© A noite em tua pele impressa, Floriano Martins, 2006, 2013
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A NOITE EM TUA PELE IMPRESSA
2006
Amanhã eu começo a me afastar de ti.
Cinco noites quebradas dentro do poço.
Cinco fulgores com a cabeça pendida.
O anúncio atormenta o espírito decaído sobre a pedra.
Ouvimos as vozes recorrendo às rajadas de silêncio.
Já vimos como é fácil viciar motivos.
Temos que embrulhar a noite em tua pele impressa.
Não deixemos a dor tocar profundidade alguma, pois ainda há muitos tonéis de espanto por
recolher.
Amanhã eu digo que não passarás mais daqui.
Sabemos que nem todas as evidências são úteis.
Não há quem desperte o tédio de sua ressaca.
Não chores no miolo do inferno.
Não vociferes no alvoroço de salas da penumbra.
O poema a todo instante te engana.
As metáforas conhecem todos os feitiços.
Tuas imagens se desfalecerão por excesso de nomes.
Amanhã eu sou a tua metafísica aturdida.
A fria sopa de trevas servida com ervilhas e as manchas de esperma na tolha de mesa.
Teu negro coração se parte, esvaziado de seu fulgor.
Prazeres defumados em tua pele.
Tudo invisível como pedra e limite da areia em nosso olhar.
Deserto vítreo que nos devora a carne em tormentos solares.
Nenhuma lei nos resta por infringir.
Amanhã eu esgoto as tuas formas sem perdão.
Um rapto anunciado dentro da espuma dos risos.
Tudo em ti se extenuando enquanto me gozas.
As posições que ocupam em meu corpo as tuas esferas secretas.
Submeter cada forma a sua vergonha extrema.
Ser bom para com a queda que se despe.
Adotar por princípio a delicadeza nos dormitórios e outros meios de transporte.
Há um livro sendo escrito enquanto se descarnam ruído e silêncio.
Nada em ti deve cobiçar a eternidade.
Amanhã eu começo a desfazer-te de mim.
Não me escrevas mais nenhum poema.
Temos que embrulhar a noite em tua pele impressa.
Nenhum de nós se esvai dentro do gozo.
Há desastres previstos para cada instante.
Sortilégios que se confundem com o olhar decaído de um pássaro.
Vítimas não se reúnem a redigir imprecações.
Mortos jamais passaram de mortos.
Tudo o que circula entre nós é apenas uma chaga dentro de sua ausência aparente de tudo.
Não rezo por ti esta noite.
Não morro por ti.
Não vivo por ti.
Alimentamo-nos um do outro enquanto todos os cadáveres bailam.
Amanhã eu tomo o depoimento de teus mortos.
O sol não te adora.
O dia não está à tua disposição.
Os teus deuses não querem senão sair nos telejornais.
Não somos primitivos.
Somos deprimentes.
Já ninguém sabe o que se passa com um esqueleto ao desatar o nó de suas crenças.
Muitos riem e indagam se a morte será apenas isto.
A vida de muitos é ainda menor e em nada tal fato incomoda.
Amanhã eu percorro a tua vertigem anunciada.
Porque eu estou dentro da noite e a noite requer extravagância.
Em teu olhar a pequena pétala distraída do destino.
Amores enfaixados de deltas, trilhas sanguinárias, indiferenças confiantes no próprio suplício.
Eu quero o teu sussurro em minhas costas, a tua insônia em minha ânsia de matar-te, os teus
mamilos recostados em meu peito, a girar, tudo a girar, como se aceitássemos o extravio do
equilíbrio que se agita dentro de nós.
Em um único verso o amor descreve que não passa do espectro da dissipação.
Amanhã eu estréio o sangue de tantas mortes.
Não há como evitar o riso ante a reação do público.
O enredo se põe a rir como uma coleção desfeita de enigmas.
Não sei como este segredo veio parar em mim.
Não me confesses nada que não possas recordar.
Esta vertigem me é de todo desconhecida.
E não somente seios, omoplatas, olhares: não havia limites para o que se pretende fora de lugar.
O valor intrínseco de cada coisa desapareceu.
Nos bastidores os personagens remendam os figurinos.
O teatro sabe que não pode parar.
O público se recria com um enigma estupefato nas mãos.
Amanhã eu caio de tua boca fechada.
Não há acordo ou silêncio advertido.
Eu simplesmente caio, sem que facção alguma assuma o feito.
Declives na vida do olho, cadáveres encerrados no gozo, efeitos ordinários.
Roncos da insônia, linguagens trotando em busca de uma imagem desfeita, tatuagens boiando no
fogo.
Um pequeno vazio se dilata.
O vento não me venha com sua resenha de espantos.
Teu silêncio requer mais que um requebro de espinhas.
Amanhã eu fujo de tuas previsões.
É ingênuo pensar que os olhos do carrasco se encherão de lágrimas.
Os deuses não conhecem outro sóis senão aqueles que lhes dedicamos.
Os carrascos não têm olhos.
A vida não nos rende homenagem.
Eu planejei tudo para estar aqui às três da tarde, mas um rumor, a droga de um rumor que se
derramava pela engrenagem de meus salmos, não me permitiu atingir idade suficiente para
perder-me em ti.
Amanhã eu trato de dissipar teus suspiros.
Os vícios nos tornaram tão pensativos.
Reparaste que há partes tuas que jamais se moveram em mim?
Eu não estou aqui.
Eu não vigio o monstro que mantemos à beira do fulgor.
Tu me desterras com teu amor.
A tua beleza é uma descoberta minha.
Agora não sei o que fazer de ti, e me enfureço por não saber como banir-te daqui.
Amanhã eu começo a desaprender-te.
Não é muito, para quem sequer sabe teu verdadeiro nome.
A paisagem se torna constrangedora com tantas pernas sem saber quando devem ser cruéis.
Há atraso previsto até mesmo no compasso da perversão.
Se há uma verdade, há que evitá-la.
Temos que embrulhar a noite em tua pele impressa.
Os olhos nos levam de um andar a outro.
Contamos entre os vivos quantos tornaram possível a tragédia que nos atemoriza.
E os perseguimos como se não houvesse espelhos no mundo.
Estamos agora em um andar secreto onde não podemos ser identificados.
Tua morte não cabe em meus braços.
Amanhã eu decoro a tua ausência.
Tu és a minha beleza refeita em cinzas.
Eu sou a queda rutilante de tudo quanto havia em mim de teu amor.
E agora nos entregamos a este ar pensativo com que denunciamos tudo o que desprezamos no
outro.
Por onde cai a pele?
Ainda estamos aqui, no entanto.
Escuto o batuque das roupas se desfazendo de sua morada.
Um poema pode salvar a imagem decadente do amor.
Nunca nos movemos por baixo da neblina de tais absurdos.
Um suspiro alimentando outro sem que nenhum buscasse significado sequer para si mesmo.
Como saber qual de nós insiste nisto por acreditar em algo?
Somos levados por rumores.
É o grande ritual que alimenta as vísceras de toda metáfora.
Ruídos, murmúrios, burburinho.
A vida não passa disto.
Amanhã eu reparto as carnes extraviadas de teu desamparo.
Já não estarás aqui e as ruínas mal se distinguem entre rostos ausentes.
Deves recordar quando aprendemos a descombinar golpes.
É como sair a petrificar nuvens por onde se passa.
Aqui não passará nada.
Conhecemos os atrozes enigmas incapazes de nos denunciar.
Teu próprio riso se manifesta demasiado antigo.
Fomos perdendo a noite dentro de arquivos citados.
Sequer o infortúnio manteve a cor original.
Amanhã eu saio daqui com alguns traços ocultos.
Convulsões esmiuçadas dentro da estação fechada.
Não me tens sob tua roupa, mas sabemos que as circunstâncias nos convertem em idiotas.
Decerto haverá um espelho em que me possas matar.
Cortar os pés da imagem para que tenhas descanso.
Substituir a esperança por escadas mais baixas.
As vítimas se delatam em sua palidez.
Resumem a vida a uma lista de imperativos.
Os violinos não puderam vir para o jantar.
Morrerás assim mesmo.
Amanhã eu soletro o mistério de tuas flores.
Não se sabe como essa vigília passou a crer demasiado em seus méritos.
Muitos crimes se confundem, em seus desconexos motivos.
O corpo permanece morto.
As pistas tornam a sobrevivência atrativa.
Vestígios se deliciam em traçar planos de fuga.
Temos que embrulhar a noite em tua pele impressa.
Amanhã eu trato que regressem a seus lares os fantasmas de todas essas noites.
Muitos sonhos já não sabem o que fazer de si.
Imagens se atropelam em busca de soluções artísticas para seu abandono.
Um livro assim não ficará pronto nunca.
Tens um poema ruim dentro de tua alma.
Agora que não sabes nada de mim, posso confundir-te por toda a vida.
Somente se afogam os profetas que sabem nadar.
Os conceitos são servidos em uma mesma pasta de agulhas.
Não estarás aqui em teu dia mais solene.
E todas as tuas lembranças serão viscosas e malsinadas.
Eu me inundo de ti, de onde extraio os sons que me iludem de ser tua própria sombra.
Amanhã eu faço os reparos na inundação de teu ser.
A dor tem que saber que dói.
A ilusão, que faz germinar um jardim de gavetas.
Onde quer que surjas, haverá sempre um relógio a dizer: espero.
Por qualquer que seja a víscera que o mundo se extinga: espero.
A tua morte contemplada mil vezes dentro do olho de um fósforo: espero.
Por infinitas horas a tempestade agônica da mesma tecla.
O livro já se foi, ninguém o pôde ler.
Não nasce nada aqui.
Temos que embrulhar a noite em tua pele impressa.
Amanhã eu tenho que contestar as minhas promessas.
Não vamos passar a vida toda assim.
Criaste um segredo comigo e isto me atormenta.
A realidade não é uma abstração tão perigosa quanto pensam os poetas.
Treinar parricídios diante do espelho.
Desacreditar em abismos dispostos a tudo.
Também Deus envia bilhetes anônimos.
A fé não trapaceia menos que os relógios silenciosos do inimigo.
Todos nós somos inimigos.
Não se pode concluir um poema assim.
A terra gira.
A inocência se alimenta de si mesma.
O engano a fortalece.
A inação domina todos os cenários.
O homem não crê senão no amanhã.
A todo instante reitera: amanhã.
Amanhã:
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