Revista Latino-americana de Estudos do Trabalho, Ano 18, no 29, 2013, 241-245
Resenha
Berta, Giuseppe. (2011), Fiat-Chrysler e la deriva dell’Italia
industriale. Bolonha: Il Mulino.
Resenha de Antônio Luigi Negro
UM ALERTA DA HISTÓRIA: A DERIVA DA ITÁLIA INDUSTRIAL
E OS DESAFIOS ATUAIS DOS MUNDOS DO TRABALHO
Um alerta da história: na deriva da Itália industrial, milagres econômicos foram desfeitos, rumores sinistros rondam as fábricas (aquelas
que ainda existem, que não necessariamente funcionam, mas apenas
agonizam a dor de seu ocaso). Na Itália de hoje sucedem lances da globalização e da história do trabalho: naquela unidade fabril de Turim – Fiat
Mirafiori –, assim como em outras, a situação é de expectativas sombrias. O historiador Giuseppe Berta, em seu livro agudo, nos ajuda a entender o que se passa.
Em circunstância afim com o que Eric Hobsbawm disse sobre o
Manifesto comunista de Marx e Engels (acertou no diagnóstico, errou no
prognóstico), o operariado fabril e industrial não só não consiste em maioria numérica na sociedade como também está ameaçado por uma insegurança estrutural que parecia sepulta pela contratação formal e coletiva, pelo sistema de assalariamento e aposentadoria, por sindicatos e partidos, pelo Estado de bem-estar social, além da própria afluência capitalista. O vulto do fim de tudo, da fábrica, da vida como ela era, do trabalho
e do trabalhador, arruína-lhe as forças.
O livro ao começar faz referência à bolha miraculosa – da primeira
metade dos anos 1980 – em cujo interior firmas italianas ensaiaram empreendimentos notáveis, tanto de inovação tecnológica quanto de reorganização empresarial, visando alçar-se à condição de ator global (as
mais famosas são Olivetti, Pirelli, Fiat). Apontando para reiteradas declarações do presidente da Fiat Giovanni Agnelli, o autor deixa claro que
não se tratava mais de ir ao encontro de países que queriam industrializa-
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ção rápida (conforme foi o caso de Brasil e Rússia), mas sim de preparar-se para a tendência mundial da “concentração do número de produtores” para o que era “imperativo desenvolver alianças e aquisições para
atingir as dimensões necessárias” (p.12). Apesar da clareza estratégica, a
Fiat não superou o desafio e, assim, recuou para a defesa de um “cordão
sanitário de segurança” (p. 13), atrás do qual seu domínio do mercado
italiano foi uma escolha ditada seja pela rotina (salvaguardando caprichos da oligarquia Agnelli) seja pelo assédio da competição. Enquanto
isto, a tradicional concorrente – a alemã Volkswagen – se tornava senhora da dianteira. Enfim, Giuseppe Berta reconstitui um processo cada vez
mais dramático, na medida em que, quando a bolha se desfez, restou nua
“a extrema fragilidade do núcleo do vértice do capitalismo italiano” (p.
18). Retraídas às fronteiras nacionais, as firmas desmentiram seus planos de crescimento e inovação, “para sempre mortos atrás dos montes”
(p. 11).
O livro passa à análise da Fiat sob a liderança do executivo italiano
Sergio Marchionne. Com seu vasto conhecimento sobre o tema da industrialização italiana, o autor argumenta que o binômio firma e nação deu
lugar a um fosso entre ambos (p. 33). Como resultado, acabou-se a Fiat
do século XX, aquela “voltada ao primado italiano e ao cultivo das raízes” (p. 30). A corporação que viveu as crises globais de 2002 e 2008, assim como o término da parceria com a General Motors em 2005, é um
ente que rasgou fronteiras e trocou de pele (p. 26). Sem apego ao passado
e à terra natal, persegue a habilidade de ser nômade, capaz de mudar de
modo fluente e de acordo com as circunstâncias. No lugar de uma firme
bandeira tricolor, um mosaico em trânsito (p. 31). Em julho de 2011, a
Fiat tornou-se dona de 53,5% das ações de Chrysler, a menor automobilística das Três Grandes de Detroit. Seu desafio: “converter duas debilidades em uma força nova” (p. 29).
Ao apontar para o leitor que Fiat-Chrysler está longe de ser fenômeno pronto e acabado, Giuseppe Berta estabelece o que essa fusão não
é e o que pode vir a ser. Para ele, o novo conglomerado não é nenhuma reviravolta da história. Ao invés do que a mídia italiana difundiu, não foi a
“salvação” de Chrysler pela mais nacional das empresas do país (p. 55).
Em seu parecer, é provável que tome forma um “grupo multinacional”
cuja arquitetura não será nem italiana nem estadunidense: o cálculo das
oportunidades existentes – ou potenciais – será decisivo e, desde logo,
deve haver flexibilidade para atendê-las. Era esta a meta – objetivo tirado de uma “lógica mundial” – que Marchionne levou ao encontro da Fiat
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em Betim (Minas Gerais, Brasil), em julho de 2011. Aliás, enquanto a
Ásia aparecia na mira dos mercados latentes, a Fiat do Brasil recebeu a
“sanção definitiva de sua autonomia” (p. 60). Logo em seguida, o registro de sinais inconvenientes, que não figuravam nas estimativas, referentes à persistência da recessão nos EUA trouxe inquietação para a parte
prioritária e crucial de Fiat-Chrysler, composta, de um lado, com a expectativa de melhoria geral da economia estadunidense e, de outro, com
o resgate de Detroit do atoleiro.
A possibilidade de queda nos investimentos previstos para os EUA
(e também para a Itália, tida como uma economia estagnada) redobra a
delicada situação em que os trabalhadores e os sindicatos estão. Assim
como acabou aquela Fiat do século XX, encerraram-se também 70 anos
de história da parte do United Auto Workers (UAW) (p. 73). Ameaçado
de extinção junto com as montadoras por causa da depressão começada
em 2008, o UAW aceitou termos azedos: redução salarial, menos direitos, diminuição na cobertura assistencial; em troca de participação acionária na nova Chrysler (p. 67). Berta, a respeito, é assertivo: foi a “única
escolha realista que lhe consentia em preservar a sua existência” (p. 68).
“Incerta e perigosa” (p. 74), essa concertação deixou para trás um certo
equilíbrio nas relações entre capital e trabalho e mostrou aos sindicatos
as desafiadoras páginas em branco a serem escritas em uma inovadora
agenda, século XXI adentro.
Enquanto a crise econômica e política do governo Berlusconi se
agravava no decorrer do segundo semestre de 2011, voltou ao cenário
uma característica tensão entre capital e trabalho nas fábricas automobilísticas. Em meio à pluralidade de forças políticas, reapareceu da parte
da Federação Italiana de Operários Metalúrgicos (Fiom) “uma extremamente sólida consciência de si, constituindo uma matriz identitária” (p.
90), empenhada em “renovar a própria identidade antagonista” (p. 102)
de uma instituição devotada aos movimentos. Sem avistar chances para
tal esforço, o autor observa uma memória rediviva fora de lugar: condições sindicais totalmente alteradas “a ponto de não possuir mais nada em
comum com o clima em cujo ambiente aquela tradição política foi germinada” (p. 90). Argutamente, “o desejo de buscar analogias na História”,
ele pondera, “deve sempre ceder lugar à indagação das diferenças concretas” (p. 91).
Giuseppe Berta identifica um claro motivo para a ressurgência do
conflito sindical nas usinas Fiat, atestando desde logo não ser um exclusivo problema salarial. O ponto de atrito reside na disposição empresari-
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al de envolver o sindicato na salvaguarda da viabilidade das fábricas.
Para mantê-las em funcionamento, a lógica global de Marchionne passou a requerer “uma certeza e uma estabilidade nas metas de trabalho as
quais o quadro sindical vigente não garantia” (p. 95). Em poucas palavras, eficiência, produtividade, compromisso estratégico, de um lado,
desregulação, diminuição do poder sindical sobre a gerência, fim de greves e outras formas de resistência, de outro. É claro que uma pauta dessas
incomodou a representação sindical, e esta, sem outra resposta, replicou
com a resistência, recorrendo às analogias com um passado concluído.
No entanto, a ousadia de Marchionne não é apenas uma hostilidade corporativa aos direitos do trabalho, taxados como um custo nacional – “um
emblema das anomalias italianas” (p. 119). É também uma ofensiva patronal perante um sindicalismo e uma base operária fragilizados. Sendo
uma empresa de compleição e interesses transnacionais, Fiat-Chrysler
endureceu o jogo. Livre do papel de defender o país, fábricas taxadas de
fiasco podem ser liquidadas. Linhas de montagem podem ser transferidas para a Polônia ou outro lugar. Faltarão investimentos para as unidades cujas relações trabalhistas sejam atrapalhadas por encrenqueiros:
esse ou aquele desgosto pode levar à suspensão ou à revogação de um investimento já anunciado. A produção, enfim, pode ser ou silenciada ou
diminuída. Ou deslocada. A marca Fiat está para deixar de ser um escudo
para todo um povo e virar apenas um ícone corporativo: os italianos comprarão veículos Fiat feitos na Turquia. Claro, para ser tão mutante,
Fiat-Chrysler terá de ser incrivelmente flexível e eficiente. Pode ser, então, um blefe de Sergio Marchionne, mas convém computar que sua residência fiscal é na Suíça, que possui nacionalidade canadense afora a italiana, e que não é um executivo formado no meio automobilístico. No
caso de pagarem para ver, os trabalhadores, cujos bolsos estão vazios,
não terão as mesmas saídas ao seu dispor.
Diante disso, uma Itália à deriva há de retomar seu curso em dois
frontes, argumenta o livro. É necessário inovação e criatividade da parte
do sindicalismo, algo além da resistência operária à hegemonia capitalista. Historiador que é, Giuseppe Berta cogita: “se a experiência sindical tem necessidade do contato vivificante com a esfera da produção”,
talvez seja o caso de perseguir “as matrizes e os traços industriais das organizações dos trabalhadores. Porventura estimando um sindicato capaz
de abraçar todas as categorias da indústria, para tornar-se força de coesão” (p. 69, 135). Duas condições terão de ser atendidas: o caráter unitário da nova instituição e uma forte legitimação ante as empresas (p. 133).
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Outro percurso que carece de encontrar rumo é o caminho trilhado
pelo coração industrial e fabril da Itália, o Piemonte e sua capital Turim.
Os italianos podem ser notórios fabricantes de vinho e comida, podem
ser habilidosos artesãos e desenhistas, mas não é isso que vai mantê-los
enganchados na linha de frente da economia mundial. Para tal, Giuseppe
Berta não hesita em rever o lugar, no banco dos réus, onde a fábrica foi
colocada na década de 1990 (p. 116). Há um robusto núcleo econômico
radicado na região, em sua formação, em sua geografia atual, em seu perfil, na história de sua gente, responsável por empregos, por crescimento,
por potencialidades produtivas. Isto não deve ser menosprezado em favor do setor de serviços ou centros comerciais espalhados nas margens
das estradas. “Fiat-Chrysler, esta nova identidade ainda indistinta, de
quem ignoramos a sorte” – conclui Berta (p. 142) – expôs “demandas
que, de outro modo, não seriam nítidas”.
(Recebido para publicação em setembro de 2012)
(Aprovado em dezembro 2012)
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