolerante frente às políticas de desrespeito às regras do Mercosul e da OMC. Outra afirmação recorrente dos editoriais do periódico é de que o empresariado brasileiro teria que aceitar certas restrições argentinas, as quais o governo brasileiro mostrava-se inerte e até mesmo complacente com o país vizinho em nome de uma pretensa liderança regional. Após a visita de Kirchner ao Brasil, em julho de 2011, o periódico criticou a postura brasileira de não debater as relações comerciais, em nome do bom relacionamento político, comprometendo inclusive o futuro do Mercosul, e cobrou, mesmo após o condicionamento das importações de automóveis argentinos pelo Brasil, providências imediatas e firmeza dos negociadores brasileiros.42 Fato curioso, é a afirmação, e crítica construída sobre este ponto, em editorial do dia 28 de julho que as questões comerciais não estavam nas pautas combinadas, enquanto matéria do dia 30 do mesmo mês informava sobre a criação de um Conselho Empresarial Brasil-Argentina justamente para debater e resolver os entraves ao comércio entre os países, o que representa uma ansiedade e falta de cuidado do corpo editorial ao criticar a política externa do governo Rousseff. 42 Idem, n. 17, 2011. Estes pontos permitem uma análise sobre os paradigmas integracionistas do Regionalismo Aberto e Pós-Liberal. O enfoque desenvolvimentista dos países sulamericanos contribuiu para o aumento de iniciativas de integração regional na década de 90. Por outro lado, as políticas econômicas de integração, até então caracterizadas pelo Regionalismo Aberto, foram revistas, implicando nas políticas adotadas para os blocos já estabelecidos, como o próprio Mercosul. O Regionalismo Pós-Liberal representou a retomada do enfoque político das agendas econômicas, que significou uma maior dificuldade à liberalização comercial e, por conseguinte, de políticas de abertura nos blocos comerciais. As medidas argentinas podem ser vistas como a adoção de uma medida característica do paradigma do Regionalismo PósLiberal. As premissas deste paradigma atribuem ao Estado o papel de regular o mercado e valorizar a indústria nacional, que na prática, implicam em barreiras a produtos externos. Assim, o tratado constitutivo do Mercosul (Assunção, 1991) foi baseado no paradigma do Regionalismo Aberto, com vista a aumentar a interdependência econômica entre os países-membros do bloco e permitir relações com terceiros que atendessem ao estabelecido anteriormente entre as partes. O Brasil, que busca uma posição de liderança no Mercosul tem assim o desafio de conciliar a disputa entre os dois paradigmas de integração.43 Em 2014, o diário retomou o tema e reforçou a visão de passividade brasileira ao não defender os ditos interesses comerciais44 e da indústria nacional de fragilidade do Mercosul, pediu posições mais assertivas45,, afirmou que o país se equivoca ao não priorizar as negociações com os EUA46 e defendeu que o Brasil deixe os Brics e o Mercosul e atente-se a um possível acordo de livre comércio entre EUA e UE47. Para o periódico, as prioridades brasileiras como a Argentina ameaçariam as exportações brasileiras e seriam menos exigentes no quesito tecnologia, desestimulando investimentos industriais. O periódico criticou ainda a inação do Mercosul para contrastar os avanços da Aliança do Pacífico, ao afirmar que o bloco está atado ao bolivarianismo, ao atraso econômico, ideologizado, ocupando atualmente as últimas posições no ranking do Banco Mundial que analisa o 43 Idem, n. 20, 2011. Idem, n. 50, 2014. 45 Idem, n. 47, 2014. 46 Idem, n. 48, 2014. 47 Idem, n. 49, 2014. 44 ambiente de negócios na América Latina. Sobre a Cúpula Brasil-União Europeia o periódico destacou que houve promessas de cooperação que não resultaram, porém, em avanços concretos na negociação e criticou novamente as ligações do Brasil com o Mercosul e com a Argentina48 O periódico recrudesceu as crítica ao asseverar que o Brasil adota uma posição terceiro mundista, assumindo a conta atual pela sua solidariedade e infantilidade ideológica da Política Externa, mesmo reconhecendo o importante papel argentino na economia brasileira.49 O jornal O Globo, que passou a ser utilizado em novembro de 2013, afirmou que a Argentina tem dificultado a negociação de um acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia e defendeu, frente às divergências entre os membros e às dificuldades de negociação, que é inevitável uma revisão do Tratado do Mercosul.50 Em 2014, defendeu a continuidade das negociações do acordo intrablocos apesar das dificuldades pelas diferenças de interesses entre os blocos e pelas diferenças internas no Mercosul, além do contexto de crise econômica na Argentina e na Venezuela. O diário sugeriu que o Mercosul não pode esperar a recuperação desses países para buscar um acordo.51 O periódico defendeu a manutenção das negociações de um acordo de livre-comércio com a União Europeia, apesar da divergência de interesse entre os blocos, dificultadas, para o periódico devido a interesses distintos dos países membros do bloco e as crises econômicas na argentinas e venezuelanas. O jornal advogou que o Brasil não pode esperar a resolução das crises para tentar estabelecer o acordo 52. O periódico afirmou que a aproximação econômica com Argentina e Venezuela ocorre pela ideologia. O periódico recomendou cautela ao país, visto que os vizinhos não respeitam as leis econômicas e que o Brasil deve observá-las atentamente para ter dimensão de suas consequências.53 A revista Veja abordou o tema somente no ano de 2014, ao recomendar que o Brasil deveria diferenciar-se de Argentina e Venezuela, que seriam marcadas pela falta de justiça funcional, de sistema político e instituições sólidas.54 Na ocasião da VII Cúpula Brasil – União Europeia o jornal destacou que o Brasil estaria preso ao 48 Idem, n. 48, 2014. Idem, n. 49, 2014. 50 Idem, n. 45, 2013. 51 Idem, n. 47, 2014. 52 Ibidem. 53 Idem, n. 51, 2014. 54 Idem, n. 48, 2014. 49 Mercosul, às crises de Argentina e Venezuela, levando o país ao isolacionismo, enquanto os países da Aliança do Pacífico tornam-se as principais economias da região.55 É consenso entre os periódicos analisados de que há um contencioso comercial bilateral a ser resolvido e de que as medidas argentinas prejudicam de alguma forma as iniciativas de integração regional, seja no âmbito interno ao Mercosul, ou em negociações com outros organismos, como o tratado de livrecomércio entre Mercosul e UE. Dos jornais que fizeram análises mais profundas sobre a relação comercial bilateral – Correio, Folha, O Estado e O Globo – os dois últimos não assinalaram a importância do Mercosul para ambos os países, do mercado argentino ao Brasil e a possibilidade de cooperação bilateral. O Estado de S. Paulo, apesar de ser o periódico que mais vezes abordou o tema durante os quatro anos analisados, apresentou sugestões e diagnósticos sobre o tema apenas em 2014, talvez pela proximidade das eleições presidenciais, cumprindo o papel e respaldando a agenda oposicionista, demonstrando críticas sem aprofundamentos, passando a constituir apenas aversão ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT). O OPEx destaca que O Estado de S. Paulo sempre adotou o conservadorismo político e o neoliberalismo como fulcro, e ao manifestar-se contrário às medidas adotadas em relação ao Mercosul e seus membros, busca sustentar as demandas de grandes empresários.56 Os redatores do OPEx analisam que com pequenas ressalvas os jornais assumem papel de oposição política e desconsideram que a Política Externa é pensada em uma perspectiva de longo prazo (com exceção do Correio, que aponta o planejamento como solução), logo, estes deixam de exercer o papel fundamental da imprensa, que é informar os cidadãos. Não há assim, preocupações em buscar as relações dos países em outros espaços políticos internacionais, como os posicionamentos comuns na OMC.57 A mudança de opinião da imprensa – que inicialmente indicava mudanças na Política Externa com a adoção de medidas de reciprocidade às barreiras tarifárias argentinas, que passou, por outro lado, a apontar o continuísmo – em relação à política comercial do governo Dilma indica uma inflexão nas medidas adotadas em 55 Idem, n. 49, 2014. Idem, n. 47, 2014. 57 Idem, n. 38, 2013. 56 relação ao país vizinho, deslocando-se da resposta às barreiras a partir da reciprocidade para a negociação diplomática. Na visão dos redatores do OPEx, prevalecem assim, as diretrizes do Itamaraty, em detrimento da personalidade de Rousseff, ou seja, a preferência pela manutenção da parceria política em detrimento do embate econômico direto.58 Aparentemente, Rousseff demonstrou que o Brasil apresenta relativa exaustão em arcar com os custos da integração regional, e por isso passou a adotar ações mais assertivas no âmbito comercial. Assim, como em todo regionalismo há um Estado responsável por grande parte dos custos econômicos e políticos (Walter Mattli), o Brasil pode ser enquadrado com um paymaster para o desenvolvimento do Mercosul, porém, talvez o país não tenha fôlego para arcar com uma integração mais ampla. A economia Argentina encontra-se em profundas dificuldades com o déficit nas contas externas e escassez de moeda forte para atender às importações. Desse modo, o país adotou medidas para reduzir importações e estimular a indústria nacional. A bancarrota do país significaria um desequilíbrio muito grande para a região, de modo que Rousseff tem assim o desafio de representar os interesses econômicos nacionais, porém, sem deixar de lado a inserção e projeção do país no cenário internacional respaldado pela liderança nos órgãos de integração regional sul-americana Mercosul e Unasul.59 Em última análise as relações com a América do Sul pautam-se em uma postura pragmática para atender aos interesses políticos e não são apenas baseadas em motivações ideológicas.60 Outro assunto abordado com recorrência pela mídia impressa foi a suspensão paraguaia do Mercosul e da Unasul após o impeachment do então presidente Fernando Lugo, e a subsequente adesão da Venezuela. A revista Carta Capital considerou o impedimento do presidente paraguaio um golpe de Estado, que implicou na suspensão do país do Mercosul e da Unasul, e minimizou as críticas do presidente uruguaio, José Mujica, do vice-presidente, Danilo Astori e do ministro das Relações Exteriores uruguaio, Luís Almagro.61 58 Idem, n. 27, 2012. Idem, n. 45, 2013. 60 Idem, n. 49, 2014. 61 Idem, n. 29, 2012. 59 Frente à possibilidade de um acordo econômico EUA-UE, o Correio Braziliense recordou, em fevereiro de 2013, que o Mercosul buscava um acordo semelhante com o continente europeu desde a década passada. Para o periódico as negociações não seguiram devido à paralisia do bloco sul-americano, em que a atual conjuntura, de afastamento do Paraguai e adesão de legalidade questionável da Venezuela complicam ainda mais a situação do bloco.62 O Correio voltou a criticar o bloco em novembro de 2013, ao defender que as políticas econômicas instáveis de Argentina e Venezuela causam apreensão no Mercosul com medidas heterodoxas e distantes das propostas do bloco. A possibilidade de negociação com a Europa enfrenta assim o problema das tensões internas do próprio bloco.63 O jornal Folha de S. Paulo avaliou que as decisões do Mercosul para o impeachment do ex-presidente paraguaio, Fernando Lugo, que implicou na suspensão paraguaia do bloco, seguida pela adesão da Venezuela seguiu critérios diferentes, mais rigorosos no primeiro e mais complacentes no segundo. O diário afirmou que a presença venezuelana tornará o funcionamento do Mercosul mais complicado, devido às crenças econômicas da esquerda mais rudimentar, hostil aos empreendimentos privados, à segurança jurídica dos contratos e aos próprios fundamentos do comércio. A Folha avaliou que com o poder de veto sobre acordos comerciais dos demais integrantes, a Venezuela poderá complicar ainda mais as negociações do bloco.64 O jornal defendeu que o Brasil deveria apoiar um regresso honroso do Paraguai ao Mercosul, para assim reduzir o erro de inclusão da Venezuela. O jornal sugeriu ainda que haveria tempo para estabelecer um acordo de reintegração até a posse de Cartes, o que seria inclusive de interesse brasileiro, ao considerar que o Paraguai acompanhou a manobra para inclusão da Venezuela, episódio que teria manchado a diplomacia brasileira. Concluiu que a eleição de Cartes seria uma oportunidade ao Brasil para tratar o vizinho com mais respeito e menos ideologia, uma vez que temas complexos envolvem os dois países, como a questão dos brasiguaios, do narcotráfico e da Usina de Itaipu, assim como com a Argentina, que também compartilha uma usina com o Paraguai.65 62 Idem, n. 36, 2013. Idem, n. 45, 2013. 64 Idem, n. 29, 2012. 65 Idem, n. 38, 2013. 63 O Estado de S. Paulo, ao tratar da Venezuela, na ocasião da reunião entre Dilma e Chávez, em 2011, avaliou que a presidente demonstrou mais bom senso em relação à Lula sobre elogios ao país vizinho, no que intitulou “desmandos de Chávez”. Ademais, o veículo sugeriu a adoção dessa postura (prudência, nas palavras do periódico) para os demais países latino-americanos. No mesmo sentido, defendeu que o Brasil desista da iniciativa de incluir a Venezuela no Mercosul, que não obtém apoio do parlamento paraguaio, uma vez que constituiria apenas mais um problema às deliberações do bloco regional com parceiros relevantes, como EUA e UE. Ademais, a inclusão tornaria o Mercosul muito menos democrático, ao considerar o governo de Hugo Chávez como o mais autoritário entre os sulamericanos. A partir da análise dos editoriais do Estado de S. Paulo fica clara a postura de aversão ao ingresso da Venezuela no bloco. Após a suspensão paraguaia e adesão venezuelana, o Estado classificou as decisões de Rousseff como desastradas e vergonhosas à diplomacia brasileira ao sucumbir às orientações de Kirchner e sujeitar o destino do Mercosul aos objetivos do então presidente da Venezuela, Hugo Chávez. O diário sugere um contraste entre as medidas tomadas pelo bloco, ao alegar a inquestionabilidade do impeachment de Lugo, enquanto a admissão da Venezuela como membro pleno do Mercosul foi uma manobra política. Por fim, o jornal concluiu que a celeridade do impeachment de Lugo é passível de discussão, mas afirma que os países sul-americanos não podem desconsiderar a conformidade constitucional. No mesmo sentido, ressalta que como o Paraguai foi suspenso, não excluído do bloco, um novo membro não poderia ser adicionado sem consultá-lo, devendo prevalecer assim a vigência jurídica sobre a vontade política. Sobre o Mercosul passar a ser a quinta maior potência econômica do mundo com a entrada da Venezuela e as afirmações de aumento de dinamismo no bloco, o diário paulista defendeu a necessidade anterior de reduzir a inflação no país andino, reestabelecer o ordenamento econômico e retomar investimentos na PDVSA. O jornal admite que o comércio entre Brasil e Venezuela cresceu nos últimos anos, mas afirma que a relação poderia ter sido mantida bilateralmente sem a necessidade de trazer um incômodo ao bloco. Após a declaração do Mercosul de incentivo à adesão de Bolívia e Equador ao bloco, o diário criticou tal postura devido ao contexto de adesão da Venezuela na ausência de normas internas sobre tais ações. Em seguida, o jornal apresentou as intituladas provas de que a Bolívia não seguirá as regras do bloco, mas sim a cartilha chavista ao destacar que nos últimos dois meses o país nacionalizou minas de prata e estanho de empresas estrangeiras, o que repeleria novos investimentos internacionais. Sobre o Equador, afirmou-se que o país apresenta liberdade econômica, porém, tal característica não é mais relevante, uma vez que democracia e livre-comércio não são mais princípios do Mercosul. 66 É válido citar a defesa do projeto ALCA em detrimento dos órgãos regionais de integração. O diário paulista afirmou em fevereiro de 2013 que Lula, Rousseff e até mesmo os Kirchner perderam a oportunidade de ter acesso preferencial à economia dos EUA ao rejeitar a ALCA. A recuperação do país norte-americano reforçaria o erro brasileiro, pois agora o enfoque do país está em outros emergentes, em referência à evolução das tratativas da Aliança do Pacífico. O diário voltou a criticar a integração regional através do Mercosul ao afirmar que há uma grande quantidade de países que tenta negociar com o organismo, mas que não conseguem em virtude das políticas protecionistas de Argentina e Venezuela, o que provocaria o isolamento do Brasil. O diário afirmou ainda que o bloco não se caracteriza mais pela integração econômica, mas por um instrumento anti-imperialista e hostil ao livre comércio, o que seria totalmente prejudicial ao Brasil, que sustentaria o bloco. O Estado voltou a afirmar que o país deveria afastarse do Mercosul e apostar em um acordo de livre-comércio com os EUA, além de buscar integrar-se à Aliança do Pacífico, em detrimento do que o diário intitulou “Aliança para o Atraso”, composta pelos governos petista, Kirchner e bolivariano, que guiariam o Mercosul ideologicamente e politicamente A revista Veja afirmou no seu único editorial sobre o tema, que a entrada da Venezuela no Mercosul marca o momento em que a boa fé deixou de guiar as relações no bloco. A revista defendeu que a adesão do país andino violou as regras dispostas no Tratado de Assunção (1991) e no Protocolo de Ouro Preto (1994), uma vez que não consta nestes documentos que a suspensão de um país exclui a necessidade de consenso entre os membros. O bloco teria se tornado um organismo em que a afinidade política dos governos sobrepõe-se aos interesses comerciais, 66 Idem, n. 30, 2012. em que a má fé predomina e que cuja proposta inicial foi esquecida desde a imposição de barreiras alfandegárias aos demais membros pela Argentina.67 Dos periódicos analisados que abordaram o tema, apenas a revista Carta Capital, em breves considerações, apontou o impeachment do ex-presidente paraguaio Fernando Lugo. Os demais meios preferiram destacar a violação dos tratados, a utilização de critérios distintos da adesão para a suspensão do país guarani e o erro da diplomacia brasileira e do bloco ao incorporar o país considerado mais autoritário da América Latina à revelia do Paraguai, parceiro estratégico importante, e de acordos de livre-comércio com a UE e os EUA. As impressões finais são de que o bloco deixou sua proposta inicial e sobrepôs afinidades políticas a interesses comerciais. O Brasil deveria assim, na visão dos periódicos liderar a reintegração do Paraguai. A Folha voltou a analisar a relação Brasil-Paraguai na posse do novo presidente guarani, Horácio Cartes, em agosto de 2013. Para o jornal, a presença da presidente Dilma Rousseff e o anúncio de que o Brasil retornará seu embaixador ao Paraguai indicam uma reconciliação entre os países. Sobre o mesmo tema, O Estado de S. Paulo destacou o fato de o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, não ter sido convidado para a posse de Cartes, o que indicaria que o Paraguai não pretende reaproximar-se da Venezuela, tampouco do Mercosul. O discurso de posse indicaria que o país prefere a liberdade para negociar eventuais acordos sem obrigatoriedade de atender às diretrizes do Mercosul. Assim, o Paraguai não teria necessidade econômica ou interesse comercial de retornar ao bloco. Os jornais apresentaram visões e abordagens distintas sobre o tema. Enquanto a Folha destacou a possibilidade de reconciliação com o Brasil, que havia sido sugerida pelo diário, o Estado de S. Paulo prefere destacar o não convite ao presidente venezuelano, Nicolás Maduro, o que indicaria que o país não pretende reaproximar-se do país andino, tampouco do Mercosul, uma vez que este seria um entrave às negociações guaranis com demais atores. É interessante notar a defesa de que uma aproximação com a economia estadunidense representaria um aumento do dinamismo na economia brasileira, desconsiderando que os EUA foi o epicentro da crise econômica internacional. 67 Ibidem. Ignoram-se ainda as políticas do Federal Reserve de expansão monetária para desvalorizar o dólar que aliada à redução da taxa de juros fazem com que investidores busquem outros mercados de ativos, como o Brasil, que com juros elevados atrai investimentos especulativos de curto-prazo, implicando na valorização do real e consequente perda de competitividade das exportações brasileiras. A redução dos juros brasileiros entre 2011 e 2012 fez com que capitais especulativos procurassem novos mercados, aumentando a desconfiança a possíveis investimentos, que acarretou em uma desaceleração da economia e do dinamismo econômico. Assim, o argumento de que a diminuição do crescimento econômico anual do país está diretamente relacionada a não assinatura dos acordos de livrecomércio com os EUA e UE não parece a mais plausível das explicações. Outra consideração relevante é que a não assinatura da ALCA ocorre com vistas à preservação dos setores industriais, que com a abertura de mercado poderiam sofrer com uma concorrência desleal de setores com subsídios dos demais países e assim implicar na perda de controle estatal sobre setores estratégicos da economia nacional, o que poderia levar ao aumento do desemprego, da convulsão social e ao desequilíbrio das contas externas. As comparações com acordos de livre-comércio entre Chile e EUA, por exemplo, resultam improdutivas, uma vez que o país sulamericano é um grande exportador de commodities (minerais e produtos agrícolas). Ao não apresentar uma base industrial de destaque, há menos riscos em assumir tais acordos quando comparado à Argentina e Brasil, que possuem setores dinâmicos na economia, como a indústria automobilística.68 É evidente que apesar do peso econômico paraguaio não ser tão expressivo quanto ao venezuelano, o país é um importante parceiro político-estratégico para a política de integração regional. Em breve análise, uma vez não reincorporado, o país pode buscar alternativas bilaterais e influenciar negativamente a integração na região. Logo, a reincorporação do país é fundamental para o prosseguimento das políticas de integração regional. Neste ponto, a Folha de S. Paulo destaca que há tempo para negociações até a posse de Cartes e que é provável que o Brasil atue para este fim.69 O destaque dado à ideia de que o Mercosul converteu-se em um bloco político é compartilhado pelos jornais, e de certa forma está correta, visto as 68 69 Idem, n. 36, 2013. Idem, n. 38, 2013. dificuldades enfrentadas com a Argentina em promover o livre-comércio entre o bloco. Por outro lado, a maior cooperação política também pode ser vantajosa, ao constituir uma alternativa para aumentar o poder político do Brasil tanto no âmbito regional como no global. O Estado de S. Paulo por sua vez, mais especificamente o empresariado ligado ao periódico, parece não ter percebido a oportunidade de abordar as importações realizadas pelo setor agropecuário do país andino. Não há como negar relativo oportunismo na entrada venezuelana. Não sendo um tema urgente, este poderia aguardar novas eleições no Paraguai para retomar o tema. A deposição de Lugo também constitui uma manobra política, que por mecanismos interpretativos da lei e pela celeridade na aprovação de emendas fizeram com que o incidente se tornasse de difícil contestação jurídica, não apenas por aspectos técnicos, mas também pelas coalizões partidárias e de bancada legislativa favoráveis à posse de um novo presidente. A suspensão do vizinho dos órgãos de integração regional pode acarretar em um aumento da desconfiança regional.70 A adesão da Venezuela ao Mercosul pode indicar inclusive uma mudança de paradigma, com uma posição mais forte de Argentina e Brasil tanto para a suspensão do Paraguai, como para a expansão do bloco, em que a posição dos sócios menos aparentes não foi levantada com a relevância de costume. A repetição de tais atos pode representar a transformação do projeto integracionista para a região em uma ação dos países com maiores capacidades materiais, que pode por sua vez gerar conflitos, no caminho contrário aos objetivos iniciais do bloco de paz e desenvolvimento conjunto.71 As mudanças do Mercosul representam aspectos positivos e negativos. Por um lado, há a crítica à mudança da filosofia do bloco, em que a anterior prioridade à integração econômica com vistas a alcançar maior relevância no comércio internacional foi substituída por questões político-estratégicas, que por sua vez influem na capacidade e no posicionamento do bloco no sistema internacional.(OPEX). É necessário compreender também que o contexto político internacional do continente americano, e global, do final do século XX para a primeira década do 70 71 Idem ,n. 29, 2012. Idem, n. 30, 2012. século XXI, e mais especificamente, dos anos de governo Dilma (2011-2014) não é o mesmo. Se anteriormente havia uma grande influência dos EUA na região, em oposição à integração regional e em defesa da ALCA, o atual contexto, após a não aceitação do bloco proposto, é de descrédito no projeto frente à crise econômica estadunidense e relativa estabilidade dos países sul-americanos. Dessa forma, é natural a maior autonomia e busca por coesão política, fundamental à adesão de novos membros ao Mercosul e à projeção da Unasul. Os paradigmas de integração, como já citado, também são distintos na virada do século. Se o final da Guerra Fria representou a prevalência do Consenso de Washington como cartilha econômica aos países subdesenvolvidos, o que instigou a institucionalização de blocos econômicos com vistas a criar interdependência, o final da primeira década do século XXI é de crise financeira, seguida por crise econômica, que acarretam em políticas de proteção aos setores estratégicos das economias, e assim restrições às importações em determinados setores. Dessa forma, as próprias possibilidades de resolução dos entraves passam a se restringir menos ainda apenas ao caráter técnico e econômico e passam a ser objeto cada vez mais da diplomacia. Ou seja, os mecanismos de mercado, como negociação, passam a ser substituídos pela negociação política entre as partes. Considerações finais Procurou-se demonstrar a capacidade do Observatório de Política Exterior como fonte de pesquisa, em que a interseção com outros projetos e com os próprios materiais produzidos (este artigo inclui Dossiê, Informe Semanal e Informe Mensal) resulta em verificações interessantes que envolvem Política Externa, Análise de Mídia e Análises em Relações Internacionais. Abordou-se a Política Externa Brasileira, o tratamento dado pela mídia, posições assumidas, temas priorizados para os países sul-americanos, de maneira que o recorte temático foi estabelecido pelos próprios periódicos. A análise teórica demonstrou como a mídia influi na formação da opinião pública e assim constitui um mecanismo de pressão sobre a ação diplomática. As explanações de Luís Felipe Miguel e de Marilena Chauí nos levam a novos questionamentos. Sendo a mídia um fator central da vida política contemporânea, mas também, no caso brasileiro, um ator político influente no poder como esferas de representação política de grupos determinados, como conciliar mídia e democracia? Como tornar os espaços comunicativos mais plurais e abrangentes e diminuir a distância entre emissores e receptores? A “Ley de Medios” na Argentina constitui um importante passo, que no Brasil será custoso implementar. A conjuntura atual cria um triângulo formado por mídia, empresariado e formulação da política externa, na qual a sociedade civil está inserida, que por sua vez não possui influência sobre a mídia, dominada pela elite empresarial do país, que apropria-se do interesse nacional, torna seu discurso impessoal e pululante no meio social, que dessa forma, com valores de interpretação estabelecidos tornam-se parte integrante da opinião pública, que passa a ser instrumentalizada para pressionar a formulação da Política Externa. Há assim prejuízo aos tomadores de decisão, que mesmo não possuindo mecanismos sólidos de absorção da opinião pública, tornam-se refém em última instância dos meios de comunicação e por extensão do grande empresário nacional; à população, desinformada; e para o aprofundamento do debate em política externa, que fica dessa maneira limitada aos detentores das esferas de comunicação. É possível perguntar-se se busca da verdade e da objetividade, pelos meios de informação, em detrimento de atender aos interesses dos grupos econômicos e políticos, não representam altos custos e até mesmo determinam a existência de um veículo de comunicação. Ou a delimitação daquilo que é política e seus subtemas mais importantes, como o destaque ao comércio internacional, realizado pelos meios de comunicação, em detrimento do meio ambiente, faz com que mandatários adaptem-se a este recorte? A internet, que poderia representar o espaço de expressividade das visões e interpretações distintas das compartilhas pelos principais meios de comunicação, foi, conforme previsto por Miguel, em 1999, apropriada. Todos os periódicos analisados por este trabalho possuem páginas na grande rede com a possibilidade de acesso às informações em tempo real, de comentar em publicações, acessar versões digitais e conteúdos multimídia diversos. Todo este conteúdo, além de passar pelo mesmo controle da comunicação tradicional impressa, inunda o conteúdo informativo na rede e torna o acesso a demais meios improvável. A política externa brasileira para a região continua perseguindo a maior integração sul-americana para a promoção do desenvolvimento, com o Brasil buscando constantemente a liderança das iniciativas, utilizando-se do Mercosul para impulsionar esta liderança e a região como relevante no cenário global. O âmbito da política externa, porém, é basicamente identificado com questões do comércio exterior, pouca ou nenhuma referência existindo ao âmbito propriamente político das relações internacionais do país nos periódicos. Por ser uma pesquisa de poucos meses e ainda incipiente, visa-se expandir o estudo dentro dos materiais produzidos pelo Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, com análise do material do Observatório de Política Exterior de Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela, com os mesmos recortes, temporais para compreender também a visão destes Estados sobre as temáticas que envolveram o Mercosul no período, e assim verificar se há convergência política. Caso positivo, em que grau e sob quais termos. Entendendo a Política Externa a partir de Raymond Aron como dividida em dois eixos, Diplomacia e Defesa, também objetiva-se verificar, como prosseguimento deste estudo, se na divulgação dos temas relativos à política externa do Brasil é possível perceber a relação entre política externa e política militar. Além disso, se há incidência da política externa sobre a doutrina das Forças Armadas. Para tal, utilizaremos o material do Observatório de Defesa e Forças Armadas, também levado a cabo pelo Gedes. Referências – Periódicos CORREIO BRAZILIENSE. Brasília: 2011-2014 – Diário. FOLHA DE S. PAULO. São Paulo: 2011-2014. Diário. OBSERVATÓRIO DE POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL. São Paulo: Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, 2011-2014. Mensal. OBSERVATÓRIO DE POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL. São Paulo: Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, 2011-2014. Semanal. OBSERVATÓRIO DE POL[ITICA EXTERIOR. Crise Paraguaia: análise do jogo político e midiático. São Paulo: Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, 2012. Dossiê sem periodicidade fixa. O ESTADO DE S. PAULO. São Paulo: 2011-2014, Diário. O GLOBO. São Paulo: 2011-2014 Diário. VALOR ECONÔMICO. Rio de Janeiro: 2013-2014. Segunda a Sexta-feira. ZERO HORA. Porto Alegre. 2013-2014. Diário. REVISTA CARTA CAPITAL. São Paulo: Editora Confiança, 2011-2014. Semanal REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, 2011-2014. Semanal. Referências Bibliográficas ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. 932 p. CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, 144 p. FIGUEIRA, Ariane Roder. Rupturas e continuidades no padrão organizacional e decisório do Ministério das Relações Exteriores. Revista Brasileira de Política Internacional, São Paulo, n.53, v.2, p. 5-22, 2010. MIGUEL, Luís Felipe. O jornalismo como sistema perito. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, n.11, p. 197-208, mai. 1999. MIGUEL, Luís Felipe. Os meios de comunicação e a prática política. Lua Nova: Revista de Cultura e política, São Paulo, n. 55-56, p. 155-184, 2002. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n.63, p.237-280, out. 2002.