O PAPEL DA MEMÓRIA E O IMAGINÁRIO
Juciene Silva de Sousa Nascimento1
1 INTRODUÇÃO
É bem sabido que a literatura, dentre as suas particularidades, se utiliza da memória
a fim de retomar fatores e/ou acontecimentos dos quais o imaginário se serviu em distintas
situações discursivas. Dessa forma, podemos dizer que para essa arte a memória possui um
papel determinado, como um “espaço móvel” de deslocamentos e retomadas de tudo aquilo
que ficou por dizer na história da humanidade, trazendo aos indivíduos a oportunidade de
dialogar com o tempo e ouvir os contra-discursos que deixaram de ser inscritos nos
documentos registradores da história.
Assim como discute Pêcheux (apud ACHARD, 2007, p. 56), ao dizer que a
“memória não poderia ser concebida uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais
históricas e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulando ao modo de um
reservatório”, diferentemente ela se apresenta em forma de contra-senso, sendo espaço de
mobilidade e de discussões.
Nessa perspectiva, consideramos que o conto “A procissão e os porcos”, de Jorge
Medauar, utiliza-se da memória a fim de evidenciar o deslocamento econômico e a
necessidade de se diversificar a produção bem como a forma de os indivíduos se
comportarem em relação uns para com os outros.
O imaginário se utiliza da crise para
retomar traços da cultura grapiúna e rediscuti-los diante da situação real local.
1
Licenciada em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Especialista em Metodologia do
Ensino Superior (FADBA); Mestranda em Literatura e Diversidade Cultural (UEFS); Docente das Faculdades
Adventistas da Bahia (FADBA) e do Instituto Adventista de Ensino do Nordeste (IAENE).
ISBN: 978-85-7395-211-7
2 A MEMÓRIA EM “A PROCISSÃO E OS PORCOS”
A narrativa tem início a partir da observância da crise que se instalara de modo
assombroso. A falta de produção era tão real e, ao mesmo tempo, assustadora que
avassalara toda a economia local. Era como se toda a região parasse no tempo por falta de
alternativa para se reerguer, as dívidas crescendo, alguns bancos parando de funcionar por
falta de movimento, as ricas construções pela metade, estragando o aspecto ostensivo das
cidades grapiúnas. Tudo ocorria pelo fato de que os ricos produtores de cacau não sabiam,
ou não se interessavam, por outra forma de viver senão mediante o cultivo do cacau.
Toda a economia se movia em torno das promessas da próxima safra que nunca
chegava, os comerciantes que não pertenciam à cidade nem até lá iam mais, por estarem
cientes de que se vendessem não teriam como receber, impedindo o progresso da região,
evidenciando um sério momento de estagnação econômica:
Muitos fazendeiros, como ele, vinham sufocados de dívidas, mais
apertados que garrote no laço. E nesses tempos ruins, de safra duvidosa,
os bancos de Ilhéus só faziam juntar hipotecas. De quando em quando
uma casa de negócio arriava as portas: falência. Ninguém soltava um
derréis para ninguém. [...] Muitos que vinham levantando casa,
empacavam no meio do caminho. Os centos de tijolos e telhas ficavam na
frente das obras, estragando, à espera de tempos melhores. [...] Um tostão
valia era muito. Por isso, quase todo mundo comprava prometendo saldar
na safra. Os comerciantes andavam tão espremidos que os caixeirosviajantes já não desembarcavam na cidade: seguiam com suas malas para
outras bandas. (MEDAUAR, 1960, p. 18/19).
Nesses momentos de preocupação, mais uma vez o imaginário de Jorge Medauar se
serve da memória que se converte em elemento norteador da situação, haja vista a
necessidade que o indivíduo tem de manter viva em suas lembranças as reminiscências dos
tempos áureos. A memória, aqui, é via de consolo para as agruras da baixa do cacau,
alimentando a esperança de novas e ricas safras, desempenhando o papel de ponto de
referência, devendo ser compreendida “não no sentido diretamente psicologista da
‘memória individual’, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória
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social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador” (ACHARD [et al.],
2007, p. 50).
Ademais, os momentos em que a memória serve aos devaneios desesperados podem
ser considerados instantes de ponderação e revisão de princípios e/ou de valores. Assim
como afirma Michel Pêcheux (apud ACHARD, 2007, p. 56) ao dizer que a memória “é
necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de
retomadas, de conflitos de regularização[...] Um espaço de desdobramentos, réplicas,
polêmicas e contra-discursos”. Os costumes estavam sempre na pauta da lembrança, neles
os tempos de pujança sustentavam as práticas. Por mais absurdas que essas fossem, eram
inevitáveis as comparações com o tempo vigente da narrativa:
Quando as idéias misturavam dívidas com coisas de família, números com
a tristeza da mulher, tinha que sair do escritório, refrescar o juízo. Ficava
na porta, vendo o movimento ralo da rua, ou soltava os pensamentos para
trás: ia para os tempos em que o povo andava com as mãos cheias de
dinheiro. Em Ilhéus, antigamente – bem se lembrava – era um sueco atrás
do outro, socando os porões de cacau. Nunca precisara pisar numa roça –
a bem dizer, nem sabia o que tinha. Os trabalhadores vinham,
informavam, davam as arrobas de cacau colhido. Abastava ir depois a
qualquer banco e dizer quanto queria de dinheiro. A palavra valia ouro.
Os bancos abriam cofres, despejavam jóias, luxavam, ofereciam
banquetes, davam fortunas às igrejas. Agora, era uma pena ver sua mulher
por dentro de casa, se consumindo nas obrigações, misturada com as
criadas. Homem, até parece que Água Preta caminha para trás! – concluía.
De primeiro, ninguém tinha medo de surpresas do céu; as safras vinham,
cada uma melhor que a outra. (MEDAUAR, 1960, p. 20 – grifos nossos).
O trecho acima pode ser considerado como um dos excertos mais densos e
emblemáticos para a compreensão da complexidade que envolve o deslocamento
econômico, cultural e social pelo qual a região sul-baiana vem passando há décadas. Os
marcadores temporais, por assim dizer, bem explorados na fala do narrador, denotam um
passado distante, sobretudo quando os verbetes ‘antigamente’, ‘de primeiro’ e ‘agora’ são
trabalhados através da narrativa oral, o que dá uma carga de representação imagética mais
demarcadora. A impressão de estar revivendo uma época marcada na memória de uma
sociedade é facilmente perceptível através do saudosismo com que são narradas as
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peripécias dos detentores do poder que o cacau lhes proporcionava, bem como a
importância dada a estes pelo simples fato de as suas palavras valerem ouro, como o fruto
que cultivavam.
O fato mais curioso é o de a desgraça regional não ser esperada. Ninguém poderia
imaginar que um dia a região, outrora tão opulenta, viria a causar ansiedade geral e é
exatamente pela ansiedade de tempos melhores que, mediante a memória, os valores da
civilização do cacau vão sendo revisados e recompostos por aqueles que subsistiram à força
devastadora do tempo. A época era tão crítica, ao ponto de se conjecturar a remediação de
uma desgraça somente com outra em seu lugar, a II Guerra Mundial a fim de que
melhorassem os preços:
Oscar dissera que o preço do cacau só subiria com guerra. Fora disso, nem
governo nem milagre. E se não houvesse guerra, sinhozinho? –
perguntara. Oscar amolava uma mão na outra, dizendo que não sabia.
Uma coisa de ninguém entender! Já se viu – admirava-se – além de chuva,
agora cacau também precisava de guerra, mode se desenvolver! O mundo
estava mesmo se destruindo – rematava. (MEDAUAR, 1960, p. 20/21).
É notável que os tempos fossem outros, a estiagem provocando conversas e
suposições sobre a economia. Os desequilibrados do cacau traziam qualquer fio de
esperança, qualquer viés que fizesse o caminho para o escape da ruína. No entanto, as
pessoas não admitiam o fracasso, escondiam as dívidas, continuavam a manter um padrão
de vida elevado a fim de não deixar escapar aos outros sua condição de falência econômica
e derrota moral.
A solução para os problemas financeiros do coronel Arlindo estava bem à sua
frente, contudo era difícil para ele admitir que as finanças poderiam sobreviver de algo que
não fosse o cacau. A festa de aniversário que sua mulher pretendia promover para o filho,
preocupava-o, mas, ao mesmo tempo, seria através dela que o coronel passaria a conhecer
de perto sua outra fonte econômica.
A resistência à ideia do capataz, em lhe dar atenção sobre à criação de porcos, era
impenetrável. Porém, era deste que se originava uma nova alternativa, talvez até a solução
para as angústias financeiras do coronel Arlindo: a de diversificar a produção, uma vez que
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os porcos proliferavam com rapidez. Seria algo novo para a região e não havia quem
fornecesse para a indústria alimentícia derivados do porco. Apesar de todas as vantagens
apresentadas e a insistência do capataz, a ideia não era aceita pelo coronel, pois sua visão
de negócio só era alimentada pelo cultivo do cacau:
Seus negócios não eram miudezas de criação: era cacau nas barcaças,
cacau nos sacos, cacau na cacunda dos burros. Sempre tivera uma
criaçãozinha para um batizado, um presente, um aniversário. Mas nunca
que virasse seu negócio de cacau para essas tolices. Homem, qual!
Precisaria reconduzir seu capataz às obrigações do cacaueiro. Assim que
viesse com novidades – pensou – daria um esbregue macho, para cortar de
uma vez para sempre a história dos porcos. Seu negócio era cacau e
pronto. (MEDAUAR, 1960, p. 22).
Apesar da consistência das informações dadas sobre a produção dos porcos, que
cada vez mais iam tomando a fazenda, tal alternativa era considerada desacreditada pelo
coronel. As notícias recebidas se mostravam tão urgentes ao ponto de se sobreporem às
providências do cultivo do cacau e, ainda assim a diversificação não passava de um
capricho do empregado matuto.
É possível perceber como a cultura do cacau estava internalizada na vida dos
habitantes da terra, fazendo do fruto do cacaueiro um emblema do qual os indivíduos
dependiam para dar continuidade a suas vidas. Por essa razão, é justificável o
comportamento do coronel Arlindo quando ouvira mais uma vez, na voz do empregado
insistente, as necessidades da fazenda para atender à criação que se multiplicava. A
alienação do cacau não permitiu que o coronel, à beira da falência, não enxergasse os
benefícios que aquelas notícias lhe proporcionariam:
O coronel ouvindo aquela fala aflita, se enraivando por dentro, achando
que seu capataz estava mais afobado com os bichos do que com o cacau.
Como diabo deixava que os animais esculhambassem seu cacaueiro? E
tinha homens para andarem atrás de porco, ou para o trabalho de sua
obrigação na roça?
[...] – Não se importe não, seu coronel. O seu tá garantido. Mas vossuria
fique sabendo que tem uma fortuna... é porco, que só vendo.
(MEDAUAR, 1960, p. 23/24).
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Instaura-se aqui a pertença de outra economia do coronel. A alternativa dos porcos
era tão real e tão certa que se este perdesse toda a plantação de cacau, ainda assim seria um
homem rico. A diversificação econômica urgia a todo instante, mesmo assim a esperança
do protagonista estava em ver boas safras num futuro bem próximo, em que seu foco maior
era o dinheiro que veicularia, mas, para isso, era preciso ao menos que chovesse.
Diante dessa perspectiva, renovava suas expectativas, sonhando com o dia em que
receberia dinheiro pela venda do fruto e que, a partir de então, pudesse realizar uma longa
viagem com a família a fim de desfrutar os luxos que o dinheiro poderia proporcionar.
Nesse instante narrativo, nota-se uma ponderação da dicotomia existente entre metrópole e
interior, como as pessoas costumavam se comportar e dar relevância às grandes cidades,
enquanto que os indivíduos do interior se mostrariam perplexas diante dos costumes, das
modas, das falas dos metropolitanos. Para o coronel, a importância do dinheiro estava em
poder desfrutar dessas coisas, aparentemente, irrelevantes, mas para um aguapretano era de
suma importância, e de extrema necessidade, ter contato com o diferente.
A relação paradoxal que emerge da preocupação financeira e o amor pela família
faz com que a personagem repense o que realmente importa em sua vida. Em meio a esse
emaranhado de ações e pensamentos, o narrador firma em seu discurso onisciente a
discussão entre a ideologia da acumulação, proveniente das aquisições das terras, do cultivo
do cacau e dos lucros que este proporcionava, e a ontologia e espiritualidade, resultante das
revisões de valores dos indivíduos. O amor genuíno, sentido pelo coronel em relação à
esposa, o fez repensar o fato de que precisava dar mais importância e atenção à sua família
ao invés de se manter constantemente trancado no escritório, ocupado com as finanças ou
com preocupações em torno de como conseguir (mais) dinheiro:
Desceu o degrau, pisando leve. Feito gato. Foi andando. Abraçou-a pelas
costas.
- Oxente! – disse a mulher. Tomei um susto...
O coronel um pouco trêmulo. De hoje que não abria a bôca para uma
conversa tola, sem importância, sobre a criação dos filhos ou sôbre as
notícias da rua. Vivia enroscado nas contas, sem dar ouvido à casa, sem se
importar até com a própria mulher, Muitas noites, quando entrava no
quarto para dormir, já a encontrava no melhor do sono, suspirando.
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Precisava acabar com aquêle alheamento, viver mais para junto da
família, considerou. (MEDAUAR, 1960, p. 27).
O valor, aqui, é dado não mais ao dinheiro que imperava e tornava os habitantes de
Água Preta seus súditos, e sim para a família, os momentos singulares que não podem ser
substituídos com seus entes mais queridos. Enquanto somava os prejuízos e pensava em sua
ruína, a personagem refaz os pensamentos, voltando-os para algo que talvez seria inusitado
diante de tantos acontecimentos que o assolavam: o prazer em se importar com aqueles que
mais o amavam. A reciprocidade necessária às relações fizera brotar, do alheio coronel, um
gesto afetuoso, próprio das pessoas que amam.
A (re)discussão dos costumes se dá numa ambivalência colossal, uma vez que,
mediante a preocupação com a situação financeira local, é traçado um perfil
comportamental dos indivíduos que, semelhantes economicamente ao coronel Arlindo, se
comportavam de forma reprovável em relação aos valores e princípios humanos e sociais.
Pode-se afirmar, diante de tal perspectiva, que a ponderação realizada, na narrativa, é
evidenciada a partir de conceitos morais que aludem ao que é politicamente correto no
âmbito de uma sociedade, levando em consideração princípios éticos, religiosos e morais a
fim de tecer uma espécie de julgamento premeditado daqueles que, por terem dinheiro.
Nesse sentido, Jorge Medauar se utiliza da ironia verbal, uma vez que o jogo de
palavras e sua semantização, tecem um paralelo comparativo entre o comportamento das
pessoas, sobretudo das mulheres, em tempos de alta do cacau, quando a riqueza era a base
dos (maus) costumes, e em tempos de baixa, quando toda a altivez burguesa desaparecia e a
vergonha de nada ter para ostentar regia a vida dessas pessoas:
Nos tempos de cacau raso, sem preço, nunca que ninguém a visse
peregrinando pelo comércio, desperdiçando uma pataca sem precisão.
Igual como muitas outras, que só tinham marido mode sacrificar, pedindo
dinheiro para o esbanjamento. Andavam com as mãos arriadas de anéis,
pulseiras de ouro e brilhante. Mas quando vinha o paradeiro, era uma
graça: limpavam o que tinham nas mãos e nos dedos, se quisessem um
bocadinho de farinha com carne seca. Umas descaradas – dizia dona Júlia.
A pouca vergonha dando na vista. Todo mundo sabendo que os maridos
tinham raparigas. Muitas nem se importavam de se misturar com as
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mulheres da rua. De seu coronel Arlindo mais a mulher ninguém podia
dizer um nadinha. (MEDAUAR, 1960, p. 28/29 – grifo nosso)
Nesse trecho a ironia se mescla a comentários corriqueiros. Os costumes revelados
de forma indireta podem ser considerados uma espécie de crônica de costumes, uma vez
que parece comum os habitantes do lugar comentarem um sobre a vida do outro,
demonstrando, na fala, a autorrevisão pela qual passavam constantemente devido à
oscilação da fonte econômica. O mais interessante é que tal fato se dá pela voz de uma
personagem tipicamente ‘fofoqueira’, ou seja, se esta é acostumada a prestar atenção nas
ações do outro, tecer comentários e falar constantemente da vida alheia, pode significar que
ao utilizar tal personagem com o objetivo de ironizar os costumes, a perspicácia autoral foi
legitimada mediante a utilização de fatos corriqueiros que podem ser compreendidos num
alto valor de verossimilhança, já que pessoas ‘fofoqueiras’ comentam sobre coisas que
veem.
No caso do coronel Arlindo, a falta de dinheiro e a esperança de futuras boas safras
o fizeram repensar seus valores e costumes. É o momento que a mudança de
comportamento começa a ocorrer por intermédio da maior aproximação e interesse pelos
assuntos familiares, começando por acompanhar mais a mulher, se interessar pelos afazeres
e lições dos filhos, causando admiração aos aguapretanos. Até o humor do protagonista
melhorara depois que passou a não mais se manter trancado no escritório envolvido com as
contas. As reflexões que fazia constantemente o levaram a um momento epifânico singular:
sobre sua vida de coronel do cacau, descobrira que não adiantaria ficar tão ansioso,
querendo resolver a crise ao seu modo. O que tivesse de acontecer aconteceria sem que ele
nada pudesse fazer. Logo, deveria aproveitar mais os momentos de sua vida pessoal ao lado
dos familiares que amava:
Um pai de família não devia ficar isolado, acuado como porco-espinho.
Também não era coisa do outro mundo deixar de colher o que esperava.
[...]
Foi aí que engavetara os cadernos e os livros com as contas. Não queria
mais saber de cigano, nem de rio minguando. Que a cadomblèzeira fosse
para o diabo, com suas sortes. O dia de amanhã está nas mãos de Deus.
(MEDAUAR, 1960, p. 33)
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A partir de então, a questão da fé passa a ter maior importância. O paradoxo traçado
entre a posse de riquezas e a importância de se professar uma fé torna-se fator
preponderante para a compreensão da trama. Somos rendidos à convivência exemplar do
coronel Arlindo e sua mulher, sobrepondo-se, até mesmo, à preocupação com a economia.
O momento de tensão no enredo, o que vai desencadear e, por assim dizer, justificar as
ações até o final da narrativa, tudo isso prende a atenção do leitor.
O sonho do coronel acerca da procissão por causa da seca daria ao povo de Água
Preta várias interpretações. A visão tinha cenários, de fato, impressionantes para pessoas
esperançosas para com a chegada das chuvas, sobretudo com o rio seco, animais morrendo,
crianças e velhos vestidos com trapos pedindo, pelo amor de Deus, algo para comer. A
previsão de seca pelo cigano fez com que todas as pessoas de Água Preta, mulheres,
crianças, coronéis, trabalhadores, negociantes, raparigas, aleijados, saíssem a suplicar à
divindade por misericórdia. Nesse momento de presságio, estrategicamente, e de forma
implícita, o instante é propício para que na trama se mostre o fim das diferenças. Agora não
importava quem tinha ou não dinheiro, quem era rapariga ou mulher da sociedade, quem
era de caráter duvidoso ou devoto genuíno, o que mais importava ali era a união de todos
com um só ideal, conseguir forças, através das manifestações de fé, para que a cidade não
fosse destruída pela seca. Ademais, a figura de São Jorge como mediador da petição traz à
narrativa o aspecto fantástico para resolver conflitos.
No caso do protagonista de “A procissão e os porcos” a cegueira era dupla, primeiro
pelo fato já citado acima, não conseguia conceber nada mais como fonte de renda que não
fosse o cacau: “Já tivera ótimas informações sobre a criação, mas não podia gabar um
trabalho que estivesse fora do cacau” (MEDAUAR, 1960, p. 54); segundo, por não dar
ouvidos àquele que estava mais em contato com suas posses, possuía a experiência da
criação, no entanto era um simples empregado matuto, indigno de ser dado crédito ao que
dizia, segundo o julgamento do coronel, o capataz sabia que aquele homem não precisava
de chuva para ter dinheiro, uma vez que já tinha os porcos: “- Apóis, seu coronel, tem gente
que não crê em milagre. A chuva veio – meio fora de tempo, sim. Mas se não viesse nóis
tava garantido. E vossuria rico da mesma forma” (Idem, Ibdem).
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A partir do momento que começa a ter contato com o que lhe pertencia, o coronel
Arlindo começa a ter noção de que a proposta de novos negócios sempre o circundou,
todavia nunca lhe dava a devida atenção, como no momento em que a personagem seu
Alves, ao visitar sua casa, insinuara que desejava se entender com ele para negociar a venda
dos porcos a fim de fazer um negócio regular entre as cidades de Água Preta e Itabuna, uma
vez que tal negócio ainda não havia consistência na região e poderia dar bons lucros.
3 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
A mescla entre narração e reflexão da personagem envolve uma estratégia
discursiva em que a relatividade da economia cacaueira é colocada em discussão. Nesse
momento, são retomadas as ideias sobre a figura do coronel, que outrora configurou o
imaginário da geração de escritores do cacau, e postas em evidência mediante a dialética
sobre a hegemonia do cultivo de tal fruto na região. Os valores que cercavam o mito do
coronelismo grapiúna são postos à prova, sobretudo a forma como o comportamento de tais
latifundiários oscilava em face das altas e baixas dos preços do cacau.
Era latente a necessidade de diversificação na região, uma vez que, chegada as
dificuldades, tanto naturais quanto provenientes de qualquer peste que pudesse assolar as
plantações, teriam como sobreviver sem precisar se remeter ao emaranhado de dívidas que
as baixas do cacau proporcionavam, como no caso do protagonista que, por não acreditar
em outra forma de obter lucro, praticante fiel da monocultura do cacau, não se deu conta de
que a solução para suas dívidas estava na criação de porcos.
Em suma, a narrativa de “A procissão e os porcos” faz uma retomada dos elementos
constitutivos da cultura grapiúna e os (re)discutem de forma sutil mediante a voz narrativa e
as características que tecem o protagonista. Logo, a memória se apresenta como um espaço
dialético confrontando aquilo que se veiculava concomitantemente com os valores e
princípios considerados relevantes na narrativa.
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RESUMO
O estudo se refere à análise do conto “A procissão e os porcos”, de Jorge Medauar, no qual
a questão de como a memória se institui, como esta pode ser regulada pelos indivíduos,
provada, conservada ou, até mesmo rompida, deslocada e restabelecida é trabalhada.
Ademais, tratar-se-á, aqui, de que modos os acontecimentos, tanto históricos quanto
culturais, são registrados ou não na memória, como são absorvidos pela mesma ou
produzem uma ruptura, a qual influencia nos elementos identitários de uma dada cultura. O
estudo se baseará, principalmente, nas ideias de LE GOOF (1990); ACHARD (2007);
FERREIRA (2003); BAUMAN (2005), entre outros. Levar-se-á em consideração os
estudos que a imagem criada pelos registros representam a realidade, o que pode conservar
a força das relações sociais e, por isso, a possibilidade de a memória se renovar a partir dos
deslocamentos históricos, econômicos e sociais que os indivíduos sofrem ao longo do
tempo. Nesta análise, nota-se que o imaginário literário apresenta-se como parceiro fiel da
memória, já que esta será como ícone dos “casos” narrados por contistas, como o escritor
Jorge Medauar. Logo, a memória apresenta-se como elemento primordial na proposta
medauariana, trazendo ao leitor, por intermédio dos implícitos, as reminiscências de uma
terra devastada pela ambição daqueles que a habitou e as vivências daqueles que
constituíram a base de seu imaginário.
PALAVRAS-CHAVE: Memória. Imaginário. Deslocamento identitário.
ABSTRACT
The study concerns the analysis of the short story "The procession and pigs," Jorge
Medauar, in which the issue of how memory is instituted, as this can be regulated by
individuals, established, maintained, or even broken, offset is worked and restored. An
attempt will be here in what ways the events, both historical and cultural, are registered or
not in memory, as they are absorbed by it or produce a rupture, which influences the
identity elements of a given culture. The study is based mainly on the ideas of Le Goof
(1990); ACHARD (2007), Ferreira (2003), BAUMAN (2005), among others. It will take
into account the studies that the image created by the records represent the reality, which
can retain the strength of social relations and therefore the possibility to renew the memory
shifts from historical, economic and social individuals suffer over time. In this analysis,
note that the literary imagination is presented as a faithful partner of memory, as this will
be an icon of "cases" narrated by storytellers, like the writer Jorge Medauar. Therefore,
memory presents itself as a major element in the proposal medauariana, bringing the reader,
through the implicit, the remnant of a land ravaged by the greed of those who lived and the
experiences of those who formed the basis of their imagination.
KEYWORDS: Memory. Imaginary. Displacement identity.
4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013.
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REFERÊNCIAS
ACHARD, Pierre [et al.]. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. 2ª ed. Campinas/SP:
Pontes Editores, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. GAMA, Mauro, GAMA,
Cláudia M. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
FERREIRA, Jeruza Pires. Armadilhas da memória e outros ensaios. Cotia/SP: atelier
Editorial, 2003.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão [et al]. Campinas-SP:
Editora Unicamp, 1990.
MALERBA, Jurandir. A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo:
Contexto, 2006.
MARIA, Luzia de. O que é o conto. 4ª d. São Paulo: Brasiliense, 1992.
MEDAUAR, Jorge. A procissão e os porcos. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
MUECKE, D. C.. Ironia e o irônico. São Paulo: Editora Pespectiva, 1995.
4º Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos Literários, 4., 2010, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2013.
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