SEVERINO SIQUEIRA ALENCAR1
CAMINHONEIRO
TAXISTA
48 ANOS DE TRABALHO
Nascido em Bodocó, Pernambuco
Esposa: Maria do Socorro Batista Alencar
Filhos: Fátima, Francisca Amélia, Severino Sérgio, Maria Auxiliadora, Socorro e João
Adailton
Sou motorista de 12 de janeiro de 1949. Mas comecei em 1948, trabalhando sem
carteira. Eu era solteiro e morava em Fortaleza, junto com o Odilon Albuquerque, no
Benfica. Ele era fiscal do serviço da Aeronáutica. Então, o pessoal da Aeronáutica
resolveu abrir uma estrada no Boqueirão do Cesário, em Aracati. Eles precisavam de
três caminhões para fazer o serviço e eu, como era mecânico, fui chamado para
cuidar deles.
A estrada do Boqueirão do Cesário era de piçarra. Piçarra é um barro, uma areia
dura mesmo! Quando molha, vira ferro. Só a chuva muito forte é que tira piçarra.
Depois do asfalto, é a melhor coisa para caminhão passar por cima. Então eu fiquei
uns oito ou dez meses dando assistência nos caminhões da estrada e aprendi muita
coisa. Um dia, o supervisor do serviço da estrada me chamou. Ele tinha um
caminhão velho, muito estragado e pediu para eu arrumá-lo. Ele disse que eu ia
trabalhar para ele naquele caminhão e que ele ia tirar a minha carteira de motorista.
E eu fiquei arrumando o caminhão. O dono do caminhão era da Aeronáutica e
sempre que tinha um serviço de aviação, ele usava o caminhão. Foi assim que eu fui
1
Depoimento à Patrícia Menezes Maciel , na manhã do dia 21 de janeiro de 2004, na Associação Beneficiente
dos Notoristas. Transcrito em de Maio de 2004, por Patrícia Menezes.
fazer campos de aviação por aí. Fiquei um mês no campo de Juazeiro do Padre
Cícero. Fui para Petrolina também. Eles queriam aumentar o campo de aviação de
lá, que era de 800 metros para 1.200 metros. Demorei uns três meses no caminhão
com esse serviço. Depois, o dono me levou para Pau dos Ferros, no Rio Grande do
Norte, para fazer outro campo.
Quando terminou o trabalho, o dono do caminhão me levou para Natal. Naquele
tempo era difícil tirar carteira de motorista. Não era para qualquer um... A pessoa
tinha que ter um padrinho e nem precisava saber muito de transporte, não. O dono
do caminhão chegou comigo na Inspetoria de Natal vestido com a farda da
Aeronáutica. Foi direto falando com o inspetor geral: “– Olha, esse aqui – apontou
para mim – é mecânico e motorista meu há muitos anos. Eu estou com um caminhão
carregado com gasolina de avião, carga do Governo. Eu preciso levar esse
caminhão para Parnaíba e ele vai dirigindo. Eu confio muito nele, só que preciso que
ele tire a carteira.”
O inspetor olhou para mim e chamou um rapaz. Acho que era um Cabo: “- Pode
bater a carteira desse cidadão.” E foi assim que eu consegui a carteira. No Rio
Grande do Norte, por prestígio do patrão. Fomos juntos no caminhão carregado de
tambores de 200 litros de gasolina de avião, porque naquele tempo não tinha tanque.
Na saída da cidade, num lugar chamado Alecrim, o patrão saiu do carro. Explicou
direitinho o serviço para que eu começasse a ser caminhoneiro. Depois me deu
carteira de motorista e encomendou a carga para Parnaíba.
Fui embora, sozinho. Para começar, com a carteira bem novinha, já peguei um rio de
açude, de barreira a barreira. Não tinha ponte. Era pontão. Pontão é um naviozinho
feito só com umas madeiras. Você coloca o caminhão em cima e o dono do pontão
atravessa o rio. Quando chega no outro lado do rio, você tira o carro de cima e vai
embora. Pontão, porque não tinha ponte. A mesma coisa que a balsa. Naquele
tempo tinha outro pontão no Rio Poty, logo na entrada de Teresina. Era colocar o
caminhão em cima e os homens empurrarem.
Era minha primeira viagem longa! Logo com gasolina de avião, do Rio Grande do
Norte até o Piauí! Para você ter uma idéia, para chegar em Parnaíba, no Piauí, tinha
treze quilômetros só de areia. Você não podia parar, não. Se parasse, não saía mais.
Ou tinha que ter uma enxada para abrir a areia até uns dez metros, para o caminhão
poder embalar e pegar uma velocidade capaz de andar na areia.
Depois o patrão trocou o caminhão em duas cargas e eu fiquei desempregado. Mas
tinha sido um tempo bom. Ele foi muito bom comigo. Então eu virei motorista na
cidade. A primeira empresa em que eu trabalhei foi a Empresa Severino, lá para os
idos de 1949. Era uma empresa de ônibus, que fazia a linha do Benfica para a Praça
do Ferreira. Foi assim: naquele tempo, eu namorava com uma moça que morava na
Visconde do Rio Branco. Namoramos por cinco anos, depois me casei com ela.
Estou completando cinqüenta anos de casado nesse ano! Eu morava no Benfica,
vizinho da empresa, mas vinha namorar aqui. E pegava o ônibus na Praça do
Ferreira, onde era o estacionamento da Empresa Severino, para voltar para casa.
Então um conhecido que trabalhava na empresa me aconselhou a pedir emprego.
Disse que tinha vaga. Mas eu só tinha experiência em caminhão!
Só que o irmão desse rapaz era o examinador e o chefe da oficina da empresa. Ele
me deu a chance. De tanto ele ter falado de mim, consegui fazer o exame. Eram três
candidatos. O teste era de ir até o fim da linha, pegar o ônibus e vir parando para os
passageiros subirem na linha, junto com um técnico. O primeiro rapaz largou o
volante no primeiro quarteirão. Depois entrou o outro e dirigiu mais um pouco. Depois
foi a minha vez. Quando chegamos na Praça do Ferreira, às dez horas, o técnico
olhou para o motorista do ônibus e disse para ele ir almoçar que eu faria mais duas
viagens, até o meio dia. Depois virou para mim: “- Vá devagar, porque a empresa
não quer que corra! Nem encoste muito no meio fio, porque tem muito benjamim e
pode arranhar a carroceria. Depois, às quatro horas, vá receber o uniforme.” Então
eu entrei na empresa por amizade.
Nesse tempo, as mulheres usavam uma saia curta, no joelho, bem apertadinha. Eu
tinha que ter todo o cuidado para encostar na calçada e deixar a porta bem perto
para as pobrezinhas poderem subir no ônibus. Era na paciência. Às vezes até descia
e dava a mão para ajudá-las! Coitadas! Tinham que subir no ônibus na diagonal.
Essa saia era um negócio danado, uma reclamação! Eu tinha dó. Fiquei três anos
trabalhando nessa empresa.
Eu gostava de trabalhar em ônibus. Fazia muita freguesia boa, ganhava presentes,
perfume, camisa de linho... Naquele tempo, na avenida 13 de Maio não tinha tanto
mercantil como tem hoje: tinha mais botecos. E uma mulher vinha comigo, sempre
cheia de coisas que comprava e descia ali. Ela pedia para eu deixá-la perto de casa.
Eu chegava na 13 de Maio, parava em frente à casa dela e ela chamava a
empregada. Ás vezes, a moça vinha com as prendas para mim... Na empresa
Iracema, tinha uma passageira que me dava merenda... era pote, queijo de coalho
bem bonzinho que ela trazia de sua fazenda em Quixadá. Era assim que eu fazia.
Depois da Empresa Severino, fui para a Empresa do Oscar Pedreira, que era a mais
antiga empresa de ônibus de Fortaleza. Fiquei três anos na Empresa Severino. Eu
gostava de lá, o dono era meu amigo... Eu tinha um prestígio danado com o gerente
e com o dono. De vez em quando, o dono ia me deixar na casa da minha namorada
com seu carro particular... Nesse tempo, eu morava no Joaquim Távora e era
caminho dele, então, saíamos juntos e íamos conversando... Deixei a empresa por
uma questão de uma gripe que não passava. Eu tinha tomado tudo que era remédio
e não parava de tossir. Naquele tempo não tinha remédio para tuberculose. Eu tinha
ouvido dizer que os ônibus eram muito quentes e que tinha muitos motoristas que
estavam morrendo de tuberculose. Eu me aperreei.
Então Deus me ajudou e veio um homem, alías, vieram dois irmãos para quem eu já
tinha feito um serviço de uns vinte dias em caminhão. Um deles era um comerciante
que trabalhava em uma empresa de seguros. O outro era de chapéu, meio esquisito,
mas sempre foi legal comigo!
Eles queriam comprar um caminhão novo e me
chamaram para trabalhar nele. Um deles foi atrás de mim lá no fim da linha, na
praça. Era um rapaz bacana, muito bem vestido, família boa... até hoje vive bem com
a família. Ele disse que eu podia trabalhar para ele, mas que não poderia me pagar o
mesmo que eu ganhava na empresa. Mas eu, com complexo de pegar tuberculose,
aceitei o serviço. Naquele tempo, tuberculose era fogo! Os ônibus eram muito
abafados... não tinha remédio fácil, como hoje.
Então resolvi pegar o serviço do caminhão. No dia que o caminhão ia chegar na
agência, foi só telefonar para a empresa de ônibus e dizer que eu não ia mais
trabalhar lá. Mas só faltei chorar quando eu saí desse emprego! Mas foi isso: tive
complexo da tuberculose e fiquei no caminhão bem novinho, trabalhando com os
irmãos.
Era serviço de carregar cal. Tinha uma pedreira de cal aqui perto de Pacajús e eu ia
para lá todos dias de manhã, depois voltava à tarde. Era muito pouquinho serviço. A
dona do caminhão, quando viu meu problema de tosse, começou a fazer uns
remédios caseiros para mim e eu melhorei. Por isso, o trabalho era bom, só que eu
ganhava muito pouco.
Muitas vezes na minha vida eu deixei emprego por causa de salário melhor. E
também das condições de trabalho, não é? Depois de um tempo, eu já estava
querendo me casar e precisava de dinheiro. O caminhão era bom, mas o ganho era
pouco. Então resolvi sair dali e eles me indicaram para a Empresa Iracema. Fiquei
um ano e pouco como motorista de lá. O estacionamento era na Praça dos Leões,
pertinho do Correio, na esquina. Era uma empresa de ônibus conceituada. O serviço
era com registro, tinha muitos carros, muitas linhas lá para as bandas da praia de
Iracema. Tudo era organizado: motorista gravata e blusa de mangas compridas. E
ganhava melhor: era ordenado mais comissão. Tinha umas fichas que o trocador
dava para os passageiros quando eles pagavam a passagem. Na hora de descer,
eles deixavam as fichas na caixinha do meu lado. Por isso, os motoristas dos ônibus,
logo que saíam de manhã, tinham que assinar um termo de responsabilidade sobre
essas caixas de fichas... Eu tenho muita saudade... era muito certinho... Como eu era
recomendado, só pegava carro bom. Eu todo fardado... parecia um soldado!
Um dia, o chefe do tráfego da empresa mandou eu ir falar como dono porque o carro
tinha encostado. Eu não gostei. Disse que não iria e fui embora! Eu já tinha feito um
negócio em uma caçamba para trabalhar no interior, em Várzea Alegre, junto com
meu irmão mais velho. Eu era solteiro, queria provar que eu era capaz de subir um
pouquinho na vida. A caçamba era para era para carregar piçarra nas rodagens,
areia. No meu tempo, você chegava no aterro, descia a caçamba do carro e arreava
a areia todinha. Hoje é ao contrário: você aperta o botão e ela levanta e inclina
sozinha para trás. É mais automático.
Eu gostava de ficar em Várzea Alegre. Vivi ali com a caçamba por quase um ano. Só
que eu já estava pronto para casar e não queria levar a Socorro para o interior. Ela
até queria ir, mas eu não quis levar, porque achava que a vida lá seria muito dura
para ela. Eu tive pena: era um sertão brabo. Aconteceu então que um tio dela
arranjou um emprego para mim no cais do porto, aqui em Fortaleza. Então, eu já
tinha comprado muita coisa para a casa nova. Foi só chegar, alugar a casa e me
casar.
E comecei a trabalhar como motorista no cais do porto, com cargas de navio. Fiquei
uns dez anos nisso. Passava o dia parado mas trabalhava a noite toda. Primeiro foi
com um homem que era muito gente boa, mas que não cuidava dos três carros que
ele tinha. Gastava muito dinheiro
Depois fui para trabalhar em empresa. Chamava “Diretoria”. Tinha quatorze
caminhões que faziam as cargas das empresas de navegação que vinham de São
Paulo.
Eu me lembro de trabalhar com cargas da Parcival, com óleo, com a
Everest... Era dia e noite! Eu cansei de pegar embarque da Brasil Oiticica com seis
mil toneladas de óleo. O navio completo dava doze caminhões. Quando chegava no
cais, (...) eu nem saía da boléia. Só entregava a nota fiscal e carimbava. O pessoal,
na traseira do caminhão, colocava uma mangueira até o navio. Tinha um motor que
puxava a carga para o caminhão. Então passavam cinco minutos e já carregava
aquela carrada. E para não perder tempo, porque ganhava comissão, eu não parava
para comer. (...) Enquanto carregava, eu acabava de comer a marmita, dentro da
boléia mesmo. Se fosse de noite, levava uma lanterna para poder ver.
Os navios traziam toda a qualidade de cargas para o Ceará, porque nós não
tínhamos estradas de rodagem. Não tínhamos caminhões que viajassem daqui para
São Paulo, porque nada era asfaltado, como é hoje. Muita coisa vinha para cá de
navio. Tinha navio carregado com duzentos mil sacos de açúcar, que davam em
vinte caminhões na hora de descarregar. Demorava uma semana para tirar toda a
carga e levar para os armazéns daqui! Cimento era outra coisa que vinha bastante.
Não tinha fábrica de cimento no Ceará. Hoje, nós temos três fábricas, mas antes, o
cimento vinha da Holanda! A gente ficava dia e noite descarregando o navio, direto.
Era mais difícil! Não tinha caminhão grande, não. Hoje tem muita carreta por aí. Tem
carreta com quarenta toneladas! Em Tabuleiro do Norte e Limoeiro tem 150 carretas!
São os lugares do Ceará onde tem mais caminhão. Eu lembro que no meu tempo,
era carroceria de madeira coberta com três lonas. Meu carro tinha três lonas e eu
podia passar três anos levando chuva que não tinha problema. Hoje não. Hoje é tudo
fechadinho assim com cadeado no furgão. É mais seguro.
Então eu pegava a carga no cais e trazia para os armazéns da Praia de Iracema,
perto do quartel general. Quando era cimento, eu levava para um depósito em
Jacarecanga. O dono do depósito comprava a carga de cimento. Só que não dava
para comprar muito, porque não vendia e a mercadoria acabava estragando no
armazém. Então os donos de armazéns e os vendedores se reuniram e concordaram
em cada um vender uma porcentagem para trazer o navio completo. Tinha esse
armazém em Jacarecanga, tinha outro encostado no Canal 10... Eu ficava a noite
todinha. Às vezes, tinha que descarregar 200 mil quilos de carga em dois dias!
Os motoristas recebiam por cada viagem que faziam. A cada saída, a gente ganhava
um pedacinho de papel e o pessoal da Diretoria ficava com uma cópia para controlar.
Os caminhões eram da Diretoria. Mas é claro que já tinha uma escala de motoristas
pronta, com as placas dos carros que iam para a Brasil Oiticica, para a Fidal... Os
motoristas se interessavam, porque ganhavam pouco. E tinha um negócio de que se
um motorista arrumasse carga particular, tinha que pagar dez por cento.
Eu deixei de trabalhar no cais por dinheiro. Achava que ganhava pouco. Era melhor
trabalhar com diárias. Então, em 1972, comecei a viajar pela empresa L Figueiredo.
Acho que era “L. Figueiredo Transportes Rodoviários”, uma coisa assim... Era a filial
de uma empresa de São Paulo. Quando cheguei para a entrevista, o gerente pediu
que eu contasse toda a minha no volante. Eu já tinha 12 anos de carteira! O homem
gostou de mim e perguntou porque eu estava deixando o trabalho no cais: “- Por que
você vai deixar o Chico Martins e trabalhar comigo/?” Eu não menti: “- Olha, eu sou
casado, tenho cinco filhos e ganho doze mil com o Seu Chico. Aqui serão quinze mil,
mais as diárias. Logo, meus filhos estarão no colégio e eu tenho que esforçar para
melhorar a nossa situação.” O gerente disse que minha entrevista foi melhor que a
minha apresentação e deu o lugar para mim.
Peguei um caminhão novo, zerinho. Era um Mercedes... O dono me pagava quinze
mil, que era meu ordenado na carteira, mais as diárias. Para São Paulo eram vinte
dias, para o Rio de Janeiro, dava uns dezoito, porque o Rio é quatrocentos
quilômetros mais perto do que São Paulo. Algumas vezes eu ia e voltava de São
Paulo em dezessete dias, outras vezes, fazia com vinte e dois ou vinte e três dias.
Teve dias que eu chegava em São Paulo às quatro horas da tarde e começava a
voltar às dez da noite.
Eu chegava no armazém, começava a carregar. Tinha um rapaz com uma prancheta
na mão e um monte de carga para entrar no carro. Cada caixa da carga tinha um
número. Ele anotava tudo. Tinha o nome do dono da carga, do cliente e o número da
caixa para entregar. Era o “manifesto”. Além disso, tinha a nota fiscal das
mercadorias. Os homens vinham trazendo as caixas na cabeça, ou nos carrinhos de
mão e o rapaz da prancheta controlava tudo. Depois disso, eu entrava na fila para
pegar a ordem de pagamento. Eles davam um tipo de cheque para as despesas e
mais os documentos da carga em um envelope grande. Quando terminasse de
aprontar o carro, já saía em viagem. Eu gostava quando não tinha carga pronta,
porque dava para ficar uns dias em casa. Se eu estivesse em São Paulo, dava para
ficar um pouco por lá. Cheguei a ficar quatro dias em casa porque não tinha carga
nenhuma.
Mas sempre teve serviço. Cansei de carregar amêndoa de castanha daqui para
Recife, para Porto Alegre, para São Paulo. Naquele tempo, a Brasil Oiticica era a
maior indústria de óleo que tinha no Ceará. Ela tinha 150 homens trabalhando em
três turnos e mais as mulheres, descascando a castanha. Era enorme! E acabou
ganhando um premio com o óleo de mamona. Tinha muita carga para carregar...
Levei muita castanha para a matriz da Brasil Oiticica, que era numa cidadezinha do
Rio de Janeiro. Fui muito para Belo Horizonte também.
Aliás, fui eu que fiz a primeira viagem de Fortaleza para São Paulo nessa empresa.
O que eu mais levava era mesmo amêndoa de castanha. Mas carreguei de tudo!
Teve até mosaico, que eu levei para o Porto de Santos. Uma vez eu trouxe para cá
uma carrada de filtro. Hoje não se usa mais, mas naquele tempo, tinha uns filtros de
barro com uma torneirinha.
E a vida ia passando. Teve um dia que eu estava em Porto Alegre carregando meu
caminhão. Tinha encostado o carro e já ia levantando a carga nas tábuas, quando o
dono do armazém chegou para me dar os parabéns. Sabe por que? Por causa do
Presidente da República, já viu? Era o Castello Branco, que era cearense. O dono do
armazém disse que era bom ter um presidente conterrâneo, porque ele sempre ajuda
a terra da gente. Ele me contou que quando teve um presidente gaúcho, até ponte,
rasgando fazenda de animal ele mandou fazer. Eu respondi: “- Olha, eu não acho
isso, não. O presidente disse que o Brasil está precisando pedir esmolas para pagar
os juros da dívida externa. Está até fazendo empréstimo. Então o presidente não deu
nada para o Ceará, alegando esse motivo”.
Ele estava falando do Jango, que era do Rio Grande do Sul. O Jango estava com
tudo! Metia a mão. Tudo que Porto Alegre quis, ele deu e não quis nem saber... Os
cearenses tiveram seu presidente da República, mas ele não deu nada para o
Estado, porque era seguro demais, sério demais, queria botar moral. Eu lembro...
Cheguei a ver no Recife e até aqui, na Praça do Ferreira, uns soldados da base
Aérea, do Exército e da Marinha tocando umas musicazinhas... aqueles dobrados
bem bonitos, feito uns hinos. Ele pediam: “- Vamos ajudar o Brasil! O Brasil vai
melhorar, é só esperar! Vamos dar um pedaço de ouro, um anel quebrado, um brinco
para ajudar a pagar a dívida do Brasil!” Estava cheio de gente colocando aliança de
ouro lá. Mas eu? Nunca dei nem bom dia!
Eu sempre gostei de ter bastante informações sobre os lugares onde eu vou. Mas o
pessoal sempre ajuda também. Na primeira vez que fui para Porto Alegre, fiz um
mapa. Lá estava escrito: você entra em Porto Alegre por aqui, chega na Avenida dos
Farrapos... E fui entrando na cidade. Quando estava na Avenida dos Farrapos,
depois de passar por uma ponte com uma placa para Porto Alegre, eu vi um soldado
da base aérea esperando o ônibus em uma parada. Parei o carro, cheguei perto e
perguntei: “- Você vai para o Centro? Eu estou chegando na cidade pela primeira vez
e vou para a Rua Portugal. Você quer ir comigo?” Eu abri a porta do lado do
passageiro, ele entrou e me levou até a Rua Portugal. Passou o lugar dele descer. E
era a primeira vez que eu estava por lá...
Depois precisei de ajuda para descobrir onde eram os Correios, porque precisava
avisar minha mulher que eu tinha chegado bem. Mas eu não conhecia nada. O
pessoal me ajudou. Aproveitei ainda para telegrafar para minha mãe, que estava em
Pernambuco. Ela estava preocupada comigo, porque estava chovendo muito no Sul.
Foi rápido, só frases curtas, por telegrama. E tinha que avisar a empresa também,
não é?
Nas capitais do Brasil, quando você vai entrando na cidade, aparecem uns rapazes
que dão sinal para o carro. Eles são os “chapas”. Entram no carro e te levam até
onde for, se você não conhecer o caminho.
A viagem de Fortaleza para o sul, naqueles tempos, era boa demais. Não era tão
perigosa quanto é hoje. Os postos de gasolina davam uma assistência muito grande
para os caminhoneiros. Eles faziam lajes para encostar os caminhões, tinham
restaurantes e pequenas oficinas. No meio do caminho tinha de tudo que você
pudesse necessitar. Se precisasse consertar um pneu, logo encontrava uma
borracharia. Era caro, mas o serviço era bom. Então eu pagava o serviço de conserto
com o dinheiro que a empresa me deixava logo que saísse e guardava o recibo do
pagamento. Depois a empresa ressarcia. A diária que eles pagavam era só para o
motorista comer na estrada, o resto, eles devolviam tudo. Eu me lembro até do rapaz
que fazia as prestações de contas na empresa...
Tinha lugares que ninguém queria ir porque a estrada era ruim e não tinham postos.
Uma vez eu preferi viajar para o Rio de Janeiro ao invés de sair para Belém por
causa disso. Maranhão, então... Ninguém queria ir. Não tinha lugar para comer,
então precisava levar comida para cozinhar no caminho. Os caminhoneiros levavam
uma malinha de comida no caminhão, tinha fogão, tinha panelas, tinha louças.
Depois passavam na feira, compravam galinha, verdura. Eu não gostava de
cozinhar, mas cansei de comer comida de motorista na estrada, porque fiz muitas
amizades. Chegava perto do caminhão, abria a luz e começava a conversa. Os
colegas queriam saber como estava a estrada na frente, porque motorista de
caminhão só fala mesmo de estrada. Então eu dava as dicas, avisava dos perigos,
porque as estradas eram de chão e tinha alguns trechos ruins. Então vinha a comida.
Geralmente, se cozinhava para o almoço e para janta.
Nesses caminhos tinha que dormir no caminhão. Não tinha negócio. Encostava o
carro, travava as portas por dentro e arriava a cama. Não cheguei a dormir em rede,
até porque lá no sul não tem rede. Podem ter duzentas casas, mas nenhuma tem
armador de rede! Geralmente, as camas das casas ficavam fechadas ou guardadas
em um canto. Na hora de dormir, era só puxar. Mas também era fácil de descer a
cama do caminhão: abaixava os assentos, porque o Mercedez tem dois assentos
que baixavam e faziam uma cama. A cama já vinha com colchão, colcha, e
travesseiro. Era só deitar no lado do guidão e deixar o outro lado para as coisas de
cozinha. É uma vida de cangaceiro, mas uma vida danada de boa. Ninguém tinha
medo e isso era a melhor coisa. Hoje, ninguém confia em ninguém.
A empresa pagava um pouco melhor que as outras, justamente para a gente nunca
levar ninguém. Por isso, sempre viajei sozinho. Se eu quisesse levar uma pessoa
daqui para São Paulo, por exemplo, tinha que falar com gerente. Aí ele autorizava,
pegava o número de identidade da pessoa, avisava na matriz, mandava a placa do
carro e o perfil da pessoa. No caminho, ninguém podia dar carona. Só que o chefe já
tinha avisado: “- Se você está na estrada e vê um motorista parado com uma peça
na mão, deve parar para ajudar. Leve até a cidade mais próxima, porque nisso não
tem azar nenhum”. Uma vez eu levei minha mulher para São Paulo. Depois levei
mais outras pessoas, mas foi pouco.
Como toda a carga era escrita direitinho no manifesto, eu não tinha medo de perder
nada. Só me lembro de duas vezes em que me assustei. Na primeira, era um
carregamento de mais de oitocentas caixas de medicamentos que eu tive que levar
para a rua 24 de maio. Eram caixinhas pequenas, e tinha dado uma sobrinha... Na
hora de conferir, eu ficava torcendo para baterem os números certinhos. E não deu
nada demais. Na outra vez foram uns sabonetes que eu peguei na Pinto Madeira
para colocar num navio. Eram quase mil volumes e eu carreguei sozinho, sem
ajudante, a uma hora da manhã! E fui no meu caminhãozinho, não via ninguém na
rua, estava aperreado. Tinha umas ruas de calçamento ruim, mas eu dizia para mim
mesmo que não tinha perigo de cair nada, porque os caibros eram seguros... mas o
caminho era difícil: passava por dentro de um rio, cortava por ali... Ali perto da LesteOeste eu parei o carro e conferi tudo. Olhei por baixo, por cima... depois peguei um
barranco na Monsenhor Tabosa e toquei para a praia. Cheguei ás três da
madrugada, cheio de cuidado com a carga. Mas fiquei com medo que o rapaz que
conferia pudesse cochilar. Começamos a descarregar. Veio o estrado, que um
negócio de madeira quadrado, como uma base. Depois vinha a empilhadeira, que
tem umas alças que entram por baixo do estrado e levantam. O rapaz contou as
caixas no estrado uma por uma e deu certo. Era um técnico! E eu com medo que ele
dormisse...
Uma vez eu carreguei em São Paulo dois tratores para levar à Floriano, no Piauí.
Eram uns tratores da Massei Ferguson, que tinham umas pás que arrastavam uma
caçamba. Coisa grande. E fui embora. Estou falando na década de 1970, quando as
estradas não eram como hoje. Era estrada de chão. Tinha uma trepidação enorme!
Mas pensei: “- Tudo bem! Vamos embora...” Peguei um barro... Ia devagarzinho
porque já era noite, desviando dos buracos. Estava procurando um lugar para dormir,
próximo de Avaré. Então um colega passou e me deu luz. Parei e ele disse: “Rapaz, eu vi uma caixa atrás na estrada, mas fiquei com medo de parar. Então tirei
meu carro por fora da pista. Vamos olhar o que é”. Ele tinha medo porque, naquela
época, os assaltantes colocavam uma caixa na estrada e quando o motorista parava
o caminhão para ver o que era, eles atacavam. Ouvi o colega e voltei um pouco. Era
um mato, longe de tudo. Não tinha nenhuma casa por perto. Quando rodeei meu
carro todinho, vi que uma barra, lá no fim da carroceria tinha se quebrado e fazia um
buraco. “- É daqui!”. Então cheguei perto da caixa caída na estrada e vi o número
dela. Era o número que vinha no manifesto e na nota fiscal da mercadoria. Era uma
caixa de peças do trator que eu não tinha coberto. Tive que abrir a lona e colocá-la
novamente, passando a corda mais forte. Apesar desses sustos, graças a Deus,
nunca tive problema com carga.
Os motoristas se falam na estrada, com as luzes ou com a buzina. Um dia, eu estava
em São Paulo, perto de Aparecida do Norte. O carro estava bom e eu ia andando
bem. Foi quando eu vi de longe uma carreta, que abriu as luzes duas vezes para
mim. Depois de novo. De dia? Eu pensei que pudesse ser algum conhecido do
Ceará, mas, quando cruzamos, o motorista nem olhou para mim. Continuei viagem,
mas fiquei pensando, pensando.... Um pouquinho lá na frente tinha um carro
quebrado que estava atravessado na estrada. Não chegou a parar o trânsito, mas a
gente só passava de um lado pista. E tinha um guarda rodoviário por ali. O
caminhoneiro tinha me dado o aviso para passar devagar. Deu o sinal dizendo que
havia alguma coisa ali na frente.
Em uma outra vez, o caminhoneiro abriu a luz três vezes. Depois tornou a abrir e
ainda mais uma vez. Quando passei por ele, ele fez um gesto com as mãos no pé do
gigante, como se dissesse: “- Se vira!”. Sequer olhou para mim. O gigante é o painel
do caminhão. Depois fiquei sabendo que lá na frente tinha uma blitz da polícia que
estava parando todo o mundo. Blitz, a gente chama de “barreira”. A gente avisa os
colegas sobre a barreira com as luzes ou com a buzina. Não é uma buzina só, não.
São vários toques. Então quando ouve a buzina, o caminhoneiro já sabe que tem
alguma coisa adiante.
O gigante é o caminhão. Mas tem diversos tipos. Tem a carroceria, tem o furgão.
Tem a carroceria de carga seca e a carroceria de carga líquida, que é o tanque. A
carroceria de carga seca é de grade e vai cheia de engradado de cerveja ou coisas
assim. O furgão leva carga embalada em caixa de papelão, que é mais delicada. Eu
levava muito engradado. Uma vez, em São Paulo, levei umas vinte e duas geladeiras
para Teresina, todas em pezinho em um lado da carroceira. Do outro lado eu levava
uns engradados empilhados. Dava uns três metros de altura. Aí, quando eu cheguei
em Teresina era tão alto que não dava para entrar em um trevo. Tive que desviar.
Mas há um tempo atrás, mesmo quando eu dormia na estrada, não tinha tanta
preocupação com ladrão da carga. Além disso, dormia muito em posto de gasolina. E
mesmo quando era um trecho de estrada que não tinha posto, a gente já sabia onde
dormir. Os caminhoneiros já sabem...
Eu sempre viajei só. Não tinha como trocar, por isso, eu tinha que parar para dormir.
Então achava um lugar para me encostar ou parava em um posto. Teve uma vez que
eu andei muito e fui dormir quase à uma hora da madrugada. Mas eu tinha um
controle: sempre parava para dormir umas dez horas da noite nas estradas que eu
conhecia. Nas estradas estranhas, que eu não conhecia, parava, no mais tardar, às
sete na noite. Mas sempre parava para dormir. Ou numa casa ou num posto.
Cheguei, entrei na rua vi que tinha uma luzinha lá na frente. Perto da luz tinha um
soldado. Era um quartel. Eu disse para o rapaz: “- Me chame às cinco horas, que eu
vou te dar um dinheiro para o café”. E eu encostei e dormi. No acostamento era
muito difícil de eu dormir.
Uma vez eu dormi na serra das Araras. A Serra das Araras é uma serra muito
perigosa que faz a divisa do Rio de Janeiro com São Paulo. Começa a uns sessenta
quilômetros da cidade do Rio. Era tão perigosa e tinha tanto abismo que se colocava
uma proteção de cabos de aço nas curvas para o caminhão não cair lá embaixo.
Outra serra que é muito perigosa é a de Petrópolis, também no Rio. Lá tem dois
sentidos. Uma ladeira que vai para um lado, outra que vai para outro. Até que numa
noite eu me assombrei. Saí do Rio de Janeiro às sete horas da noite em rumo para
São Paulo. Quando eu começo a subir a serra das Araras, não vi nenhum carro.
Comecei a achar estranho. Tinha aquela placa “conserve à direita”, mas não tinha
carro vindo de lá para cá. Olha, uma coisa boa é que para os lados de lá, tudo
sinalizado! E eu achava estranho aquele vazio, mas continuei a tocar, sempre à
direita. Achei que lá na frente eu ia gente eu ia ver porque tinham interrompido o
tráfego. Mas só depois de um tempo que eu vi uma fila de carros vindo ao contrário,
lá longe, na montanha. Tinham terminado outra via da Serra! Eles já vinham falando
que iam fazer outra, mesmo!
Eu vou te falar uma coisa: eu tinha mais medo de descer a serra do que de subir.
Porque tem muito carro, você não pode correr. Tem que ir devagarinho, segurando a
carga, na marcha. Em Petrópolis, no Rio de Janeiro, tem uma serra com 21
quilômetros! É chão! E tem dois túneis em que o caminhão passa por debaixo do
chão. Um deles é o “Túnel do Papagaio”, com 116 metros e o outro tem 178 metros,
o “Véu da Noiva”. Você vai andando naquela serra e tem aquelas marcas de um lado
para outro na estrada. De repente, você vê o arco do túnel na sua frente. Para
passar tem que respeitar muitas coisas: não pode buzinar, não pode acender a luz. É
difícil de descer! Ninguém gosta de descer serra. È perigoso. Subir é melhor.
Quando as estradas eram de chão, tinha que usar o cepo para subir. Era pior. Mas
hoje, não usamos mais. Hoje, a construção das estradas é toda “cronometrada”.
Tudo é passado para o engenheiro, tem mapa, tem tudo. Só para você ter uma idéia,
tem 3.000 quilômetros de chão daqui para São Paulo... antigamente, o caminhão
quebrava... Em todo o canto tinha caminhoneiro trocado mola dos carros! Era muito
caminhão, então em todos os postos de gasolina tinha uma oficina para os
motoristas pararem.
Aí, um dia, o Juscelino Kubistcheck resolveu e criou uma lei que passou no Senado
para asfaltar a Rio-Bahia. Mas mesmo assim, vieram os outros e “- Não! Não tem
dinheiro para isso não! São dois mil quilômetros de chão... Fazer asfalto para tudo
isso?” Já tinha estrada, mas era de chão. Era a BR 116, que se chamava Rio-Bahia.
Aí acontece que o Juscelino criou a lei para asfaltar a estrada e contratou uns
construtores do Uruguai, da Argentina... Depois o Jânio Quadros ganhou a eleição e
disse: “– Essa estrada vai ser feita sem parar! As empresas que estão aí, se não
trabalharem dia e noite, terão que sair. Eu vou colocar outras no lugar. É trabalhar
sem parar. E nenhuma empresa vai ficar com 40 quilômetros, porque vai demorar
muito. Já se passou mais de um ano... Serão, no mínimo, 20 quilômetros para cada
uma.” Aí ele tirou nome do Ministério dos Transportes dos documentos e criou um
ministério exclusivo para a estrada. Não estou lembrado do nome do ministério... E
foi fazendo a estrada. Em todo o lugar tinha gente trabalhando na construção. Se
tivesse um atoleiro ou alguma coisa difícil de passar com o caminhão, tinha uma
máquina na frente para puxar, tinha o rodoviário para ensinar... Não precisava parar
não. Tinha tudo ali, viu? Era um negócio bacana mesmo!
O doido mandou, tinha que fazer... O caminhão passava em primeira, bem
devagarzinho, porque não tinha poste, não tinha nada! Era estrada de chão, original
do sertão. O pessoal subia pela traseira, cortava a lona – porque todo o caminhão
era lonado: não tinha furgão como hoje – e mexia na carga. Ele tinha mandado fazer
a estrada de um jeito para não ter nenhum trecho que o caminhão não andasse com
30 quilômetros. Aí era trinta por cento nas lombadas e vinte por cento nas curvas.
Tinha curva que... Logo lá no pedaço que vai dar na usina, tinha um cotovelo que era
bem assim como eu estou fazendo. Eu vi só duas curvas dessas da minha vida: era
essa aí que ia para a usina, que a gente chamava “cotovelo” e no Espírito Santo,
perto de Vitória, onde tinha outra que o pessoal rodeava a cidade todinha e ainda
chegava primeiro de quem fazia a curva! Era assim! E tudo o que Jânio Quadros fez
desse negócio da velocidade foi na matemática! E foi feito. Agora, a estrada está
uma beleza! Principalmente para quem, como eu, viu o começo, quando era no chão.
Tinha asfalto lá perto do Aracati e depois acabava. Ia na terra todo o sertão. A gente
só ia entrar em asfalto perto da divisa do Rio de Janeiro, lá em Bento Altino, a última
cidade de Minas Gerais. Era só lá que começava o asfalto. Eu me lembro! Perto de
Além Paraíba, tinha uma carreira de poste, do lado da pista e começava o asfalto.
Mas antes, eram 2.000 quilômetros de chão.
Inclusive na inauguração do asfalto da estrada eu estava em Vitória da Conquista.
Quem inaugurou foi o João Goulart. O João Goulart governou pouco também, porque
era comunista. E ele passou pela estrada em Vitória da Conquista quando eu estava
lá, no dia da inauguração. A estrada estava todinha no pretinho, até São Paulo!
Naquele dia, eu tinha dormido em Portões, para descansar um pouco, e eram mais
ou menos umas cinco horas da manhã eu acordei e comi um pouco de feijão para
começar a rodar. Rodava sempre até umas nove ou dez horas da noite, no máximo.
Quando eu cheguei na rodoviária em Vitória da Conquista, o inspetor me parou. “Por quê?”, eu perguntei. Ele disse que naquele dia não ia rodar nenhum carro pela
estrada e que eu podia ir voltando... Eu estranhei: estava com tudo em ordem, não
estava quebrado... Mas fiz a manobra e voltei. Pouco mais à frente, encontrei um
posto de gasolina. Diga-se de passagem que Vitória da Conquista era uma cidade
bonitinha no sertão baiano. Naquele dia, estava cheio de jornal, tinha não sei
quantas estações de rádio, transmitindo para o Brasil e para o mundo... e nós
ficamos por ali. Eu sabia que estrada ia ser inaugurada, mas não sabia que seria
naquele dia. Então foi uma surpresa para mim. De repente chegou a comitiva. Acho
que tinha uns 2.000 automóveis! Era muito carro! Vinham até os governadores dos
Estados vizinhos, mais aquele negócio de deputados e tudo mais. Olha, passou tanto
carro! Quando eu vi o João Goulart, eu acenei para ele. Ele também acenou, mas
acho que era para todo mundo que estava olhando: tinha gente demais. Quando
foram quatro das horas da tarde, liberaram a estrada e eu segui. Fui um dos
primeiros a rodar na estrada de asfalto!
Estrada é importante, mas é difícil de construir. Hoje tem máquinas para fazer, mas
antes, construía na mão. Todas as vezes que tivesse que fazer um aterro, eram os
homens que cavavam a terra com picareta, enchiam um carrinho de mão e levavam
embora. Um dia eu estava no cais do porto quando chegou um navio da (...), que era
a maior companhia de navegação marítima do mundo, dos Estados Unidos. Era tão
grande que tinha um calendário com todos os portos do Brasil, onde eles marcavam
o dia que o navio atracava. No outro mês tinha marcas no dia que os navios iam sair.
E nesse dia, o navio chegou com uma máquina bem grande. Era para a construção
de um açude. A máquina fazia o trabalho em dia, por oito horas, de cem homens!
Outro dia eu li uma história que há muito tempo, a carga vinha em carro de boi. Era
carro de boi do Rio de Janeiro para Salvador – Salvador não: para a Feira da Bahia!
Feira de Santana já existia! 2.000 quilômetros, em carro de boi, não é mole, não. E
tinha quem vir para o sertão. Naquele tempo, o José do Patrocínio era um jornalista
cearense e escreveu para Dom Pedro II. Ele dizia que no Ceará não tinha chovido e
que tinha muita gente morrendo de fome.
Nesse tempo, transporte era navio. Só navio, viu? – Estrada, só para você ter uma
idéia, era assim: por exemplo, você ai para o Crato, passava por Canindé. De lá tinha
uma estrada para Morada Nova, para Quixadá. E você seguia por Quixadá. Lá tinha
uma outra estrada para Salgueiro. Dava umas voltas... não tinha esse sistema todo.
Mas, sabe? Se você quiser trabalhar, você não morre de fome. A mata, no tempo do
Dom Pedro II tinha muita coisa para comer, tinha toda a qualidade de cacto, tinha o
peixe... é só fazer um poço profundo...
O José do Patrocínio pegou um fotógrafo muito bom e foi para o interior. Esse
fotógrafo fez o retrato de uma menina de cinco anos morrendo de fome. Você sabe
que quando tem fome, tudo emagrece, mas os ossos e os olhos não diminuem. A
carne vai embora, mas o chassis fica todinho. Ele tirou a fotografia quando a menina
estava chorando de fome e dizendo “- Meu pai, me tire daqui e me bote no chão!” E
não tinha nada para comer no lugar. E ela morreu de fome. E o José do Patrocínio
tirou o retrato direitinho e mandou para o Dom Pedro II.
Mandou de navio! Navio não anda não. Demorou muito para chegar. Mas, graças a
Deus, o imperador recebeu a carta com o retrato. Um retrato vale mais do que
palavras... é como a televisão, é uma testemunha ocular. Quando o Dom Pedro viu o
retrato, chorou. Então reuniu a assessoria dele e disse: “- Olhe, eu vou fazer de tudo
para que o povo do Ceará não morra mais de fome”. E mandou procurar comida e
transporte. Aí, em um instantinho, dentro de poucas horas, se juntou o comércio
todinho do Rio de Janeiro, arrumou as coisas e botou nos carros para carregar o
navio para mandar para o Ceará.
Eu acredito que, por mais ligeiro que andasse, levou muitos dias para chegar. Navio
é devagar demais... E quando chegou aqui, tinha que ir para o sertão. Hoje, dá uns
quatrocentos quilômetros, mas naquele tempo, porque as estradas eram daquele
jeito, acho que dava bem uns mil quilômetros. E carregaram os carros de boi. Mas
não tinha nem água. Os homens andavam a noite todinha com os bois, porque boi só
trabalha de noite. De manhã, os bois empacavam. Simplesmente não andavam. Não
tinha água, mas, como a natureza ajuda muito, tinha muito mandacaru, que hoje não
tem. Aí eles pegavam o mandacaru, quebravam e cortavam os espinhos todinhos
com a faca. E os bois comiam aquilo e adoravam. Se deixar, eles comem até a mão
da gente. Isso é coisa da natureza, porque a natureza ajuda muito. Então das dez da
manhã até as quatro da tarde eles paravam na sombra e os bois ficavam comendo.
E foi assim que chegou a comida no sertão.
Eu tenho muita coisa bonita para lhe contar sobre sono. Graças a Deus, eu tenho um
espírito adiantado e é por isso que estou vivo. Se eu fosse burro, eu tinha morrido há
muito tempo! Eu vi muita gente deixar de trabalhar de dia para dormir e deixar para
rodar de noite. Mas eu?! Nunca foi doido! Toda a vida eu tive comigo que sempre
que eu fosse viajar – e eu viajava mais para São Paulo – eu devia ter as horas
reservadas para dormir, para comer, para descansar, para fazer as minhas coisas, e
tudo dava certo. Eu agüentava. Eu rodava até dez horas da noite, no máximo, a não
ser se tivesse um empecilho. Depois vou lhe contar uma...
Às dez horas da noite, eu arriava. Tinha gente que tomava banho para ficar
acordado, mas eu nem muito banho tomava, não. Às vezes tinha um boteco, em um
posto. Eu merendava – nós chamávamos “bagulhar”: era o mesmo que comer - ,
encostava o carro e dormia mesmo! Acordava às cinco horas, batia nos pneus com a
marreta, abria o capô e olhava o óleo do motor, completava a água. Já ia com uma
toalha, entrava no posto, lavava o rosto. Às vezes, eu tomava um cafezinho. Mas
muitas e muitas vezes eu não tomava. Só quando aparecia. Eu tomava café só de
manhãzinha. Quando davam umas oito horas é que eu mandava estalar dois ovos e
comia com pão, bolacha... daí eu me forrava! Por que se carro desse um prego, ou
se eu estivesse em um lugar que não tinha comida, eu já estava com o estômago
forrado. Eu bagulhava bem mesmo só pelas oito horas da manhã.
Depois, tocava para estrada. Quando dava meio-dia, ou meio dia e meia... Teve um
dia, lá em Além Paraíba, no Rio de Janeiro com Minas Gerais, que eu cheguei lá
pela uma hora da tarde. Parei o carro em um posto, enchi o tanque e calibrei os
pneus. Então o rapaz disse: “- Você está com uma cara de quem não almoçou
ainda...” Eu respondi: “- Eu não posso lhe negar, porque eu não nego nada a
ninguém. Não almocei mesmo! Estou morrendo de fome!”. Eu tinha feito um cálculo
na quilometragem para chegar ali às onze horas, mais ou menos. Mas não deu certo
e eu acabei chegando só a 1 hora da tarde. Ele disse: “- Olha, rapaz: almoce, coma
na hora, porque a comida só serve na hora de comer mesmo. “ E ele estava certo. E
a comida só serve se for bem pouquinho. Você deve comer sempre na hora certa...
se passar da hora, você come muito mais e pode até fazer mal. Além disso, mais
tarde, você só pega resto de comida e o intestino não aceita.
O rapaz continuou: “- Lá pelas onze e meia – não deixe passar de onze e meia –
você deve comer seis pãezinhos”. Depois ele continuou a olhar os pneus e eu fiquei
toda a vida comendo na hora certa. Mesmo quando eu estava no sertão. Às vezes, a
mulher dizia que o feijão ainda não estava pronto, mas eu respondia: “- Eu espero...”.
E ficava comendo uma cebola enquanto esperava. Eu era doido por uma cebola. È
bom para a barriga. Vou até te contar um caso:
Teve um motorista aí – ele ainda está vivo para contar essa história – que adoeceu
da barriga porque ele era desse tamanho! Ele chegou em um lugar, foi comer e
passou mal. Então, uma guarda rodoviária aconselhou: “- Vá até lá e procure a ...” Eu
não sei o nome dela... era no Hotel Recife, onde estava a mulher. Aí ele foi até lá e
procurou a mulher. Parou o carro no posto. Aí pegou uma cebola, descascou e
comeu todinha. Não se passaram nem quinze minutos: começou a bater vento. Aí a
barriga baixou, baixou ... Ele estava com a barriga desse tamanho! Ele ficava muito
tempo sentado. Se ainda tivesse cuidado de provocar vento... Porque a gente tem
que fazer o vento sair também, não é? Ele comeu a cebola todinha e com 15 minutos
ficou bom. Ventou muito e arrotou. Aí a barriga baixou por conta daquela cebola.
Por isso que Severino ficou comendo cebola enquanto era caminhoneiro e come
muita até hoje. Não me lembro de comer lá em casa muitas vezes, mas quando eu
comia, minha mulher cortava a cebola e eu, se ela deixasse, comia todo o pedaço.
Cebola pura! Peguei costume de comer cebola.
Agora, tem um negócio em São Paulo, quando vai para o Rio de Janeiro. Dá uns
quatrocentos quilômetros e você passa a divisa. Tem um canteiro no meio e duas
pistas... alí é carro que só a peste! Depois, a primeira rua dá para entrar é a BR 157.
Assim: aqui é a BR 115, a Rio-São Paulo, a Presidente Dutra. E você entra na BR
157, para pegar para o Rio de Janeiro. Aí, no Rio de Janeiro, você passa Volta
Redonda, Vassouras, tem também Três Rios... Três Rios é uma cidade é uma cidade
bem grande. Dali, com oito quilômetros, aparece um viaduto bem grande com uma
placa “São Paulo”. É para chegar na Via Dutra para voltar para São Paulo. Mas, se
você está indo para o Rio de Janeiro, passará por baixo da ponte. Pois bem: eu
estava vindo de São Paulo. Quando cheguei na entrada do Rio, eram mais ou menos
nove horas da noite. Já era hora de dormir. Cheguei no primeiro ponto e tinha
caminhão estacionado por todo o lado. E eu não dormia na beira da estrada: gostava
de guardar bem meu caminhão. Então passei para outro posto. Também não tinha
lugar. “- Onde eu vou dormir?” Deram onze, meia noite e eu sem achar um posto.
Quando eu já estava para sair da BR 157, vi um postinho de gasolina onde tinha uma
carreta ancorada – porque nesse tipo de carro, eles tiram a carga, para não ficar o
peso no feixe de molas a noite todinha. Eu achei que poderia deixar meu caminhão
por trás dela e fui dormir. Eu tiraria o carro antes de a carreta sair. Mas quando
acordei, às seis horas: “- Meu Deus! A carreta não estava mais lá!.” Eu saí na
correria, porque achei que ela podia ter batido no meu caminhão. Mas o cabra foi
legal, porque o carro da frente dele tinha saído e ele não precisou dar ré. Mas eu
levei um susto...
Tiveram outras vezes que eu fui dormir tarde, mas não me lembro agora. Só que
café, essas coisas para ficar acordado, eu nunca usei. E vinham os colegas que
tomavam droga me oferecer, mas eu nunca quis. Em toda a minha vida, eu achei
que um homem deve fazer somente aquilo que ele puder. Uma vez eu vi um
caminhão virado no asfalto. Fui perguntar o que tinha acontecido e veio o motivo:
sono! O motorista estava sentado, chorando, com as mãos na cabeça.
Tinha motorista que tomava Coca-cola com café. Uma vez eu carreguei o caminhão
em Recife para levar a São Paulo. Na estrada tinha um posto e eu parei. Eram umas
sete da noite. Comi alguma coisa e comecei a brincar com os colegas e vi um
motorista que tomou café com Coca-cola para chegar logo no Recife! Eu nunca fui
doido. Sempre tive horário para dormir, para comer, nem que fosse para esperar
para fazer comida nova. Eu era regrado, até com cigarro! Chegava em São Paulo e
comprava um pacote com dez carteiras de cigarro: dava para vinte dias certinhos!
Eu tinha um rádio amarelinho que ficava dentro da cabine. No meu radinho bem
pequenininho eu pegava “A Voz da América”, de uma rádio americana que tinha um
programa em português do Brasil. Pegava também a rádio Bandeirantes, de São
Paulo. Eram 24 horas. Toda a hora do dia e da noite, com ajuda aos motoristas.
Dizia onde a estrada estava boa, onde a estrada é ruim... A Jovem Pan, às 4:00
horas da manhã já estou sabendo das manchetes dos jornais do mundo.
O tempo em que eu trabalhei na L. Figueiredo foi muito bom. Eu tinha um privilégio
muito grande. Ajudava muito. A rapaziada queria montar uma filial em Teresina, outra
em Sobral ou qualquer outro lugar e me chamava. Eu aprontava tudinho, enchia o
caminhão, descarregava. Minha mulher telefonava para eu comprar as coisas que
não vendia por aqui... Me lembro de uma vez em que o pessoal recebeu um recado
dela para eu levar alguma coisa para Fortaleza. Eles não só me deram o recado,
como deixaram eu sair para comprar e ainda levar o vigia comigo! Era assim, muito
prestígio.
Quando chegou um dia, o gerente pediu que eu fosse trabalhar com ele no Rio de
Janeiro. Era trabalho interno, eu não ia mais viajar. “- Severino, vou falar com a Dona
Socorro. Você pega suas férias, fica uns tempos em Fortaleza, traz as suas tralhas e
depois vai trabalhar comigo no Rio de Janeiro”.
Eles queriam até aumentar o meu ordenado. Mas não valia a pena, porque enquanto
eu estava na estrada, eu ganhava o ordenado e mais a diária. Se eu ficasse no Rio,
ia ganhar só o ordenado. Então eu disse que não queria. Conversei com a minha
mulher e resolvi arrumar outro trabalho. Eles me deram até um dinheiro mais ou
menos bom quando eu saí. O patrão ainda insistiu para que eu fosse para o Rio, mas
eu não queria mesmo! Falei para o gerente que queria minhas contas, minha mulher
foi na casa dele, conversou muito. Ela disse que eu tinha que ajudar na criação dos
meninos, que já estavam no colégio e que não dava só com ordenado.
Então ele deu minhas contas. Eu fui pegar meu dinheiro, com as férias, tudo que
tinha direito lá perto da Duque de Caxias, no lado esquerdo. Aí eu cheguei lá, estava
tudo certo. Tinha só uma diferença de uns quebradinhos, centavos, mas eu recebi o
dinheiro. Então pensei em comprar um caminhão. Mas o dinheiro não dava e falei
com a minha mulher. Nós vendemos tudo que tínhamos em casa: geladeira,
televisão, tudo novo, tudo muito bom, que eu tinha comprado em São Paulo. Só
deixamos as coisas para cuidar dos meninos. Era 1979.
Aí eu comprei um caminhão velho, ano 1946, importado. Eu era mecânico, daria para
ajeitá-lo. Depois troquei por caminhão 1959. De 1946 para 1959 são 13 anos. Mas
esse carro estava muito ruim: a lataria não prestava, as portas não fechavam direito
com o ferrolho, molhava por dentro... Só que era um carro que já era fabricado no
Brasil. Aí eu achei um amigo que disse: “- Severino, eu vou ajeitar o seu carro e
deixá-lo bem novinho. Você não vai gastar nenhum tostão”. E ele trouxe uma cabine
para eu acertar e foi o que eu fiz: O caminhão ficou bem novinho! E eu rodei, rodei,
rodei.
Depois de um tempo, encontrei uma firma para trabalhar interno aqui em Fortaleza. E
fui juntando dinheiro e trocando o caminhão. De um 1963, fui para um 1970 e assim
fui...
O táxi foi o seguinte: eu já era sócio e fundador do sindicato dos motoristas
autônomos. Aí acontece o seguinte: aí eu tive um problema em um olho e o DETRAN
não quis dar minha carteira grande, para caminhão. Eu já tinha tempo de me
aposentar e me aposentei em Maio de 1980. E tinha tirado uma carteira que dava
para caminhonete de quatro pneus, não para caminhão.
Aí o presidente do sindicato, que era meu amigo, disse “- Deixe seu caminhão para o
seu filho – eu já tinha um filho que era motorista – Você tem sua aposentadoria, eu te
dou um ordenado e tu ficas aqui.” Aí eu fiquei lá.
Os primeiros automóveis táxis tinham uma roda, que você mandava confeccionar.
Era um desenho que ficava perto da porta direita, do lado de fora do carro. Dentro
dessa roda vinha escrito a placa do carro, com letras bem grandes e o nome
“Sindicato dos Motoristas Autônomos”. Todos os táxis tinham que ter essa roda. Eu
trabalhava cuidando disso. Chegavam os taxistas – eram 4.170 –, me davam a taxa
e eu tomava nota. Quando tinha uns vinte ou trinta carros parados, eu aproveitava e
tirava fotografia. Teve um tempo em que os táxis eram todos padronizados....
Tudinho pintado de amarelo, não tinha nenhum que não fosse. Esse negócio de
amarelo foi a Prefeitura que mandou...
Depois, lá no sindicato, nós criamos o reboque para os táxis e eu, como secretário,
fiquei trabalhando nele. Ainda ganhava minha aposentadoria mais o ordenado. Fiquei
um ano e seis meses no reboque, até que houve eleição no sindicato e me
colocaram como tesoureiro. Então eu fui tesoureiro do sindicato por muito tempo.
Eu já tinha um carro particular que tinha comprado ainda quando eu caminhoneiro,
em 1980... 1980 ou 1981? Acho que foi em 1981. Era um Brasília de dois
carburadores. A história dessa Brasília é assim: eu tinha um amigo que tinha uma
venda de pneus lá na praia. Foi ele que recebeu essa Brasília de um rapaz da
estrada de ferro. O rapaz da estrada de ferro tinha comprado o carro, rodado por uns
tempos e depois vendido para esse meu amigo dos pneus. A Brasília era bem
novinha! Um dia, eu cheguei na venda de pneus e conversei muito com o meu
colega. Ele disse que não tinha lugar onde guardar o carro, “- e um carro desses, a
gente não pode deixar na calçada! Tu tens garagem, não tem?” Ele sabia que eu
tinha feito uma garagem lá em casa. “- Então tu guardas o carro lá na tua casa,
porque ele está na minha porta e pode dar um arranhão”. Aí eu fiquei com a Brasília
na minha casa e continuei a trabalhar com o caminhão.
Nesse tempo tinha uma plaquinha na calçada da Alfândega; “Estacionamento
proibido. Permitido caminhão”. Eu trabalhava por ali. Tinha quatro caminhões que
estacionavam, porque ali tinha muito armazém. Hoje, não tem mais nada por ali...
nem armazém. Hoje é Dragão do Mar. Então, um dia, o dono da venda de pneus
apareceu na calçada da Alfândega atrás de mim. “- Severino, eu vou lhe vender
aquele carro... já está na tua casa mesmo. Assim você poderá ir para todo o canto
com ele!” Eu ainda quis negar, mas não convenci: “- É claro que tu queres o carro!
Tu me pagas com a tua aposentadoria”. E logo chegaram mais dois colegas
insistindo para eu comprar, dizendo que com a aposentadoria eu poderia pagar. Ele
queria mesmo me vender: “- Olhe, tu dás o quanto puderes, do jeito que quiseres, tu
fazes as letras e eu aceito qualquer negócio”. Eu sabia o quanto ele tinha pago pelo
carro e percebi que ele não colocou nada no preço. Não ganharia nada. Aí eu aceitei.
No dia seguinte, às cinco horas, nos encontramos para ir à casa do rapaz da estrada
de ferro, no Icaraí, para fazer a nota fiscal e passar o documento do carro no meu
nome. Ele era despachante e emplacador. Foi muito fácil: só assinatura. E eu fechei
o negócio da Brasília sem gastar nenhum tostão.
Mas eu tinha uma filha que estava se aposentando nos Correios – ela era chefe lá,
estava inteirando trinta anos de serviço. Ela disse: “- Pai, tenho um dinheiro, uns
quinhentos contos”. Não era muita coisa, nem me lembro mais! O dinheiro já mudou
tantas vezes... Era Cruzeiro? Mas peguei o dinheiro e dei de entrada na Brasília
Saí do sindicato e fui direto para a praça. Comprei uma vaga e coloquei a Brasília
para rodar como táxi. A vaga é o direito para trabalhar no táxi. É uma concessão da
Prefeitura. Tanto faz dizer “concessão” como “vaga”.. É só o direito de exercer essa
profissão de taxista. Então comprar uma vaga de táxi é assim: uma pessoa tem um
carro com uma vaga de táxi e quer vender para mim, por exemplo. Aí nós vamos à
Prefeitura, porque eles têm o nome da pessoa arquivado lá. E então eles tiram o
nome dela e colocam no nome do Severino. Depois, nós pegamos os papéis que a
Prefeitura deu e vamos ao DETRAN. Lá, o pessoal troca os registros dos carros:
coloca o meu como táxi e do da pessoa como particular. È só isso.
Eu passei cinco anos trabalhando como taxista na Praça do Carmo. Depois, passei
para a Perboyre & Silva. Ali o ponto era bom e em pouco tempo eu passei da Brasília
para um Voyage. Um carrão! Passei uns seis anos com o Voyage... Melhor que o
Voyage, só o Santana de quatro portas. Esse é o melhor! Eu não deixo de pegar um
Santana para pegar qualquer outro carro zero...
O taxista não paga nada para poder parar o carro em um ponto. A Prefeitura tem que
dar, ou melhor, o DETRAN tem que definir o local, com o número de carros que vão
fazer ponto ali. Ele diz quantos carros podem estacionar. Se for meia dúzia de carros
permitidos e quando você chegar tiver só cinco, pode ficar. Não precisa fazer ponto
sempre no mesmo lugar. Só se quiser. Eu fiquei cinco anos ali na Praça do Carmo.
Depois passei um tempo ali na Pague Menos, aí vim para a Perboyre & Silva fiquei
um tempo, depois voltei de novo para a Perboyre & Silva, porque lá eu tinha um
bocado de fregueses, ali perto da Loteria Estadual. Em todos esses lugares tem um
orelhão para chamar os táxis.
E assim eu trabalhei doze anos como motorista de praça, depois que saí do
sindicato. Eu acordava às seis horas da manhã, fazia minha caminhada, tomava
banho e ia para a praça. Às 11:00 horas eu parava para almoçar. Tinha uma filha
que morava na Piedade, essa que trabalhava no Correio. Ela tinha um filho que
estudava no Colégio Cearense e eu ia pegar meu neto na escola e almoçava na
casa dela. Para me ganhar nessa, ela tinha dito: “- Pai, o senhor vai almoçar lá em
casa. Não vai ficar comendo dessas comidas por aí”. Ela sabia que em toda a minha
vida eu me recusei a comer em qualquer lugar, porque sempre achei que essas
comidas de restaurante são reaproveitadas.
Depois do almoço, voltava para a praça. No primeiro ponto, na Praça do Carmo,
tinha um restaurante que pareia com a Igreja, do lado de lá. O pessoal do Banco do
Brasil todinho almoça lá. O dono é professor da faculdade. A mulher dele é dessas
magrinhas. Ela abriu uma filial lá pertinho da rodoviária. Tem um negócio lá que é
tipo um shopping. É pequeno, mas tem loja de todo o tipo. Eu sei que eu rodava
demais com essa mulher. Tanto que ela até me pagava por mês.
Eu pegava os passageiros na Praça do Carmo, fazia a corrida e depois voltava para
lá. Se aparecesse alguém fazendo sinal no caminho, pegava na pedra. Me lembro
de uma vez que eu estava na Bezerra de Menezes... não, na Mister Hull, perto da
Bezerra de Menezes – depois aconteceu de novo, na avenida Desembargador
Moreira. Eram duas senhoras bem vestidas, que eu peguei na pedra. Pediram para
eu parar, mas eu notei que elas ficaram olhando para mim, estavam assustadas.
Eram oito horas da noite, o lugar ermo, sem nada por perto. Eu já estava voltando
para casa. Abri a porta traseira, elas subiram. Como eu reparei que elas estavam
assustadas, abri a luz do carro: “- Vocês querem ir com a luz acesa ou preferem que
eu apague?” Elas “- O senhor pode apagar”. E comecei a conversar, porque a
conversa descarrega. Porque quando você vai calado, a pessoa nunca sabe em que
você está pensando. Então puxei assunto e deu tudo certo. Elas ficaram aliviadas.
Mas também tinha passageiro que não queria conversa. Mas eu sempre gostei de
conversar. Uma vez eu teimei com esse negócio de conversa no caminhão, quando
eu viajava. Tinha um colega que gostava de uma mulherzinha de um hotel lá na
Bahia. Eu nunca gostei de mulher na estrada, mas sempre sentei para conversar, ir
na cozinha, essas coisas. Conversei muito com cozinheiro, porque ele passava
comida melhor para mim. Mas por mulher nunca me interessei, nem por festa, nem
por briga... Mas esse colega sentou na mesa que eu estava, tomou um cafezinho a
começou a conversar, contando da sua vida. Pediu carona. Eu abri a porta e ele
entrou na cabine. Só que calou. Não falava de jeito nenhum! Toquei, toquei o carro e
ele calado. Eu lá, conversando, puxando assunto. Fiquei aperreado... Fiquei falando
de carga, essas coisas, mas ele não respondia. Muito chato.
Depois de uns vinte quilômetros, tinha uma barraquinha que eu conhecia, com um
cafezinho. Parei o caminhão: “- Vou tomar um cafezinho.” Puxei conversa com a
mulher da barraquinha, só para descarregar. Ela chegou com o café, todo o mundo
tomou, por minha conta. Eu me demorei mais um pouco e depois fui embora.
Foi como no táxi: tem passageiro que gosta de conversa e tem passageiro que não
gosta. Assunto é que não falta. Até da vida dos outros a gente falava! Eu tenho isso
há muitos anos:
todo o homem deve entender um pouquinho de política, um
pouquinho de futebol, de esporte e um pouquinho de religião. Essas três coisas são
indispensáveis e a pessoa tem que saber um pouco para dar papo. Eu cansei, nas
minhas andadas pelo mundo aí, nos 14 estados do Brasil que eu conheço, de chegar
num lugar estranho e precisar ficar ali. Ter ficar meia hora, uma hora esperando
alguma coisa sentado. E eu calado e todo o mundo que também estava esperando
calado? Ou então, todo o povo conversando e eu ali do lado, em pé, só olhando?
Mas como eu entendo um pouquinho de política, ou de esporte ou de religião,
começava a conversa e depois, um assunto ia puxando o outro e eu já me entrosava.
Dizia: “-Olhe, o Pelé fez isso...”, depois alguém continuava.
Está com muitos anos que eu leio jornal todos os dias. Quando era caminhoneiro, em
qualquer lugar que eu parasse, comprava o jornal ou uma revista para me informar.
Comprava muito livro também. Só que às vezes eu deixava tudo isso jogado e minha
mulher que guardava. Era um hábito feio. Minha filha fazia vestibular e estudava nos
livros que eu tinha comprado e não tinha tido tempo para ler. Ela ficou doze anos na
Universidade. Primeiro tentou Medicina, em 1985. Depois fez vestibular para
Enfermagem, mas só passou depois, em Pedagogia.
Eu punha muitos enfeites no táxi. No painel do meu carro tinha uma bandeirinha do
Brasil bem bonitinha, que eu comprava para mim e para os colegas, principalmente
quando estava perto do sete de setembro. As fitinhas eu colocava no retrovisor e na
antena do rádio. Era para ficar bonito. Comprava bastante, no camelô, para dar para
os outros. Até no caminhão eu colocava a bandeira do Brasil no painel. Era porque
achava bonito e também porque eu era patriota.
100% brasileiro e 100% democrático, eu toda vida fui. Um dia, quando eu comprei o
meu primeiro caminhão, fui na parada do 7 de Setembro. Antigamente, o desfile do
Exército era na Pedro Pereira. Eu fiquei muito feliz quando inauguraram a parada lá
e enchi meu primeiro caminhão com crianças para assistir, com as bandeiras.
Sempre punha a meninada no caminhão para as paradas. Outra vez teve parada no
Coração de Jesus, outra vez na Praça do Carmo. Eu não perdia uma! No Carnaval,
punha os meninos todos no caminhão, comprava pitomba, levava água e eles faziam
uma bagunça na carroceria. Faziam até xixi. Ficávamos até terminar.
Uma vez parei na rua paralela à parada do 7 de setembro perto da Praça do Carmo.
Vieram me dizer que não podia estacionar o carro ali. Mas eu respondi: “- Olhe,
rapaz: eu estou com a meninada toda aí. Não vou sair, porque eles gostam de
assistir a parada. Vou ficar aqui até terminar. Só vou embora quando não tiver mais
ninguém na rua”. E ele: “- Então, pode ficar”. Eu encostei e assistimos o desfile
inteiro.
Outra vez, foi lá na Bezerra de Menezes eu estava com meus filhos, cada um com
um pauzinho e uma bandeirinha na mão. Botei meus meninos e a mulher todos no
caminhão e fiquei balançando a bandeira do Brasil. Quando chegamos perto da
parada, o guarda não deixou passar: tinha muita gente do Exército na rua paralela.
Mas eu não desisti e disse: “- Eu vou lá para o fundo para ver se tem um lugar na rua
onde os meninos possam assistir”. Acho que o guarda gostou, porque me deixou
passar. Fui bem devagarzinho e deu para a gente ver a parada inteira. Era assim que
eu fazia.
No vidro da frente do táxi, eu colocava uma carreira da lâmpadas, como árvore de
Natal. Quando era de noite eu acendia. O pessoal sabia que o Severino já vinha
chegando só de ver. Diziam: “Lá vem a Lapinha do Severino!” E furava no capô
também: capô é aquilo que tampa o motor. Furava, punha uns pregos desse
tamanho, duas porcas e prendia a bandeira do Brasil lá na frente. Ficava lindo com a
bandeira balançando... No câmbio eu não colocava nada. Mas tem gente que coloca
umas imagens.
Os encostos do banco, a gente comprava. Tenho dois: um é redondo, para sentar e
outro é para encostar. Os motoristas usam aquilo, porque ficam sentados muito
tempo e podem ter hemorróidas. Com aquilo, quando você senta, fica um espacinho
e não esquenta. Tem também um tipo de bolinhas, que eu usei no táxi. É como uma
almofada. Conheço o rapaz que faz, ele tem uma loja ali onde estão fazendo a
primeira estação do metrô e vende fiado para os taxistas. É bom de usar. Fica mais
confortável.
O macete para trabalhar em táxi é ser gentil. Tem que tratar bem os passageiros. Eu
fiz tanta freguesia... Tinha uma mulher lá na Aldeota que morava num apartamento.
De vez em quando ela telefonava: “- Seu Severino! Meu gás acabou!” E eu dizia: “Sabe onde se acha gás? No Mercado dos Pinhões.” E eu ia até lá, comprava o gás e
entregava a ela. E eu a conheci na praça, só de sair e deixá-la nos lugares... Ela
ligava para o orelhão da praça ou deixava recado sempre que queria que eu fizesse
algum serviço. Uma vez, uma menina me telefonou do banco Itaú. Foi quando
saíram aqueles cartões de banco. E eu fui até o banco. Quando cheguei, eu disse: “Olha, me telefonaram por causa do táxi...” Ela tinha ligado para a minha casa e a
minha mulher tinha dado o número da praça. Era assim que chamavam para fazer
uma corrida.
Quando o sindicato criou o serviço de rádio táxi quando, eu trabalhava lá. Para usar
o rádio táxi, motorista tem que ser classificado, autenticado, porque o sindicato
responde por esse serviço. O proprietário do carro tem que ter responsabilidade pelo
serviço. Não é todo o mundo que pode usar rádio, não. Até se tiver rendeiro, o
rendeiro tem que assinar um ponto lá no sindicato para ser reconhecido. Tem nome,
identidade, tem tudo.
Quando o sindicato foi para Brasília, tomou nota de tudinho para fazer o rádio táxi
igual ao deles. E resolveu colocar o rádio nos táxis. E então foi na empresa que dava
os números da freqüência dos telefones, a Dentel. Essa empresa era ali na rua
Estados Unidos, perto da avenida Pontes Vieira. E conseguimos o número e fomos
mandar fazer os rádios lá em São Paulo. Primeiro mandamos fabricar 75 rádios.
Depois foram mais 75. O técnico que nos vendeu os rádios veio passar uma semana
aqui, para ensinar a consertar, a instalar. Eu sei disso, porque era o tesoureiro e o
sindicato que trouxe esse técnico. Ele deixou todas as instruções por escrito, para os
motoristas usarem o rádio. Não é todo o mundo que pode usar rádio, não. Só os
motoristas do táxi podem falar no rádio. Não pode dar o rádio para namoradas, não
pode dar para amigos, não pode dizer palavrões... Tem uma série de coisas. E tem o
código para falar, com umas letras. Os motoristas estudam e já sabem o que queria
dizer cada letra do código.
E então, tem o rádio que recebe as chamadas na central e os rádios nos carros. Eles
são ligados. A central funciona durante vinte e quatro horas por dia. Quando você
telefona, é o funcionário da central que atende. Ele sabe onde o motorista está e lhe
dá o serviço.
Tem até um negócio importante. Isso de rádio táxi foi na década de 1980. O Adauto
Bezerra deu a central e a antena. Hoje já é outra antena. Eles colocaram uma antena
da universidade, para melhorar o sinal, porque a nossa antena era pequena e ficou
ruim quando aumentou o número de carros. Eles compraram a antena da rádio
universitária, que tinha uma FM muito boa. Quando a rádio universitária trocou a sua
antena, vendeu a antiga para nós.
Eu ainda tentei colocar rádio no meu carro, mas eu sou muito acomodado para
algumas coisas... Eu? Ficar ligado numa central? Com um monte de obrigações? A
achei que não ia ter tempo para comer, para fazer minhas coisas... Além disso, já
tinha a minha aposentadoria e a única pessoa que dependia de mim era minha
mulher, que também era aposentada. Achei melhor deixar para os outros. E fiquei
mesmo com o orelhão do ponto.
Eu ganhei um taxímetro capelinha, aquele mecânico, logo quando fui pagar a vaga
para o homem que me vendeu, ali na caixa econômica. Eu ia comprar o taxímetro,
mas ele me ofereceu o dele. Dado, sem pagar nada! Depois, o sindicato resolveu
enviar um técnico para São Paulo para aprender mais do rádio táxi. Quando ele
voltou de São Paulo, meu carro estava com o aparelho mecânico. Mas esse técnico
me convenceu a trocar o taxímetro por um elétrico. O taxímetro elétrico é muito
melhor que o mecânico. Não dá trabalho... Funciona assim: Já vem marcado um
valor que é o da bandeirada. Quando o passageiro entra no carro, o taxímetro vai
contando os quilômetros no chão. Tem uma peça no pneu dianteiro do carro que
marca isso. Quanto mais o carro roda, mais aumenta lá. Se o carro está parado, o
taxímetro não roda.
Eu achava o taxímetro elétrico mais seguro. E olhe que fiz muita freguesia boa, gente
que me dava presente! Tinha uma mulher lá em São João do Tauape que esperava
para viajar comigo. Mas sabe por que? Porque eu tinha paciência para esperar ela
comprar, eu não ficava exigindo. Sempre com o carro parado, eu não cobrava.
Chegava na sua casa, ela pedia para esperar e queria pagar, mas eu dizia “ - Não,
não está correndo, não... Não precisa ter pressa...” Era assim que eu fazia. Então, no
Natal ela me dava presentes: camisa, sapato, meia, chaveiro... Camisa boa, que
servia no tamanho. Dava até pena de gastar logo...
Mas tinha gente que roubava no taxímetro. Botava um palito de fósforo ou um
grampo de mulher – desses que nem se usa mais - para o aparelho rodar mais
rápido. Outros davam um tapinha... Mas eram só os ladrões que faziam isso. Dava
confusão. Se o DETRAN pegasse, era uma multa danada! Nunca valeu a pena.
Uma vez teve uma confusão lá no sindicato quando estavam mudando as tarifas.
Quando tem aumento, os taxistas têm que mudar uma carretinha que vem dentro do
taxímetro. Essa carretinha vem de São Paulo, da fábrica. Trocamos a primeira e
colocamos uma carretinha maior, para aumentar o valor. O sindicato fazia o cálculo
da energia e da nova da tarifa porque o DETRAN dava um prazo para mudar os
taxímetros. Mudávamos uma faixa de vinte ou trinta carretinhas por dia, quando era o
taxímetro mecânico. Quando era taxímetro elétrico, dava para mudar umas cento e
cinqüenta por dia. Aqui em Fortaleza tinha três ou quatro mecânicos de relógio de
táxi. Um vinha de Natal, outro de Teresina e tinha um cabo da polícia militar que fazia
esse serviço também. Tinha um professor que também sabia mudar a carretinha, me
lembro dele. É o taxista que tem que pagar a mudança do taxímetro toda a vez que
tem aumento de tarifa.
E tinham também as tabelas. Teve um tempo que a gasolina subia demais. Toda
semana subia. E no tempo que a Maria Luiza foi prefeita, lá em 1986, nós do
sindicato tínhamos muitas reuniões com ela sobre o aumento da tarifa. O presidente
do sindicato datilografava o salário, o preço da corrida, o preço de peças, o preço do
combustível, o preço de lavagem, o preço de tudo de taxi. Aí nós íamos em comissão
para a Prefeitura. A Maria Luiza não dava trabalho na negociação. Foi uma prefeita
muito boa para os taxistas. Então um dia, ela disse: “- Vamos fazer um negócio: se
toda a vida que a gasolina subir nós formos mudar o taxímetro, fica dispendioso para
os taxistas, fica dispendioso para todo o mundo. Deixa subir três vezes, a gente
soma e muda”. E aí fomos rodando com a tabela. Às vezes passava dois meses sem
mudar o taxímetro.
Com a tabela, a gente fazia a conta de quanto tinha subido a tarifa sem mudar o
taxímetro. Funcionava assim: o passageiro entrava no carro e nós ligávamos o
taxímetro para a corrida. O taxímetro marcava a corrida até chegar. Quando chegava
no fim, estava marcado: dez ou oito ou o que fosse. Aí quando o passageiro vai
descer, a gente olhava o quanto deu no relógio: “- Deu dez!”. Pegávamos a tabela e
víamos o quanto correspondia a dez: “ – De dez para onze”.
Na tabela era meio difícil dos taxistas roubarem os passageiros. Não tinha
falsificação. Quem quisesse roubar, era mesmo no relógio. Uma vez, enquanto eu
era tesoureiro, cheguei lá no ponto e encontrei um rapaz que trabalhava até às 10
horas da noite consertando os taxímetros, de tanta coisa que ele encontrava dentro.
Eu controlava as merendas dele, porque, como o DETRAN dava um prazo para
mudar todos os taxímetros na mudança de tarifa, nós tínhamos que dar todo o
suporte aos associados. Ele se deitava embaixo do assento da frente, olhava lá em
baixo com um espelhinho, tirava o aparelho do carro, mudava a carretinha e
colocava a outra nova. Tinha uma tabua só para isso. Ele olhava também se tinha
garrancho. Garrancho são essas coisas que os motoristas colocavam, clips,
grampo... Se tivesse, dava confusão. Depois ele anotava tudo e assinava. Então, os
taxistas iam levar o carro no Instituto de Pesos e Medidas, perto do Aeroporto.
Lá tinha uma faixa pintada no chão marcando mil metros. O Instituto definia uma
hora para os taxistas chegarem, mas sempre fazia fila, de tanto táxi que tinha. Então
o rapaz do instituto ficava esperando. Entrava no carro, ligava o taxímetro e pedia
para a gente ir até o final dos mil metros. Isso na bandeira um. Depois, outra vez, na
bandeira dois. Ele anotava tudo e, se desse alguma diferençazinha, tinha que voltar
e fazer tudo de novo. Já era até comum a gente levar dinheirinho trocado para o
rapaz, porque sempre dava um picado. Ele estava tão viciado que pedia o cafezinho
mesmo quando dava certo....
Ainda hoje tem crime da Bandeira 2. Antigamente, os assaltantes atacavam muitos
táxis à noite, hoje já diminuiu bastante. Era uma área de trabalho muito perigosa.
Caminhão, antigamente era mais seguro... hoje, está mais perigoso...
Sabe o que eu fazia lá na Perboyre e Silva? O ponto era na frente de uma farmácia
grande, a Drograjafre. Eu me dava muito bem com a gerente. Era uma mulher que
trabalhava há muito tempo na firma, muito distinta... não sei se tinha marido. Só sei
que a gente fez uma amizade muito certa. Eu tinha acesso ao banheiro da farmácia
e, de vez em quando, eu levava uma merenda diferente para todo o mundo comer.
Às vezes, eu aparecia com uma novidade para experimentar, porque, graças a Deus,
nunca me faltou dinheiro para comida. Pagava a merenda de todos e ela virou
freguesa.
Um dia, a mulher da farmácia me pediu um favor. Ela tinha um dinheiro guardado na
Caixa Econômica e queria tirar para reformar o seu apartamento. Era muito dinheiro.
“- Severino, você vem comigo ao banco?” Eu fui. Chegamos na Praça do Carmo,
peguei na mão dela, entramos na Caixa Econômica. Fiquei ao lado dela na fila e o
tempo todo que ela pegou o dinheiro e conferiu. Depois fomos para o carro e eu a
deixei em casa. Quando ela desceu, queria pagar a corrida. Mas eu não deixei. “Não é nada! Vá cuidar de seu apartamento..” Nós ficamos sempre merendando
juntos e de vez em quando ela me telefonava. Ficamos muito amigos...
É boa a amizade que a gente faz, quando tem carro de praça. Mas tem muitos
motoristas no ponto que são fechados. Não gostam muito de conversar. Conversam
pouco... Eu não. Geralmente, ninguém disputa passageiros no ponto, porque tem
acordo. Mas tem sempre gente... Quando eu trabalhava na Praça do Carmo, saí daí
por causa de disputa. Tinha uma mulher que trabalhava com o marido. O marido
rodava de noite e ela rodava de dia. Quando os passageiros se aproximavam, ela
chamava: “ – Ei, venha nesse carro, nesse aqui. Esse é mais novo. ” Abria a porta e
chamava os passageiros. E fazia a corrida na vez do outro. Isso é muito feio! Dava
briga. Nunca vi morte, mas a confusão era grande!
Um dia, eu estava na Praça do Carmo e chegou um casal para fazer uma corrida
para o Riacho da Serra. Riacho da Serra fica bem a uns noventa quilômetros daqui.
De táxi? Era uma boa corrida. O homem sentou e conversou comigo. Eles queriam
levar um eletrodométsico ou qualquer coisa assim. Eu disse: “- Rapaz, Riacho da
Serra dá uma hora e pouco para eu ir e voltar. Vou te fazer por cem”. Foi quando
essa mulher chegou, sem-vergonhosamente e se meteu na conversa: “- Eu faço por
noventa. Meu carro é novo e eu posso fazer.” Eu fiquei muito brabo!: “- Essa mulher
é muito aperreada. Vá com ela!”. Mas o homem disse que não e foi embora.
Ninguém levou o casal.
De noite, ela telefonou para o marido dela no orelhão da praça. Ele estava no ponto,
mas eu não o chamei. Disse que o marido não estava. Quando descobriu, a mulher
ficou doida... veio me encarar: “- O Severino não deu recado?” - Eu não dou recado
de ninguém. Dou se eu quiser. Eu sou dono de mim. Não vivo às custas de ninguém”
Ele falava, falava e eu ia indo embora. Saí e não quis nem saber da briga.
Eu sempre gostei de música no carro. Sempre andava com uma caixinha com um
bocado de fita cassete, que eu comprava lá no ponto mesmo. Tinha um camelô que
vendia ou trocava as fitas... Hoje, os carros têm CD, mas no meu tempo era fita
cassete mesmo. Tinha passageiro que gostava de música. Uma vez eu peguei uma
mulher quando estava ouvindo uma música muito boa. Então deixei tocando. Depois
terminou a música e eu desliguei. Mas ela queria mais “- Não, desligue. Deixe tocar”
Teve um dia que eu vinha no Henrique Jorge para pegar a José Bastos. Lá onde
pareia com o Jóquei Clube, um carro bateu com um casal num poste. A mulher
estava toda ensangüentada, mas os carros não paravam para ajudar. O homem só
dando sinal na rua e os carros passeando. Eu encostei. Tinha um plástico grande no
carro. Forrei o banco e coloquei a mulherzinha lá. Ela se estirou no banco traseiro,
ficou com uma parte do corpo sobre as pernas dele. Comecei a dirigir com cuidado e
cheguei na Assistência. Teve até um guarda que me ajudou, porque perto da
Assistência, vindo da Domingos Olímpio para entrar na General Sampaio tem um
trânsito muito difícil... O guarda apitou para os carros pararem e abriu o portão, entrei
na Assistência e deixei o casal.
Já peguei passageiro bêbado também. Mas eu não gostava de carregar bêbado de
jeito nenhum. Não gosto de bêbado. Mas uma vez peguei um bêbado na pedra. Era
um homem bem vestido, me enganou. Fomos lá para perto da Barra do Ceará e ele
querendo dormir no carro. Eu dizia que já estava chegando, mas sempre que
estávamos perto da rua, ele dizia que era mais longe... No meio do caminho, ele deu
para falar dizer: “- Eu vim de carona, eu não pago carro...” e começou com isso, não
querendo pagar a corrida. Então eu resolvi acertar a situação: “- Você vai pagar?” e
ele disse que não. Então, passamos em frente a um bar onde havia uns quatro
rapazes novos bebendo. Parei o carro, desci e chamei os rapazes: “- Negrada, esse
cara não quer me pagar. Está aqui conversando que não quer me pagar e ele está
com dinheiro”. O pessoal mandou ele me pagar e ele pagou a corrida. Ele estava
bem bêbado. Acho que foi por isso que ele fez essa confusão. Mas eu não sou
besta. Se estivéssemos só nós dois, se eu tivesse coragem, ia brigar. Sempre que
eu faço uma besteira dessas, depois fico me cobrando. Mas foi bom. Fui me
preparando para não pegar bêbado de novo.
Outra vez chegou outro bêbado quando eu estava na Perboyre e Silva. Ele veio
andando no rumo do meu carro, mas eu fui logo acenando, negando a corrida. Bem
pertinho dalí tinha um bar e o dono do bar me chamou. Disse: “- Pode levar. Esse
rapaz trabalha num açougue, num negócio de carne”. Eu levei o homem. Quando
chegamos no final, ele disse que não tinha dinheiro para pagar a corrida, mas
poderia me pagar com carne! Eu disse: “- Não problema não.” Peguei uns três ou
quatro quilos de carne, agradeci e fui embora. Era carne boa, de primeira. Quando
voltei para casa, minha mulher gostou do arranjo...
Outra vez, eu ia chegando no Conjunto Ceará em um sábado, ao meio e dia e meio,
por aí. Não gostava muito de pegar serviço por ali não, mas... Uma mulherzinha deu
o sinal. Fiz o balão, voltei e parei. A mulher estava aflita: “- Meu Senhor! Minha
Nossa Senhora!!!” começou a chorar. “O que houve?” “- Eu moro lá perto do jornal O
Povo, num apartamento daqueles perto da rua Visconde... e deixei uma panela de
macarrão no fogo aceso”. Sabe como é: macarrão é como leite, tem que ficar
olhando. “- Desci o elevador e esqueci a panela... Quando eu chegar lá já vai ter
pegado fogo, já vai ter reportagem, já vai ter bombeiro, terá tudo”. Eu disse: “- Não
chore, não. Vamos embora”. Aí toquei o pé. Quando eu cheguei lá, ela desceu
correndo e entrou no prédio: Pouco tempo depois apareceu o marido dela, já com
dinheiro da corrida na mão. Ele me explicou: “- Não, não teve problema. Assim que
ela saiu de casa eu cheguei e apaguei o fogo”. Coitada da mulher... estava
aperreada! Ainda bem que deu tudo certo.
Eu também não gostava de pegar passageiro na avenida Leste-Oeste de noite.
Ninguém gosta de parar por lá, porque é perto do Pirambú, cheio de ladrão. Eu só
pegava se fosse casal, mulher com menino, essas pessoas. Os desocupados, eu
deixava mesmo! Uma vez, eu estava na Leste-Oeste voltando de uma corrida.
Queria pegar o Carlito e ir para casa. Foi quando vi um cabra dando o sinal. Tinha
um cabelo nem grande, nem pequeno. Decidi ver o que era. Parei o carro e perguntei
para onde ele queria ir, mas não abri a porta. Se fosse para os lados do Pirambú, eu
viria embora. Ele disse que estava esperando táxi há uma hora, mas nenhum carro
parava. A família dele estava com viagem marcada para Europa e esperava por ele.
“- Eu quero um táxi que me leve para casa. Dá para o senhor me levar?” Ele entrou
no carro e, quando chegamos, a mulher dele já estava esperando na porta. Me
pagou a corrida e eu fui embora.
Eu deixei muitas e muitas vezes de pegar passageiros. Toda vida eu me desculpava
dizendo que já estava indo para casa. Só que às vezes terminava uma corrida e já
era de noite, então eu demorava chegar. No começo, tinha uma plaquinha no carro
que a gente virava e estava escrito “livre” se estivesse de serviço. Hoje não tem
mais. No Rio de Janeiro tinha até uma placa escrita “almoço”. Os taxistas põe a
plaquinha e ninguém dá o sinal... Uma vez, foi até engraçado! Eu levei minha mulher
para Aparecida do Norte em São Paulo e ela contou doze ônibus com uma placa
escrito “reservado”. Era um domingo. Ele reclamou: “- Que lugar estranho! O que são
essas placas nos ônibus?” Eu tive que explicar que “reservado”, em São Paulo, é o
mesmo que “contratado” por aqui. Significa que o ônibus tem uma rota especial e
então ninguém dá sinal para parar.
Só que os taxistas têm obrigação de parar para qualquer passageiro. Se recusar,
pode até ir preso ou paga uma multa danada! Mas eu, se não quisesse fazer a
corrida, não pegava e pronto. Eu era cara de pau. Botava a cara para fora e
perguntava para onde o passageiro queria ir. Se fosse fora do meu caminho, eu
alegava o motivo: “- Não posso levar porque estou apressado... Vou pegar uma
pessoa doente...” Mas se fosse para o lado que eu ia, eu levava, porque sempre fui
uma pessoa legal.
Tinha vezes que eu estava pertinho da minha casa e aparecia gente na calçada que
dava com a mão. Uma vez, eu tinha feito uma corrida para o Conjunto Ceará e já
eram oito horas da noite. Eu estava chegando em casa e deram um sinal para fazer
uma corrida para Barra do Ceará. Assim, eu não levava de jeito nenhum. Muito
menos para aqueles lados...
Outra vez, deram um sinal e eu parei: “- Para aonde você vai?” E ele: “Nós somos
em três e vamos para...” Era na direção de um lugar onde já tinham matado não sei
quantos. Eu disse que estava atrasado, que se fosse no meu rumo eu levaria. E fui
embora. Um pouco mais na frente apareceu um homem bem vestido, na casa de uns
50 anos de idade, se não me engano. Ele queria ir para a Casa Juazeiro. Gostei do
cabra e abri a porta. Toquei, toquei, toquei o meu carro. Quando estávamos perto da
casa, ele me avisou: “- Vou parar aqui. A casa é logo ali. O senhor teria que dar
marcha ré, mas eu vou à pé. Tem uns malandros por aqui. Não pare porque nesse
povo ninguém confia!” Eu gostei da consideração. Agradeci. Era um homem bacana!
Me pagou e eu voltei para casa.
Fazer corrida longa é melhor do que fazer corrida pequena. O dinheiro é maior, não
é? Tinha um engenheiro que sempre fazia corrida comigo. Dava uns 30 quilômetros
de distância, porque ele ia para além da fábrica do M. Dias Branco, no Km 18 da BR
116. Toda a semana esse engenheiro ia fazer uns pagamentos em sítio por lá. Eu
ficava esperando embaixo de um cajueiro. Tinha um monte de caju. No tempo da
fruta, ele pedia para um empregado encher a mala do meu carro com cajus e trazia
tudo para casa.
Eu tinha também um freguês que era funcionário do Banco do Nordeste. Uma vez
por mês, ele vinha com a mulher, comprava umas coisas no mercantil. Eu encostava
e eles enchiam todo buraco do meu carro. Era corrida boa, para longe, depois do
Conjunto Esperança. No Mondubim Velho, tem um lugar chamado de Timbó...
Conjunto Timbó. Não: era o Acaracuzinho. Tem o Ceasa, entrava depois. É lógico
que corrida longa é que dava dinheiro. Eles chegavam no ponto e me perguntavam
se dava para fazer o serviço. “- É claro! Daqui há meia hora estarei lá.” Eu sabia
onde era o mercantil, porque eles só faziam corrida comigo. Tanto era, que eu não
tinha medo de perder a viagem deles. De vez em quando, dava até para eu fazer
uma corrida pequena, porque eles me esperavam. Quando eu aparecia, eles
colocavam tudo no carro e nós íamos conversando até lá.
Bagagem de passageiro nunca foi problema para mim. Eu pegava um monte de
gente carregada. Eu lembro de uma freguesia boa na General Bezerril, onde tem a
Praça da Polícia, que chama Praça dos Voluntários e vem no rumo da Praça do
Ferreira. Tem muita rede, muita loja de roupa por ali. E tinha umas rendeiras que
faziam muita feira nesse lugar. Compravam, compravam e botavam todas as coisas
no meu carro. Enchiam até que não podia mais. Depois eu ia deixá-las na rodoviária.
Nunca achei ruim dos pacotes. Nem cobrava mais por isso. Agora, quando é muita
bagagem, as pessoas sempre dão uma gorjeta além da corrida, pagam o cigarro. Só
não dava para levar quando era muita gente, porque se o DETRAN pegasse, dava
multa. No carro só podem estar cinco pessoas: o chofer, três no banco traseiro e um
na frente. Mas algumas vezes entra menino de colo, essas coisas. Dá até para pedir
para a pessoa se abaixar...
Teve um tempo em que inventaram aquele negócio de tirar o banco da frente do
passageiro. Foi quando começaram os carros de praça. Na Praça do Estaleiro tinha
muito jipe e lá eles tiravam o banco da frente. Depois, quando nasceu a fábrica da
Volkswagem no Brasil, o Conselho Nacional de Trânsito mandou tirar o banco da
frente. Os passageiros só podiam andar atrás. Eles achavam que se alguém fosse
na frente, podia atrapalhar a visão do motorista. Não podia nem andar com rádio,
para não perder atenção. Naquele tempo, o Oscar Pedreira, dos ônibus, mandou a
gente tirar o rádio dos carros, porque atrapalhava o serviço... Depois foi modificando.
Hoje, tem até televisão nos carros, não tem?
Essa foi a história. Parei de fazer a praça porque deu meu tempo. Tenho oitenta
anos e eu me orgulho de ser oitentão. Isso não é para todo o mundo! Faz uns cinco
anos que deixei o táxi. Mas ainda continuei aqui na Associação Beneficente.
Quando comecei como tesoureiro aqui, ainda trabalhava na rua. Só vinha para cá à
tarde, ajudar a secretária. Ela completou quarenta anos trabalhando aqui... Eu
chegava à uma hora da tarde, levava o dinheiro para o banco. Nos dias de
pagamento, eu assinava os cheques com o Presidente, sacava o dinheiro e ajudava
a secretária a fazer os pagamentos. Até hoje é assim. Nós arrumamos os envelopes
pretinhos com o dinheiro de cada doutor daqui. Conferimos tudinho, grampeamos e
colocamos o nome do doutor na frente do envelope. Assim, quando ele chegar para
pegar o dinheiro, é só assinar o recibo. Depois, vou embora. É perto de casa, é bom
para mim. Tenho salário aqui.
Então, quando achei que deu meu tempo, vendi minha vaga, fiquei com meu carro
particular e passei a trabalhar só na Associação. Depois, compramos essa casa no
Centro, que fica bem pertinho daqui. Então eu só usava o carro aos domingos.
Acabei vendendo meu carro. Já fiz minha obrigação.
Quando eu olho para toda essa minha história, acho que nem todos tiveram os
privilégios que eu tive. Nunca fui preso, nunca fui decepcionado, nunca matei gente
com o carro. Nem no táxi e nem no caminhão. Cansei de parar de repente para não
atropelar ninguém. Você acredita que eu só matei dois cachorros na minha vida,
ainda com o caminhão? Um deles foi em Petrolina, quando eu estava entrando em
um beco e o bicho correu para debaixo do carro. O outro foi na Praia de Iracema.
Tinha um bocado de menino com cachorro brincado no meio da rua e eu acabei
pegando o cachorro.
E acho que eu ajudei muita gente, sem interesse de dinheiro. Mulher grávida? Ajudei
demais, perto de fazer a operação! Uma vez, com o táxi, peguei uma mulher que
estava prestes a ter o bebê na avenida Rio Branco. Eu disse a ela: “- Olhe, vou bem
devagarzinho. Não se preocupe. Agora, a senhora tem um privilégio que nenhuma
outra pessoa tem. Se fosse outra pessoa, eu andaria como me pedissem, mas com a
senhora, vou devagar. Pode reclamar, que eu paro.” Eu gostava de fazer favor. Acho
que é uma obrigação da gente.
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