Departamento de Direito
DIREITOS HUMANOS E SEU NÃO-LUGAR: O CÁRCERE E SUAS
RELAÇÕES DE PODER E VULNERABILIDADE
Aluna: Maíra Miranda Fattorelli
Orientadora: Bethania Assy
Introdução
Na perspectiva dos direitos humanos, de seu avanço e consolidação na agenda do direito
internacional, questiona-se sua legitimidade, seus limites e sua incidência no cárcere.
Compreendendo o presídio como um instrumento de repressão social, como concebido por
Michel Foucault, questionamos as violações de direitos quotidianamente nele atestadas e a
legitimidade deste instituto enquanto mecanismo punitivo estatal compatível com um Estado
Democrático de Direito. A partir da caracterização foucaultiana da penitenciária enquanto
locus da ausência de direito real e da constatação da incompatibilidade dos locais de privação
de liberdade com a nossa estrutura normativa vigente, identificamos o cumprimento de pena
nos respectivos institutos como um ato capaz de violar direitos humanos fundamentais e
contrariar toda a lógica protetiva dos direitos constitucional e internacional.
A estrutura punitiva em questão desponta, neste contexto, como elemento atentatório a
um real regime democrático, uma vez que consagra a existência de uma massa carcerária que
pode ser inserida no conceito de estado de exceção, analisado por Giorgio Agamben. No
cárcere, a norma jurídica parece excepcionar-se na medida em que este deixa de ser um
simples lugar de reclusão, passando a representar uma instituição onde há a criação de uma
normativa de fato, que se constitui na violência e na afirmação da condição de vulnerabilidade
do detento. Deste modo, a normativa jurídica vigente é afastada em prol de um não-direito,
atestado na violação de garantias fundamentais.
Os sujeitos que habitam os presídios, identificados por Raúl Zaffaroni na figura do
inimigo, são analisados, na perspectiva do autor argentino, a partir da noção de ente perigoso
que possui condição de pessoa negada pelo direito. Neste contexto, o presente trabalho coloca
em pauta nosso modelo seletivista penal e analisa os desdobramentos que este evidencia,
perpassando as relações de poder a ele circunscritas e o entrave à democracia que nossos
presídios hoje representam.
Objetivos
O objetivo central do trabalho, inserido no percurso da pesquisa sobre fundamentação
teórica dos direitos humanos, consiste no avanço dos estudos e leituras no campo da filosofia
do direito. Tem-se como fim a construção de uma abordagem crítica e emancipatória do
direito, a partir do contato com autores não apenas jurídicos, mas também das ciências
sociais. Pretende-se, deste modo, uma análise comprometida com a realidade, preocupada
com o real papel dos direitos humanos na sociedade atual e com seu desafio de mudança.
Metodologia
O desenvolvimento da pesquisa teve como base a leitura de textos e confecção de seus
respectivos fichamentos. O processo foi realizado a partir de encontros para direcionamento e
debate, que permitiram a sistematização da temática do cárcere partindo da órbita dos direitos
humanos e de seus paradoxos. Paralelamente, o projeto inclui o auxílio na manutenção do
Arquivo Hannah Arendt e sua disponibilização para o público.
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I - Perspectiva histórica do cárcere
O nascimento dos estabelecimentos prisionais, historicamente associado ao abandono
das penas cruéis, marca um suposto processo de humanização das penas. Na passagem do
século XVIII para o XIX, as penas de açoite, de morte e de destruição de corpos, traduzidas
pela violência e pela lógica do espetáculo, foram substituídas pela pena de detenção. Esta
desponta, no contexto da Revolução Industrial, como a “pena das sociedades civilizadas”1 e a
até então brutalização assistida em praça pública concede lugar a um novo modo de punição,
supostamente mais humano e igualitário. Como adverte Michel Foucault, a prisão “marca um
momento importante na história da justiça penal: seu acesso à ‘humanidade’2”.
Tendo como base a liberdade inerente a cada indivíduo, principal bem jurídico da
sociedade capitalista industrial, a prisão surge como o local para o cumprimento da pena
proporcional e adequada, quantificada em dias-salário, com exata conotação temporal e
econômica. Em virtude de sua clareza jurídica, a pena privativa de liberdade passa a compor o
centro do sistema penal. Assim, ainda de acordo com Foucault: “Como não seria a prisão a
pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é o bem que pertence a todos da
mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento “universal e constante”?”3.
A liberdade passa, nesse contexto, a ser restringida em resposta à realização de um
delito, sendo este compreendido a partir da teoria contratualista, que entende o crime como
uma violação ao pacto social. Encontra-se em tela uma correlação entre a liberdade individual
e a responsabilidade individual, regrada pelo contrato, que elenca a pena como o método a
coibir a liberdade individual transgressora. Deste modo, conforme dispõe Paulo Vieira
Abramovay, é firmado o dogma, ainda hoje presente, da pena enquanto solução para a
conflitividade social. Nas palavras do autor: “A consciência de que cada indivíduo é livre e,
portanto, responsável pelos seus atos constitui o arcabouço teórico pelo qual a pena, por si só,
consegue criar um desestimulo em cada indivíduo, inibindo-o a cometer delitos” 4.
O presídio, no entanto, longe de humanizar, foi atestado, desde sua concepção, como
um mecanismo de controle, impulsionado por um modelo econômico ganancioso, que visava
o aproveitamento dos detentos, em prol de uma expressão lucrativa da privação da liberdade,
e, principalmente, do esvaziamento político de seus internos. Nesta perspectiva, o cárcere
encontra-se inserido na análise de Foucault sobre a biopolítica do poder, podendo esta ser
traduzida como a intervenção estatal na vida dos homens em favor da criação de corpos
economicamente relevantes, refletindo, nos termos do autor, o “poder de gerir a vida humana
para torná-la útil e produtiva”5. Assim sendo, a instituição carcerária, ao invés de representar
uma democratização da pena, ergue-se, ainda que inicialmente de forma mascarada, como
uma expressão da dominação própria da sociedade disciplinar.
Associada à pena, está a atividade laboral, que tem como fim a construção de
indivíduos-máquinas, com comportamentos controlados. A utilidade do trabalho penal,
ressalta Foucault: “não é o lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a
construção de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema
individual e de seu ajustamento a um aparelho de reprodução”6. Trata-se, conforme se
depreende, de uma modalidade de controle que uniformiza e dissolve capacidades políticas. O
propósito central do cárcere, ao lado da utilização econômica e proveitosa dos apenados, é a
construção de uma relação de controle na qual os detentos se neutralizam, desincorporando
1
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 218.
Ibid., p. 217.
3
Ibid., p. 219.
4
ABRAMOVAY, Pedro Vieira. O grande encarceramento como produto da ideologia (neo)liberal. In: Depois
do Grande Encarceramento. Rio de Janeiro: Editora Revan , p. 14.
5
SCHETTINI, Andrea. A era do biopoder e o discurso dos direitos humanos. PUC-Rio, p. 44.
6
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 230.
2
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subjetividades e articulações político-sociais, em nome da criação de uma figura anêmica,
preordenada, tornada facilmente alvo do controle dominante.
Neste cenário, a disciplina carcerária, exercida por meio da vigilância hierárquica, é
atestada de forma sistêmica, sendo produzida tanto pelos guardas, quanto pelos detentos, em
relações verticais e horizontais, que permitem a apuração de todos os comportamentos e uma
transformação dos indivíduos apenados. De acordo com Foucault: “A disciplina faz
“funcionar” um poder relacional que se autossustenta por seus próprios mecanismos e
substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados”7.
A figura arquitetônica do panóptico insere-se no contexto disciplinar fazendo com que
este seja constante e internalizado. O presídio, construído de modo que a vigilância possa ser
permanentemente possível, produz nos seus internos um "estado consciente e permanente de
visibilidade”8, que é utilizado como mecanismo primário de poder. Os próprios internos, ao
encontrarem-se submetidos à exposição, atuam repreendendo-se e automaticamente
adestrando-se ao controle que externamente é a eles imposto.
O fundamento social do presídio, entretanto, ao lado do conceito de pena privativa de
liberdade, encontra-se, desde a sua concepção, imerso em crises e obsoletismos. O dogma na
pena e o propósito teórico do presídio enquanto mecanismo ressocializador, representam
apenas a fachada de uma sólida construção por dominação, permeada por relações de poderes
fundadas na desqualificação política do indivíduo encarcerado. Deste modo, conforme atesta
Michel Foucault, “o fracasso da prisão foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo que o
seu próprio projeto. Desde 1820, constata-se que a prisão, longe de transformar os criminosos
em pessoas honestas, só serve para fabricar novos criminosos, ou para enterrar ainda mais os
criminosos na criminalidade”9.
Com isso, atesta-se que a permanência da pena privativa de liberdade em nosso
sistema penal, ocupando o papel da solução ideal para a contenção criminal, apenas reproduz
e intensifica um instrumento de repressão social capaz de dissolver subjetividades e de
marginalizar aqueles elencados como criminosos. Ainda que consensualmente perigosa e
inútil10, a prisão continua exercendo uma modulação de corpos e uma regulação de forças. O
instituto que emergiu, nas palavras de Nilo Batista, para “criminalizar a pobreza, a vadiagem
e as greves”11, ainda hoje tem sua capacidade de marginalização explorada. Esta, contudo,
reflete, conforme aponta Foucault, apenas uma das expressões do cárcere, sendo este
evidenciado, prioritariamente, como instituição central da sociedade disciplinar:
(A)s noções de instituição de repressão, de eliminação, de exclusão, de marginalização, não
são adequadas para descrever, no próprio centro da cidade carcerária, a formação das
atenuações insidiosas, das maldades pouco confessáveis, das pequenas espertezas, dos
procedimentos calculados, das técnicas, das “ciências”, enfim, que permitem a fabricação do
indivíduo disciplinar (FOUCAULT, Michel, 1977, p. 291).
O presídio é, nesse contexto, elencado como o locus próprio do criminoso, do
desviante, daquele que rompe com o pacto social e que precisa ser controlado e
permanentemente vigiado. Sua estrutura, formulada de modo a intensificar as relações de
poder, permite que dentro do cárcere uma normativa própria, pautada na correção e na
violência, seja formulada e institucionalmente admitida, em nome da segurança da sociedade.
7
Ibid., p. 170.
Ibid., p. 172.
9
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 162.
10
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 218.
11
BATISTA, Nilo. Entrevista publicada na Revista Poli n. 29. Disponível em:
http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=67. Acesso em: 20/07/14.
8
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II – A justificação carcerária e o postulado da segurança pública
A segurança pública, inserida nos discursos de lei e ordem que frequentemente passam
a vigorar nos períodos pós ditatoriais, ocupa espaço central na legitimação do cárcere.
Estimulada pelas exposições midiáticas, a segurança passa a receber status de valor
supremo12, sendo este colocado, muitas vezes, acima de direitos e garantias fundamentais. Em
seu nome, toda a dominação e as relações de força e de subordinação atestadas no ambiente
carcerário são toleradas e, por vezes, desejadas por parte da sociedade.
Para assegurar a ordem pública, os criminosos devem ser afastados e encarcerados,
devem ser disciplinados e reformulados, para que, apenas depois da constatação de sua
alteração, possam ser considerados aptos a regressar ao convívio social. Temos, assim, a
segurança figurando como paradigma de governo, como uma construção social que autoriza a
legitimação da desordem fática em nome de uma ordem ideal. Esta, no entanto, despontando
como a justificativa de nosso sistema repressor penal, apenas reafirma relações de poder
historicamente produzidas e consolidadas. O referido contexto, que impulsiona a privação da
liberdade, é retratado pelos autores Maria Lucia Karan e Sacha Darke:
A expansão do poder punitivo, tendência registrada globalmente desde as últimas décadas do
século XX, alimentando-se das totalitárias propostas de troca da liberdade por segurança, das
danosas ideias que colocam a ordem acima da dignidade e das vidas de seres humanos; dos
perversos, inúteis e autodestrutivos desejos de vingança; das nocivas ilusões acerca da pena,
vem submetendo mais e mais indivíduos à privação de liberdade, sempre atingindo de forma
preferencial os pobres, os marginalizados, os desprovidos de poder, como é da regra do
sistema penal (DARKE, Sacha e KARAM, Maria Lucia, 2012, p. 405).
Assistimos, então, à substituição da liberdade em prol da segurança e da dignidade em
prol da ordem, em um espetáculo social confeccionado de modo a dar conta do medo
produzido pelas agências de comunicação, que forjam a assimilação entre o criminoso e a
desestruturação social. Conforme indica o autor Loïc Wacquant, a segurança pública é
executada com o intuito de ser exibida, teatralizada, promovendo o discurso da ordem e a
ânsia social pela repressão criminal. Nos termos do autor:
(A) nova gestão da lei-e-ordem transforma a luta contra o crime em um titilante teatro
burocrático-midiático que, simultaneamente, sacia e alimenta os fantasmas da ordem do
eleitorado, reafirma a autoridade do Estado através de sua linguagem e de sua mímica viris, e
erige a prisão como o último baluarte contra as desordens, que, irrompendo de seus porões,
são vistas como capazes de ameaçar os próprios fundamentos da sociedade (WACQUANT,
Loïc, 2007, p. 11).
O cárcere é erguido, no contexto da segurança, como o instituto capaz de reafirmar o
autoritarismo estatal que, apostando na pena em detrimento de investimentos sociais, desloca
e domina o criminoso, impondo a ele um cenário constituído em desproporcionais relações de
poder. Ainda nas palavras de Wacquant: “A prisão simboliza divisões materiais e materializa
relações de poder simbólico; sua operação reúne desigualdade e identidade, funde dominação
e significação, e conecta as paixões e os interesses que perpassam a sociedade”13.
Deste modo, temos agregado ao valor da segurança pública uma lógica encarceradora,
que se propõe a isolar o criminoso, aquele que concentra a definição de desordem. No cárcere,
violações de direitos humanos são institucionalizadas, dentro do propósito correcional, e
aceitas, uma vez que destinadas ao “outro”, que rompeu com a identidade social.
12
13
LOPES, Juliana. Letalidade seletiva e exceção: a política de segurança pública do Rio de janeiro, p. 44.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 16.
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III - O cárcere como local por excelência de violações de direitos humanos
Despontando o presídio como o local próprio do “outro”, daquele que rompe com o
pacto e que instaura a desordem social, nele são atestadas as mais severas violações de
direitos fundamentais, sem que estas importem em um maior questionamento acerca de seus
efeitos ou significações. Nossa estrutura hegemônica de proteção dos direitos humanos e
nosso Estado Democrático de Direito não parecem, a priori, serem abalados pelas violações
atestadas quotidianamente no cárcere. Afinal, estas fariam parte da lógica impulsionada pelo
paradigma da segurança pública, que se proporia à dominação e reformulação subjetiva
daqueles indivíduos considerados, pelo sistema penal, criminosos e ameaçadores da ordem.
Presenciamos o triunfo da era dos direitos humanos, inaugurada com o final da II
Guerra Mundial, acompanhada pela consciência humanitária e pela efervescente formulação
de tratados e convenções internacionais de direitos humanos. Ao lado deste movimento
institucionalmente reconhecido encontramos, no entanto, situações fáticas capazes de
colocarem em colapso a teoria humanística formalmente concebida. As normas de direitos
humanos, conforme alerta o autor Costas Douzinas, possuem paradoxos circunscritos à seu
teor, que permitem que os direitos humanos, concebidos enquanto elemento de crítica e
emancipação do homem, sejam utilizados para reafirmar relações de força e dominação para
as quais inicialmente se proporiam a atacar. Deste modo, nas palavras do autor:
O humanismo jurídico postulou o homem como o autor e o fim da lei e culminou na ideia dos
direitos humanos. Mas, quando os direitos humanos minam a distinção entre o real e o ideal,
eles se transformam no alicerce do historicismo moderno. Ao contrário de construir uma
defesa contra o Estado e o positivismo jurídico, eles acabam virando aliados do positivismo,
incapazes de oferecer um padrão de crítica e totalmente inadequados em sua proclamada tarefa
de defender o indivíduo solitário contra as exigências do Soberano todo-poderoso, ele próprio
apresentado na forma de uma entidade supra-individual com seus desejos, direitos e poderes
(DOUZINAS, Costas, 2009, p. 250).
O sujeito abstrato encontrado na normativa de proteção dos direitos humanos, na
medida em que representa uma indeterminação inalcançável, distancia-se dos sujeitos
concretos que necessitam seus postulados. Ainda nos termos de Douzinas: “O sujeito jurídico,
o conceito-chave sem o qual os direitos não podem existir, é, por definição, altamente
abstrato, uma estrutura ou esqueleto que será preenchido com a carne fraca dos deveres e o
sangue desbotado dos direitos. A metafísica jurídica não tem tempo para a dor das pessoas
reais”14. Esta indeterminação pressupõe a inexistência de um sentido único e pré-fixado para o
“humano” dos direitos humanos. Assim sendo, podendo no plano teórico alcançar a todos,
eles podem, também, acabar por não proteger aqueles que por eles clamam. Seguindo com o
autor: “a palavra ‘humano’ é vazia de sentido e pode ser atrelada a um número infinito de
significados. Com isso, ela não pode ser total e finalmente identificada com nenhuma
concepção particular, pois transcende e sobredetermina todas elas”15.
Compreende-se, nestes termos, que os direitos humanos podem deixar de alcançar este
“outro” encarcerado, figurando apenas no plano normativo e sendo utilizados como estratégia
de governo para manutenção da estrutura de violações de direitos atestadas no cárcere. Como
consequência, uma latente contradição teórico-concreta não pode deixar de ser evidenciada,
contradição esta que coloca em xeque nossa definição de sociedade intitulada democrática e
protetora dos direitos fundamentais. O arcabouço teórico de proteção ao homem, conquistado
com o suor das revoluções, é, assim, desafiado e clama pela identificação da real implicação
que a tolerância às violações de direitos humanos podem nos custar.
14
15
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 248.
Ibid., p. 262.
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Recentes dados do Conselho Nacional de Justiça demonstram que a população
carcerária brasileira, a quarta maior do mundo, conta com um total de 567.655 pessoas, que
disputam por espaço, por colchões e por dignidade, na medida em que nosso sistema tem
capacidade para abrigar apenas 357.219 de nossos apenados, o que representa um déficit de
210.436 vagas 16 . Com esta realidade, notamos um sistema penal inchado, superlotado,
caracterizado por uma massa encarcerada fadada às carências mais generalizadas, atestadas
nos âmbitos social, jurídico, estrutural e emocional, que repercutem em todos os aspectos da
subjetividade e acentuam as noções de controle e de dominação enunciadas por Foucault.
A superpopulação repercute na individualidade, no comprometimento da privacidade e
faz com que relatos como o de Sacha Darke - que evidenciou 100 internos em um dormitório
de 25 metros², onde eles apenas podiam dormir sentados, encostados uns aos outros, em
temperatura que podia superar os 50° C 17 - se tornem cada vez mais presentes. As precárias
condições carcerárias são responsáveis, ao lado da lotação, pela inviabilidade da vida digna
centro do cárcere, conforme demonstram os autores Maria Lucia Karan e Sacha Darke:
Danos e dores são inerentes à privação da liberdade: a limitação do espaço, a impossibilidade
de ir a outros lugares, de buscar e estar com quem se deseja; o isolamento, a separação, a
distância do meio familiar e social; a perda de contato com experiências normais de vida; a
falta de ar, de sol, de luz; a promiscuidade dos alojamentos; a precariedade das condições
sanitárias; a falta de higiene; a alimentação muitas vezes deteriorada; a convivência forçada; a
disciplina e a submissão; a vigilância permanente; os regulamentos que devem ser obedecidos
sem explicações nem possibilidades de questionamento; o sistema de regalias que transforma
direitos em recompensas por comportamentos tidos como bons (DARKE, Sacha e KARAM,
Maria Lucia, 2012, p. 406/407).
A consequência do referido cenário é a constatação de que nossa população
encarcerada desconhece garantias fundamentais e direitos humanos. Para esta parcela social,
os referidos direitos apenas apresentam sua face negativa, evidenciada na ausência. Nos
termos de Foucault, as condições materiais dos presídios não demonstram sua pior dimensão;
ao lado das repressões, do amontoado, do tédio e da fome, o elemento mais importante
demonstrado no cárcere é a negação de todo direito real18.
Um processo de acentuada vulnerabilidade é, deste modo, firmado sobre os detentos.
Estes, usualmente tratados como seres com humanidade reduzida, como o excedente de uma
sociedade que se diz protetora e democrática, sofrem com a violação de seus direitos mais
tênues, sem que este processo incomode ou produza repercussões efetivas para além dos
muros do presídio. Seguindo as proposições de Michel Foucault, temos a condição do
condenado traduzida na expressão “Cidadão, ele está nu diante da justiça. Prisioneiro, ele não
pode fazer admitir o que lhe resta de direitos”19.
A realidade de algumas penitenciárias brasileiras, como a denominada Urso Branco,
localizada em Rondônia, e a denominada Professor Aníbal Bruno, de Pernambuco, revela
ainda um contexto de violência sistêmica, com acentuado número de mortes e casos de
tortura, que fizeram com que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tentasse intervir
nas instituições, decretando medidas provisórias em favor de seus internos20.
16
CNJ. Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil, de junho de 2014. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf. Acesso em: 21/07/14.
17
DARKE, Sacha e KARAM, Maria Lucia. Administrando o cotidiano da prisão no Brasil. In: Discursos
Sediciosos, Ano 17. Números 19-20. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012, p. 406.
18
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 9.
19
Ibid., p. 11.
20
Corte IDH. Medida Provisória Urso Branco e Medida Provisória Complexo Penitenciário de Curado.
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/medidas-provisionales. Acesso em: 21/07/2014.
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Em Urso Branco, foi evidenciada a morte de oitenta e sete detentos, entre 2002 e
2006, enquanto que em Aníbal Bruno sessenta e um internos faleceram, desde 2008. Os
referidos números, apesentados perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, ao
lado do levantamento realizado pela Folha de São Paulo, que atestou que no ano de 2013
houve uma média de uma morte a cada dois dias em nossas prisões21, são a expressão máxima
da absoluta negação da vida e da dignidade nos presídios brasileiros, representando
verdadeiras chacinas de indivíduos que encontram-se sob os cuidados estatais.
IV - Violações carcerárias como óbice à ordem democrática
Apesar de termos conquistado a passagem para a democracia, após duros anos de
repressão ditatorial, ainda sofremos com roncos próprios de uma sociedade sitiada. Nosso
sistema penal continua reproduzindo práticas dos períodos de chumbo, que nos dias atuais
permanecem se acentuando e se reinventando. Tendo em vista que a partir de 1988 temos
mais mortes contabilizadas por parte de nossa polícia do que no período entre 1964 e 198522,
não parece árduo o questionamento acerca da legitimidade da nossa ordem democrática.
Nossos presídios, ao representarem o local por excelência de violações de direitos
humanos e de abandono de corpos, em um nicho situado além da proteção dos direitos
constitucional e internacional, despontam como um verdadeiro entrave para um alcance pleno
de um Estado Democrático de Direito. Ainda que seja notória a inadequação entre nossos
estabelecimentos prisionais e a Lei de Execução Penal, e ainda que os relatórios de
monitoramento carcerário apontem unanimemente a incompatibilidade do cárcere com o
fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, nossos juízes permanecem
condenando diariamente dezenas de pessoas ao cumprimento de pena privativa de liberdade.
No entanto, não é contabilizado na fixação da pena o reflexo que esta invariavelmente
imporá ao condenado. A privação da liberdade em nosso sistema carcerário representa, para
além do cumprimento de uma pena de prisão, a negação de direitos fundamentais e a outorga
estatal para com esta violação. Nossos juízes, legisladores e administradores se tornam
corresponsáveis, ao admitirem a manutenção da estrutura carcerária tal como hoje ela se
apresenta, por todas as violações de direitos nela perpetradas.
Conforme afirma Nilo Batista, "muita pena sinaliza pouco oxigênio democrático,
sinaliza autoritarismo”23. E as penas, ao associarem-se à violência e à repressão, nos remetem
à ditadura e nos fazem presenciar, nas palavras de João Ricardo Dornelles, “um passado
obscuro que reaparece no presente”24. Trata-se, pois, da inevitável conclusão de que nosso
“Estado Democrático de Direito não passa de um verniz (…) que não chega ao Brasil
profundo” 25 . Ao tolerarmos e institucionalizarmos a violência para com o “outro”, o
criminoso, nos inserimos no contexto latino-americano de um conturbado processo de justiça
transacional. Nossa máquina estatal apresenta-se, principalmente do ponto de vista penal,
mergulhada em um duplo regime, que mistura teoria democrática com prática ditatorial.
Os postulados cidadãos não alcançam os marginalizados e os encarcerados, fadados a
uma não-cidadania, que guarda caracteres próprios de nosso regime militar. Nossa massa
carcerária, que a cada dia alcança números mais exorbitantes, desconhece, diante disso, a
21
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1395204-prisoes-brasileiras- registram-umamorte-a-cada-dois-dias.shtml. Acesso em: 21/07/14.
22
Relatório Human Rights Watch. Disponível em: http://www.hrw.org/sites/default/files/reports/brazil1209pt
webwcover.pdf. Acesso em: 21/07/14.
23
BATISTA,
Nilo.
Entrevista
publicada
na
Revista
Poli
n.
29.
Disponível
em:
http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=67. Acesso em: 20/07/14.
24
DORNELLES, João Ricardo W. Direitos humanos, violência e barbárie no Brasil: uma ponte entre o passado
e o presente. In: Direitos humanos: justiça, verdade e memória. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2012, p. 435.
25
ALMEIDA, Angela. Estado autoritário e violência institucional. In: Discursos sediciosos, p. 481.
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experiência da democracia e da dignidade, e convive apenas com as normas vigentes no
bolsão de exceção em que o Estado parece querer escondê-la.
V - O sujeito encarcerado como o inimigo do direito penal
O processo de encarceramento e de negação de direitos fundamentais historicamente
recai sobre uma parcela específica da população: o inimigo do direito penal. Trata-se de um
conceito aberto, que ao longo de nossa conjuntura histórico-política vem sendo preenchido
com diferentes grupos, como os capoeiras, os subversivos políticos ou os manifestantes. Em
todos os casos, como critérios de seleção temos a classe social e a cor da pele.
A construção da figura do inimigo é realizada com o auxílio dos meios de
comunicação em massa, e tem como fundamento a criação das condições necessárias para o
direito penal exercer seu propósito central, qual seja, atuar como mecanismo de controle
social. Indicam Nilo Batista e Eugenio Zaffaroni que “o estereótipo criminal se compõe de
caracteres que correspondem a pessoas em posição social desvantajosa”26.
Dentre elas, despontam os negros, que desde o sórdido período de escravidão
permanecem como principal alvo da persecução penal. Nas palavras de Maurício Dieter, os
negros “Como escravos no Brasil Imperial ou marginalizados no Brasil contemporâneo,
seguem sendo as principais vítimas da seletividade penal, que tem por objetivo manter a
estrutura de classes”27. Neste sentido, temos um levantamento realizado pelo Ministério da
Justiça, no ano de 2012, que demonstrou que a população carcerária do estado do Rio de
Janeiro é composta 67,79% de negros e pardos, em detrimento de 25,41% de brancos28.
Em desfavor do inimigo a sociedade suporta, e por vezes até mesmo clama, a ausência
dos direitos humanos. Contra ele a marginalização é desejada e o processo de redução de
humanidade naturalizado. Conforme preleciona Zaffaroni: “A essência do tratamento
diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de
pessoa”29. O anseio por segurança pública trás consigo a noção de que seu alcance depende do
isolamento e da reformulação daqueles que desvirtuam a ordem.
Os internos de nosso sistema penitenciário, nesta ótica, são inimigos, em prejuízo de
pessoas. Para eles não se adequam as garantias constitucionais e a “civilização” da sociedade
contemporânea. Ainda nos dizeres de Zaffaroni: “Esses seres humanos são assinalados como
inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de ter suas infrações
sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito
internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente”30.
Constata-se que a norma abstrata dos direitos humanos não vigora no meio carcerário.
O “humano” dos direitos humanos parece adstrito àqueles que ocupam as mais altas classes
econômicas. Para os encarcerados é reservada uma normativa de fato, que nasce e se
consolida dentro dos limites do presídio. Trata-se de um direito concreto, e não abstrato,
pautado na violência e nas relações de poder intrínsecas ao meio penitenciário.
Diante da ausência do direito positivo nos liames do cárcere, compreendemos que este
deixa de ser um simples espaço de reclusão e, na medida em que passa a ser regido por uma
norma própria, constituída nas vias de fato, insere-se no conceito de estado de exceção
desenvolvido por Giorgio Agamben. De acordo com o autor, no estado de exceção a norma
26
BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 46.
SODRÉ, Nelson apud DIETER, Maurício Stegemann. Sistema econômico e tutela penal do escravo no Brasil
Imperial. In: Discursos Sediciosos. Ano 17. Números 19-20. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 635.
28
Disponível
em:
http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B622166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BD5DDC2F4-E1D6-4D96-B63EFDE0AA43CC61%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D. Acesso em:
20/07/14.
29
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 18.
30
Ibid., p. 11.
27
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jurídica encontra-se suspensa, por decisão do soberano, para que o ordenamento jurídico seja
resguardado. Trata-se de uma exclusão, atestada para que a integridade da norma positiva não
venha a ser abalada. Assim, no estado de exceção encontramos a vigência da norma jurídica
por meio da determinação de sua não incidência. Nas palavras de Agamben:
A exceção é, no direito, um elemento que transcende o direito positivo, na forma da sua
suspensão. (….) A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído
da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não
está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém
em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se,
retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a
situação que resulta da sua suspensão (AGAMBEN, Giorgio, 2002, p. 25).
Embora o autor utilize o campo de concentração como o locus da exceção, o cárcere,
ao se apresentar como o local por excelência de violações de direitos humanos, de negação de
garantias fundamentais e da criação de uma normativa de fato - baseada na violência e na
incompatibilidade com o ordenamento jurídico -, que rege as relações intramuros, parece
inquestionável que o nosso sistema penitenciário também figure como um bolsão de exceção.
Ao delinearmos o encarcerado como o inimigo, esvaziarmos suas subjetividades e
reduzirmos seu potencial político - por meio de sua inserção no alvo do controle penal e nas
relações de dominação e poder que permeiam o cárcere - e, ainda, ao admitirmos sua morte e
tortura, inserimos estes sujeitos no conceito de homo sacer, aquele que vive a vida nua,
caracterizada por sua absoluta matabilidade.
Acerca da vida nua, indica Agamben que esta é “a vida matável e sacrificável do homo
31
sacer” . Ainda de acordo com o autor, a compreensão acerca do projeto institucional de
governo que impulsiona a morte, a exclusão e a vulnerabilidade de nosso inimigo penal, faz
com que a essência da vida nua se alastre à toda uma gama social estigmatizada que, via de
regra, segue os mesmos moldes desenvolvimentistas de toda América Latina. Neste sentido,
temos que “O projeto democrático-capitalista de eliminar as classes pobres, hoje em dia,
através do desenvolvimento, não somente reproduz em seu próprio interior o povo dos
excluídos, mas transforma em vida nua todas as populações do Terceiro Mundo”32.
Privados de liberdade, de direitos e de valor, aqueles que compõem nossa crescente
massa carcerária recebem, junto com a punição penal, a tolerância da sociedade para com a
violação de seus direitos e a autorização para que o Estado lhes subtraia parte de suas
humanidades, reduzindo-os e pulverizando, a cada brutalidade, suas subjetividades.
O sistema penitenciário brasileiro, permeado de violência, de carências estruturais, de
mortes e de torturas, hoje representa uma afronta à democracia e aos avanços jurídicos no
campo dos direitos humanos. Cada nova condenação à pena privativa de liberdade tem o
condão de ameaçar nossa base constitucional e de abalar o tão almejado Estado Democrático
de Direito. Resgatemos, então, os dizeres de Foucault acerca da prisão: “o intolerável,
imposto pela força e pelo silêncio, deve cessar de ser aceito”33.
31
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 16.
Ibid., p. 175.
33
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 4.
32
Departamento de Direito
Conclusão
Tendo os direitos humanos como norte, conclui-se pela necessária alteração da
estrutura carcerária hoje vigente em nosso país, de modo a compatibilizá-la com os standards
internacionais de proteção do homem e, ainda, avançar no percurso da consolidação de uma
verdadeira democracia. Pautando-se na procura pela concretização de direitos, devemos
defender a reforma do modelo punitivista penitenciário como condição indispensável para
uma harmonização entre os direitos abstratamente cominados e seus referenciais práticos.
A constatação de um cenário carcerário imerso em violações de direitos e redução de
pessoas, clama pela atuação baseada na mudança e na utopia. O número de mortes nos
presídios brasileiros e a consignação destes enquanto locais à parte em uma sociedade de
proteção e de garantia, requer a busca pela ampliação de direitos e a inclusão de territórios e
grupos sociais. Frente ao limbo que hoje representa nosso sistema penitenciário, se faz
necessário resgatar a utopia e a crença na transformação. Nas palavras de Douzinas:
Como a realidade é sempre incompleta e o presente prenho de possibilidades futuras, todo
realismo tem a utopia em seu centro. Utopia é o nome para o grande poder da imaginação que
encontra o futuro latente em cada produto cultural e preserva o cerne do entusiasmo radical em
toda ideologia que o critica (DOUZINAS, Costas, 2009, p. 189).
Reivindica-se, neste contexto, o real papel dos direitos humanos, traduzido em
potencial de crítica e emancipação, enquanto mecanismo capaz de atuar contra a dominação e
a estrutura de forças vigente. Seguindo os dizeres de Douzinas: “Os direitos humanos
constituem sua reivindicação de justiça e, como tal, são impossíveis e prospectivos. Os
direitos humanos são parasitas no corpo dos direitos, que julgam a seu hospedeiro”34.
Deste modo, compreendendo o discurso institucional que se funda na segurança
pública e na obsoleta crença na pena e na capacidade desta de, ao marginalizar e desumanizar,
ressocializar os denominados delinquentes e desviantes, necessário se faz buscar novos
caminhos, baseados em suporte social, em detrimento de repressão penal, de modo que as
violações de direitos humanos evidenciadas venham a ser corrigidas. Vera Malaguti Batista,
neste sentido, nos alerta para importância de desincharmos nossos presídios:
(P)recisamos pesar em como soltar mais, prender menos, acabar com os constrangimentos e
violências contra os familiares dos presos, favorecer a comunicação entre muros, em vez de
perseguir a incomunicabilidade, interromper o filicídio, essa matança de jovens pelo Estado e
a morte e o sofrimento dos que trabalham na segurança pública (BATISTI, Vera, 2010, p. 35).
Compreender o presídio como instrumento de repressão social 35 , um bolsão de
exclusão, um não-lugar no contexto de proteção dos direitos humanos leva-nos a propugnar a
insurgência contra o intolerável36, o anseio por transformações e o avanço na perspectiva do
homem enquanto elemento central em nosso ordenamento jurídico.
34
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 252.
Ibid., p. 9.
36
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 4.
35
Departamento de Direito
Referências
1 - AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002.
2 - ALMEIDA, Angela Mendes de. Estado autoritário e violência institucional. In: Discursos
Sediciosos, Ano 17. Números 19-20. Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro:
Editora Revan, 2012.
3 - BATISTA, Nilo. Entrevista publicada na Revista Poli n. 29, de julho e agosto de 2013.
Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=67. Acesso
em: 20/07/14.
4 - BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro, vol. I. Rio de Janeiro:
Revan, 2003.
5 - BATISTA, Vera Malaguti. Depois do grande encarceramento. In: BATISTA, Vera
Malaguti e ABRAMOVAY, Pedro Vieira. Depois do Grande Encarceramento. Rio de Janeiro:
Editora Revan, 2010.
6 - CNJ. Novo diagnostico de pessoas presas no Brasil, de junho de 2014. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf.
Acesso
em:
21/07/14.
7 – Corte Interamericana de Direitos Humanos. Medida Provisória Urso Branco e Medida
Provisória
Complexo
Penitenciário
de
Curado.
Disponível
em:
http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/medidas-provisionales. Acesso em: 21/07/2014.
8 - DARKE, Sacha e KARAM, Maria Lucia. Administrando o cotidiano da prisão no Brasil.
In: Discursos Sediciosos, Ano 17. Números 19-20. Instituto Carioca de Criminologia. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 2012.
9 - DORNELLES, João Ricardo W. Direitos humanos, violência e barbárie no Brasil: uma
ponte entre o passado e o presente. In: Direitos humanos: justiça, verdade e memória. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2012.
10 - DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Traduzido por Luzia Araújo. São
Leopoldo: Unisinos, 2009.
11 - FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV: Estratégia, poder-saber. Organizado por
Manoel Barros da Motta. Traduzido por Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.
12 - FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1977.
13 - LOPES, Juliana. Letalidade seletiva e exceção: a política de segurança pública do Rio de
janeiro. Dissertação de mestrado. Faculdade de direito: PUC-Rio, 2013.
14 - SCHETTINI, Andrea. A Era do Biopoder e o discurso dos direitos humanos: um olhar
genealógico a partir da obra de Michel Foucault. Dissertação de mestrado. Faculdade de
direito: PUC-Rio, 2013.
15 - SODRÉ, Nelson apud DIETER, Maurício Stegemann. Sistema econômico e tutela penal
do escravo no Brasil Imperial. In: Discursos Sediciosos. Ano 17. Números 19-20. Instituto
Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
16 - WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007.
17 - ZAFFARONI, Raúl. O inimigo no direito penal. Traduzido por Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 2007.
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