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A HETEROGENEIDADE: A FALA DO SUJEITO SOBRE SEU PRÓPRIO TEXTO
Rafaela Lorena VIEIRA-OTTE (PG – FURB)
Resumo:
Este trabalho intenciona analisar o dizer do sujeito sobre seu próprio texto. Trata-se de um recorte da
pesquisa de mestrado que tem como objeto o texto de alunos de ensino médio, mais especificamente do
terceiro ano de uma escola pública de Blumenau/SC. Em princípio, procedendo à descrição de uma parte da
metodologia, a pesquisa tem como lugar a sala de aula. Os sujeitos foram convidados a participar de uma aula
de produção de textos que culminou com a escritura de um artigo de opinião. O sujeito, um dos que
participaram da metodologia, foi entrevistado e comentou o que havia produzido em sala. A partir desses
dizeres é que analisaremos a heterogeneidade mostrada marcada, fundamentada por Authier-Revuz, que
buscou no dialogismo de Bakhtin um dos pilares para este conceito. As marcas lingüísticas nos levaram a
alguns lugares que o sujeito marca como origem do seu dizer, como a família e a mídia.
Palavras-chave: Heterogeneidade. Produção de textos. Análise do discurso.
0 INTRODUÇÃO
O tema central deste trabalho é a heterogeneidade mostrada marcada. Esta que vem sinalizada na
superfície do discurso. Os sujeitos são alunos do terceiro ano do ensino médio. Essa escolha se justifica por
alguns motivos. Os alunos estão terminando uma etapa, o ensino médio e também estão na eminência de
prestar o exame do vestibular. No primeiro caso porque durante toda a sua trajetória escolar pode ter sido
oportunizada a escrita de textos. Em segundo lugar porque pudemos observar de que forma os sujeitos são
cerceados pelo vestibular. Segundo Pillar, o texto de vestibular pode ser visto como um gênero discursivo.
A abordagem da redação de vestibular como um gênero pode oferecer condições para o
professor de Ensino Médio ensiná-la como instrumento de ação social, de interação do
indivíduo com seu meio, sem expor o aluno a uma visão de linguagem limitada às categorias
consagradas de dissertação, descrição e narração. (2002, p.171)
O que nos interessa é saber a quem o sujeito sinaliza no seu dizer. De onde vêm os dizeres que o
constituem? Baseamo-nos essencialmente na heterogeneidade do discurso e do sujeito, o que vem ao
encontro do dialogismo bakhtiniano.
A coleta de dados partiu de uma seqüência didática, cuja definição é um conjunto de atividades
escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito. (DOLZ E
SCHNEWLY, 2004, p. 96). Ela foi aplicada a uma turma do noturno de uma escola pública estadual de
Blumenau/SC. Este procedimento contava com três textos do mesmo gênero discursivo - artigo de opinião –
no entanto três temas diferentes. Esses artigos foram extraídos do jornal da cidade, já que o conceito de
gênero discursivo está ligado à circulação social. Esta seqüência didática nos forneceu o objeto de análise: o
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texto dos alunos.
Em seguida, o segundo instrumento de coleta: a entrevista filmada e posteriormente transcrita. A
participação na pesquisa foi feita através de convite, tanto para a entrevista quanto para o contato inicial e a
seqüência didática. Assim, aqueles que se dispuseram a conceder entrevista são aqueles que foram
considerados os sujeitos. Para este trabalho, há o recorte de um sujeito em virtude do espaço destinado a
esse artigo e também porque não é critério para a Análise do Discurso a quantidade, mas a discursividade.
Vejamos que efeitos de sentido buscamos construir a partir da heterogeneidade que constitui esses dizeres.
Por fim, trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, fundamentada no mirante teórico que segue.
1 ALGUM TRAJETO TEÓRICO
Fundamentamo-nos na terceira fase da Análise do Discurso (daqui em diante AD), iniciada por
Pêcheux, cuja principal representante é Authier-Revuz.
A partir do dialogismo bakhtiniano e do inconsciente de Lacan, esta autora fundamenta as
heterogeneidades enunciativas. O dialogismo bakhtiniano pressupõe um sujeito heterogêneo e consciente, o
discurso é, assim, também constitutivamente heterogêneo. Authier-Revuz vê o sujeito como clivado, dividido,
inconsciente, como o vê Lacan.
As heterogeneidades partem do princípio dialógico de que o sujeito e seu discurso são
constitutivamente heterogêneos, ou seja, o outro perpassa todos os dizeres, que já são perpassados por outros.
Assim, a autora as diferencia através de duas diferentes modalidades: a heterogeneidade mostrada e a
heterogeneidade constitutiva. A heterogeneidade mostrada vai negociando com a constitutiva, tentando
escondê-la, numa ilusão do sujeito de ser a origem do seu dizer. Essa negociação, ao invés de esconder, torna
ainda mais aparente a condição de que o dizer não é nosso, ele é necessariamente atravessado pelo outro.
Na heterogeneidade mostrada, o enunciador parece negociar com o que reconhece vir do seu
exterior, são as não-coincidências do dizer. Ela pode ser ainda mostrada marcada, quando o próprio sujeito
sinaliza de onde vem aquele dizer, ele faz menção, aponta o que ou quem é a origem daqueles dizeres.
Authier-Revuz (1994) categoriza nas quatro principais não-coincidências, quando o sujeito desdobra o
seu dizer, tenta explicá-lo, corrigi-lo, negociando com o interlocutor a falta da palavra exata, escondendo, por
outro lado, que o dizer não é seu e nem tampouco o sentido que a ele é atribuído. Dessas não-coincidências, a
autora lista quatro principais:
1) a não-coincidência interlocutiva:
Por exemplo, X, eu sei bem que você não gosta da palavra.
2) a não-coincidência do discurso consigo mesmo
Por exemplo, X, no sentido cristão, no sentido de Bourdieu.
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3) a não-coincidência entre as palavras e as coisas: o enunciador vai procurando as palavras mais exatas.
Por exemplo, Eu não digo X, mas quase, direi X?
4) as não-coincidências das palavras consigo mesmas: há dentro desta ainda quatro categorias, no entanto, uma
delas é o dizer reassegurado pelo não-um.
Por exemplo, X, também no sentido de P, em todos os sentidos da palavra.
Quando se fala em sujeito como origem do seu dizer, Authier-Revuz recorre a Lacan, ao inconsciente
da psicanálise para falar sobre esta ilusão necessária ao sujeito: a origem e a propriedade do seu dizer.
Num domínio como o da enunciação, o exterior inevitavelmente retorna implicitamente ao
interior da descrição e isto sob a forma “natural” de reprodução, na análise, das evidências
vivenciadas pelos sujeitos falantes quanto a sua atividade de linguagem. Assim, é
explicitamente que eu gostaria de não recorrer a abordagens que, do exterior da lingüística,
seduzidas irreversivelmente pelas evidências narcísicas do sujeito como fonte e senhor de seu
dizer, para recorrer a um exterior pertinente para o campo lingüístico da enunciação. (1990,
p. 25/26)
O sujeito é, nesse sentido, inevitavelmente heterogêneo. Muitas vezes ele não consegue marcar de
onde vem o seu dizer, mas esse dizer certamente foi perpassado por outros dizeres, outros lugares e outras
influências. As próprias palavras não são suas, elas são conhecidas pelo outro e seu sentido só se constrói
nessa interação.
Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede
de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da
interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro.
(BAKHTIN, p. 113, 2004)
3 OS DIZERES: “O que veio na cabeça eu escrevi”
A parte final da seqüência didática, mencionada anteriormente, foi a produção textual proposta aos
alunos que aceitaram participar desse procedimento. Nessa perspectiva, Geraldi esclarece os aspectos
necessários à produção de qualquer texto.
[...] Para produzir um texto (em qualquer modalidade) é preciso que:
a)
se tenha o que dizer; b) se tenha uma razão pra dizer o que se tem a dizer; c) se tenha para
quem dizer o que se tem a dizer; d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que
diz o que diz para quem diz. [..]; e) Se escolham as estratégias para realizar. (GERALDI,
1997, p.137).
Sendo o ambiente a sala de aula e o texto assim produzido na e para a escola, buscamos entrevistar
o sujeito sobre o texto que havia produzido e entregue na ocasião da aplicação da seqüência didática. A
participação no procedimento da seqüência e também na posterior entrevista foram feitos por convite. A
entrevista foi gravada em vídeo e em seguida transcrita. Assim, resolvemos adotar iniciais para preservar a
identidade do sujeito e ao mesmo tempo não alterá-la, como por exemplo no caso de atribuir pseudônimos.
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Na transcrição de trechos da entrevista leia-se P para pesquisadora e S para o sujeito entrevistado.
M. N. escreveu seu texto (apêndice 1) e sobre ele falamos durante 15 minutos, tempo de duração
da entrevista. A partir desses dizeres, fomos traçando alguns nichos de sentido.
O primeiro deles é a ilusão do sujeito de ser origem e dono do seu dizer, vejamos alguns trechos da
entrevista de M.N.
P. mas como fosse construindo as idéias que tu colocaste no texto?
S. O que veio na cabeça eu escrevi.
P. mas como tu construíste essas opiniões? De onde tu fosses tirando essas opiniões?
S. não sei ... de mim. Do que eu ouvi por aí talvez.
O sujeito parece, de certa forma, ignorar que “o que veio na sua cabeça” foi aquilo que ficou
marcado na sua subjetividade: o dizer do outro que o perpassou e marcou, constituiu sentido. Quando a
pesquisadora insiste em perguntar sobre suas opiniões, em princípio MN garante que elas vieram de si mesma,
reforçando a noção de que é dona e origem do seu dizer, como se os significados fossem todos seus. No
entanto, em seguida, ocorre um deslize, “eu ouvi por aí” que se remete ao social. O seu dizer não está mais
sozinho, está “por aí” nas interações, nas negociações de sentido.
P. E como é que tu fez pra construir o texto assim:, como é que tu montasse?
S. Não sei
(...)
P. Mas quando tu dizes ali por exemplo... deixa eu achar aqui no teu texto [
S
[ é a minha opinião, no caso. Sei lá eu acho que o Papa teria que ser (...) E por que não? Por que ele
não pode utilizar a TV pra... divulgar, falar sobre a paz, a religião apesar de eu não ser dessa religião, mas ( eu respeito
muito ele). Não sei.
(...)
S. Mas eu admiro o Papa. Eu acho que:: (sei lá) é um ícone/
P. um ícone!
(grifo nosso)
Sempre que o sujeito foi indagado sobre o lugar de onde vinha o seu dizer, não houve sinalização –
ele talvez não tenha consciência do lugar do qual vieram esses dizeres que passaram a constituí-lo. A
heterogeneidade está mostrada, no entanto, não marcada. No trecho seguinte afirma ser sua a opinião, dona
do seu dizer. E ainda em seguida, “sei lá” o papa é um ícone, mas não parece sustentar esse dizer.
Sobre esse nicho de sentido, Authier-Revuz reforça que
Num domínio como o da enunciação, o exterior inevitavelmente retorna implicitamente ao
interior da descrição e isto sob a forma “natural” de reprodução, na análise, das evidências
vivenciadas pelos sujeitos falantes quanto a sua atividade de linguagem. Assim, é
explicitamente que eu gostaria de não recorrer a abordagens que, do exterior da lingüística,
seduzidas irreversivelmente pelas evidências narcísicas do sujeito como fonte e senhor de seu
dizer, para recorrer a um exterior pertinente para o campo lingüístico da enunciação.
(1990, p. 25-26)
Nesse sentido, podemos pensar no enunciador que usa as palavras e as comenta ao mesmo tempo em
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que as profere. Ele as comenta e ainda trata de esconder ou camuflar de si mesmo a origem que não é dele.
Essa origem do seu dizer pode estar por aí, e quando é indagado surge a ilusão de ser inteiramente seu.
Em se tratando do conceito de heterogeneidade mostrada marcada, Authier-Revuz nos ajuda a
entender a autoria nos discursos analisados:
A heterogeneidade mostrada é toda forma marcada de distância que remete a esta figura do
enunciador, utilizador e dono de seu pensamento, mas esta figura é particularmente
apresentada nas glosas de retificação, de reserva [...] que a especificam como juiz,
comentador [...] de seu próprio dizer” (AUTHIER-REVUZ, 1990,
p. 32).
Nessa perspectiva, o sujeito sinaliza alguns lugares que podem constituir fundamentalmente suas
opiniões, argumentos e dizeres. Um deles, sinalizado nos trechos que seguem parece ser a família.
TRECHO 1
P. Tá. Então eu queria te fazer umas perguntinhas ... tá tipo... Como tu fizesse para escrever esse texto?
MN. Ah::: a gente discutia bastante em casa sobre como o papa morreu assim (... ) e tal conversou sobre o papa (...)
P. na tua casa
MN. na minha casa.( grifo nosso)
(...)
TRECHO 2
S. Não fui com a cara dele assim mas::
P. Por quê?
S. Meu pai falou que ele tem cara de coruja...
P. Pensando bem...
S. é:: não sei. é::Desde que nasci era esse Papa ali então até eu me acostumar com ele... Ali é outro me acostumar de
novo...Não fui muito com a cara dele.(grifo nosso)
Assim, muitas das suas palavras são fundamentadas na sua família, esta família perpassa o seu dizer,
dando indícios de que o discurso é heterogêneo porque só se constitui no social. Assim, o pai que fala num
ambiente familiar o constitui, opinião que o leva a concordar e enunciar sua concordância.
Um segundo lugar sinalizado por MN é a mídia como aponta em seus dizeres:
Trecho 3
P. Onde, por exemplo podias ter ouvido?
S. na televisão.
P. na TV tu ouviste?
Trecho 4
P. Mas quando tu dizes ali por exemplo... deixa eu achar aqui no teu texto [
S
[ é a minha opinião, no caso. Sei lá eu acho que o Papa teria que ser (...) E por que não? Por que ele
não pode utilizar a TV pra... divulgar, falar sobre a paz, a religião apesar de eu não ser dessa religião, mas ( eu respeito
muito ele). Não sei.( grifo nosso)
(...)
Trecho 5
P. Eu queria te perguntar uma coisa sobre o teu texto.
Tu achas então essencialmente que o Papa tinha que se utilizar da mídia como todo mundo se utiliza?
S. eu acho, por que que não? Tem gente que usa a mídia pra coisas tão ruins. Por que ele não pode usar para fé, pra/pra
religião?
P. Falas que tu não és dessa religião, que tu não foste ao Vaticano, mas [ mesmo assim
S.
[ nunca fui ]
S. É porque o Vaticano a gente vê direto na televisão. A gente sabe como é (...) como é
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Cabe lembrar que o texto a que se refere o sujeito era um dos que integrava a seqüência didática. O
autor desse texto argumentava que o fato de que o papa só causou tal comoção porque esteve sempre
acompanhado da mídia, que transformou sua morte em recordes de audiência. O sujeito posiciona-se
favoravelmente ao uso da mídia pelo papa “para falar da paz, religião”, revelando admiração pelo papa e pelo
que enumera estar relacionado a esta função: “paz, religião, fé”. Há aí um juízo de valor expresso pelo fato de
que o Papa usaria a mídia para coisas boas ao invés dos outros que usam para “coisas ruins”, criando uma
dicotomia que desconsidera qualquer aspecto negativo do uso da mídia pela igreja católica. Parece estar
sinalizado aí também um imaginário sobre a função do papa (talvez para o sujeito ela só seja um “ícone”)
ainda mais quando o sujeito diz não ser essa a sua filiação, mas respeitar “muito” essa figura.
Há a ilusão de saber o que acontece no Vaticano, na igreja, em Roma sinalizando mais uma vez a
mídia: “a gente vê direto na televisão”. Essa fala nos faz refletir sobre a influência da mídia e no quanto pode
ser arbitrária a informação, a qualidade dela e a própria veracidade do que é transmitido por esse veículo.
Um outro nicho de sentido é sinalizado pelas expressões “sei lá”, “não sei” nos trechos 2 e 4. Cada
vez que é questionado sobre o lugar de onde vem o seu dizer talvez haja um esquecimento, ele parece não
estar tão certo do que argumenta, ou dos lugares aos quais apontar. Por outro lado, a devolução da pergunta
“por que não?” nos trechos 4 e 5 talvez fosse a preocupação com a anuência de seu interlocutor, que tentava
não se posicionar, mas que era considerado na fala do sujeito. Essas expressões podem sinalizar mais uma
vez a ilusão necessária do sujeito como origem e dono do seu
dizer.
Para encerrar, retomamos Geraldi (1997), quando este refletindo sobre a produção de textos,
esclarece o quanto o outro nos constitui, limitando de certa forma a autoria, à escolha, à interpretação uma vez
que as palavras são dos outros, os sentidos são negociados e o que nos constitui é, em certa medida, nossa
escolha.
As palavras alheias vão perdendo suas origens (ser do outro), tornando-se palavras próprias
(internas) que utilizamos para construir a compreensão de cada nova palavra, e assim
ininterruptamente. É neste sentido que a linguagem é uma atividade constitutiva: é pelo
processo de internalização do que nos era exterior que nos constituímos como os sujeitos que
somos, e , com as palavras de que dispomos, trabalhamos na construção de novas palavras.
(1997, p. 67).
4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Os dizeres do sujeito são perpassados pelo outro e este é levado também em consideração na
interação. É aí que os sentidos vão sendo negociados.
O sujeito parece sinalizar para um sujeito e discurso heterogêneos na medida em que suas palavras
vão apontando lugares de onde poderiam vir o seu dizer: a família, a mídia, “por aí”, todos os lugares que o
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constituem e que marcaram de alguma forma a sua subjetividade. Há ainda o “não sei” que talvez indique um
certo esquecimento ou vá ao encontro dessa mesma ilusão: eu não lembro, mas é meu.
As não-coincidências do dizer transparente no enunciado vão sinalizando os lugares de onde vêm este
dizer: “meu pai falou que ele tem cara de coruja”. Authier- Revuz chama de “emergências” a essas
sinalizações reconhecidas pelo enunciador na superfície de seu discurso. São emergências porque o enunciado
parece trazer esses lugares como fenômenos acidentais: isso foi meu pai quem disse, aquilo vi na TV: mas o
todo do discurso é meu, apenas esses pequenos trechos não o são. A heterogeneidade mostrada marcada
funciona, nesse viés, como máscara, escondendo que esse fenômeno não é acidental e sim constitutivo.
Constitutivo tanto da língua, quanto do discurso e do sujeito, como heterogêneos que são.
Parece-nos que essa tentativa de conserto meta-enunciativo deixa à mostra a heterogeneidade
constitutiva e sua negociação com a mostrada. Já o princípio do dialogismo bakhtiniano em que o sujeito é
social, constitui-se pela interlocução para gerar efeitos de sentido.” O que faz da palavra uma palavra é a sua
significação.” (BAKHTIN, 2004, p. 49) Esta que vai sendo negociada pelos interlocutores na interlocução.
Por outro lado, o trecho a seguir reflete esse deslize e negociação. A ilusão permite ao sujeito pensar
que sua opinião é necessariamente sua e o deslize na seqüência aponta para diversos lugares, todos os que lhe
foram marcados.
P. mas como tu construíste essas opiniões? De onde tu fosses tirando essas opiniões?
S. não sei ... de mim. Do que eu ouvi por aí talvez.
REFERÊNCIAS
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Hétérogénéité(s)énonciative(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos, 19.
Tradução de J. W. Geraldi. Campinas. IEL, São Paulo: UNICAMP, 1990. p.25 a 36
______________. Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio in Gestos de Leitura – da história no
discurso. Orlandi, Eni P (org) Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 1994. p. 253 a 277
______________. Palavras Incertas - as não coincidências do dizer. Campinas/ SP: Editora da UNICAMP,
1998. 200p.
BAKHTIN, Mikhail.(Volochinov) Marxismo e Filosofia da Linguagem.São Paulo: Hucitec, 11.ed., 2004.
196 p.
DOLZ, Joaquim. SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização
Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. 278p.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 252p.
______. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas: Pontes, 2003. 100p.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da conversação. 1.ed. São Paulo: Ed. Ática, 1986. 94p.
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PILAR, Jandira. A redação de vestibular como gênero. In Gêneros Textuais e práticas discursivas. José
Luiz Meurer e Désirée Motta-Roth (orgs).Bauru/SP: EDUSC, 2002.
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