O MÉTODO EDUCACIONAL ERASMIANO * Silvana Nunes Amadio Moreira (UEM)** Jorge Cantos – Orientador (UEM)*** RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar algumas razões mediante as quais Erasmo de Roterdã propõe um novo método educacional. Sua proposta, no contexto do século XVI, advém da necessidade de superação do método vigente da pedagogia do medo pela implantação de um novo método que corresponda à educação do homem liberal e cristão. A opção metodológica é a de consulta direta às obras do autor, De Pueris, A Civilidade Pueril e o Elogio da Loucura, sendo priorizado De Pueris. Palavras-chave: Erasmo de Roterdã. Método Educacional. Educação Liberal. Educação Cristã. Século XVI. 1 INTRODUÇÃO Datado nos séculos do Renascimento - XV-XVI - e tendo nascido em Gouda, à época vila da cidade de Roterdã, na Holanda, Greer Geertsz ou Desiderius Erasmus ou simplesmente Erasmo de Roterdã, (1469-1536), tem sido considerado por muitos como um dos maiores pensadores do Renascimento. Isso por ter sido um humanista cristão, um crítico acerbo ou mesmo um inovador do método educacional de seu tempo. Por certo, Erasmo pode ser considerado um clássico da Filosofia e da História da Educação e como o principal teórico da educação do período, pois é pedagogo por excelência, é satírico ao modelo educacional vigente e defende uma nova proposta educacional. A retomada dos clássicos e das Sagradas Escrituras e também sua experiência de vida levam-no a questionar o modelo educacional vigente e a investigar novas maneiras de fazer e de exercer a arte da educação, propondo um novo modelo educacional. Esse novo método, embasado no humanismo cristão, deixa de lado a concepção dominante, da pedagogia do medo, e estabelece valores e processos voltados ao homem, a pedagogia da liberdade. * Artigo apresentado em setembro de 2010 à Universidade Estadual de Maringá (UEM) em cumprimento à exigência de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Curso de Pedagogia do Campus Regional de Cianorte (CRC). ** Acadêmica do 4º ano do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá, Campus Regional de Cianorte. *** Doutor em Filosofia pela UNICAMP e professor de Metodologia e Técnicas de Pesquisa, do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá. Dessa forma, este artigo toma como tema O Método Educacional Erasmiano com o objetivo de apresentar as razões pelas quais Erasmo propõe mudanças visando instaurar um novo método educacional. Para isso é apresentado e argumentado no decorrer do texto que a nova proposta educacional de Erasmo está fundada na superação do medo, prática comum de ensino na época. Está fundada, em contraposição, na formação do homem liberal, com ênfase na virtude para a civilidade e no homem cristão, na busca da piedade. Em tal proposta, a educação deve começar desde a mais tenra idade permanecendo por toda a vida. A opção metodológica consiste na consulta de fontes primárias, pois nada melhor do que deixar o próprio Erasmo falar. Para tanto são utilizadas três de suas obras: De Pueris, A Civilidade Pueril e o Elogio da Loucura, todas traduzidas para a língua portuguesa. 2 SUPERAÇÃO DA PEDAGOGIA DO MEDO Uma das preocupações de Erasmo ao propor seu método educacional é a necessidade de superação da pedagogia do medo, prática educacional vigente, tanto nas escolas quanto em casa. Tal pedagogia consistia no uso de métodos punitivos, cristalizada no castigo, como forma de educar as crianças. Sendo um filósofo e um educador, Erasmo defende sempre práticas educacionais que não admitam em momento algum os castigos físicos. Para isso, propõe uma mudança radical de atitude dos educadores, pois, para ele, toda forma de castigo é contraproducente. “O certo é que, com pancadaria, trucidas antes de corrigir a quem podes conduzir a teu talante, mas com mansuetude e repreensão branda” (ERASMO, [200?]a, p. 70). Erasmo, tendo sido aluno desse sistema de ensino, diz que sentira no próprio corpo as dores dessa pedagogia, que ao invés de instigar desestimula os alunos: Reconheço em mim mesmo tal índole desde pequeno. O preceptor, para quem eu era preferido dentre os demais porque alimentava sei lá que sonhos de grandeza a meu respeito, mantinha-me sob vigilância cerrada. Por fim resolveu testar minha capacidade para aturar castigo. Alegou então qualquer falta que nem por sombra cometera e bateu-me. Aquilo esvaziou todo o meu gosto pelos estudos, desmotivando de tal sorte meu entusiasmo pueril que pouco me faltou para vir a falecer de tanto penar (ERASMO, [200?]a, p. 70). Deveras, o castigo aos alunos é uma prática comum dos educadores da época de Erasmo: Sempre famélicos e sujos nas suas escolas, ou melhor, nas suas cadeias e lugares de suplícios e de tormentos, ao meio de um rebanho de meninos, envelhecem de fadiga, tornam-se surdos com o barulho, ficam tísicos com o fedor e a imundície. No entanto [...] os pedantes se julgam os primeiros homens do mundo. Não podeis imaginar o prazer que experimentam fazendo tremer os seus tímidos súditos com um ar ameaçador e uma voz altissonante. Armados de chicote, de vara, de correia, não fazem senão decidir o castigo, sendo ao mesmo tempo partes, juízes e carrascos. Parecem-se mesmo com o burro da fábula, o qual, por ter às costas uma pele de leão julgava-se tão valoroso como êste [sic]. A sua imundície afigura-se-lhes asseio; o fedor serve-lhes de perfume; e acreditando-se reis em meio à sua miserabilíssima escravidão, não desejariam trocar as próprias tiranias pelas de Fálaris ou de Dionísio (ERASMO DE ROTTERDAM, 1955, p. 106). “Educadores”, de acordo com o autor, responsáveis diretos por transformar a escola em cadeia e lugar de suplício e de tormentos! Cruéis como Fálaris, tirano de Agrigento, na Siracusa, que, por exemplo, chegou a mandar construir um touro de cobre para dentro dele queimar vivos os que condenava à morte! Cruéis também como Dionísio, outro tirano de Siracusa, que foi expulso do reino por seus próprios súditos, em virtude das grandes crueldades que cometera! O pior é que: “O que sobretudo contribui para torná-los felizes é a idéia que fazem da própria erudição. Embora não façam senão meter palavras insignificantes e insulsas frivolidades na cabeça das crianças confiadas a seus cuidados [...]” (ERASMO DE ROTTERDAM, 1955, p. 106-107). E mais ainda, Erasmo diz que o ato de castigar os alunos é prática de professores que nada têm a ensinar e que gastam, assim, seu tempo com golpes e a xingação: “Ninguém flagela de maneira mais cruel a criança do que o professor que nada tem a ensinar. Que outra coisa sabem fazer no magistério tais indivíduos senão matar o tempo com cenas de espancamento e vociferação” (ERASMO, [200?]a, p. 71). Esses indivíduos, jamais deveriam ser educadores de crianças: “Enfim, indivíduos que deveriam ser antes carniceiros ou algozes” (ERASMO, [200?]a, p. 71). Essa forma de “educação” coloca em risco na maioria das vezes a vida das crianças, tendo a saúde tanto mental quanto corporal lesada devido às chibatadas: O menino, despido, foi suspenso com cordas pelas axilas para figurar o castigo aplicado a furtos infames e tidos como os mais detestáveis entre os germanos. A seguir, suspenso no ar, foi flagelado de todos os lados, ficando a pique de morte. Quanto mais tentava provar que não cometera o tal do erro tanto mais recrudescia o martírio. Acontece que o carrasco estava mais terrível que o próprio suplício. Tinha olhos de serpente, boca cerrada e rugosa, voz estridente como alma penada, face lívida e cabeça em transtorno [...] E qual o desfecho? Depois do suplício o menino adoeceu com riscos graves para a integridade física e mental [...] Fato é que a enfermidade do corpo até que foi, em parte, debelada pelos medicamentos, mas a sua mente ficou profundamente abalada, sendo de crer que jamais recupere o vigor anterior (ERASMO, [200?]a, p. 75-76). Tomando o exemplo dos antigos, Erasmo alerta que o castigo pode inclusive ocasionar a morte da criança. “No passado, Auxo, certo cavaleiro romano, corrigiu o filho à vara e com tamanho rigor que este veio a falecer [...]. Quantos Auxos não estamos a ver hoje! Indivíduos que lesam a saúde das crianças com a sevícia da chibatada, debilitando-as e até matando! (ERASMO, [200?]a, p. 74). E eles ainda reclamam de seu salário: “[...] lastimam não receberem salários à altura de seus serviços. (ERASMO, [200?]a, p. 77). Há educadores que assim agem porque acreditam que o único modo de reprimir a rebeldia e educar a juventude deva ser dessa forma, com agressividade, submetendo os alunos até aos ritos de flagelação: “Ele estava convicto de que aquele era o único modo de reprimir a rebeldia de espírito e domar o desbragamento da juventude” (ERASMO, [200?]a, p. 71). Isso não anula os efeitos desastrosos de tais atos. Poder-se-ia imaginar nos olhos desses defensores do castigo, crédulos ou não, a violência, a perversidade e a demência: “De fato, olho ameaçador é sinal de violência, enquanto olho perverso traduz maldade. Olho erradio e perdido, no espaço, gera demência” (ERASMO, [200?]b, p. 125). São educadores deste gabarito que formam o corpo docente das escolas, escolas essas que são caracterizadas por Erasmo da seguinte forma: “Dir-se-ia que, ali, não existe escola e, sim ergástulo. Apenas se ouvem o crepitar das palmatórias, o estrépito das varas, as lamentações e os soluços em meio à balbúrdia de ameaças ferozes!” (ERASMO, [200?]a, p. 67). Para Erasmo, isso é uma total falta de respeito e de amor para com os educandos, pois, a escola não é um presídio. Suas dependências não devem ser lugar de terror e sim de amor. E até diante ao erro do aluno o professor deve agir de forma diferente, nada de brutalidade, mas, acatar o seu erro. “O certo seria que a criança recebesse alento a fim de amar os estudos e aprendesse a ter receio em decepcionar o mestre” (ERASMO, [200?]a, p. 85). Apesar de serem as escolas o lugar da pedagogia do medo: “A tais pedagogos é que os nobres cidadãos confiam os filhos, o tesouro mais precioso de suas vidas” (ERASMO, [200?]a, p. 77). Nesse sentido, Erasmo, satiricamente, estranha: “Nem mesmo sei com que meios conseguem lisonjear as estúpidas mães e os idiotas pais dos alunos, ao ponto de realmente serem considerados como os ilustres homens que eles [sic] próprios se inculcam” (ERASMO DE ROTTERDAM, 1955, p. 107). Também satiricamente questiona: Que aproveitamento proporciona-se às crianças, de apenas quatro anos de idade, matriculando-as em jardins literários, sob a direção de preceptores desconhecidos, rudes, de costumes nada sadios, por vezes desequilibrados e até lunáticos ou afetados de epilepsia, quando não da lepra denominada da „sarda gálica‟? (ERASMO, [200?]a, p. 67). E, ainda satiricamente, Erasmo acrescenta: “Basta deparar-se com indivíduos abjetos, sem profissão, desqualificados, e, logo, são tidos como qualificados para reger a escola” (ERASMO, [200?]a, p. 67). Diante a tal realidade, Erasmo alerta os pais a escolherem bem os preceptores para seus filhos. Eles não devem ser escolhidos sob recomendação de terceiros, pois: “Assim, é preterido um artífice competente em educação pueril a fim de dar lugar a outro inapto só para atender a insistência dos amigos” (ERASMO, [200?]a, p. 47). Pelo contrário, o preceptor escolhido deve ser aquele “[...] selecionado dentre muitos, aprovado pela opinião geral e testado de diversos modos” (ERASMO, [200?]a, p. 49). Assim: “Na hipótese de não ter dentro da família quem conhece as letras, seja, bem logo, chamado algum instrutor, porém testado quanto à moral e à erudição” (ERASMO, [200?]a, p. 64). O mesmo deve ocorrer quando os pais precisarem enviar seus filhos à escola. Erasmo explica porque na realidade a maioria dos pais confia a educação de seus filhos a qualquer um: “Há quem pense que justamente a tal categoria de gente deve ser confiada a educação infantil. É que confiam semblante sombrio com santidade. Ora não é seguro fiar-se apenas nos traços da fisionomia. Atrás daquela fachada pode aninhar-se uma chusma de vícios perversos” (ERASMO, [200?]a, p. 67). Tendo escolhido bem o preceptor, outros cuidados se impõem. A tenra idade é a fase da vida humana que mais precisa de cuidados. Exerce papel destaque aqui a adulação, aquela descrita por Erasmo em Elogio da Loucura, não a que arruína a atividade educativa, mas aquela que “[...] incita as crianças ao trabalho e ao estudo [...]” (ERASMO DE ROTTERDAM, 1955, p. 94). É a verdadeira adulação que conquista o educando. Assim: O primeiro grau de aprendizagem consiste no amor ao professor. Com o caminhar do tempo, a criança, que foi iniciada no amor ao estudo por causa do amor ao mestre, passa a amar o mestre por amor ao estudo. Do mesmo modo que presente e outros tipos de mimos são bem-vindos justamente por provirem de pessoas mui queridas, assim os estudos, enquanto não podem ser ainda apreciados por si mesmos, ficam encarecidos pelo afeto que se devota aos mestres. [...] Aprendemos, sim, com muito entusiasmo, daqueles aos quais amamos. (ERASMO, [200?]a, p. 66). É, de fato, a boa adulação o condimento que dá o tempero certo: “[...] essa adulação é o mel, o condimento de tôda [sic] a sociedade humana” (ERASMO DE ROTTERDAM, 1955, p. 94). Pois, a adulação da Loucura provém “[...] da doçura, da bondade, da inteireza de coração, e tanto se avizinha da virtude como se distancia de um caráter rude, insociável e importuno, que, como, diz Horácio, desgosta e afasta” (ERASMO DE ROTTERDAM, 1955, p. 93). A necessidade dessa nova metodologia relacionada à pedagogia de superação do medo não diz respeito apenas aos alunos da educação básica, mas também aos alunos do ensino superior, pois aqui também: “O jovem inexperiente é enviado para o estudo das artes liberais, mas, ao invés, a quantos ultrajes deprimentes para a sua dignidade de ente livre vai ser submetido!” (ERASMO, [200?]a, p. 77). Erasmo relata que “Primeiro, empastam-lhe o rosto como para barbear. Para isso usam a urina ou outra loção mais fétida ainda. O mesmo tipo de líquido é embutido pela boca adentro com a proibição de expelir. Com socos violentos quebram-lhe o brio de adolescente” (ERASMO, [200?]a, p. 77-78). E, continua: “Depois, fazem-no engolir farta dose de vinagre, de sal ou de qualquer outra substância que lhes der na veneta desvairada. Por último, os promotores da brincadeira exigem juramento de obediência a todos os seus caprichos” (ERASMO, [200?]a, p. 78). E assim, para finalizar tal brincadeira, os alunos são levantados pelo ar “[...] em posição dorsal e atiram-no qual aríete contra um poste. A brutalidades tão vis, sobrevêm, frequentemente, febres e dores imedicáveis que afetam a espinha. Por último, aquelas brincadeiras descabidas findam em bacanais” (ERASMO, [200?]a, p. 78). Tais atos, que caracterizam o trote universitário, são desaprovados com veemência por Erasmo: É com iniciações de tal natureza que são formulados os bons augúrios para os estudos das artes liberais. O certo seria reservá-las para adestrar algozes, torturadores e traficantes de donzelas ou a um Cário de espírito venal ou ainda a alguém destinado às galés. Nunca a jovens voltados ao culto das Musas e das Graças. É de estarrecer que jovens devotados ao estudo das artes liberais sejam infernizados com tal requinte. O que mais constrange é constatar a aprovação por parte dos responsáveis pela juventude (ERASMO, [200?]a, p. 78). Tal relato confirma o que está escrito por Erasmo no Elogio da Loucura: de que o trabalho educacional que até então vigorava favorecia uma educação que tirava o ar brincalhão dos jovens aprendizes fazendo deles adultos carrancudos, matando neles a simplicidade, a vivacidade e a candura: Quero que me chamem de mentirosa se não fôr [sic] verdade que os jovens mudam inteiramente de caráter logo que principiam a ficar homens e, orientados pelas lições e pela experiência do mundo, entram na infeliz carreira da sabedoria. Vemos, então, desvanecer-se aos poucos a sua beleza, diminuir a sua vivacidade, desaparecerem aquela simplicidade e aquela candura tão apreciadas. E acaba por extinguir-se neles o natural vigor (ERASMO DE ROTERDÃ, 1955, 27-28). Para Erasmo, todos aqueles que estão envolvidos com a arte dos estudos liberais, deveriam defendê-la e praticá-la também em meio às brincadeiras: “Em todo o caso, quem professa os estudos liberais deveria também praticar brincadeiras do mesmo nível, isto é, „liberais‟” (ERASMO, [200?]a, p. 79). Por fim, Erasmo faz algumas considerações a respeito dos cuidados que os educadores, sejam eles pais ou preceptores, devem ter para com a educação das crianças. Aí, nada mais contraproducente que habituá-la aos flagelos. Essa enormidade transmuda a índole mais dócil em rebeldia e reduz os desanimados ao desespero. A assiduidade de castigos debilita o corpo enquanto a mente fica insensível à força da palavra. Também aquela freqüência de repreensões acres deve ser eliminada (ERASMO, [200?]a, p. 79). Parece óbvio, mas, é preciso que os educadores no ato da correção estejam atentos que estão lidando com crianças, pois: “Os corpos tenros são como plantas novas que podem inflectir para qualquer direção com a ajuda de amarilhos, mas, assim, elas crescem e enrijecem” (ERASMO, [200?]b, p. 131). No entanto, se castigados em excesso se inclinam para a revolta. Erasmo faz uso aqui da analogia entre o reino animal e a criança, para mostrar os efeitos nocivos de um método errado de educação e a força pedagógica do correto método: Cavalo de raça doma-se com assobios e carícias e não com látego e espora. Se o molestam em demasia, torna-se arredio, coiceiro, mordente e dá de andar a ré. O boi por sua vez, fustigado com excesso, livra-se da canga e investe contra o picador. Deve-se lidar com o espírito tenro e grácil da criança tal como um filhote de leão. Só o jeito amansa elefantes e não a força. Aliás, não existe animal tão feroz que não se renda ao bom trato. De mais a mais, não há animal tão manso que não fique furioso ante tratos imoderados. (ERASMO, [200?]a, p. 72). O adulto que se encontra na condição de educador, pai ou professor, precisa renunciar de vez o método da punição, porque castigo gera castigo. Chega um momento em que “Para seviciar, só as correias já não bastam mais Batem com o cabo e desferem bofetadas e socos contra os pequenos. Agarram, mesmo qualquer objeto ao alcance das mãos e arremetem-no contra eles” (ERASMO, [200?]a, p. 74). O educador precisa renunciar também aos falsos argumentos do método punitivo: A esta altura, não vai faltar quem trombeteia os oráculos dos hebreus: „Quem poupa a vara, odeia o filho; quem ama o filho, habilita-o ao castigo dos flagelos‟. E ainda: „Dobra a cabeça do teu filho enquanto jovem bata nos seus flancos enquanto ainda criança‟. Pode ser que os mencionados castigos fossem adequados aos tempos antigos dos judeus. Hoje, devemos interpretar aquelas palavras hebraicas de modo mais humano. Aliás, fosse para serem tomadas aquelas sentenças em sentido literal, então que pode haver de mais ábsono como „fletir a cabeça‟ ou „malhar as laterais‟ da criança?! Por acaso trata-se de adestrar um touro para o arado ou um burro para a carga e não um ser humano para a virtude? Qual o prêmio prometido? „que não venha a pulsar à porta do vizinho‟. Assim, para o filho teme-se a pobreza como mal supremo. Ora pode haver algo mais decepcionante que esse modo de sentenciar? (ERASMO, [200?]a, p. 79). E, Erasmo explicita qual é o verdadeiro método quando se torna necessária a admoestação: Nossa vara não exceda a admoestação civilizada. Vez por outra, uma correção, porém, temperada pela mansuetude e nunca pela cólera. Com tal procedimento repreensivo, podemos, sim, afeiçoar os nossos filhos para receberem, dentro de casa, a instrução correta do bem viver sem estarem compelidos a mendigar conselhos junto aos vizinhos sobre modos de procedimento (ERASMO, [200?]a, p. 79). Assim, a correção, que vez ou outra precisa ser utilizada, deve ser aplicada com moderação e mansidão. E, Erasmo apresenta qual é o verdadeiro relho com o qual malhar o flanco das crianças: Para que ela seja aplicada é preciso antes ter feito uso da técnica da persistência, a mesma acontece da seguinte forma: “Vigiemos, encareçamos, insistamos, exigindo, reiterando, inculcando. É com o bastão dessa espécie que se bate nos lados de nossos filhos” (ERASMO, [200?]a, p. 80). Dessa forma, se a repreensão for necessária, nada de humilhar a criança, “Nunca desnudar o corpo da criança inocente, máxime ante os olhares de muitos. Isso toca as raias da contumélia. Também tão em voga, o submeter crianças e inocentes à pancadaria” (ERASMO, [200?]a, p. 80). Com base nas palavras do apóstolo Paulo, Erasmo reforça o modo incorreto e modo correto de tratar as crianças quando da necessidade da correção, que vale tanto para a educação familiar quanto para a escolar: “Quanto aos filhos, qual é o preceito do mesmo apóstolo? Se, de um lado, não permite que sejam castigados como servos, de outro lado, ordena expurgar as admoestações e repreensões de qualquer tom de severidade e amargura” (ERASMO, [200?]a, p. 74). Assim, em sua proposta de uma nova metodologia educacional, Erasmo apresenta argumentos da necessidade de uma educação liberal que supere a pedagogia do medo. 3 FORMAÇÃO DO HOMEM LIBERAL Uma das vertentes da proposta educacional de Erasmo é a educação liberal, a qual nada tem a ver com libertinagem ou com o conceito de liberalismo moderno e sim com a idéia clássica das Humanidades, advinda das sete artes liberais. Tal educação pretende formar o homem para a vida educando-o para a virtude na qual se insere a educação para a civilidade. No que se refere à virtude, ela não acontece separada do processo educativo, pelo contrário, é adquirida por meio da educação, mediatizada pelo ensino das Boas Letras, que são as Belas Artes ou Artes Liberais as quais compreendiam o estudo da gramática, dialética, retórica, aritmética, geometria, astronomia e música. À época de Erasmo, muitos acreditavam ser difícil fazer com que a criança se tornasse virtuosa. Ele menciona que era comum dizerem acerca da natureza da criança: de que é próprio dessa idade a propensão ao não cumprimento de regras. “Entrementes, chegam aos nossos ouvidos estranhas lamentações do povo. Dizem que a natureza infantil é por demais propensa ao desregramento, que é difícil atrair as crianças para o gosto de coisas honestas!” (ERASMO, [200?]a, p. 45). Em oposição à opinião vigente, Erasmo manifesta sua posição frente às lamentações da sociedade, apresenta sua defesa quanto à natureza infantil e joga tal responsabilidade nas mãos dos adultos, principalmente daqueles que detêm os cuidados das crianças. “Há exagero ao recriminarem assim a natureza. A maior parcela daquele mal deve ser debitado a nossos erros, pois corrompemos o espírito com vícios bem antes de acostumá-lo com a virtude. Não seja isso motivo de estupor. A pouco docilidade das crianças para as coisas boas deve-se ao fato de ter sido, anteriormente, predisposta para a devassidão” (ERASMO, [200?]a, p. 45). A responsabilidade dos adultos pela possível natureza corrompida das crianças é reforçada por Erasmo, ao mesmo em que apresenta a correta educação como fonte da virtude, o que implica na obrigatoriedade de seu ensinamento pelos pais e educadores: Com efeito, a fonte de toda a virtude consiste numa educação diligente e aprimorada. De igual modo, em relação à demência e à perversidade, o primeiro, o segundo e o terceiro passos resultam da educação descuidada e corrupta. E pensar que tudo depende, de modo preponderante, de nós mesmos! (ERASMO, [200?]a, p. 26). Tal responsabilidade de educação da natureza da criança para a virtude começa desde a mais tenra idade: “Faze-o aprender as primeiras noções antes que a idade fique menos dúctil e o ânimo mais propenso aos defeitos ou até mesmo infestado com as raízes de vícios tenacíssimos” (ERASMO, [200?]a, 21). Contrariamente, negligência maior se encontra no ato da escolha do preceptor. Pais pouco preocupados com a educação e com a virtude dos filhos não se dão ao trabalho de escolher bons preceptores, “Ao te deparares com alguém talhado para inutilidade em qualquer função, retardado, preguiçoso, imbecil, glutão, bem a ele é que confias a educação do teu filho” (ERASMO, [200?]a, p. 46). Ou ainda: “Indivíduos há de caráter sórdido que detestam contratar preceptor idôneo. Pagam mais ao escudeiro do que ao educador do filho [...]” (ERASMO, [200?]a, p. 46). É nas mãos de pessoas como essas que se encontra a educação dos filhos, e tamanho é o despreparo dos pais que ainda esperam que esses preceptores os eduquem para a vida e a virtude. Frente a isso Erasmo recomenda: Para tanto deves, desde logo, procurar um homem de bons costumes e de caráter meigo, dotado de conhecimentos invulgares, a cujo regaço possas confiar teu filho como ao nutriz de seu espírito a fim de que, a par do leite, sorva o néctar das letras e, assim condividas, por igual, os cuidados entre as amas e o preceptor de sorte que aquelas lhe fortificam o pequeno corpo com o melhor dos sucos enquanto este zela pela mente, subministrando ensinamentos salutares e honestos (ERASMO, [200?]a, p. 22). Entretanto, as pessoas têm corrompido os costumes salutares. Alguns em relação à sua própria índole “[...] esbanjam, de roldão, com banquetes faustosos; passam noites e dias no funesto jogo de dados, investem em caçadas e divertimentos” (ERASMO, [200?]a, p. 46). Outros, em relação à educação da índole do filho, pois: “Com a deterioração dos costumes, o comodismo persuadiu que tal encargo fosse entregue ao pedagogo doméstico e, assim, um ser livre fica aos cuidados de algum escravo para fins instrucionais” (ERASMO, [200?]a, p. 62). Assim, o novo método que atribui grande importância à criatividade da criança esbarra nessas e noutras dificuldades. Uma dessas dificuldades é alteração dos costumes antigos, que derruba o princípio da virtude e dá primazia a outros valores: Outrora, era de obrigação, qual dever primordial de amor, instruir os consangüíneos na área da virtude e da erudição. Hoje, ao invés, só existe uma única preocupação: dar ao menino uma esposa bem prendada. Logrando tal objetivo, pensa-se ter cumprido, em perfeição, os deveres para com os filhos (ERASMO, [200?]a, p. 62). Logo, a autenticidade do pai está em se dedicar plenamente ao filho, e não apenas em partir de seus interesses. O empenho primordial deve se reduzir no quesito que o torne sobreposto aos animais aproximando-o do ser divino. “Para seres pai autêntico deves dar dedicação plena ao filho por inteiro, sendo que a primazia absoluta desse empenho recai sobre aquela parte que o sobrepõe aos animais e aproxima-o, bem de perto, da semelhança com a divindade” (ERASMO, [200?]a, p. 23). Cabe aos pais a tarefa de ocupar os espaços vazios da natureza com a correta educação dos filhos para a virtude: Que há de mais funesto para o ser humano? Por certo, estultícia. Em decorrência, nada tão apetecível quanto a virtude. De outro lado, nenhuma outra coisa aprende-se, de modo mais célere, que aborrece a estupidez, posto que, por mercê da diligência paterna, haja pressa em ocupar o espaço vazio da natureza (ERASMO, [200?]a, p. 45). Ora, tal tarefa só é possível porque o homem é um ser racional e como tal deve seguir os seus ditames. “Ora, que há de mais eminentemente singular no homem? Viver segundo a razão. Eis porque ele se define como animal racional e por isso é distinto dos irracionais” (ERASMO, [200?]a, p 45). Assim, devido ao fato da criança ser dotada de razão é possível, com muita dedicação, implantar nela o mais cedo possível a qualidade da virtude. “Realmente, não será fácil se deparar com uma índole tão dócil, tratável e dúctil, que a tudo isso se acomoda, de pronto, dispensando qualquer tipo de estímulo” (ERASMO, [200?]a, p. 57). Esse estímulo é a educação, que completa a natureza da criança formando-a na e para a virtude. Contudo, Erasmo se depara com muitos opositores desse novo método educacional. “Caso alguém lhes proponha um método mais cômodo, respondem que assim foram educados e, por tal razão, não admitem algo de diferente nem melhor para as crianças hoje” (ERASMO, [200?]a, p. 96). Isso leva Erasmo a satirizar não só o modelo educacional vigente, mas também aqueles que se colocam contra o novo modelo. No que se refere à civilidade, a fim de formar o homem liberal, ou seja, o novo homem para a sociedade, em seu programa educacional voltado à virtude, Erasmo dá ênfase à formação do homem nas boas maneiras de comportamento social. Afinal, é preciso adequá-lo às exigências da nova sociedade que se encontrava em transformação! É relevante a forma como ele valoriza a necessidade de tais boas maneiras serem iniciadas na vida do ser humano desde a infância a fim de as crianças serem aceitas na sociedade, sabendo como se portar frente às exigências sociais durante a vida toda. Por isso, diz respeito também aos adultos. Com esse intuito, Erasmo escreve uma obra de educação infantil A Civilidade Pueril, na qual apresenta vários procedimentos instrucionais de como a criança deve se comportar, ou seja, várias atitudes que devem ser tomadas como modelo de virtude em seus diferentes momentos na sociedade. Dito em outras palavras, são verdadeiras lições sociais de formação do cidadão, isto é, um conjunto de regras de ensinamento das atitudes corretas que devem ser tomadas em diferentes situações, tanto em local privado quanto público. É a civilidade enquanto virtude a ser ao mesmo tempo em que alcançada, praticada. As regras de conduta dizem respeito às atitudes corretas e incorretas, à elegância dos trajes, ao modo de se portar na Igreja, aos banquetes e às refeições, aos encontros e conversas, ao esporte e ao leito. São maneiras comportamentais necessárias à boa aceitação social. Se incorretas desviam-se da virtude da civilidade, se corretas realizam-na. Segue abaixo algumas instruções de Erasmo sobre as maneiras socialmente aceitáveis que devem ser integradas na educação infantil. Sobre as atitudes corretas e incorretas Erasmo menciona partes do corpo e necessidades e expressões fisiológicas. Quanto aos olhos: “Para que a boa índole da criança seja transparente (e nada como os olhos para revelá-la), convém que o olhar seja plácido, respeitoso e circunspecto” (ERASMO, [200?]b, p. 125). E, Erasmo explica por que: “Realmente não foi, por acaso, que a sabedoria dos antigos dizia que a alma tem sede nos olhos” (ERASMO, [200?]b, p. 125). Em relação ao riso: “Rir de tudo o que se faz ou é dito eis coisa de bobalhão, mas, não rir de nada já é estupidez. [...] Rir como imitando o relincho de um cavalo não é decente” (ERASMO, [200?]b, p. 128). Quanto à tosse: “Surpreendido por um ímpeto de tosse, cuida de não expelir o ar na face alheia. Do mesmo modo não convém tossir com mais veemência do que necessário” (ERASMO, [200?]b, p. 130). No que diz respeito à elegância nos trajes: “Em consonância com as partes e o status, respeitando ainda usos e costumes de cada região, deve-se ater à limpeza da roupa. Não é conveniente chamar a atenção nem por causa do desleixo nem do luxo que demonstra ou vaidade ou lascívia” (ERASMO, [200?]b, p. 136). Em relação ao comportamento na Igreja: “Cochichar, naqueles momentos, aos ouvidos do vizinho é próprio só de quem não dá crédito à presença do Cristo” (ERASMO, [200?]b, p. 138). Ou ainda: “Ficar a repassar os olhos de um canto para outro é atitude de pessoa abobada” (ERASMO, [200?]b, p. 138). E Erasmo ensina: “Guarda o seguinte: é inútil ires a uma igreja, se dali não saíres melhor e mais puro” (ERASMO, [200?]b, p. 138). Quanto ao comportamento em banquetes e refeições: “À mesa é de regra estar bemhumorado. Não significa isso ser petulante” (ERASMO, [200?]b, p. 139). Ou: “Não há utilidade alguma em sentar-se à mesa e ficar meditabundo” (ERASMO, [200?]b, p. 145). Ou, ainda, em relação á atitude dos pais para com as crianças “É sinal de desamor pelas crianças permitir a tão tenra idade participar de ceias que se prorrogam pela noite adentro” (ERASMO, [200?]b, p.147). Essas e outras instruções contidas nessa obra de Erasmo são partes constituintes da educação familiar e escolar e devem ser transmitidas às crianças desde a tenra idade para assim se habituarem desde cedo com as regras de civilidade. “Não nego que a civilidade seja a parte mais modesta de toda a Filosofia, mas, ela tem, hoje, o condão de captar benevolência e predispor para a aceitação alheia nossas qualidades mais prestantes” (ERASMO, [200?]b, p. 124). Embora tal obra tenha sido dedicada a Henrique de Borgonha, filho de Adolfo, príncipe de Veere, isso não pode ser entendido de forma alguma que Erasmo seja um educador comprometido com a nobreza. Sua intenção é de fazer com que a obediência das regras de conduta pelo filho do príncipe seja como um espelho para que as demais crianças as sigam com maior prazer. [...] tudo o que passamos a prescrever, embora de exígua utilidade para tua pessoa, filho que és de príncipes e fadado ao poder, será acolhido, mais prazerosamente, por todos os outros meninos bem porque dedicado a uma criança de classe tão alta e de grande futuro. Aliás, não seria de negligenciar o incentivo que daí advém para o mundo das crianças pelo fato de verem os filhos dos príncipes imbuídos dos mesmos estudos e exercitados na mesma aprendizagem (ERASMO, [200?]b, p. 123). Como diz Luiz Feracine ([200?]), tradutor dessa obra para o português, o objetivo maior de Erasmo com essa obra é o de atingir o maior número possível de pessoas, em especial aquelas que não tiveram o privilégio de possuir um professor particular: “Seu intento era ir ao encontro de todas as crianças, democratizando assim o patrimônio da cultura erudita até então reservada para as classes privilegiadas” (FERACINE, [200?], p. 115). Fica clara, assim, a metodologia educacional proposta por Erasmo da formação de um novo homem, o homem liberal, educado na e para a virtude, na e para a civilidade. 4 FORMAÇÃO DO HOMEM CRISTÃO Para além do método de ensino de formação do homem liberal na virtude para civilidade, Erasmo contempla em seu método educacional primeiramente o ensino voltado para a sua formação cristã, ou seja, na piedade para a liberdade de filhos de Deus. Isso quer dizer que a educação liberal é decorrência natural da verdadeira educação cristã. Assim, da mesma forma que propõe a formação de um novo homem para a virtude por meio do ensino das Boas Letras pretende formar esse mesmo homem para a piedade mediante o ensino da Letras Divinas, assentadas prioritariamente nas Sagradas Escrituras, em especial no Novo Testamento. Certamente, o melhor exemplo de fundamentação da educação cristã se encontra no uso que Erasmo faz da exortação do Apóstolo Paulo para - ao mostrar aos pais a falha do método educacional vigente quanto à educação dos filhos - evidenciar o modelo divino de educar: Recomenda: „Vós, pais, não exaspereis os filhos até a ira; mas educai-os na disciplina e na correção segundo o Senhor.‟ Que disciplina é aquela emanada do Senhor, com facilidade, descobre quem pondera a mansidão do amor com que Jesus ensinou, suportou, incentivou e, progressivamente, foi conduzindo os discípulos pelos patamares do amadurecimento (ERASMO, [200?]a, p. 74). Ora, esse novo método de formação do homem para a liberdade cristã se opõe frontalmente à prática vigente dos flagelos que trucidam a alma das crianças. Seus princípios são outros. Assim, que os filhos “Antes do mais, aprendam a amar e admirar o que é honesto [...]” (ERASMO, [200?]a, p. 80) para que “[...] contemplem os exemplos daqueles que abeberaram, na fonte da educação [...]”(ERASMO, [200]a, p. 80) e não os “[...] exemplos daqueles nos quais os maus hábitos esculpiram um espírito vazio de entendimento” (ERASMO, [200?]a, p. 80). Essas são algumas das condições para quem pretenda seguir a forma divina de educar. “Em conclusão, apenas flagelos dessa espécie são dignos do cristão, discípulo do mansíssimo Jesus” (ERASMO, [200?]a, p. 80). Dessa forma, outros elementos - que se entrelaçam na proposta metodológica de Erasmo da formação do homem cristão e livre - comprovam a superioridade do novo método educacional no que diz respeito à formação de um homem para a liberdade cristã. Por exemplo, ele implica em respeito mútuo entre os homens, como companheiros e irmãos, com a superação da servidão, a temperança da autoridade, o refreamento das ameaças e, evidentemente, o fim dos flagelos: Aliás, já é tempo de ser banida, de uma vez para sempre, dentre os costumes cristãos, aquela sórdida palavra „servidão‟. Paulo recomenda Onésimo a Filemão, não como escravo e, sim, qual irmão caríssimo. Na Carta dos Efésios, adverte os patrões para temperarem a autoridade e refrearem as ameaças contra os escravos, lembrando-os de serem antes companheiros do que senhores porque o patrão comum de todos está nos céus. Aquele que vai pedir contas dos pecados cometidos tanto pelos donos quanto pelos servos. Eis porque o Apóstolo exige dos patrões que não sejam ameaçadores nem muito menos flagelantes (ERASMO, [200?]a, p. 73). Outro elemento fundamental desse novo método educacional é o exemplo de vida, pois toda criança tende naturalmente à imitação. Ela é [...] maleável para todo tipo de bom comportamento, desde que não seja infestada de vícios de espécie alguma. Aliás, ela se compraz em imitar. Basta dar-lhe ocasião. Tal como ela se adapta aos vícios, já antes de saber do que tratam, assim, com igual facilidade, a criança e afeiçoa com os hábitos corretos (ERASMO, [200?]a, p. 55). De fato, todo cuidado em relação às próprias ações se faz necessário, tanto dos pais, amas e educadores, pois “Já foi demonstrado, acima, que a criança possui pendor espontâneo para a imitação” (ERASMO, [200?]a, p. 60). Um elemento de suma importância para o novo método é o amor. Sem dúvida, o amor do educando, para com o educador: “O primeiro grau de aprendizagem consiste no amor ao professor” (ERASMO, [200?]a, p. 66). No entanto, para ser amado é necessário primeiramente o amor do educador para com a criança: Sob essa condição, a criança aprende com mais receptividade porque não se desgasta no tédio pela tarefa, dado seja verdade que, em qualquer desempenho, o amor ameniza grande porção das dificuldades. [...] Por isso convém que o preceptor, de algum modo, saiba fazer-se criança a fim de granjear o amor das crianças (ERASMO, [200?]a, p. 85). Conseqüência lógica do fato do educador fazer-se criança é que ser bom educador implica tanto em saber amar quanto saber ser amado. A valer que, “Aprendemos, sim, com muito entusiasmo, daqueles aos quais amamos” (ERASMO, [200?]a, p. 66). Isso significa que: “A primeira tarefa do professor consiste em ser benquisto. A seguir, paulatinamente, sobrevém não o terror, mas o respeito liberal que vale mais do que o medo” (ERASMO, [200?]a, p. 67). E, o professor só conquistará o amor de seu aluno se saber amá-lo. Por fim, o novo método implica necessariamente na piedade. Ela é o argumento forte de Erasmo para defender, por exemplo, que a responsabilidade pela educação das crianças é primeiramente dos pais: “Daí então decorreriam duas vantagens tal como comporta efeito duplo quando um bispo se revela homem pio e, assim, arrebanha mais fiéis, enquanto os inflama pela piedade” (ERASMO, [200?]a, p. 63, grifos nossos). Dessa forma, é necessário haver uma nova forma de pensar e de agir do educador, quer seja ele pai ou professor. Essa mudança é condição primordial para que o novo método seja de fato estabelecido na formação de uma nova sociedade, uma sociedade de homens liberais e cristãos, em que prevaleça o reino da liberdade. 5 CONCLUSÃO Com sua nova proposta educacional, Erasmo pretende o fim do domínio do método da coerção exercido pelos pais sobre os filhos e, principalmente, pelo professor sobre os alunos, ou seja, a superação da pedagogia do medo. Nessa mudança metodológica é necessário um ensino que eduque a criança desde a tenra idade, mas durante toda a vida para liberdade, nos princípios de uma educação liberal e cristã, ou seja, respectivamente na e para a virtude e na e para a piedade. Tal educação tem a força para transformar o homem e a sociedade. Muito tempo se passou do século de Erasmo ao século XXI, mas ainda se encontram métodos de ensino que realçam a pedagogia do medo, se não mais no uso do castigo físico, certamente em ameaças psíquicas ou até mesmo em chantagens emocionais para conseguir algo em troca. Isto sugere que nos dias atuais ainda é necessário repensar as práticas pedagógicas escolares e familiares quando se trata da arte de educar. E Erasmo, como pedagogo atualíssimo, nos aponta o caminho. REFERÊNCIAS ERASMO. De pueris (dos meninos). Tradução, Introdução e Notas de Luiz Feracine. São Paulo: Escala, [200?]a. (Grandes Obras do Pensamento Universal, 22). ______. A civilidade pueril. Tradução, Introdução e Notas de Luiz Feracine. São Paulo: Escala [200?]b. (Grandes Obras do Pensamento Universal, 22). ERASMO de Rotterdam. Elogio da loucura. Tradução de Paulo M. Oliveira. São Paulo: Atena, 1955. (Biblioteca Clássica v. 1, 6. ed.). FERACINE, Luiz. Tradução, introdução e notas. In: ERASMO. A civilidade pueril. Tradução, Introdução e Notas de Luiz Feracine. São Paulo: Escala [200?]. (Grandes Obras do Pensamento Universal, 22).