Corpo | Escultura No fundo dos meus olhos vejo algo que vai tomando forma. Procuro os volumes e os negativos que aí possam surgir, nesse buraco negro que tudo contém e no qual me permito entrar. Mergulho então, no precipício do ser em busca da origem, da semente que possa germinar em mim, permitindo o rompimento do óvulo: útero inicial. Exploro o corpo, universo invertido para dentro, conhecedor da verdade, túmulo dos mistérios do mundo. Em ti, carne que és, posso descobrir a árvore que nasce da terra, a seiva que percorre a matéria e os ramos que crescem para cima, como a barriga que expande quando o ar libertador penetra na cavidade. Nesse mesmo vazio, ecoam as palavras de Carneiro, Alberto de primeiro nome, e escultor de primeira categoria, que me dizem para percorrer os leitos interiores da Árvore em mim1, perdendo-‐me no embalo do barco que navego e no qual atravesso oceanos sanguíneos que desaguam nesse mar de ruas e cafés / Com vagas de olhos a rolar / Que nem me viam no convés / Tão cegas no seu vogar / E assim fui na monção / Perdido na imensidão / Deparei com uma ilha / Uma pequena maravilha2. Vi então, que o cosmos se reflete no meu âmago, que o macro está contido no micro, que o micro espelha o macro e que o corpo é universo ele próprio. Sem barreiras, a matéria fluí entre o dentro e o fora; o braço de Serra que violentamente sacode o chumbo, transforma-‐se a pouco e pouco na fonte de onde o rio metálico nasce e que depois percorre esse leito menos orgânico que é a quina de uma sala. O escultor é o feiticeiro que conhece os segredos da matéria e que através da sua manipulação pode desvendar o conhecimento cósmico em si guardado. A magia está contida no dobrar do ferro, no escavar da madeira, no espalhar do gesso, na modelação do barro; ela está na verdade do material3. Sensorialmente, o cosmos é revelado ao artista da matéria, cujo corpo é o local operativo da revelação estética, da transformação do sujeito. Assim, vamos medindo o mundo à nossa passagem, fundindo-‐nos com a grande escultura que é o mundo, cujas dimensões se intersectam entre si, construindo um enorme texto tridimensional, tal qual a hélice que gira no interior das nossas células. Como o escultor que vai desbastando o excesso da pedra, também eu procuro descarnar a semente de mim, essa obra original onde a verdade está contida, esse Começo do mundo4. O meu corpo é a matéria da minha escultura e a minha escultura dá corpo ao que sou. Ele é um instrumento de trabalho que me permite organizar a matéria-‐prima no espaço, modelando a forma, numa ação 1 Alberto Carneiro, 2010-‐11, nogueira e castanheiro. 2 Rui Veloso, A Ilha. 3 Truth to materials, movimento modernista que defendia que o material do objeto artístico era o aspecto principal da obra e que, como tal, deveria ser respeitado técnica e plasticamente. 4 Beginning of the world, Brancusi, 1920, mármore. Rita Queiroga criadora idêntica àquela que a partir do barro criou o Homem. Se modelo esse mesmo barro é porque desejo desvendar, desventrar, despojar. Procura constante pela libertação: -‐-‐ Salvé Michelangelo, pelos teus Prisioneiros5! Ensinaste-‐me a colher o caroço da maçã, pérola contida na efémera polpa da fruta. Por isto, eu agradeço-‐ te. O ritmo da viagem começa agora a diminuir. Depois da fusão do corpo-‐ meu, com o corpo-‐escultura, com o corpo-‐universo, O Corpo transforma-‐se agora numa grande escultura, cuja matéria foi sendo modelada, escavada, lixada rebarbada, perfurada, soldada, estirada, dobrada . . . tantas quantas as ações necessárias para a revelação do essencial, da síntese que me define. Lentamente, retorno desse buraco negro por detrás do fundo dos meu olhos, regresso desse universo particular onde as estrelas do céu brilham em cada átomo de mim; regresso da viagem ao som de Lucy in the sky with diamonds6. 5 1505-‐36, mármore. 6 The Beatles, 1967. Rita Queiroga