Memórias de um sargento de milícias (Manuel Antônio de Almeida) A edição que serviu como base de estudo foi Memórias de um sargento de milícias. 15. ed. São Paulo: Ática, 1988. novelas bem comportadas de Joaquim Manuel de Macedo. De certa forma, a obra contraria a solenidade retórica dominante, que é substituída pelo tom humorístico e caricatural, mais próximo do gênero picaresco. Valorizam-se mais o coloquialismo e a fala popular das personagens, gente miúda saída dos arredores mais humildes da cidade do Rio de Janeiro. Em lugar do herói idealizado e mítico, surge um anti-herói (herói pícaro), talhado bem próximo da realidade humana e sujeito a defeitos e atrapalhações que não condiziam com os modelos a serem seguidos pelo Romantismo. Memórias de um sargento de milícias constitui a primeira afirmação do nacionalismo em nossas letras, libertando-se dos padrões discursivos lusitanos e empregando não só personagens suburbanas, mas também o linguajar do povo. Essa renúncia ao estilo vigente na época é o que dá grandeza à obra. O autor escorou-se numa tradição genuinamente popular, fugindo dos modelos folhetinescos e mundanos do Romantismo. Suas personagens não possuem a cortesia castradora dos estereótipos vigentes. O narrador penetra no tempo de d. João VI, retomando um mundo criativo e popular, restaurando a brisa renovadora da história picaresca. Nessa obra, tudo tem cheiro de povo, sem sofisticações ou formalidades. Cria-se um mundo carnavalesco, onde a indústria não havia estancado o artesanato e a sobrevivência se fazia na base da parceria, da troca de bens, da amizade ou mesmo do furto esporádico, simples desaperto. Um mundo onde a ordem (aristocracia lusitana e funcionalismo público) se confunde com a desordem (rebeldia e independência do zé-povinho). Memórias de um sargento de milícias constitui um verdadeiro painel dos tempos de d. João VI; é uma crônica dos subúrbios cariocas e das diabruras de certo Leonardinho, verdadeiro paladino da mentira e da vadiagem, anti-herói e peralta-mor. Manuel Antônio de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 1831. Filho de família pobre, tentou estudar desenho na Academia de Belas Artes, mas abandonou o curso para matricular-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, formando-se em 1855. Entretanto, não exerceu a profissão de médico, passando a escrever no Correio Mercantil, onde teve brilhante atuação. A obra Memórias de um sargento de milícias, depois de ser publicada em folhetins no Correio Mercantil em 1854, foi lançada como livro em 1855. O doutor Maneco, como era conhecido, ocupou cargo de administrador da Tipografia Nacional e de oficial da Secretaria do Ministério da Fazenda. Foi também um dos diretores da Academia Imperial de Música e Ópera Nacional. Faleceu em 28 de novembro de 1861, no naufrágio do vapor Hermes, quando ia fazer a reportagem da festa de inauguração do canal de Campos a Macaé. ARQUIVO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 1. BIOGRAFIA 2. INTRODUÇÃO Memórias de um sargento de milícias pode ser considerada como ímpar dentro da época romântica, uma vez que foge dos padrões estabelecidos para tal estilo. Esse estranhamento talvez tenha sido o fato gerador do desinteresse por parte dos leitores da época, acostumados às 3. ANÁLISE DO ENREDO A obra é dividida em duas partes. A primeira apresenta 23 capítulos; a segunda, 25. O romance começa 1 pela citação “Era no tempo do rei”, fixando o tempo da obra, que nos parece de vital importância para a caracterização da sociedade que se pretende mostrar. Vejamos a análise dos capítulos originais. PRIMEIRA PARTE I. Origem, nascimento e batismo Era no tempo do rei. Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo — O canto dos meirinhos —; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo. Daí sua influência moral. À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os punhos cerrados. — Grandessíssima!… E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou… e pôs-se a tremer com todo o corpo. A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava com qualquer coisa. — Tira-te lá, ó Leonardo! — Não chames mais pelo meu nome, não chames… que tranco-te essa boca a socos… — Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo? Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da traição, e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos sobre a Maria, que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr, a chorar e a gritar: — Ai… ai… acuda, senhor compadre… senhor compadre!… Leonardo Pataca veio para o Brasil junto com a família real e, graças à influência de um tio, foi nomeado meirinho. Em Lisboa, era ajudante de alfaiate. Durante a viagem de navio, ficou conhecendo uma saloia de Lisboa chamada Maria-da-Hortaliça, uma camponesa, simples verdureira. Os dois enamoraramse. Ele deu uma pisadela no pé da moça e recebeu de volta um beliscão. À noite encontraram-se novamente. A pisadela e o beliscão foram mais fortes. A partir daí, ficaram juntos. Sete meses depois do encontro nasceu Leonardinho. Enquanto os pais brigavam, o menino Leonardo rasgou os documentos deixados pelo pai na mesinha, fazendo com eles cartuchos. Leonardo, enfurecido com o filho, deu-lhe um pontapé no traseiro, atirando-o a quatro braças de distância. Esbravejava furioso, chamando o menino de “filho de uma pisadela e um beliscão…” Leonardinho fugiu e entrou berrando na barbearia do padrinho, causando um acidente com uma bacia de água morna, que acabou caindo sobre um cliente. Desse dia em diante, Leonardinho passou a morar com o padrinho. Leonardo Pataca desapareceu. A madrinha ajudou a cuidar do menino. Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem falamos é o herói desta história.1 O capítulo termina com o batizado de Leonardinho, tendo a parteira (comadre) por madrinha e o barbeiro (compadre) por padrinho. III. Despedidas às travessuras O barbeiro era um homem velho e dedicou toda a sua atenção e carinho ao afilhado, mimando-o demais. A comadre sempre discutia com o compadre, achando-o benevolente demais para com as traquinagens de Leonardinho, pois não o castigava como devia. II. Primeiros infortúnios Sete anos se passaram. Leonardo ainda trabalhava 1 O nascimento de Leonardinho traz o primeiro índice do estranhamento que irá marcar a personagem. A ambigüidade é deixada nas entrelinhas, permanecendo no ar a idéia de que Maria talvez já estivesse grávida ao embarcar e conhecer Leonardo. Tal incerteza será dirimida mais tarde. 2 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. como meirinho, mas começou a estranhar que um colega o procurasse em casa quando sabia que estava no trabalho. Certa tarde, Leonardo voltou mais cedo. Ao entrar em casa, deixou os laudos de um processo sobre uma pequena mesa. Leonardo entrou no quarto e percebeu quando o amante da mulher escapou pela janela. Pataca deu uma surra em Maria, que também devolveu vários desaforos, questionando mesmo sua honra de meirinho. Maria foi salva pelo barbeiro, que veio em seu socorro. Naquela mesma tarde, ela fugiu com um capitão de navio para Portugal. rem até não mais se agüentarem, chicoteando-os. Leonardo foi levado para a Casa da Guarda (depósito de presos) e depois transferido para a cadeia. Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Preocupado com o futuro do afilhado, o padrinho decidiu que o afilhado seria padre. A comadre, entretanto, preferia vê-lo nos ofícios. Leonardinho só queria saber de vadiagem e de dar preocupações para o padrinho: VI. Primeira noite fora de casa Leonardinho acompanhou uma procissão de rua, divertindo-se com as estripulias de um grupo de moleques com quem se juntara. Acabou passando a noite num acampamento de ciganos, para desespero do padrinho, que o procurou por toda parte. Leonardo Pataca, graças à comadre, foi colocado em liberdade de manhã e voltou para casa. Às quartas-feiras e em outros dias da semana saía do Bom Jesus e de outras igrejas uma espécie de procissão composta de alguns padres conduzindo cruzes, irmãos de algumas irmandades com lanternas, e povo em grande quantidade; os padres rezavam e o povo acompanhava a reza. Em cada cruz parava o acompanhamento, ajoelhavam-se todos, e oravam durante muito tempo. Este ato, que satisfazia a devoção dos carolas, dava pasto e ocasião a quanta sorte de zombaria e de imoralidade lembrava aos rapazes daquela época, que são os velhos de hoje, e que tanto clamam contra o desrespeito dos moços de agora. Caminhavam eles em charola atrás da procissão, interrompendo a cantoria com ditérios em voz alta, ora simplesmente engraçados, ora pouco decentes; levavam longos fios de barbante, em cuja extremidade iam penduradas grossas bolas de cera. Se ia por ali ao seu alcance algum infeliz, a quem os anos tivessem despido a cabeça dos cabelos, colocavam-se em distância conveniente, e escondidos por trás de um ou de outro, arremessavam o projétil que ia bater em cheio sobre a calva do devoto; puxavam rapidamente o barbante, e ninguém podia saber donde tinha partido o golpe. Estas e outras cenas excitavam vozeria e gargalhadas na multidão. Era a isto que naqueles devotos tempos se chamava correr a via-sacra.2 VII. A comadre A comadre era uma mulher baixa, gorda, bonachona, ingênua ou tola, até certo ponto, mas esperta em outros. Era parteira de ofício, mas benzia quebranto. Gostava de ir à missa e ouvir os cochichos das beatas. Foi por esse hábito que ficou sabendo da prisão de Leonardo Pataca. VIII. O pátio dos bichos A sala onde ficavam os velhos oficiais era chamada de “pátio dos bichos”. Os soldados permaneciam a serviço do rei, esperando qualquer ordem. A comadre procurou um tenente-coronel para que este intercedesse junto a el-rei em favor de Leonardo Pataca. IX. O arranjei-me do compadre O padrinho vivia bem, apesar de ser um humilde barbeiro. A origem do dinheiro remontava do ofício 3 de barbeiro e sangrador a bordo de um navio que vinha para o Brasil. O capitão moribundo confioulhe as economias para que o barbeiro as entregasse à sua filha. O barbeiro ficou com tudo e nunca procurou a filha do capitão. Leonardinho aproveitou para seguir com a procissão. IV. Fortuna Leonardo Pataca apaixonara-se por uma cigana, também infiel, e que acabou abandonando-o por causa do padre mestre-de-reza. Pataca apelou para um feiticeiro, que lhe impôs uma série de cerimônias para atrair o amor da cigana. Durante uma dessas cerimônias, exatamente à meia-noite, bateram violentamente à porta da casa do feiticeiro. Era o temido major Vidigal (chefe dos granadeiros), que acabou prendendo Leonardo Pataca por vadiagem. X. Explicações O narrador revela que um filho ilegítimo do tenente-coronel desvirginara uma moça em Portugal, 4 sem casar-se com ela. Ao saber que ela estava no Brasil, casada com Leonardo Pataca, procurou ajudá-la para aplacar seu problema de consciência. Por isso, acabou auxiliando Pataca, também se ofereceu à comadre para cuidar do menino Leonardinho. O tenente-coronel agiu por meio de um amigo, que conseguiu a libertação de Leonardo. V. O Vidigal O major Vidigal era um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão, com olhar baixo e movimentos lentos. Sua voz era descansada e adocicada. Era o árbitro supremo de tudo que dizia respeito à polícia da época. De suas sentenças não cabia apelação. Exercia uma espécie de inquisição policial, costumava caçar os criminosos e os vagabundos. Todos tinham por ele respeito e temor. O major Vidigal obrigou todos os presentes na casa do feiticeiro a dança- XI. Progresso e atraso O padrinho encontrou muitas dificuldades para ensinar o afilhado. Leonardinho aprendia com lentidão e não manifestava qualquer inclinação para as 2 A passagem mostra claramente a presença da crítica ao comportamento dos fiéis nas celebrações da Igreja. O texto reflete a presença da carnavalização, como observa Todorov em sua obra sobre o gênero cômico. 3 Os barbeiros tinham algumas atribuições além das que hoje conhecemos. A sangria era uma delas. 4 Chamamos esse tipo de ação narrativa em direção ao passado de flash-back ou retrocesso. 3 coisas da igreja ou para qualquer outra profissão que fosse. Sua especialidade era mesmo a vadiagem. A vizinha brigava constantemente com o menino. Ela e o barbeiro discutiam por causa de Leonardinho, que acabava imitando a velha beata para divertir o padrinho. O barbeiro ria muito e considerava-se vingado. dia da festa da igreja, o padre preparou-se para proferir seu sermão, aliás, sua única atividade séria durante todo o ano. Leonardinho, encarregado de avisar a hora do sermão, informou ser às dez horas, quando na verdade seria às nove. O mestre chegou atrasado e furioso, correndo para o púlpito, onde já estava o capuchinho italiano a fazer o sermão. O padre tomou o lugar do capuchinho, depois de discutirem. O sacristão foi despedido. Leonardinho teve que deixar a Sé. XII. Entrada para a escola Leonardinho entrou para a escola. O capítulo descreve a escola da época, focalizando a importância corretiva da palmatória. Leonardinho apanhou por causa de suas estripulias. Vendia os objetos dos colegas e vivia fugindo da escola para vadiar. Até abandoná-la definitivamente. Achava ele um prazer suavíssimo em desobedecer a tudo quanto se lhe ordenava; se se queria que estivesse sério, desatava a rir como um perdido com o maior gosto do mundo; se se queria que estivesse quieto, parece que uma meia oculta o impelia e fazia com que desse uma idéia pouco mais ou menos aproximada do moto-contínuo. Nunca uma pasta, um tinteiro, uma lousa lhe durou mais de 15 dias: era tido na escola pelo mais refinado velhaco; vendia aos colegas tudo que podia ter algum valor, fosse seu ou alheio, contanto que lhe caísse nas mãos: um lápis, uma pena, um registro, tudo lhe fazia conta; o dinheiro que apurava empregava sempre do pior modo que podia. Logo no fim dos primeiros cinco dias de escola declarou ao padrinho que já sabia as ruas, e não precisava mais de que ele o acompanhasse; no primeiro dia em que o padrinho anuiu a que ele fosse sozinho fez uma tremenda gazeta; tomou depois gosto a esse hábito, e em pouco tempo adquiriu entre os companheiros o apelido de gazeta-mor da escola, o que também queria dizer apanha-bolos-mor5. Um dos principais pontos em que ele passava alegremente as manhãs e tardes em que fugia à escola era a igreja da Sé. XVI. Sucesso do plano O padre, depois da prisão e da humilhação sofrida ao ser exposto como prisioneiro do major, arrependeu-se e deixou a cigana. Leonardo reconquistou a antiga amante. Os dois passaram a viver juntos. A comadre censurou Leonardo por essa decisão. XVII. D. Maria D. Maria era uma mulher velha e muito gorda. Tinha bom coração, era benfazeja6, devotada aos pobres. Tinha mania de demandas7. Por causa da procissão, estavam todos em sua casa: o compadre, o Leonardinho, a comadre e a vizinha. A conversa girava em torno das peraltices do menino, que aproveitou para pisar na saia da vizinha, rasgando-a. Todos discutiram o futuro do garoto. D. Maria sugeriu que fosse procurador de causas. XIII. Mudança de vida O padrinho convence o afilhado a voltar para a escola, mas Leonardinho sempre foge. Numa dessas fugas, acaba por fazer amizade com um pequeno sacristão da Sé. Percebendo que na igreja terá um campo mais vasto para suas diabruras e traquinagens, convence o padrinho a fazê-lo coroinha. O barbeiro sentiu-se realizado com o afilhado, pois acreditava que era meio caminho andado para torná-lo padre. Para vingar-se da vizinha, com quem o padrinho discutira, Leonardinho e o pequeno sacristão jogamlhe fumaça de incenso na cara e derramam cera na mantilha. A vizinha pede providências ao padre, que nada pode fazer, já que o menino se finge de inocente. XVIII. Amores Leonardinho não atendeu aos desejos do padrinho. Não foi para Coimbra; não se tornou padre; não trabalhou em cartório. Transformou-se num vadio, um vadio-mestre, vadio-tipo. Já moço, vivia sem trabalhar. Não pensava em nada. Leonardo Pataca casou-se com Chiquinha, filha da Comadre. Dona Maria ganhou uma demanda para ser tutora de uma sobrinha órfã, Luisinha. O compadre e o afilhado iam visitá-las com freqüência. Luisinha era bem desenvolvida, mas desajeitada. Leonardinho saiu rindo dela, mas não conseguiu mais esquecê-la. XIV. Nova vingança e seu resultado O padre mestre-de-cerimônias mantém relações com a cigana que abandonara Leonardo Pataca. No Leonardo lançou-lhe os olhos, e a custo conteve o riso. Era a sobrinha de d. Maria já muito desenvolvida, porém 5 Referência aos castigos físicos que eram impostos aos alunos que cometiam erros ou desobediências. Que faz o bem, caridosa. 7 Litígio ou ação judicial. 6 4 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. XV. Estralada Quando Leonardo Pataca descobriu que o mestrede-cerimônias lhe roubara a cigana e que ele iria ao aniversário dela, contratou Chico-Juca para criar confusão na festa. Leonardo avisou o major Vidigal sobre a festa. O Major apareceu de surpresa e prendeu todo o mundo, inclusive o padre. que, tendo perdido as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira.8 — A senhora bem sabe… é porque não quer dizer… Nada de resposta. — Se a senhora não ficasse zangada… eu dizia… Silêncio. — Está bom… eu digo sempre… mas a senhora fica ou não fica zangada? Luisinha fez um gesto de quem estava impacientada. — Pois então eu digo… a senhora não sabe… eu… eu lhe quero… muito bem. Luisinha fez-se cor de uma cereja; e fazendo meia volta à direita, foi dando as costas ao Leonardo e caminhando pelo corredor. Era tempo, pois alguém se aproximava. Leonardo viu-a ir-se, um pouco estupefato pela resposta que ela lhe dera, porém não de todo descontente: seu olhar de amante percebera que o que se acabava de passar não tinha sido totalmente desagradável a Luisinha. Quando ela desapareceu, soltou o rapaz um suspiro de desabafo e assentou-se, pois se achava tão fatigado como se tivesse acabado de lutar braço a braço com um gigante. XIX e XX. Domingo do Espírito Santo / O fogo no campo Leonardinho apaixonou-se por Luisinha. Após a Festa do Divino, o casal torna-se mais íntimo. Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. XXI. Contrariedades Surgiu um outro pretendente para Luisinha. Era José Manuel, um espertalhão que passou a cortejar a moça com olhos na herança de d. Maria, de quem Luisinha era a única herdeira. XXII. Aliança A comadre e o compadre aliaram-se em favor do afilhado num plano contra o velhaco José Manuel. SEGUNDA PARTE I. A comadre em exercício Nasceu a filha de Leonardo Pataca e Chiquinha. A comadre realizou o parto. XXIII. Declaração Leonardinho conseguiu confessar seu interesse por Luisinha, numa cena marcada por muita comicidade por causa do desajeito do rapaz, que ficou em muitas tentativas de declarar-se e vários retrocessos, antes de atingir o desejado. II. Trama A comadre inventou para dona Maria que José Manuel fora o raptor de uma moça na porta da igreja, colocando-o como suspeito de um famoso caso policial da época. Assim, deu prosseguimento ao plano tramado com o afilhado e o compadre. D. Maria chegou a acreditar, principalmente por causa da maneira de falar de José Manuel. Luisinha estava no vão de uma janela a espiar para a rua pela rótula; Leonardo aproximou-se tremendo, pé ante pé, parou e ficou imóvel como uma estátua atrás dela que, entretida para fora, de nada tinha dado fé. Esteve assim por longo tempo calculando se devia falar em pé ou se devia ajoelhar-se. Depois fez um movimento como se quisesse tocar no ombro de Luisinha, mas retirou depressa a mão. Pareceu-lhe que por aí não ia bem; quis antes puxarlhe pelo vestido, e ia já levantando a mão quando também se arrependeu. Durante todos estes movimentos o pobre rapaz suava a não poder mais. Enfim, um incidente veio tirá-lo da dificuldade. Ouvindo passos no corredor, entendeu que alguém se aproximava, e tomado de terror por se ver apanhado naquela posição, deu repentinamente dois passos para trás, e soltou um — ah! — muito engasgado. Luisinha, voltando-se, deu com ele diante de si, e recuando espremeu-se de costas contra a rótula; veio-lhe também outro — ah! — porém não lhe passou da garganta, e conseguiu apenas fazer uma careta. A bulha dos passos cessou sem que ninguém chegasse à sala; os dois levaram algum tempo naquela mesma posição, até que o Leonardo, por um supremo esforço, rompeu o silêncio e com voz trêmula e em tom o mais sem graça que se possa imaginar perguntou desenxabidamente: — A senhora… sabe… uma coisa? E riu-se com uma risada forçada, pálida e tola. Luisinha não respondeu. Ele repetiu no mesmo tom: — Então… a senhora… sabe ou… não sabe? E tornou a rir-se do mesmo modo. Luisinha conservouse muda. 8 III e IV. Derrota / O mestre-de-reza José Manuel procurou descobrir quem era o seu adversário e quem fizera a intriga junto a d. Maria. O mestre-de-reza encarregou-se de descobrir quem era o intrigante. V. Transtorno Morreu o compadre, deixando todos os seus bens para Leonardinho. Leonardo Pataca apareceu para tomar conta do filho, interessado em seus bens. Também a comadre. Leonardo mudou-se para a casa do filho. Ficaram todos morando juntos. VI. Pior transtorno Leonardinho, nervoso depois de voltar da casa de d. Maria sem ter visto Luisinha, brigou com Chiquinha. Leonardo Pataca assumiu as dores da mulher, expulsando o filho de casa. Aliás, da casa que era de Leonardinho por direito de herança do compadre. A comadre procurava pelo afilhado, enquanto a vizinhança toda comentava o ocorrido. Essa passagem é um bom exemplo de desidealização presente na obra. 5 novo pretendente com indiferença. O casamento foi celebrado com grande festa e carruagens. VII. Remédio aos males Durante um piquenique entre muitos jovens, Leonardinho reencontrou um antigo colega, o sacristão da Sé. Ficou conhecendo Vidinha, uma mulata de 18 a 20 anos. Leonardinho apaixonou-se por ela. Vidinha era cantora de modinhas e tocava viola. XIII. Escapula Depois de preso pelo major, Leonardinho conseguiu escapar quando estavam a caminho da prisão. Apesar de vigiado pelo major, aproveitou-se de um pequeno tumulto de rua para fugir, indo para a casa de Vidinha. O major procurou-o por toda parte com seu grupo de granadeiros, mas nada encontrou. O Leonardo, que talvez hereditariamente tinha queda para aquelas coisas, ouviu boquiaberto a modinha, e tal impressão lhe causou, que depois disso nunca mais tirou os olhos de cima da cantora. A modinha foi aplaudida como cumpria. Levantaram-se então, arrumaram tudo o que tinham levado em cestos, e puseram-se a caminho, acompanhando o Leonardo o farrancho. O major tinha razão: riam-se com efeito dele; e os primeiros que o faziam eram os granadeiros. Apesar de que, escravos da disciplina, empregavam os mais sinceros esforços para coadjuvá-lo; e apesar também de que revertia para eles alguma glória das façanhas do major, não puderam entretanto deixar de achar graça no que acabava de suceder, pois conheciam a presunção do Vidigal, e repararam na cara desapontada com que ele havia ficado. Depois, apenas o major pôs pé fora da soleira da casa onde lhe tinha escapado Leonardo, uma multidão imensa que tudo havia presenciado desatou a rir estrondosamente. Os jovens eram da família da Sé. Leonardinho passou a viver como agregado na casa deles. VIII. Novos amores A nova família de Leonardinho era formada por duas irmãs viúvas, uma com três filhos e outra com três filhas. Os três filhos da primeira tinham mais de 20 anos e trabalhavam como empregados no trem. As moças tinham mais ou menos a mesma idade dos moços. Eram bonitas. Uma delas era Vidinha. A comadre, acreditando que o afilhado ainda estivesse preso, procurou o major e chorou ajoelhada a seus pés. Suplicou pelo afilhado, que já havia fugido, e acabou sendo ridicularizada pelos granadeiros ao ajoelhar-se aos prantos e pedir para que soltasse Leonardinho. IX. José Manuel triunfa Apesar de ter procurado o afilhado por todo lado, a comadre não conseguiu encontrá-lo em parte alguma. Ela foi à casa de d. Maria, que a repreendeu pela intriga armada contra o pretendente da sobrinha. A comadre percebeu que José Manuel estava perdoado aos olhos da velha e que o mestre-de-rezas havia desvendado tudo. Desculpou-se com d. Maria. XI. Malsinação Depois de conversarem, Leonardinho acabou ficando. Vidinha alegrou-se. Os primos foram vencidos, mas decidiram que se vingariam de Leonardinho. Avisaram o major Vidigal, que chegou no meio duma farra e prendeu Leonardinho por vadiagem. XV. Caldo entornado A comadre dirigiu-se à casa das velhas e pregou um sermão ao afilhado, exigindo que abandonasse a vadiagem e procurasse um emprego. Ela mesma conseguiu para ele um trabalho na Ucharia Real9. O major não gostou disso, porque não poderia mais prendê-lo por vadiagem. Na Ucharia morava um tal de Toma-Largura em companhia de uma bela mulher. Era assim chamado por causa da sua aparência. Era grandalhão e desajeitado. Leonardinho demorava-se cada vez mais no trabalho na despensa real e foi esquecendo Vidinha. Toma-Largura pegou Leonardinho tomando sopa com sua mulher e correu atrás dele, escorraçando-o de casa. Leonardinho foi despedido do emprego. Toma-Largura desejava vingar-se do espertinho. XII. Triunfo completo de José Manuel José Manuel obteve o consentimento de d. Maria para casar-se com Luisinha, depois de ganhar uma causa forense para a velha. Leonardinho já havia mesmo esquecido Luisinha. Esta acabou aceitando o XVI. Ciúmes Vidinha descobriu tudo e foi tomar satisfação com a mulher do Toma-Largura, já que era extremamente ciumenta. Leonardinho foi atrás dela, mas encontrou o major Vidigal no caminho e acabou preso. X. O agregado Dois irmãos da nova família de Leonardinho estavam interessados em Vidinha e uniram-se contra o rapaz. As velhas e a moça tomaram o partido de Leonardinho. Houve brigas e confusões. Leonardinho decidiu sair de casa, mas as velhas não consentiram. Chegou a comadre. 9 Despensa real. 6 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. XIV. O Vidigal desapontado Vidigal jurou vingança por causa de seu orgulho ferido e das zombarias do povo. — Ora vamos ver a cara do defunto… Um grito de espanto, acompanhado de uma gargalhada estrondosa dos granadeiros, interrompeu o major. Descoberta a cara do morto, reconheceu-se ser ele o nosso amigo Leonardo!… Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. XVII. Fogo de palha Vidinha xingou Toma-Largura e a mulher. Mas, como os dois não reagiram, pegou a mantilha e foi embora. Toma-Largura resolveu conquistar Vidinha, pois se encantou com a moça. Além disso, vingaria o que Leonardinho fizera e satisfaria também o seu desejo de conquista amorosa. Ele seguiu Vidinha para saber onde a moça morava. XX. Novas diabruras Leonardinho foi incumbido de participar da prisão de Teotônio, que tocava e cantava modinhas e era também jogador. Teotônio tocava em casa de Leonardo Pataca por ocasião do batizado do filho. Teotônio imitou o major, que estava presente, para risada geral. O major saiu e mandou Leonardinho prender o jogador. Leonardinho foi bem recebido na casa do pai. Simpatizou com Teotônio e acabou revelando a missão da qual estava incumbido. Armou um plano com Teotônio para enganar o major. XVIII. Represálias Quando Vidinha chegou a casa, todos deram pela falta de Leonardinho. Mandaram procurar por toda parte, mas não o encontraram. Logo surgiu a suspeita de que tivesse sido preso pelo major, mas não o localizaram na Casa da Guarda. A comadre também procurou pelo af ilhado. A família que hospedava Leonardinho pensou que ele se escondera propositadamente e passou a odiá-lo. Toma-Largura rondou a casa de Vidinha para cumprimentá-la, sem imaginar a armadilha que lhe preparavam. Foi recebido por todos. Resolveram comemorar a 10 aproximação com uma patuscada nos Cajueiros, mesmo local onde Leonardinho conhecera Vidinha. TomaLargura bebeu muito e provocou confusão. O Vidigal chegou com o grupo de granadeiros e um deles deu ordem para levar o Toma-Largura. O granadeiro era Leonardinho, que se tornara auxiliar do Vidigal. XXI. Descoberta Leonardinho foi cumprimentado pela façanha por um amigo indiscreto na frente do major Vidigal, que percebeu o engodo e prendeu-o imediatamente. Depois da lua-de-mel, José Manuel começou a mostrar que não era grande coisa. D. Maria uniu-se à comadre para soltar Leonardinho. XXII e XXIII. Empenhos / As três em comissão A comadre não conseguiu soltar o afilhado e pediu ajuda a d. Maria, que recorreu a Maria Regalada. Esta era muito alegre e morava na Prainha. Era uma antiga conhecida do major Vidigal. Maria Regalada e a comadre intercederam a favor do relaxamento da prisão de Leonardinho. O major resistiu, mas Maria Regalada cochichou algo em seu ouvido, e ele prometeu não apenas soltar o moço, mas fazer algo por ele. XIX. O granadeiro Toma-Largura foi abandonado bêbado na calçada, porque ninguém agüentou carregá-lo. Leonardinho fora transformado em granadeiro, depois de preso pelo Vidigal, que o levou a sentar praça no Regimento Novo. O major requisitou-o para ajudar nas tarefas policiais. Foi a forma de vingança encontrada pelo major. Leonardinho mostrou-se competente no serviço, mas participou de uma estripulia, imitando o Vidigal defunto para ridicularizá-lo. XXIV. A morte é juiz José Manuel teve um ataque cardíaco por causa de uma ação movida por d. Maria e morreu. Leonardinho foi libertado e visitou Luisinha durante o velório. Sua aparência agradou a Luisinha. Cresceu a admiração entre os dois. Quando o major bateu, e foi entrando, acompanhado da sua gente, ficou tudo gelado de medo: o sujeito que se achava amortalhado teve um grande estremeção e ficou depois imóvel, como se fosse de pedra, representando com mais propriedade do que talvez desejasse o papel de morto. Segundo seu costume, o major fez continuar por um pouco a brincadeira em sua presença. Depois começou a indagação das ocupações de cada um, e, conforme o que colhia, os foi mandando embora, ou pondo de parte, para lhes dar melhor destino. Durante toda esta cena, que levou seu tempo, o amortalhado deixou-se ficar imóvel, na mesma posição, com a cabeça coberta. Corrida toda a roda, disse-lhe o major: […] — Homem, você por estar morto não tenha tanta pressa de ir para o inferno: fale primeiro com a gente. E tirando-lhe o pano da cara acrescentou: 10 O Leonardo começou a procurar com os olhos alguma coisa ou alguém que tinha curiosidade de ver; deu com o que procurava: era Luisinha. Há muito que os dois se não viam; não puderam pois ocultar o embaraço de que se acharam tomados. E foi tanto maior essa emoção, que ambos ficaram surpreendidos um do outro. Luisinha achou Leonardo um guapo rapagão de bigodes e suíça; elegante até onde pode sê-lo, um soldado de granadeiros, com o seu uniforme de sargento bem assente. Leonardo achou Luisinha uma moça espigada, airosa mesmo, olhos e cabelos pretos, tendo perdido todo aquele acanhamento físico de outrora. Além disso seus olhos, avermelhados pelas lágrimas, seu rosto empalide- Ajuntamento festivo de pessoas para comer e beber, farra, folgança. 7 dos pares amorosos. Quando há ausência de ação de uma personagem, ela sai de cena, retornando somente quando a sua participação é ativa. O enredo é montado a partir de fragmentos para nos dar mostras da história de Leonardinho. Foco narrativo: O romance é narrado na terceira pessoa por um narrador onisciente, mas que interfere na narrativa muitas vezes, justificando a obra (metalinguagem) ou procurando dialogar com o leitor (leitor incluso). Essas intromissões do narrador são notáveis, tornando a obra mais interessante e mais rica. Vale destacar que essas técnicas não eram ainda comuns no Romantismo brasileiro. Tempo: O tempo da obra é cronológico, estabelecido pela primeira frase do livro: Era no tempo do rei. Assim, a ação narrativa passa-se nas primeiras décadas do século XIX, período da regência de d. João VI no Brasil. Espaço: O espaço é o Rio de Janeiro, mostrado de forma realista e por meio de descrições precisas do centro velho e dos subúrbios, de onde saem as personagens. Personagens: As personagens formam uma galeria de tipos populares dos subúrbios do Rio de Janeiro, composta de meirinhos, parteiras, granadeiros, vadios, sacristãos, brancos, pardos e pretos — elementos do povo, de todas as raças e profissões. Dessa maneira, o autor não pretende individualizá-las psicologicamente, mas criar personagens planas, verdadeiros tipos sociais, o que mostra bem a intenção de focalizar os costumes dessa “fauna” social do tempo do rei, produzindo apenas verdadeiras alegorias desse período. 1. Leonardo Pataca: pai do protagonista. Era alfaiate em Portugal e tornou-se oficial de Justiça (meirinho) no Rio. Era um mulherengo incorrigível. Espertalhão e interesseiro. 2. Maria-da-Hortaliça: mãe de Leonardinho, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. Era uma mulher infiel que acabou fugindo com um capitão de navio e deixou definitivamente a história. 3. Leonardinho: protagonista da obra. É um antiherói típico: peralta, malandro, vadio e especialista em pregar peças e preparar vinganças. Representa o herói pícaro, o anti-herói, que não serve de exemplo para ninguém. 4. Comadre: é madrinha de Leonardinho, parteira e benzedeira do lugar. 5. Compadre: é padrinho de Leonardinho, barbeiro por profissão, ganhou dinheiro de forma desonesta. Protegia demais o afilhado, estragando-o com seus mimos e atenções. 6. Luisinha: enteada de d. Maria. Casou-se com José Manuel. Após a morte do marido, casou-se com Leonardinho. XXV. Conclusão feliz Cumprido o luto, Leonardinho e Luisinha recomeçaram o namoro. Os dois pretendiam se casar, mas necessitavam do consentimento do major, porque granadeiro não podia se casar. Levaram o problema para o major, que a essa altura já estava vivendo com Maria Regalada. Este fora o preço pela liberdade de Leonardinho. Por influência da mulher, Vidigal deu um jeito: conseguiu baixa para Leonardinho da tropa de linha e nomeou-o sargento de milícias. Depois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o pedido muito justo, em conseqüência do fim que se tinha em vista. Com a sua influência tudo alcançou; e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis: um era a sua baixa de tropa de linha; outro, sua nomeação de sargento de milícias. Além disto recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual o chamava para fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, que se achava religiosamente intacto. Passado o tempo indispensável do luto, o Leonardo, em uniforme de sargento de milícias, recebeu-se na Sé com Luisinha, assistindo à cerimônia a família em peso. Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de d. Maria, a do Leonardo Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos 11 leitores, fazendo aqui ponto final. 4. ESTRUTURA DA OBRA Os episódios parecem ter sido escritos de forma autônoma, mostrando-se como uma seqüência de situações, ou seja, pequenos relatos cuja unidade é dada a partir da presença do protagonista Leonardinho. Alguns críticos preferem ver a obra como novela, por causa dessa autonomia dos capítulos, em lugar de romance, como se costuma normalmente considerar sua classificação. Ação: A ação é dinâmica e contínua, criando uma atmosfera de romance de aventuras, graças às estripulias do picaresco Leonardinho e da troca contínua 11 O último parágrafo é cheio de ambigüidade, não terminando com o final feliz tradicional das novelas românticas. Sem dúvida, pretendeu o autor empregar mais uma de suas ironias, caracterizando uma obra aberta por causa desse final, como observaria Umberto Eco em Obra aberta. 8 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. cido, se não verdadeiramente pelos desgostos daquele dia, seguramente pelos antecedentes, tinham nessa ocasião um toque de beleza melancólica, que em regra geral não devia prender muito a atenção de um sargento de granadeiros, mas que enterneceu ao sargento Leonardo que, apesar de tudo, não era um sargento como qualquer. E tanto assim, que durante a cena muda que se passou, quando os dois deram com os olhos um no outro, passaram rapidamente pelo pensamento do Leonardo os lances de sua vida de outrora, e remontando de fato em fato, chegou àquela ridícula mas ingênua cena da sua declaração de amor a Luisinha. Pareceu-lhe que tinha então escolhido mal a ocasião, e que agora isso teria um lugar muito mais acertado. e marcantes. Destaquemos algumas delas: • Emprego de linguagem coloquial. Marcada por incorreções e linguajar lusitano, interiorano ou das periferia de Lisboa, lembrando que uma boa parte das personagens é de imigrantes portugueses ou gente simples do povo. • Ausência de personagens idealizadas e de análise psicológica. O romance prefere focalizar os costumes, hábitos e cacoetes das pessoas de camadas sociais inferiores, numa construção mais realista da sociedade suburbana do início do século XIX. • Humorismo, ridículo e burlesco. O tom geral da obra segue a tendência da gozação, marcado pela construção de personagens que tendem para o caricatural. A essa tendência chamamos carnavalização. • Ironia. • Metalinguagem. A obra volta-se para si, comentando os procedimentos empregados, as palavras utilizadas, as explicações sobre capítulos ou personagens que desaparecem de cena. • Digressões. A narrativa não segue a ordem linear dos fatos, é episódica e, não raro, foge da história para comentar fatos paralelos ou para dar explicações sobre o próprio livro. • Narrador intruso. O tempo todo o narrador se intromete para dar explicações, analisar fatos ou personagens e conversar com o leitor. • Leitor incluso. Com quem o narrador procura estabelecer conversação: Por estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor que suspeitara a verdade. A obra deixa transparecer vários recursos, como hipérboles, comparações, metáforas, perífrases, trocadilhos, metonímias, linguagens forenses, sarcasmos, barbarismos etc. 7. Vidinha: moça por quem Leonardinho se apaixonou. Tocava e cantava modinhas. Era bela e talentosa. 8. Major Vidigal: era uma personagem histórica. Foi chefe dos granadeiros. Representava a autoridade policial. Homem que causava respeito e medo nas pessoas. 9. D. Maria: mulher gorda e rica, que tinha mania de demandas judiciais, numa destas conseguiu ser tutora de Luisinha. Outras personagens: a vizinha, Maria Regalada (amante do major Vidigal), José Manuel (primeiro marido de Luisinha), Teotônio (malandro e bicheiro), Chiquinha (filha da comadre e segunda mulher de Leonardo Pataca). Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 5. ESTILO DE ÉPOCA Apesar de estar classificada como romântica, a obra Memórias de um sargento de milícias apresenta traços estéticos que ultrapassam o Romantismo. Sua composição não segue a trilha deixada pelos demais ficcionistas desse estilo. A fragmentação do enredo deixa margens de dúvida se não seria um precursor do estilo digressivo e fragmentário de Machado de Assis. Suas personagens passam longe das idealizações românticas, estão mais próximas do Realismo, não raro configurando tipos sociais. A ausência de um final feliz definido é outro elemento fora dos parâmetros românticos. A linguagem coloquial e rápida, a presença da ironia, da metalinguagem, do leitor incluso e da carnavalização descaracterizam a obra romântica. Entretanto, cronologicamente, não havia ainda que se falar em Realismo. Mesmo classificada cronologicamente dentro dos parâmetros românticos, essa obra não se direciona especificamente para os romances urbanos, uma vez que estes focalizam a sociedade burguesa. Nas Memórias de um sargento de milícias, caracteriza-se a sociedade suburbana, a gente humilde e trabalhadora. Deve-se classificar essa obra como um romance de costumes, que apresenta também tendência à novela picaresca, pela presença do anti-herói Leonardinho. Não se deve preocupar tanto com sua classificação estilística dentro dos moldes românticos. Vale ressaltar apenas que é uma “obra ímpar” e aceitar essas suas diferenças. 7. PROBLEMÁTICA E PRINCIPAIS TEMAS Mesmo com o risco de nos tornarmos repetitivos, retomamos a problemática central da presente obra. Afinal, temos ou não uma obra que foge a uma rígida classificação? Sem dúvida, a resposta a esta questão é evidente, uma vez que a obra apresenta elementos que escapam à típica caracterização dos moldes em voga no Romantismo, mas não atende de forma direta às perspectivas do Realismo, que sequer havia começado na Europa. É um romance que apresenta variáveis, tais como: novela picaresca, romance de costumes e romance de aventuras, sendo considerado por alguns um romance anti-romântico, o que implicaria tendências precursoras do Realismo, que só se confirmariam a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), 6.ESTILO INDIVIDUAL A obra Memórias de um sargento de milícias foge das características gerais do Romantismo, apresentando características próprias. O estilo da obra, bem como de seu autor, apresenta tendências bem pessoais 9 de Machado de Assis. A presença da realidade objetiva é inquestionável, mas apenas isto não configura o Realismo na linha flaubertiana. A obra é fundamentalmente humorística, estabelecendo contatos com o gênero picaresco espanhol através do protagonista, que traz em si toda a esperteza e picardia de um anti-herói. Leonardinho foi o antecessor em linhagem direta de Macunaíma, de Mário de Andrade, e o continuador, no Brasil, de D. Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Retrato vivo dos costumes bem brasileiros do início do século XIX, esse romance focaliza um sem-número de tipos populares do Rio de Janeiro suburbano. Esse painel pitoresco retrata a alegria de viver, a malícia da época, as fofocas, as beatices, as crendices, as festas, as profissões, as modas, as procissões, os costumes e hábitos de nosso povo. Leonardinho é o típico malandro carioca, cheio de picardia, sarcasmo e desejo de vingança. Entre as temáticas fundamentais destacam-se as críticas ao autoritarismo policial, à religião, ao clero imoral, ao interesse econômico, ao casamento como meio de ascensão social e à vadiagem como meio de vida. Há, ainda, uma espécie de paródia do próprio Romantismo, montado este último nessa obra às avessas, abandonando os adocicados finais felizes para deixar nas entrelinhas uma sucessão de fatos tristes que poderiam vir a acontecer. Alguns dos romances que integram as obras da Fuvest apresentam a figura social do agregado, tão comum na sociedade brasileira há algum tempo, mas incomum na atualidade. Assinale a alternativa incorreta quanto à personagem que figure como agregado e a obra à qual pertence: a) Leonardo Pataca, na casa de Leonardinho (Memórias de um sargento de milícias). b) D. Plácida, na casa de Virgília (Memórias póstumas de Brás Cubas). c) Leonardo (filho), na casa de Tomás da Sé (Memórias de um sargento de milícias). d) O barbeiro (compadre), na casa de seu padrinho (Memórias de um sargento de milícias). (Fuvest-SP, adaptada) Um traço de estilo, presente nas Memórias de um sargento de milícias, também se encontrará nas Memórias póstumas de Brás Cubas, onde assumirá aspectos de provocação e acinte. Trata-se: a) das referências diretas ao leitor (leitor incluso) e ao andamento da própria narração. b) do uso predominante da descrição, que confere maior realismo ao relato. c) do emprego de adjetivação abundante e variada, que dá feição opinativa à narração. d) da paródia dos clichês românticos anteriormente utilizados por José de Alencar e Álvares de Azevedo. e) da narração em primeira pessoa, realizada por um narrador-personagem, que participa dos eventos narrados. (Fuvest-SP, adaptada) Assinale a alternativa correta quanto ao início do relacionamento entre Leonardo e Maria no romance Memórias de um sargento de milícias: a) Manifesta os sentimentos antilusitanos do autor, que enfatiza a grosseria dos portugueses em oposição ao refinamento dos brasileiros. b) Revela os preconceitos sociais do autor, que retrata de maneira cômica as classes populares, mas de maneira respeitosa a aristocracia e o clero. c) Reduz as relações amorosas a seus aspectos sexuais e fisiológicos, conforme os ditames do Naturalismo. d) Opõe-se ao tratamento idealizante e sentimental das relações amorosas, dominante no Romantismo. e) Evidencia a brutalidade das relações inter-raciais, própria do contexto colonial-escravista. Assinale a alternativa inadequada quanto às aproximações entre os romances Memórias de um sargento de milícias e Memórias póstumas de Brás Cubas: a) Os protagonistas são caracterizados pela falta de limites e pela complacência daqueles que tiveram o papel de criá-los. b) A formação escolar licenciosa e indisciplinada dos protagonistas concorreram em grande parte pelo comportamento um tanto ocioso e malandro dos protagonistas. c) Em ambos a presença de digressões, metalinguagens e de inclusão do leitor são traços reiterados. d) A presença de tendência carnavalesca e cômica caracteriza ambos os romances. e) A tendência realista de ambas as obras é indiscutível. (Fuvest-SP, adaptada) Que comportamento das personagens de Memórias de um sargento de milícias também se manifesta na personagem Macunaíma? a) Disposição permanentemente alegre e bem-humorada. b) Discrepância entre a condição social humilde e a complexidade psicológica. c) Busca da satisfação imediata dos desejos. d) Mistura das raças formadoras da identidade nacional brasileira. e) Oposição entre o físico harmonioso e o comportamento agressivo. Respostas 1. d 10 2. c 3. d 4. a 5. a 6. e Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. (Fuvest-SP, adaptada) A situação familiar do padrinho de Leonardinho no romance Memórias de um sargento de milícias era irregular e ambígua. As situações desse tipo são comuns no livro porque: a) caracterizam os costumes dos brasileiros, por oposição aos dos imigrantes portugueses. b) são apresentadas como conseqüência da intensa mestiçagem racial, própria da colonização. c) contrastam com os rígidos padrões morais dominantes no Rio de Janeiro oitocentista. d) ocorrem com maior freqüência no grupo social mais amplamente representado pelas personagens do romance. e) não seguem a doutrina e os exemplos do clero católico da época.