ASCÂNIO MMM : Poética da Razão


Sumário
1. O cristal
[7]
[ 209 ]
12. Paralelas, tensões e jogos
2. Portugal. Memória afetiva e fundamentos do inconsciente arquitetônico
[ 19 ]
[ 221 ]
13. Concreto, virtual, topológico − entre a cidade e o desenho
3. Escola Nacional de Belas Artes: o (des)abrigo da vanguarda
[ 29 ]
[ 231 ]
14. Geometria vivida. O retorno do Outro
4. A formação do inconsciente arquitetônico e corpus FAU de arte
[ 45 ]
[ 251 ]
15. Modulor/Módulo: o sujeito e o múltiplo
5. MAM: o espaço da liberdade e matrizes políticas da escultura
[ 61 ]
[ 275 ]
16. Elasticidade, dobra e torção do espaço
6. Segunda geração construtiva do Brasil
[ 85 ]
[ 291 ]
17. M: corte, acaso e enunciação poética
7. Barroco, modernidade e ângulo: o inconsciente arquitetônico e o Número
[ 111 ]
[ 309 ]
18. Chão primal
8. Origem e pseudo-origem
[ 135 ]
[ 323 ]
19. Geometria orgânica: xadrez de topos
9. A escultura no espaço público
[ 159 ]
[ 339 ]
20. Pirâmides e proas em Fão
10. Decisão pelo construtivo
[ 173 ]
[ 357 ]
21. Economia da cor
11. Corpos quase-planares
[ 195 ]
[ 383 ]
22. Flexos e Qualas
1. O cristal
Em quase cinco décadas de produção, Ascânio Maria Martins Monteiro construiu
uma minuciosa obra transparente em sua poética e firme em sua lógica construtiva que lhe garante um lugar histórico na trajetória da abstração geométrica da
América Latina. Esta foi sua práxis exclusiva. Ascânio nunca fez uma obra figurativa.
Desde seu primeiro trabalho em 1964, o artista manteve de modo consistente a
opção construtiva, mesmo com o contínuo processo de invenção de problemas
plásticos e experimentação de materiais. O lugar de Ascânio no projeto de arte concreta, os aspectos culturais de sua origem portuguesa, sua formação, o esforço de
construção da linguagem e de seus signos materiais, as proposições fenomenológicas e simbólicas, a participação no processo histórico da arte brasileira, sobretudo
na Geração MAM, o âmbito de sua produção, seu programa estético, a poética e o
sentido da obra, a vontade construtiva e o viés arquitetônico da escultura vinculado
à questão social da habitação, o substrato dialético e político da forma e o inconsciente matemático todas essas são questões que surpreendem o historiador. Compreender a dimensão dialética da produção de Ascânio é de natureza similar à responsabilidade de todo “psicólogo do espírito científico” uma acepção de Gaston
Bachelard , que deve viver o estranho desdobramento da personalidade geométrica
que se efetuou ao longo do último século e meio da cultura matemática.1 No entanto,
diferentemente do matemático, Ascânio MMM não reprime a intuição (nem a sublimação da experiência). Seu desafio bachelardiano foi sempre realizar a conversão da
realidade racional em poética experimental.
Nascido em Portugal em 1941, Ascânio emigrou para o Brasil em 1959.
Passei uma infância maravilhosa. Ainda hoje, quando vou a Fão, gosto de passear pelos
lugares e ruas da minha infância. Gosto de chegar a Fão e passear como anônimo. Para mim,
a liberdade era vagabundear pelo cais, pelo pinhal, pelas dunas e pela praia, especialmente
no verão. Foi andando pelo pinhal, olhando aquelas casas de arquitetura moderna um dia
até entrei numa delas , que eu construí o sonho de ser arquiteto.2
A gênese particular de Ascânio está ancorada em sua origem portuguesa e no
contexto cultural brasileiro, mais especificamente o do Rio de Janeiro, cidade fecundada pela revolução neoconcretista e seus desdobramentos. Mas seu trabalho
também se coloca diante dos horizontes internacionais da escultura sobretudo a
anglo-saxônica do pós-guerra , e se situa entre as respostas da cultura brasileira
ao processo político posterior ao golpe de 1964, através das relações entre arte e


Ascânio em foto de Sebastião Barbosa, 1969
1 BACHELARD, Gaston. “Os dilemas da
filosofia geométrica”. In: O novo espírito
científico. Trad. Maurício José Marchevsky.
Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro,
1968, p. 30 e 34.
2 Entrevista por e-mail a José Belo. Fão,
Novo Fangueiro, 14 de dezembro de 2008.
sociedade e do modo como arquitetura e urbanismo penetram essa discussão daí
o seu próprio discurso sobre a dimensão tridimensional. Nesse tempo, assentava-se
entre os artistas de seu grupo a posição de que não existia neutralidade em arte.
O sistema de valores da obra de Ascânio solicita que se examine sua gênese, até aqui
insuficiente ou mesmo equivocadamente explorada.
Uma produção longa e uma agenda complexa demandam a arregimentação de
um aparato metodológico que dê conta tanto do aspecto multidisciplinar da obra
quanto da consistência de discurso do artista pois o todo arquitetônico da escultura está sempre calçado na unidade resultante da lógica do número na constituição do
sentido social e político do discurso. A obra de Ascânio é analisada aqui em capítulos estabelecidos segundo parâmetros de linguagem, desde a sua primeira escultura
guardada até os problemas atuais que envolvem seu pensamento plástico. “O livro
aborda várias passagens da minha carreira: Fão, Escola de Belas Artes, Faculdade de
Arquitetura, Geração MAM, etc. Mas há um detalhe na minha carreira que foi muito
importante: a Ana”, 3 ressalta o artista.
Ascânio e Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro se conheceram em 1972 e se casaram em 1974. Ela é doutora em Educação pela PUC-Rio e diretora da Faculdade de
Educação da UFRJ. Acompanhar ativamente o processo de Ascânio foi estar perto
da produção desde a etapa de conceituação até a de execução , mas também
abrir a casa para receber artistas, como Raymundo Colares, que viveu alguns meses
na residência do casal. Entre inúmeros títulos, ela é autora de Professores de história:
entre saberes e práticas.4 O livro, resultado de sua pesquisa para o doutorado, tem a
excelência avalizada por Circe Fernandes Bittencourt, que dele afirma o seguinte:
(...) o engajamento profissional, a vivência e o compromisso acadêmico da autora tornaram
a pesquisa uma obra maior e das mais complexas quanto ao tratamento das relações entre
a teia de saberes desencadeados no cotidiano escolar, na busca de entender como o ofício
do professor de história se realiza, como efetivamente determinados conhecimentos históricos são produzidos no processo do ensinar e do aprender no interior das salas de aula.5
3 E-mail do artista ao autor em 13 de
outubro de 2009.
MONTEIRO , Ana Maria Ferreira da Costa.
Professores de história: entre saberes e práticas.
Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2007.
4
BIT TENCOURT , Circe Fernandes. Resenha,
2007. Disponível em: http://www.educacao.
ufrj.br/artigos/n4/numero4-resenha.pdf.
Acesso em: 25 de setembro de 2011.
A resenhista é professora de Pós-graduação
da Faculdade de Educação da USP e do
Programa de Pós-graduação Educação:
História, Política, Sociedade da PUC/SP.
5
Isso é semelhante ao que se passa na relação do crítico ou do historiador com o
processo de conhecimento no ateliê do artista. Com Ana Monteiro, discutimos de
que forma a escrita sobre a arte, assim como a educação, é processo cotidiano de
mobilizações de saberes.
Uma dificuldade para a elaboração do presente ensaio retrospectivo foi a maneira econômica e retraída com que Ascânio colocou à disposição do autor documentos pessoais e mesmo suas obras históricas, sobretudo das décadas de 1960 e 1970.
O exame de sua produção e as discussões sobre sua gênese e trajetória já estavam
em andamento quando Ascânio, provocado, ousou fazer as primeiras revelações sobre sua história com a escultura um território recalcado porque ele acreditava que
a autonomia da arte exigiria que não revelasse sua agenda política. Outra dificuldade
superada ao longo dos quatro anos de elaboração deste ensaio foi a tendência do
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artista a não expor sua discordância com relação a certas interpretações de sua obra
ou até mesmo comparações com as quais não concordasse inteiramente. De modo elegante, Ascânio julgava que aceitar toda interpretação seria uma forma de respeito intelectual a seus interlocutores, pois, dizia ele, não desejava interferir no discurso alheio.6
Rompidos todos esses parâmetros e constrangimentos pessoais, a historiografia pôde
abrir novas fronteiras de entendimento conceitual do trabalho do escultor, corrigindo
conclusões mais mecanicistas e tendo forçosamente que buscar novos parâmetros metodológicos de análise. Ana Monteiro e Ascânio sempre mantiveram discussões sobre
a coerência dos procedimentos escultóricos, sua relação com a sociedade e o imenso
desafio de um levantamento historiográfico à altura da obra de Ascânio MMM.
Quem não atentar para a relação entre escultura, arquitetura, matemática e filosofia na produção de Ascânio permanecerá retido exclusivamente na questão da forma.
No exercício de um olhar de tal modo formalista, o crítico poderá reduzir a produção
do escultor à forma, projetando sobre a obra o que é limitação do seu próprio conhecimento e incapacidade de leitura da dimensão ontológica da escultura. Ana Monteiro, a historiadora e a professora universitária, foi uma voz muito firme, ainda que
discreta, na defesa do tempo necessário ao processo epistemológico requerido por
um texto com a ambição do presente. Ela compreende o sentido das fronteiras entre
o campo da arte e o da história. Sabe também que poucos escultores geométricos
brasileiros têm uma historiografia devidamente abrangente e que o próprio Ascânio
construiu uma obra densa e extensa, e essa obra precisa ser explorada num plano
retrospectivo que lhe defina com mais vigor o lugar histórico.
A crítica antiformalista, e que não dispensa leituras das correlações entre significante e significado, será surpreendida pela sintaxe complexa da obra de Ascânio.
Antes, no entanto, deveria compreender a dimensão matemática da escultura para
partir do contato real com a obra mesma, na dimensão husserliana do fenômeno
estético. Cumpre, então, desvelar o viés da arquitetura e do urbanismo sua teoria,
história e prática contemporânea, inclusive em sua dimensão coletiva para deslocar a arqueologia da construção tridimensional de Ascânio ao campo do espaço
social. Com sutileza e discrição, sua escultura nunca foi preservada da contaminação pelas condições concretas da prática social da arquitetura no Brasil. A abordagem da obra de Ascânio implica compreender a visão dialética da sociedade pelo
artista e o tecido cultural e político em que sua escultura se inscreve criticamente.
Uma aproximação materialista do signo compreende tanto sua própria natureza comunicacional na construção do discurso como também as condições materiais e históricas da produção da obra. A relação da escultura com a arquitetura realizou uma
hipótese de discurso simultaneamente racional e poético. Na abordagem da história,
a iconologia auxilia; não como padrão esteticista, mas como a estética, fundada na
matemática e na física, do eixo arquitetura-obra de Ascânio.
O arco teórico da linguística, que se abre desde o Curso de linguística geral de Ferdinand Sausurre, afeta a leitura da obra de Ascânio. A harmonia visual da sua escultura

6 Foi o que aconteceu com certos textos
sobre sua obra no livro Ascânio MMM.
Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio,
2005.
permite a aproximação linguística através do conceito de “arquitetônica” de Mikhail
Bakhtin, da dimensão conceitualista da cor em Wittgenstein ou da teoria do livro
de Maurice Blanchot, por exemplo, pois a própria obra de Ascânio é um complexo
linguístico desafiador. Talvez a falta essencial em torno da qual se desenrole a obra
de Ascânio seja a questão da moradia, isto é, o desabrigo. O aforismo de Heidegger
que fala da linguagem como a morada do ser pode aqui ser adequadamente mencionado. A escultura de Ascânio sempre se organiza como uma estimulante oferta
de experiência da percepção. Essa generosidade com o sujeito da percepção está
colada à fenomenologia da percepção base do neoconcretismo em sua relação
com a filosofia de Merleau-Ponty.7 Lacan nunca abandonou Merleau-Ponty. A psicanálise, sobretudo no eixo Freud-Lacan, permite explorar o inconsciente matemático-arquitetônico, dimensão do inconsciente político discutido por Fredric Jameson e
do inconsciente ótico de Rosalind Krauss. No entanto, noções psicanalíticas como a
de vazio do sujeito e a de organização do inconsciente como cadeia linguística contribuem para compreendermos certos movimentos da obra de Ascânio. As reflexões
de Gilles Deleuze sobre o sentido dos espaços lisos, estriados e dobrados, ou noções
como a heterotopia em Michel Foucault, podem ser expandidas para a análise da
escultura de Ascânio como arquitetura inquietante.
A discussão sobre a formação do escultor é iluminada pela adolescência em Portugal, antes de sua emigração para o Brasil. Levado pela lavadeira de sua família,
Ascânio viveu a epifania de visitar uma casa projetada fora dos padrões estéticos da
arquitetura oficial salazarista. O jovem descobria então o espaço moderno e no mesmo instante teve consciência de sua vontade de arquitetura. Seu insight foi empolgar-se com o imaginário do espaço.8 A formação do escultor se deveu ainda à passagem
jubilosa − mesmo se não isenta de críticas − por etapas heterogêneas na Escola Nacional de Belas Artes (Enba, 1963-1964) e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
(FAU, 1965-1969), ambas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ocorridas no período da ditadura militar. O olhar de Ascânio vivenciava traumas e aberturas, até hoje
irrevelados, que se consolidavam entre dois choques.
Ao ingressar na Enba, em 1963, pela primeira vez entrei num museu: o MNBA (Museu
7 Por esse motivo, o artista foi incluído
na mostra Poética da Percepção: Questões
da Fenomenologia na Arte Brasileira. Rio de
Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, 2008.
Este ensaio, no entanto, não discutirá
os projetos arquitetônicos de Ascânio.
8
9 E-mail do artista ao autor em
26 de julho de 2010.
10 Essa denominação foi tomada
emprestada da exposição e catálogo
Projeto construtivo brasileiro na arte
(1950-1962), de Aracy Amaral (coord.).
Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna; e
São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977.
Nacional de Belas Artes). Vi os premiados do Snam (Salão Nacional de Arte Moderna), que
me chamaram a atenção. Isso foi a primeiro choque de deslumbramento com a Arte. É isto
que eu quero, pensei. Ainda menino na minha terra natal, tive outro choque parecido: quando pela primeira vez entrei numa casa de arquitetura moderna.9
Ascânio não dissocia da Enba a experiência de descobrir a arte neoconcreta nas
salas do MNBA, que divide o mesmo prédio com a escola.
A presente análise da obra de Ascânio acentuará mais o fato de que certo “projeto construtivo latino-americano na arte” 10 ainda espera pela definição de marcos
históricos que sem deturpar os fatos do período situem vários artistas numa
segunda etapa, em vez de usar o critério cronológico mecânico de geração, que é

inadequado ao processo. Sem a definição desses marcos históricos continuará havendo muita confusão, fato que interessa ao mercado apenas, e não à história. Evidentemente que nos fundamentos mais remotos estão, entre os modernistas, os artistas que adotaram a geometria ou a linguagem cubista ou pós-cubista pintores e
escultores como Diego Rivera, Vicente do Rego Monteiro, Victor Brecheret, Tarsila
do Amaral, Joaquín Torres García, Emilio Pettorutti e Curatella Manes, a portuguesa
Maria Helena Vieira da Silva, que viveu no Rio de Janeiro entre 1940 e 1947, ou mesmo,
mais anteriormente, o brasileiro Belmiro de Almeida, com eventuais obras geométricas
realizadas entre 1908 e 1921. No entanto, a primeira geração a que se chama alternadamente de construtiva, concreta, concretista ou geométrica encontra marcos históricos
em datas diferenciadas nos diversos países. O vigor de Ascânio sempre decorreu da
oscilação entre a lógica da matemática e a emoção estética da forma, o que aponta a
afinidade de certas esculturas com a tradição latino-americana da “geometria sensível”.
A trajetória política e intelectual de Ascânio inclui a firmeza na decisão construtiva
na década de 1960. Lauro Cavalcanti percebeu que “Ascânio é um artista cuja obra
reúne várias influências e questões centrais na arte brasileira dos últimos cinquenta
anos”.11 Poderíamos entendê-lo assim também em relação à América Latina. A consistência da produção de Ascânio suscita inúmeros debates historiográficos novos
ou irresolutos, tais como o modo de ocorrência de uma segunda geração construtiva no Brasil e na América Latina, ao lado de um César Paternosto, por exemplo. A
abstração geométrica em países marcados pela identificação com o surrealismo e o
realismo mágico, como o México e Cuba, teve uma produção irrisória. No plano dos
artistas isolados atuantes em países sem tradição construtiva sólida estão Mathias
Goeritz, no México, Luis Martínez Pedro, em Cuba, ou Carmen Herrera, em Porto Rico;
com exceção do primeiro, os demais se encontram até aqui em posição periférica
com relação à história latino-americana. Em termos latino-americanos, um divisor de
águas foi a antológica exposição konkrete kunst organizada em 1960 por Max Bill
na Helmhaus, em Zurique , que incluiu dezenas de latino-americanos e quase vinte
brasileiros. Assim, na história da arte brasileira do século XX, a produção de Ascânio
deve ser situada no contexto de duas gerações. É preciso entendê-lo em sua geração
cronológica, surgida no final da década de 1960 em torno do Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro processo capital das vanguardas brasileiras. E, simultaneamente,
o escultor se inscreve no novo ciclo histórico de artistas construtivos, ao qual pertence, surgidos a partir do neoconcretismo, em 1959, e da “Teoria do não objeto”.
Além da produção concreta ocidental do pós-guerra, Ascânio também estudou os movimentos construtivos russos, inclusive o uso da madeira nas obras de
El Lissitzky e de Rodchenko. Seu arsenal de referências atravessa o desenvolvimento das linguagens abstrato-geométricas no plano internacional mais amplo, passa pelo Grupo Zero, pelo minimalismo e por escultores isolados. Passa também,
especificamente, pelos relevos brancos de artistas singulares como Jean Arp, Hélio
Oiticica, Victor Pasmore, Günther Uecker, Luis Tomasello e o Jan Schoonhoven do

11 Lauro Cavalcanti, “Ascânio MMM:
a construção da escultura”. In: Paulo Sérgio
Duarte et alii. Ascânio MMM. Rio de Janeiro,
Andrea Jakobsson Estúdio, 2005, p. 86.
12 Sobre o tema, ver o catálogo das
exposições Le relief, em 1960 e 1962, na
galeria XXe Siècle, em Paris.
13 BARATA , Mário. “Uma introdução à
escultura moderna no Brasil.” I Exposição de
escultura ao ar livre Sesc. Rio de Janeiro, Sesc
Tijuca, 1977, p. 11. Barata está tocado pelo
livro Vida das formas, de Henri Focillon.
14 In: Aracy Amaral (coord.). Projeto
construtivo brasileiro na arte (1950-1962).
Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, e
São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977.
final da década de 1950, com cuja obra teve uma interlocução sem atravessadores
brasileiros. Tampouco teve intermediários do Rio de Janeiro. A história de Ascânio
indica que sua matriz ou está nos neoconcretos ou na arte internacional. Alguns brasileiros, inclusive o próprio Ascânio, são herdeiros coevos e simultâneos daqueles valores visuais que inquietaram a arte europeia.12
Ascânio não tem registro de outra forma de fazer arte que não seja a abstração
geométrica.
O emprego da madeira pede para que se compreenda a identificação intelectual
de Ascânio com a escultura de Carl Andre, mas que a natureza da produção do primeiro não se confunda com a ótica minimalista. As diferenças entre a obra de Ascânio
e a escultura em metal de Anthony Caro e Kenneth Martin esclarecem que o emprego
da madeira e o inconsciente arquitetônico, com sua natureza de sociabilidade, garantiram ao artista brasileiro a lógica modular ajustada à mecânica que o singulariza na
cena internacional. O formalismo é sempre uma armadilha que desvia o olhar comparativo desatento para equívocos historiográficos. A vontade construtiva de Ascânio
está constituída também pelo imaginário da escultura e por sua inscrição não apenas
na história da arte brasileira como na história da arte latino-americana e internacional, com análises de autores que vão de Albert Elsen e Sidney Geist a Margit Rowell,
Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss.
A fortuna crítica sobre a obra de Ascânio abrange os críticos mais atuantes na
imprensa carioca do final da década de 1960, como Francisco Bittencourt, Roberto
Pontual, Jayme Maurício e Walmir Ayala. Alinhado às ideias de Henri Focillon, Mário
Barata acentuou-lhe a “elegância ascética” e “uma vida das formas” que se insinua fortemente.13 Citado ao longo deste ensaio, Frederico Morais foi, historicamente, quem
esteve mais próximo da trajetória de Ascânio.14 Desde então, juntaram-se à lista nomes
como Lygia Pape, Antonio Manuel, Aracy Amaral, Wilson Coutinho, Luiz Camilo Osório,
Fernando Cocchiarale, Lauro Cavalcanti, Marcio Doctors, Paulo Sergio Duarte e outros.
Em Portugal, Alexandre Pomar e João Pinharanda também escreveram sobre a obra
de Ascânio, com a demonstração de uma pauta distinta da crítica brasileira.
O paradoxo dos formalistas com relação à obra de Ascânio é que negam a hipótese
de significação mais complexa e, além disso, raciocinam sem perspectiva histórica.
Sendo-lhes suficiente a própria opinião, dispensam o conhecimento da história da
obra. Já os não formalistas, por preconceito contra a forma geométrica, não sabem
do substrato de significados em camadas mais profundas de sua escultura. Com essa
paradoxal distância entre dois polos, a obra de Ascânio termina por expor as idiossincrasias de parcelas da crítica brasileira, sua subalternidade ao mercado e seu assumido desdém pelo rigor historiográfico. Essas duas posições levam à conclusão de que
a crítica precisa testar sempre as suas hipóteses de operação por estereótipos.
Dois artistas, Ascânio e Ronaldo do Rego Macedo, desenvolveram juntos dois
programas curatoriais no Rio de Janeiro durante uma década. Iniciaram na sede do
Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB, 1981-1982), e depois na Galeria do Centro

Empresarial Rio (1983-1989), na Praia de Botafogo. Essa obra curatorial foi pioneira
na exposição de alguns mestres do projeto construtivo brasileiro, e dava continuidade a duas mostras antológicas realizadas no Rio na década anterior. Na Galeria do
IAB do Rio de Janeiro, eles promoveram mostras de Franz Weissmann, Ione Saldanha,
Joaquim Tenreiro, Abraham Palatnik, em 1981, e de Maria Leontina, em 1982. Esse
programa, sempre acompanhado de catálogos bem executados, tinha o objetivo de
integrar as artes plásticas nos debates sobre arquitetura e urbanismo e formar o olhar
dos arquitetos, lapidando-o de modo mais sofisticado para a cultura visual moderna.
Na Galeria do Centro Empresarial Rio, os dois curadores organizaram cerca de sessenta exposições entre elas um programa de arte abstrato-geométrica, com Aluisio
Carvão, Rubem Ludolf, Lygia Pape, Joaquim Tenreiro, Jackson Ribeiro, e a mostra
Abstração Geométrica na Coleção Gilberto Chateaubriand, com Amílcar Castro, Ione
Saldanha, Ivan Serpa, Lothar Charoux, Maria Leontina, Mário Silésio, Mira Schendel
e outros. Outra exposição significativa foi Expressão e conceito / Anos 70 na coleção
Gilberto Chateaubriand, com Barrio, Carlos Zílio, Cildo Meireles, José Resende, Luiz
Alphonsus, Milton Machado, Thereza Simões, Tunga, Waltercio Caldas, entre outros. O programa incluiu mostras individuais de artistas emergentes ou com pouca
visibilidade como João Modé, Sálvio Daré, Sandra Kogut, Cristina Canale, André
Costa, Gonçalo Ivo, Jorge Barrão, Angelo Venosa, Daniel Senise e Katie Van Scherpenberg e coletivas como Novos novos, com Adriana Varejão, Carla Guagliardi, Cristina Canale, Fernando Leite, Sandra Sartori e outros; Brasil hightech, com Eduardo
Kac, Fernando Catta-Preta, Júlio Plaza, Mário Ramiro, entre outros; Novos novos 88,
com Brígida Baltar, Chang Chai, Davy Cury, Eduardo Frota, Franklin Cassaro, Márcia X,
Ricardo Maurício e outros; e Nova escultura gaúcha, com Elaine Tedesco, Gaudêncio
Fidelis e José Francisco Alves. Então raras no Brasil, foram realizadas exposições de
projetos de arquitetura, como Tendências da arquitetura portuguesa, com Álvaro Siza,
Manuel Vicente, Tomás Taveira e outros. Essa consistência de programação sustentou
o debate em torno das principais questões estéticas do período, inclusive o ressurgimento da pintura no Brasil. Trata-se de um programa exemplar e persistente de
exposição da arte brasileira ao debate que nenhuma instituição no Rio de Janeiro
excedeu naquele período.
Frequentemente, a “lógica matemática”15 prevalecia sobre a poética da forma no
dito projeto construtivo brasileiro na arte, embora parecesse muito longe de atingir
a precisão preconizada por Max Bill a arte converteria o pensamento invisível, o
abstrato se torna concreto, perceptível e apreensível pelos sentidos, criando “axiomas
quase inimagináveis”.16 É justamente o confronto experimental com o inimaginável
que está na raiz da poética dos módulos de Ascânio MMM. Em certos casos da experiência concretista brasileira, como o grupo Ruptura, é razoável pensar no inverso,
em axiomas imagináveis, tal a subalternidade a duas ideias: o visibilismo de Konrad
Fiedler e o pré-formismo do grupo de Theo van Doesburg. Em 1930, o “Manifesto
da Arte concreta”, de van Doesburg, Hélion e outros, declara que “a obra deve ser

15 BELLUZZO , Ana Maria. “Ruptura e
arte concreta”. In: Aracy Amaral (org.).
Arte construtiva no Brasil − Coleção Adolpho
Leirner. São Paulo, Museu de Arte Moderna,
1998, p. 116.
16 BILL , Max. “The mathematical approach
in contemporary art” [1949]. In: Tomás
Maldonado. Max Bill. Buenos Aires, Nueva
Visión, 1955, p. 37.
17 Art Concret, no 1, Paris, 1930.
18 BRUNSCHVIGG , L. Les étapes de
la philosophie mathématique.
Paris: A. Blanchard, 1993.
19 BADIOU , Alain. Number and
Numbers (1990). Trad. Robin Mackay.
Cambridge: Polity, 2009, p. 13.
inteiramente concebida no espírito antes de sua execução”.17 Em São Paulo, Waldemar Cordeiro espelha e refina essa posição ao reivindicar, no “Manifesto Ruptura”
(1952), uma arte que opere como “um meio de conhecimento dedutível de conceitos, situando-a acima da opinião, exigindo para o seu juízo o conhecimento prévio”.
A reivindicação do “Manifesto Ruptura” por uma transparência matemática da forma
resvalou em alguns concretistas para o desenho pintado, a operação mecânica de
leis da percepção nos termos da Gestalt e os efeitos ilusionísticos sedutores da Op
arte isto é, a pré-visualização se perde em previsibilidade. No caso de Ascânio, a
matemática, ainda que determinante, estava a serviço de relações oriundas da linguagem da arquitetura, a partir da qual grande parte de sua produção se desenvolveu. Lapidar o cristal construtivo é organizar o módulo numa ordem para além
da mecânica da percepção segundo a Gestalt e da utilidade para o monumento arquitetônico. Desde cedo, Ascânio rejeita os efeitos óticos mecanicistas em favor da
fenomenologia da percepção. Na fresta entre esses dois limites, resplende o cristal,
mas a noção de corpus solidum, mesmo se não descartada, deve, no entanto, dar
lugar a um corpo em trânsito visual. Se a arquitetura é espaço, como definiu Mário
Pedrosa, então tudo fica mais transparente, pois a escultura de Ascânio parece se
colocar como tempo, espaço e fenômeno de percepção.
A observação atenta da lógica escultórica de Ascânio notará que a matemática
sempre alimentou cogitações sobre a poética do Número em Ascânio. As reflexões
filosóficas de Alain Badiou contribuem para que se elucidem os sentidos da poética
do Número em Ascânio. Diferentemente de L. Brunschvigg em Les étapes de la philosophie mathématique, Badiou defende em O Número e os números a existência de uma
segunda modernidade da matemática, que trata do infinito, do zero e dos problemas
do Um.18, 19 A escultura promove passagens da tridimensionalidade dos módulos para
a dimensão planar operada pela percepção de dois fenômenos: a matemática e a luz.
Qualquer que seja a etapa de sua trajetória, a escultura de Ascânio sempre se
desenvolveu a partir de raízes na arquitetura, de cuja lógica, materiais, espaços e valores estéticos ela se alimenta. Portanto, para debater essa obra, uma metodologia
historiográfica rigorosa deve, necessariamente, dialogar também com a teoria da
arquitetura. Duas experiências de sua infância em Portugal devem ser aqui rememoradas: a Cangosta dos Godes, em Fão, e a casa de verão, em Ofir. O pensamento de Le
Corbusier estimulou em várias instâncias, e de maneira ampla e profunda, a agenda
da obra tridimensional de Ascânio. A noção da organicidade da arquitetura, a poética
da sensualidade articulada à racionalidade, a modulação e o dimensionamento humano da arquitetura, como no caso do Modulor, são alguns valores de Le Corbusier
admitidos na escultura de Ascânio. Alguns desenhos de 1969 parecem remeter aos
volumes projetados por Marcel Breuer para o edifício do Whitney Museum of Art,
inaugurado em 1966. Por outro lado, a força melódica do ritmo modular de certa escultura de Ascânio precede dialogicamente a arquitetura branca de Santiago
Calatrava. O próprio Ascânio rejeita a ideia de que possa ter marcado o espanhol,
pois acredita que sua obra não tenha tido circulação internacional que justificasse

tal impacto. O emprego do alumínio, assumido como o material da modernidade do
século XX, conduz as estruturas de Ascânio às teorias de Buckminster Fuller e à obra
construída de Mies van der Rohe. Pequenos gestos pouco racionalistas de amarrar
perfis de alumínio com arame evocam o modo de montar as estruturas de ferro do
cimento armado uma tecnologia decisiva para propiciar determinadas audácias
da arquitetura moderna brasileira. Talvez a pregnância dessa densa e elegante ativação do inconsciente arquitetônico na obra de Ascânio justifique, mais enfaticamente, que um arquiteto com o renome de Norman Foster tenha adquirido o relevo
Quadrados 19 (1968-2006) do brasileiro para sua coleção privada. Esse atravessamento do pensamento espacial arquitetônico na escultura além do fato de pertencerem à geração MAM e serem amigos íntimos de Lygia Pape é uma das razões
da afinidade da crítica de Lauro Cavalcanti com a produção de Ascânio.
Um livro marcou uma diferença para Ascânio e definiu o rumo de sua obra:
Candilis, Josic, Woods: una década de arquitectura y urbanismo.20 O texto sobre os três
arquitetos urbanistas europeus foi o mais radical estímulo para Ascânio pensar a relação escultura e arquitetura. Durante meses ele “namorou” o livro de Jürgen Joedicke,
folheando-o na banca do livreiro da FAU; até que pôde comprá-lo em dezembro
de 1968, pensando em sua escultura e não na arquitetura. A partir das imagens de
plantas baixas, plantas de elevação, maquetes e fotografias de edifícios construídos
apresentadas no livro, Ascânio passou a pensar alguns desenhos e esculturas. O contato gráfico com a produção urbanística de Candilis, Josic e Woods levou o escultor a
compreender a dimensão espacial da tridimensionalidade neoconcreta, e a invenção
de sua escultura passou definitivamente ao processo de metabolização de ideias arquitetônicas. A escultura de Ascânio, quando se pensa em certo viés social da arquitetura, está relacionada àquele “desamparo essencial” respondido por arquitetos de
seu interesse, como Affonso Eduardo Reidy e Carlos Nelson Ferreira dos Santos.21 Em
razão da estética e das soluções de engenharia que adotou no projeto do Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro, Reidy e não o Oscar Niemeyer da Pampulha e de
Brasília foi o arquiteto mais discutido entre os artistas plásticos cariocas da geração de Ascânio. Não só a escada do MAM subjaz à harmonia da escultura de Ascânio
e a seu modo de tensionar o barroco e o neoclássico, como a forma de alguns de
seus projetos de interesse social também foi conscientemente absorvida por Ascânio:
o Albergue da Boa Vontade, projeto que cruza a Bauhaus e o art déco, e o Conjunto
Habitacional do Pedregulho, ambos edificados no Rio de Janeiro.
Na FAU, Ascânio foi aluno de Mário Pedrosa, crítico que fincou as bases filosóficas
do neoconcretismo e que melhor compreendeu o fenômeno da arquitetura moderna
do Brasil. Além do mais, o olhar do estudante convergia para compreender melhor o
corpus arquitetônico do neconcretismo com a arquitetura incidente sobre Lygia Pape
(Livro da arquitetura), Lygia Clark (Construa você mesmo o seu espaço de viver, A casa
do poeta e Abrigo poético), Franz Weissmann (Torre e Ponte) e Hélio Oiticica (Núcleos e
Projeto cães de caça). Ferreira Gullar viu “o desamparo essencial” na obra de Amílcar de
Castro, de corte e dobra do plano em aço, pois trata-se da “condição da experiência

20 JOEDICKE , Jürgen. Candilis, Josic,
Woods: una década de arquitectura y
urbanismo. Trad. Juan-Eduardo Cirlot.
Barcelona, Editorial Gili, 1968.
21 Arquiteto e antropólogo, autor de
livros como A cidade como jogo de cartas
(1988) e Quando a rua vira casa (1981),
este com outros autores.
Sebastião Barbosa
Ateliê de Ascânio MMM na
rua Aureliano Portugal 165,
Rio Comprido, Rio de Janeiro, década
de 1980
Fotografia
22 “Arte neoconcreta: uma contribuição
brasileira”. In: Aracy Amaral (coord.). Projeto
construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio
de Janeiro, Museu de Arte Moderna, e São
Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977, p. 127.
23 BAKHTIN , Mikhail. “Arte e
responsabilidade” (1919). In: Mikhail Bakhtin,
Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra.
São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 33-34
24 Cf. George Rickey. Constructivism, origins
and evolution. New York, George Braziller,
1967, p. 146.
25 “O objeto”. Revista de Arquitetura e
Decoração. São Paulo, dezembro de 1956.
estética. Para o artista e para o espectador”. 22 Tais fatos indicam a fenomenologia de
Ascânio. Em 1983, ele e Ronaldo do Rego Macedo promoveram a mostra O olho do
guará, de Pape, no Centro Empresarial Rio. Naquela altura, Pape já ia avançada na
discussão da inteligência construtiva nas favelas, que usava como espaço de aula
para suas classes de arquitetura na Universidade de Santa Úrsula. A afinidade entre
Pape e Ascânio, que emergirá ao longo do ensaio, estava consolidada também em
torno da dimensão social da arquitetura num país como o Brasil.
O desamparo do ser clama por abrigo, função primordial da arquitetura da qual
a escultura de Ascânio, por sua imbricação com o urbanismo de ação social, nunca
se desprega. A linguagem, em visão heideggeriana, é o abrigo do ser. Por isso, na
perspectiva do espaço social de inserção da arquitetura, a obra de Ascânio frequentemente privilegiou a dimensão dialética da ideia de composição, que ele aprofundou
ao tomar contato, e comover-se, com trabalhos no campo da urbanização do Rio de
Janeiro para os quais foi levado por Carlos Nelson Ferreira dos Santos. Esse surpreendente sentido de responsabilidade social da escultura, que advém das práticas de
arquitetura de interesse social de Reidy e Carlos Nelson, aproxima-se do conceito de
“arquitetônica” em Bakhtin. Para Bakhtin, a ideia de responsabilidade é o que trama as
relações entre arte e vida,23 posição muito cara ao neoconcretismo e à Geração MAM
e à qual se justapõe a escultura-arquitetura de Ascânio a forma escultórica não se
desprega da imaginação arquitetônica e o objeto estético surge nesse processo. As
categorias arquitetônicas constituídas no corpus coeso de Ascânio vivem em diálogo
mútuo, pois um Livro-arquitetura não se aparta de obras tão díspares como os Flexos
e os Fitangulares. Toda sua obra é atravessada por um momento arquitetônico.
Por mais de quatro décadas, desde os primórdios de seus estudos de arte em 1963,
Ascânio MMM manteve uma produção consistente. Seu olhar se definiu por uma lógica arquitetônico-construtiva própria e que se lapidaria coerentemente como um
cristal. O desafio deste texto seria então compreender o modo como Ascânio é o lapidador do cristal. A sua produção ainda apresenta problemas de recepção e entendimento, mas isso não difere muito do que ocorre com a arte brasileira em temos gerais.
A imagem do cristal para referir a obra de Ascânio tem origem na maneira com
que a forma racional pura na arte foi descrita por Georges Vantongerloo, do grupo
De Stijl. Ao comentar a escultura topológica Fita de Moebius, de Max Bill, Vantongerloo a definiu como um “puro cristal”, mais que escultura.24 Esse modo de ver a arte
como construção sob um regime de razão pura da forma foi estritamente reiterado
por Waldemar Cordeiro ao afirmar que “o conteúdo da arte é um cristal. ‘Corpus solidum’, real e visível”. 25 Predominam a transparência e a estrutura de planos, como os
Bichos de Lygia Clark ou os Objetos espaciais de Hélio Oiticica. Essa lógica do cristalino na forma prevaleceu ao longo da maior parte da trajetória de Ascânio MMM, sofrendo uma deliberada pane e um embate em sua produção mais recente conforme
o modo como sua poética conduz a lógica. A obra coerente de Ascânio provou ser
cristal que não se arranha e muito menos admite trincar-se.
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ASCÂNIO MMM - ascanio mmm