A permanência da Gramática Latina na Gramática Científica Brasileira
Profª Drª Maria Bernadete ROCHA
UFF
Profª Maria Lúcia Cardoso
UFF
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Manuel Pacheco da Silva Júnior foi eminente professor, lingüista, filólogo e
pesquisador da língua portuguesa no Brasil do século XIX. Sua obra insere-se no período da
gramática científica. Chama-se gramática científica o conjunto de estudos e obras produzidos
acerca da língua portuguesa usada no país, de 1881 a 1941 (CAVALIERE, 2002, p. 111).
Os estudos lingüísticos do final do século XIX e começo do século XX recebem esse
nome por evidenciar uma nova ordem científica, caracterizada por um rigorismo na
investigação e descrição de fatos da língua. Tal ordem decorreu do primeiro contato mais
efetivo de estudiosos brasileiros com um paradigma estrangeiro que rompia com a tradição e
apresentava bases para uma análise do vernáculo e, sobretudo, para o ensino de português
como língua materna. Houve, pois, uma mudança significativa de enfoque: ao mesmo tempo
em que havia forte renovação nos estudos lingüísticos, havia clara preocupação com a
aplicação dos avanços e teorias no ensino de língua vernácula de modo a cumprir a função de
preparar o aluno para bem empregá-la na vida em sociedade. Em outras palavras, houve uma
grande mudança quanto à concepção teórica adotada até então na elaboração de gramáticas no
Brasil. Abandonou-se a chamada escola clássica tradicional e passou-se a observar a língua
vernácula como um fenômeno natural, e, por isso mesmo, sujeita às análises de cunho
histórico - comparativista como o era feito na Europa.
Embora alicerçados no experimentalismo e caráter científico, os estudos gramaticais
no Brasil não perderam de todo a preocupação com o ensino. Ao mesmo tempo em que se
instala aqui a linha científica dos estudos comparativistas, há também uma preocupação dos
brasileiros em descrever a língua vernácula; junto aos novos rumos da Filologia há também
interesse no ensino da tradição gramatical e no ensino de uma norma, considerada útil à vida
em coletividade: a gramática assume a dupla função feição de ciência e arte. Como ciência,
estaria sujeita à determinação das leis naturais que regem a sua evolução histórica; como arte,
estaria ligada ao registro de uma tradição lingüística, a qual deve ser preservada. Tradição
gramatical estava ligada à tradição latina e, conseqüentemente, à tradição gramatical grega.
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Justifica-se, assim, a escolha do tema da presente comunicação cujo objeto de trabalho é
registrar a permanência de conceitos da gramática latina na gramática científica de Manuel
Pacheco da Silva Júnior, no final dos novecentos no Brasil. Como representante dos estudos
de gramática latina, escolheu-se Varrão, em sua obra De lingua latina.
Varrão era considerado pelos antigos como a maior autoridade no domínio gramatical.
Essa é uma afirmação de Jean Collart, estudioso do gramático latino, formulada com base na
quantidade de citações constantes das obras dos gramáticos e compiladores contemporâneos
ou sucessores de Varrão. Bastaria essa constatação para justificar o interesse por sua obra.
Contudo, como se pretende demonstrar por meio de alguns exemplos, encontram-se já, em
suas teorias gramaticais, algumas idéias inovadoras para sua época e válidas para o nosso
entendimento atual.
Segundo Quintiliano, Marcus Terentius Varro nasceu em Reate, território Sabino, de
uma família rica, em 116 a.C. Foi oficial de Pompeu na Espanha na época da Guerra Civil;
era, portanto, adversário político de César. Mais tarde, reconciliou-se com o ditador e foi
encarregado de organizar a primeira biblioteca pública de Roma que César planejara. Foi
poeta, satirista, estudioso da Antigüidade e cientista. Seus abundantes escritos incluíam
também trabalhos sobre educação e filosofia. Somente uma vasta erudição explica uma
produção tão profícua. Pouco sobreviveu de toda essa obra, com exceção de De re rustica,
fragmentos das Satirae Menipeae e Rerum et diuinarum antiquitates.
Conservaram-se, também, os Livros de V a X do De lingua Latina, um tratado sobre
gramática latina que versava sobre fonética, morfologia, etimologia, lexicologia e alguns
traços de sintaxe. Obra pioneira, reveladora de um espírito penetrante, foi composta em 47 ou
45 a.C. e publicada antes da morte de Cícero (43 a.C.). Sobre o conteúdo dos demais livros
(ao todo, eram vinte e cinco livros), encontram-se notícias fragmentadas por meio dos
gramáticos posteriores. Mas a obra gramatical de Varrão não se restringiu ao De lingua
Latina. Ele escreveu diversos outros livros cujas doutrinas, fragmentadas, chegaram-nos,
também, por meio de seus comentadores.
Até onde se sabe, antes dele, a Gramática não era uma ciência independente. Era um
pouco o domínio de todos, uma ciência acessória cujas fronteiras não eram delimitadas. Diz
Collart que o filósofo via na Gramática uma teoria sobre as origens da linguagem; o retor, um
manual do estilo correto; o crítico, um auxiliar para os estudos dos textos; o compilador, um
guia de lexicografia; o poeta, um arsenal de termos pitorescos; o homem do mundo, um
divertimento de salão.
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Lembra ainda Collart que, agravando esse cenário de dispersão dos estudos
gramaticais, predominava o debate sobre a linguagem que travavam alexandrinos e estóicos.
Os primeiros, partidários da analogia, defendiam a regularidade dos fatos lingüísticos
enquanto os segundos defendiam a anomalia, ou seja, sustentavam que a linguagem não
possuía regularidade e estava dominada pela arbitrariedade. Esse debate remonta aos filósofos
gregos.
Varrão dedicou ao estudo do problema três dos livros que compõem De lingua Latina.
Sensível às duas correntes, procurou observar os fatos lingüísticos e esforçou-se para conciliálas em uma síntese. Concluiu que ambas coexistem no mundo, uma vez que os princípios
caminham por pares na natureza, segundo a doutrina pitagórica:
Pitágoras de Samos declara que todos os princípios primeiros caminham por
pares na natureza, por exemplo, o finito e o infinito, o bem e o mal, a vida e a morte, o
dia e a noite. Por isso também encontram-se duas qualidades essenciais: a imobilidade
e o movimento.
Assim a aliança destes princípios contrários pode explicar que a vontade cria a
anomalia e é no uso corrente que se observa geralmente a analogia (VARRÃO, LL V,
11- 13, apud CERQUEIRA, 1975).
Para Varrão, a analogia designava a semelhança (similitudo) nos tipos de formação
gramatical. Mais freqüente, é uma lei de experiência elementar. Por sua vez, a anomalia
designava a “exceção” gramatical.
Seu pensamento sobre a morfologia, ainda preso à querela anomalia x analogia, pode
ser depreendido da divisão que estabeleceu entre as declinações (declinatio, para Varrão,
corresponde à conjugação e à derivação, ou seja, às modificações secundárias da forma
primeira das palavras). Ele entendia que as declinações podem ser naturais ou voluntárias.
Voluntária é a forma de um derivado inventado por um criador. Natural é a aplicação
mecânica das desinências casuais. Assim, para o gramático latino, a flexão obedece tanto a
paradigmas quanto é produto de uma criatividade abonada pelo uso.
Na obra gramatical varroniana, percebe-se também o eco de uma outra discussão, que
já preocupava os filósofos gregos: aquela a respeito da origem das palavras. As opiniões
dividiam-se em dois grupos: as que admitiam uma relação entre o signo e o objeto que ele
designa e as que defendiam a origem convencional da linguagem. Embora admitisse que os
signos pudessem ser voluntariamente impostos aos objetos, Varrão defendia a relação natural
entre o signo e o objeto significado. Esse princípio falso defendido pelo gramático latino em
muito comprometeu seus estudos sobre Etimologia. Todavia, lembra Collart, antes dele as
pesquisas etimológicas seguiam duas correntes: uma que explicava todas as palavras latinas
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pelo latim e não concordava em procurar noutro local sua origem e outra que tinha a
tendência de relacionar a origem de todas as palavras ao grego. Entre esses dois extremos,
Varrão elabora sua teoria de empréstimos que, apesar de estar longe de ser precisa, trata de
maneira satisfatória os elementos estrangeiros.
A professora Ana Lúcia Cerqueira, em sua tese sobre os primeiros gramáticos
portugueses e a contribuição gramatical varroniana, destaca, entre outras contribuições, a
distinção estabelecida entre perfectum e infectum, como marca principal da originalidade do
pensamento de Varrão. Para ele, a distinção temporal não atende ao “espírito do latim”,
considerando fundamental estabelecer que os tempos do infectum exprimem a ação inacabada,
apresentada em seu desenvolvimento, enquanto os tempos do perfectum expressam a ação
acabada.
Finalmente, não se pode deixar de registrar que De lingua Latina traz também
informações preciosas tanto para o historiador (como o excerto sobre a topografia e a história
primitivas de Roma), quanto para o pesquisador da história da língua e da literatura, com os
fragmentos de textos arcaicos que apresenta.
Como enfatiza Collart, os escritos gramaticais de Varrão não têm somente o atrativo
de uma relíquia. Tendo em vista a ausência de textos gramaticais anteriores a ele, Varrão pode
ser considerado o primeiro marco da ciência gramatical em Roma e, praticamente, o criador
de uma doutrina e de uma terminologia que vêem demonstrando longa influência sobre a
tradição gramatical posterior.
Pode-se entender que Varrão, ao tratar da oposição analogia x anomalia na produção
de elementos lingüísticos, de certa forma, já sinalizava para os conceitos contemporâneos de
norma e desvio.
Segundo Dubois (1987, p. 52), o termo analogia designava, para os gramáticos gregos,
o caráter da regularidade presente em uma língua. Nos estudos lingüísticos, a analogia serviu
para justificar a regularidade das línguas e, por isso, foi tomada como base para análise de
mudanças lingüísticas ou de tipos de formação gramatical.
É nesse ponto - a presença do processo de analogia em análises e descrições
gramaticais - que se encontra um aspecto em comum com afirmações feitas por Silva Júnior
no final do século XIX.
Um claro exemplo da presença da analogia como explicação para fatores lingüísticos
encontra-se no Capítulo I que trata das transformações fonéticas a que estão sujeitas as
palavras de uma língua:
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Cada uma d’ellas, porém, e bem assim os dialectos e subdialectos, têm suas leis
particulares; e, como já advertimos, a pronuncia muda de época para época (...). Ha
excepções, devidas:
Á analogia – cuidar, de cogitare, deu cuidação, e cogitar – cogitação; (...)Não crêa,
apenas desenvolve tendência já existente (1907, p.79 ).
Silva Júnior afirma que, ao se utilizar do processo de analogia, não há propriamente
uma criação na língua, mas sim uma espécie de extensão de algo já existente, o que se poderia
comparar à similitudo de Varrão.
Outro ponto em que se pode encontrar uma possível sobrevivência da descrição
varroniana está no campo da morfologia. Na gramática científica do século XIX, o estudo das
classes das palavras costumava constituir um capítulo intitulado taxionomia.
Escolheu-se aqui, como exemplo, uma explicação extraída desse capítulo, acerca da
classe dos verbos, mais especificamente sobre a formação do pretérito perfeito:
Dizem os grammaticos que amei é contracção de amado hei, amaste de amado hás,
etc. De feito, são estas as fórmas correspondentes, e sabemos que no latim o participio
precedia o auxiliar; mas basta confrontar o paradigma portuguez com o latino para nos
convencermos de que a nossa língua aceitou o typo latino, e que as desviações que
apresenta são devidas ás regulares modificações phonicas. [...] Nos verbos da primeira
conjugação (a-vi), deu-se a queda do v em todas as pessoas [...]. Os verbos da 2ª e 3ª
conj. formaram o pretérito analogicamente, dando-se [...] (1907, p. 435).
Mas é na obra Noções de Semântica (1903) de Silva Júnior que o processo de analogia
ganha evidente destaque. Dedica-lhe o professor Pacheco todo o primeiro capítulo desse livro
cuja importância está em ser a primeira publicação brasileira inteiramente destinada a estudos
semânticos.
Para ele, a analogia é o que gera a extensão de significados, como as associações,
símiles e metáforas:
Uma das causas das continuas mudanças do sentido das palavras é a lei do menor
esforço. O povo tem necessidade de bem exprimir idéias novas, mas afim de evitar
dispêndio intellectual e ao mesmo tempo desejando apresenta-las animadas o
revestidas de cores variegadas, em vez de crear vocabulos novos, prefere - movido por
essa tendência natural e espontânea – servir-se de termos já conhecidos, apenas
mudando ou renovando os seus sentidos. E assim, denominaram toupeira a quem tem
olhos pequenos e piscos, estendendo-se o sentido aos estúpidos e incompetentes em
qualquer matéria [....].
O povo procede d’esta forma nessas transferencias sob a acção da analogia,
afim de evitar qualquer dificuldade de expressão, de conseguir mais clareza, mais pôr
em relevo uma opposição ou semelhança, e pelo respeito a tradição . [...] É muito
conhecido o meio analógico, condição primordial da linguagem (1903, p. 20).
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Pretendeu-se mostrar, assim, como Manuel Pacheco da Silva Júnior, filólogo e
gramático ocupou-se, já às portas do século XX, da analogia em um modelo de descrição
lingüística histórico-comparativo.
Guimarães, em sua obra História da Semântica: sujeito, sentido e gramática no Brasil
(2004, p. 63) defende que
A obra de Pacheco Silva vai do biológico ao histórico reconfigurando a própria forma
de enunciar o conhecimento sobre a linguagem. É interessante ver como esta operação
é, em verdade, a colocação em prática, no próprio dizer científico, do princípio da
analogia, desta mesma obra, como o que fundamenta o funcionamento da linguagem.
Como se pode ver, a contribuição de Varrão ainda pode ser considerada inspiradora e
relevante. Mais ainda: crê-se que deve constituir leitura imprescindível a todos aqueles que se
interessem por estudos lingüísticos.
BIBLIOGRAFIA
CAVALIERE, Ricardo. Uma proposta de periodização dos estudos lingüísticos.
Confluência: RJ: Liceu Literário Português, nº 23, 2002.
CERQUEIRA, Ana Lúcia Silveira. Os primeiros gramáticos portugueses e a contribuição
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Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal
Fluminense. 1975.
COLLART, Jean. Varron, grammairien latin. Paris: Les Belles Lettres, 1954.
DUBOIS et alii. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1987.
GUIMARÃES, Eduardo. História da Semântica: sujeito, sentido e gramática no Brasil.
Campinas: Pontes, 2004.
NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática: história, teoria e análise, ensino. São
Paulo: Editora UNESP, 2002.
ROCHA, Maria Bernadete Carvalho da. O pensamento gramatical de Manuel Pacheco da
Silva Júnior. Tese de doutoramento. Niterói: UFF, 2007.
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da Universidade do Rio de Janeiro. 1985.
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SILVA JÚNIOR, Manuel Pacheco da e ANDRADE, Boaventura Plácido Lameira de.
Grammatica da lingua portugueza para uso nos gymnasios, lyceus e escolas
normaes . Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1907.
VARRON. De lingua latina, livre V. Texte établi, traduit e annoté par Jean Collart. Paris,
Les Belles Lettres, 1954.
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