INFERNO TROPICAL "A cidade é um monstro onde as epidemias se albergam dançando sabats magníficos, aldeia melancólica de prédios velhos e acaçapados, a descascar pelos rebocos, vielas sólidas cheirando mal..." Luis Edmundo O RIO DE JANEIRO, NO INÍCIO DO SÉCULO XX, era uma cidade sitiada. A precariedade dos serviços públicos e as péssimas condições de vida, moradia e trabalho mergulharam a capital numa situação de calamidade sanitária. Navios oriundos do exterior passavam ao largo do porto carioca, condição assegurada previamente pelas companhias de navegação; a imigração estava ameaçada e o crédito do país abalado. As doenças infecciosas grassavam: peste, varíola, tuberculose, malária. Causava especial preocupação a febre amarela, que angariara para o Rio a reputação de túmulo dos estrangeiros. Enquanto a elite refugiava-se em Petrópolis no verão, levas inteiras de imigrantes caíam vitimados pela doença. Tal era sua virulência que provocou o adiamento para junho do carnaval de 1892. De 1897 a 1906, 4 mil estrangeiros morreram do mal amarílico. Ficou famoso o caso do caça-torpedeiros italiano Lombardia, que chegara à capital brasileira em outubro de 1895. Conta Rui Barbosa: "Dois meses mais tarde, em janeiro, adoece de febre amarela um de seus tripulantes, daí a dias outro, no seguinte mais três, posteriormente 15... A 16 de março os doentes são 240 e, destes, 134 mortes... De uma guarnição de 240 pessoas, mal se salvam 106". EM 1900, O RIO CONTAVA COM 691.565 HABITANTES. As condições de vida vinham se degradando desde o final do século XIX. O rápido crescimento populacional, devido ao afluxo de ex-escravos, de trabalhadores expulsos pela crise do café do Vale do Paraíba e imigrantes fugindo das lavouras, agravou os problemas sociais e econômicos. A maioria dos funcionários públicos ganhava entre 60 e 300 mil réis; os empregados domésticos – 25% da população – 30 mil réis por mês, quando recebiam salário. Para obter uma renda de 50 mil réis, um operário precisava trabalhar de 12 a 16 horas por dia, inclusive aos sábados e, pelo menos, dois domingos por mês. Quem era pobre residia nas áreas centrais da cidade, nos cortiços, estalagens ou casas de cômodo. Uma dependência numa casa de cômodos custava entre 20 e 25 mil réis. Pagava-se por mês 40 mil réis para morar num cortiço e 100 mil réis por um quarto melhor com pensão. Aos miseráveis, restavam as favelas. Rio de Janeiro antes da grande reforma urbana do início do século XX. Foto de Marc Ferrez. Acervo Casa de Oswaldo Cruz (RJ). Detalhes de fotografia de Augusto Malta retratando grupo posando em frente à entrada de uma vila, 1906. Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. UMA CIDADE EM CONFLITO EM CONDIÇÕES DE VIDA TÃO PRECÁRIAS, a população, com freqüência, explodia em quebra-quebras. Em junho de 1901, o povo protestava contra o aumento das tarifas de bonde e a péssima qualidade dos serviços, depredando vários veículos, num conflito que resultou em mortos e feridos. O ano seguinte foi marcado por violento levante contra o aumento da carne e novos ataques contra os bondes. Ao mesmo tempo, os operários começavam a se organizar e ensaiavam suas primeiras greves, buscando a redução da jornada de trabalho e melhores salários. Em 1900, cocheiros insurgiram-se por três dias contra um novo regulamento. Em 1901, tecelões da Fábrica Industrial paralisaram suas atividades. Em 1903, cerca de 25 mil operários de várias categorias entraram em greve e as manifestações de 1º de Maio levaram para as ruas da cidade Cena de fábrica no início do século XX. Acervo particular. aproximadamente 10 mil pessoas. “O meu programa de governo vai ser muito simples. Vou limitar-me quase exclusivamente a duas coisas: o saneamento e o melhoramento do Porto do Rio de Janeiro.” Rodrigues Alves RODRIGUES ALVES ASSUMIU O GOVERNO, EM 1902, recebido com extrema frieza pela população carioca. Representava a consolidação da política dos governadores, da hegemonia paulista e dos privilégios aos cafeicultores. Encontrava as finanças recuperadas, graças a uma política de saneamento que elevou às alturas os impostos, o desemprego, a carestia, provocando um clima de tensão social. Estavam em crise setores vitais para a economia da cidade: a indústria, o comércio e os serviços públicos. Para sanear e modernizar a cidade, visando garantir o livre fluxo dos investimentos estrangeiros, nomeou como prefeito Francisco Pereira Passos, dando-lhe carta branca, através de lei que reorganizava o Distrito Federal. A nova legislação adiava por seis meses as eleições para a Câmara Municipal e proibia as autoridades judiciárias de revogarem ou suspenderem os atos do novo prefeito. Ao centro, Rodrigues Alves. Antigo Convento da Ajuda, atual Cinelândia, 1905. Foto de Augusto Malta. Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. O BOTA-ABAIXO FACILITAR A LIVRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS, substituir as "ignóbeis vielas" por ruas amplas e arborizadas, encurtar as distâncias – esses eram os objetivos de Pereira Passos, estabelecidos no plano de melhoramentos da Prefeitura. E ainda: “...promover melhores condições estéticas e higiênicas para as construções urbanas, proporcionar aos grandes coletores das canalizações subterrâneas mais facilidade de colocação e visita, substituir os infectos rios da parte baixa dos arrabaldes por galerias estanques, sanear, embelezar, melhorar enfim a nossa maltratada capital." Era o Bota-Abaixo! Passos derrubou casas, arrasou morros, canalizou rios, abriu praças e rasgou a cidade com suas amplas avenidas: a Beira-Mar, unindo o centro aos bairros de Botafogo e do Catete, a Salvador de Sá, a Mem de Sá, a nova Avenida do Cais (mais tarde, Rodrigues Alves), a do Mangue (Francisco Bicalho). O alargamento das ruas deu origem a artérias que ligavam a orla marítima do centro (atual Praça XV) aos largos do Estácio e do Matadouro (Praça da Bandeira). Foto de Pereira Passos. Acima, planta dos melhoramentos projetados pelo prefeito Pereira Passos, 1902/1906. Acervo Casa de Oswaldo Cruz. Abaixo, obras de alargamento da Rua Larga de São Joaquim, atual Marechal Floriano. Foto de Augusto Malta. Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. “...enfeixando nas mãos de um só homem essa autoridade, ela poderá ser senhor absoluto desta capital, um ditador insuportável, poderá criar para todos os seus habitantes uma situação intolerável de opressão e vexames.” Rui Barbosa PARA A MODERNIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO, Pereira Passos inspirou-se na reforma urbana de Paris, realizada por Georges Haussmann, que acompanhara de perto enquanto adido à legação brasileira na capital francesa. Nomeado por Napoleão III, Haussmann iniciou seu projeto numa conjuntura política de reação. Recém-restauradas, as monarquias ainda tinham viva a memória das revoluções liberais de 1848, que convulsionaram a Europa. A reforma buscava, dentre seus objetivos, neutralizar o proletariado revolucionário de Paris, impedindo novos motins populares. Assim, rasgou, no centro da cidade, um conjunto de largas avenidas, destruindo os quarteirões populares e as ruas tortuosas que, desde a Revolução Francesa, vinham sendo o palco das famosas barricadas do povo parisiense. Além de atender a razões de ordem sanitária e permitir a livre circulação necessária para a grande indústria, largas avenidas e praças abertas ao grande público, canalizações de água e esgotos e mercados públicos transformaram Paris num modelo de metrópole industrial moderna imitada em todo o mundo. A “CIVILIZAÇÃO” DOS MORADORES A ESPINHA DORSAL DE SEU PROJETO ERA A NOVA AVENIDA CENTRAL, mais tarde denominada Rio Branco. Seu traçado rompia o coração da Cidade Velha e obrigou o arrasamento de parte dos Morros do Castelo e São Bento. Logo, tornou-se o centro da vida elegante, alterando a fisionomia e os costumes da cidade. Para seus edifícios imponentes, deslocaram-se o comércio sofisticado, os cafés, as confeitarias e os restaurantes chiques e a sede de grandes jornais, empresas e clubes. Mas a construção de uma capital moderna fizera vítimas. E quantas vítimas! Em 1905, as obras de Pereira Passos tinham provocado a demolição de cerca de 700 habitações coletivas, deixando desabrigadas pelo menos 14 mil pessoas. A população pobre fora empurrada para a periferia da cidade ou para os bairros distantes e mais degradados. Morros e mangues começaram a se encher de casebres feitos com tábuas de caixas de bacalhau. “A cidade colonial, imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições, estava soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino claro das picaretas abafava esse protesto impotente.” Olavo Bilac NÃO BASTAVA REMODELAR A CIDADE, era preciso civilizar seus habitantes. Utilizando seus amplos poderes, Pereira Passos interferiu diretamente no cotidiano da população, alterando e disciplinando seus costumes. Sua primeira medida foi proibir a venda de miúdos em tabuleiros e a ordenha de vacas em vias públicas, obrigando a vacinação destes animais com tuberculina e definindo normas para fiscalização dos estábulos. Procurou extinguir a mendicância, internando, à força em asilos, os incapazes para o trabalho e encaminhando os outros, inclusive menores, à polícia. Baniu a venda de bilhetes de loteria, estabeleceu licenças para ambulantes. Ordenou a captura e morte de cães vadios e instituiu imposto para quem tivesse esses animais dentro de casa. Proibiu a criação de porcos no quintal, a manutenção de hortas de comércio em zona urbana e a passagem pela cidade de cargueiros: tropas de animais, atrelados uns aos outros, transportando produtos hortigranjeiros. E as proibições se sucediam: os fogos de artifício, as pipas e os balões, o candomblé e outros cultos de origem africana, o entrudo, as serenatas e a boemia. Inauguração do eixo da Avenida Central. Kosmos, setembro de 1904. Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa. “Peixeiro”, de Armando Pacheco, e “Dançarina de Macumba”, de autor desconhecido. Imagens de personagens do Rio de Janeiro, compiladas do livro O Rio de Janeiro do Meu Tempo, de Luiz Edmundo.