NÓS DO MORRO 20 ANOS
HÁ QUEM ACHE QUE FAZER ARTE,
ver o mundo de onde o viram Shakespeare, Beethoven, Picasso ou Fellini, é para quem nasce em berço esplêndido, com
o divino dom do talento e o privilégio de ouvir o secreto chamamento da vocação. Ar te, dizem, não é para gente do morro
– refúgio dos bárbaros urbanos, sem-lugar, sem-classe, semeducação, sem-Estado. Eis que um grupo de ar tistas, sorriso
sonso nas caras jovens, repete o que disse o desavisado
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vencedor: “Não sabia que era impossível, fui lá e fiz”.
Na Niemeyer, o carro dá as costas ao mar e entra no rebuliço
da feira-livre, comércio frenético, trânsito confuso e a fieira
de táxis, vans e motos de aluguel para subir o morro do Vidigal. Ao afastar-se do asfalto, o coração aper ta. O bombardeio
de notícias sobre tiroteio e tráfico e o legado histórico de
discriminação entranham o medo na alma. A maioria dos moradores é trabalhadora, honesta, pacífica, sabe-se. O olhar,
porém, esquadrinha por tas, janelas, becos, esquinas, guiado
pelo medo nutrido de preconceito. À meia encosta, súbita bifurcação, e descor tina-se o morro: ferradura de bordas altas,
vale no meio, mar na aber tura. À direita, casas de alvenaria,
conser vadas, algumas de dois andares, várias com quintais
arborizados, jardins, muros e grades. À esquerda, a favela:
barracos, lajes agitadas, vielas, gritos. Como a cidade, o Vidigal também é par tido.
À direita, chega-se ao Casarão de dois andares do grupo Nós
do Morro - num platô gramado, sob ár vores, em bucólica paz.
Do alto, os horizontes se alargam do céu ao mar infindos.
Aqui, bárbaros urbanos rompem a restrita moldura do eventual gênio espontâneo e intuitivo e, com esforço, obstinação e
disciplina, apropriam-se de Beethoven, Shakespeare, Picasso
e Fellini - compar tilhando o espírito universal da criação. Criar
emancipa: logo começarão a discutir o divino dom do talento,
o secreto chamamento da vocação e até o berço esplêndido.
Este livro conta como a ar te pode fecundar criativas soluções
para quaisquer nós dos morros.
Alcione Araújo
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APRESENTAÇÃO
Morro, trazendo novos campos de significados à lógica dos
que dela par ticiparam ativamente. E finalmente em MORRO,
Organizado pela jornalista Mar ta Por to, NÓS DO MORRO 20
os sonhos, as esperanças, os desejos da comunidade de ato-
ANOS apresenta um vasto material iconográfico e dá ênfase
res e técnicos que hoje per tencem ao Grupo Nós do Morro, a
ao diálogo que se estabelece no percurso do Nós do Morro
par tir de seus próprios testemunhos.
entre as utopias e os sonhos dos fundadores na comunidade
Vale destacar que, a fim de facilitar a leitura e contextualizar
do Vidigal. Através de um recurso de metalinguagem, o livro é
a memória desses 23 anos, NÓS e MORRO são introduzidas
dividido em três seções: NÓS, DO e MORRO. Uma brincadeira
por longos prólogos, nos quais são exploradas as cronologias
com o nome do Grupo e com a força do processo de narrar a
dos fatos e histórias pitorescas que marcam a trajetória do
própria história, a par tir de uma visão autoral e daquela cons-
Grupo. Essas seções são complementadas com informações
truída com base na visão do outro e do meio onde se cria e
sobre a extensa obra teatral e a filmografia do Grupo e da
se recria diariamente.
Companhia Teatral Nós do Morro e a far ta documentação fo-
Em NÓS, com a palavra os fundadores – Guti Fraga, Luiz Paulo
tográfica que acompanha cada montagem e ação do Grupo.
Corrêa e Castro, Fred Pinheiro, Fernando Mello da Costa e
O resultado pode ser encontrado nas 276 páginas de NÓS DO
Zezé Silva – e mitos do teatro nacional que acompanharam
MORRO 20 ANOS que certamente serão as primeiras de várias
o início da trajetória do Grupo – como Amir Haddad e Marília
outras publicações que o Grupo Nós do Morro merece receber.
Pêra. Já na seção DO, há um caderno especial de ensaios
e outro de críticas, os quais reúnem um caleidoscópio de
pensamentos que enriquecem a leitura da história do Nós do
XBRASIL
Rio de Janeiro, julho de 2009
SUMÁRIO
NÓS
Capitulo 1
Prólogo
Nós por Nós
Abre o Pano
Capítulo 2
Prólogo
No Circuito
Ensaio 3 - Barbara Heliodora
Ensaio 4 - Cicely Berry
Ensaio 5 - Carlos Diegues. Com Rosane Svartman e
Raoni Seixas.
Ensaio 6 - Beatriz Rezende.
Caderno de Críticas
MORRO
Capítulo 3
Prólogo
Vozes do Morro
QUEM É QUEM
DO
Principais Obras
Caderno de Ensaios
Ensaio 1 - Luiz Paulo Corrêa e Castro
Ensaio 2 - Tânia Brandão
Obra Completa
Filmografia
Premiação
NÓS Capítulo 1
ebulição ar tística e intelectual. No meio, tradicionais famílias
Prólogo
cujos casarões enfeitam o Vidigal até hoje.
Não há registros oficiais, mas é quase cer to que a come-
sense de Alto Garças, aprendeu na infância empobrecida a
moração pela vitória que afasta o risco de remoção tenha
não ter medo de diferenças sociais. Circula de um lado para o
acontecido no Bar-raco, entre uma saideira e outra. No final
outro, com a mesma desenvoltura. Trazia de Goiânia não só a
da década de 1970, é lá que se dá uma mistura interessante.
experiência do teatro mambembe de Hugo Zorzetti, mas tam-
Aglutinados no bar do Seu Celeste, na par te baixa do morro,
bém a lembrança de amizades com pessoas ricas e pobres.
avizinham-se favelados, classe ar tística e abastados. O Vidi-
Para esse ar tista hippie, que então sobrevive com alguma
gal anda par tido entre a ocupação e a posse. De um lado os
dificuldade, ter ou não dinheiro no bolso jamais influenciaria
jovens talentos do morro, sedentos por informação e ar te. De
sua conduta. É assim que ele conhece, no seu próprio condo-
outro, a galera hippie dos prédios ao pé da encosta, em plena
mínio, ar tistas como Gal Costa e Danilo Caymmi. O cenógrafo
Guti Fraga, estudante de Teatro e Jornalismo, transita livremente entre os dois grupos: o da favela e o dos prédios do
condomínio Pedra Bonita, na par te baixa do morro. Mato-gros-
Fernando Mello da Costa que também é seu vizinho convida-o
comunidade, para a comunidade. Criar um grupo que surge
para auxiliá-lo na confecção de bolsas ar tesanais. Era o que
a par tir de ar tistas e platéias locais e que interage com os
dava um dinheirinho.
movimentos ar tísticos de fora da favela.
Verão de 1985. Aeropor to do Galeão. Quando pisa em solo
Guti perambula pelas vielas do Vidigal para convencer o pes-
brasileiro, Guti Fraga, ator, diretor de cena e assistente de
soal a alternar os papos de futebol e de novela com algo que
Marília Pêra, está diferente. Desejos intranqüilos acompanha-
parecia ser coisa de gente rica: o teatro. Nas madrugadas
ram-no durante todo o trajeto Nova York – Rio. Os espetáculos
encostadas no balcão de bar ele arregimenta a equipe: Fer-
da Off Broadway em salas pequenas, às vezes, com apenas
nando Mello da Costa, cenografia, Luiz Paulo, dramaturgia e
dez espectadores, figurinos per feitos e iluminação irrepreen-
Fred Pinheiro, iluminação. Este último, colega da equipe de
sível, mudam a sua concepção de como produzir teatro com
Marília Pêra, sobe o morro pela primeira vez.
qualidade. Deu-se o estalo. Era isso que ele queria fazer no
O primeiro local de trabalho do Grupo é um tanto inusitado. O
Vidigal, mesmo que significasse abrir mão do trabalho com
espaço na Rua Benedito Calixto per tence a um padre austrí-
Marília, o primeiro que lhe dá alguma estabilidade na vida.
aco, o padre Leeb. Um espaço ao ar livre, onde Fred Pinheiro
promete criar uma cenografia com refletores de lata.
Não há quem não ache sua idéia insana, no mínimo descabida. Para a própria Marília é difícil entender. Mas a semente
Nas ruas do Vidigal, Guti inicia seus primeiros garimpos. Den-
do Nós do Morro nasce ali, nas idéias que vão amadurecendo
tre os primeiros talentos locais: Tino Costa e Popia Marques,
durante o vôo Nova York – Rio de Janeiro. Fazer teatro com a
folclorizados por suas violas. Em novembro de 1986, está
formado o Projeto Teatro Comunidade. O nome Nós do Morro
Sacerdote da Congregação dos Oblatas de São Francisco de
chega um pouco depois, graças à inspiração de Seu Celeste.
Sales, além de missionário, jornalista, cantor, compositor, fo-
É no seu bar, em animada reunião com os integrantes do Gru-
tógrafo e escritor, Huber t Leeb ainda assume três filhos ado-
po, que acontece o batismo.
tivos. Conhece Joana Batista Costa no Carnaval de Sergipe,
em 1976. Começam a trabalhar juntos, encargo que os leva a
O Projeto Teatro Comunidade, aos poucos, vai diluindo o con-
diversos países em campanhas para arrecadação de recursos
ceito de que somente os mais abastados têm acesso à cul-
e donativos para populações pobres brasileiras. O resultado
tura. Com a iniciativa do padre, é construído um teatro com
dos esforços aflora, sobretudo, no Nordeste, onde são cria-
capacidade para oitenta pessoas, equipado com um sistema
dos postos de assistência médica e centros comunitários.
de iluminação alternativo composto por refletores improvisados, dois camarins e toda a estrutura necessária para o fun-
Com recursos da venda de livros e discos de autoria do pró-
cionamento de uma casa de espetáculos.
prio padre, a dupla segue para Por to do Mato, Sergipe, onde
O padre austríaco é, sem dúvida, personagem impor tante
constrói um Centro Social Pastoral com toda a infra-estrutura
nessa história de fazer teatro em plena favela. Esse padre
necessária para atender a população de baixa renda. Graças
que tanto agrada a uns, desagrada muito a outros. Mais pro-
à iniciativa, padre Leeb recebe no dia 4 de novembro de 1986
priamente à Igreja Católica. E da desavença entre padre Leeb
o título de “cidadão estanciano”. Por causa do isolamento de
e a Igreja decorrem duas conseqüências: Leeb é proibido de
Por to do Mato, Leeb e Joana precisam de um ponto de admi-
celebrar missas no Brasil e não obtém permissão para legali-
nistração para a convergência Europa-Nordeste. Eles adotam,
zar seu Centro Comunitário.
por tanto, o Vidigal, onde erguem um moderno centro social.
Os seis andares são ocupados por vinte apar tamentos, piscina, salão de ginástica e de dança, alguns vestiários, uma
varanda com mesinhas para festas e um bar. E o teatro, é
claro, adaptado em plena capela.
E estaria ali naquele centro, esvaecida com a passagem dos
anos, a última mensagem mística desse personagem que,
por fim, adotaria Ponto do Mato, no Nordeste, como exílio espiritual e missionário. É lá que ele mantém um centro social
com os lucros de uma pousada.
A AUTORA Ensaísta e consultora, Mar ta Por to se graduou em
Jornalismo. Já no início de sua carreira, decidiu trabalhar para
tentar mudar a realidade, em vez de repor tá-la; nos diversos
cargos públicos, privados e em organismos internacionais
que ocupou, esteve sempre à frente de projetos voltados para
o campo social. Autora de ar tigos e ensaios publicados na
imprensa, em coletâneas de livros e revistas especializadas,
atualmente é diretora da XBrasil, escritório de comunicação
por causas. www.mar tapor to.com.br
O NÓS DO MORRO Idealizado pelo jornalista e ator Guti Fraga
para levar arte e cultura às crianças e adultos do Morro do Vidigal (Rio de Janeiro), o Nós do Morro foi fundado em 1986 e hoje
é um dos mais representativos grupos de teatro do Brasil. Ao
longo destes 23 anos, montou mais de 90 peças, recebeu mais
de 20 premiações, e é referência na cena teatral já tendo compartilhado seu talento com grupos internacionais como o prestigiado Royal Shakespeare Company. Entre as atividades do Nós
do Morro, estão ainda cursos de formação nas áreas de teatro
(atores e técnicos) e cinema (roteiristas, diretores e técnicos).
www.nosdomorro.com.br
A XBRASIL Inaugurada em 2004, a XBrasil é um escritório de comunicação por causas que, entre outras ações e produtos, edita
livros em áreas de interesse público – como saúde, educação e
direitos sociais, incluindo títulos que relatam experiências culturais
de grupos formados em comunidades do Rio de Janeiro.
Entre estes projetos editoriais, destacam-se as publicações Da
favela para o mundo, a história do Grupo Cultural AfroReggae,
de José Junior, e Favela, alegria e dor na cidade, de Jailson
de Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa. www.xbrasil.net
Nós do Morro, 20 Anos. Marta Porto, XBRASIL, Rio de Janeiro, 2009.
Já a venda www.xbrasil.net e www.nosdomorro.com.br
276 páginas. Com par ticipação de Alcione Araújo, Bárbara
patrocínio
Heliodora, Beatriz Resende, Cacá Diegues, Cicely Berr y, Luiz
Paulo Corrêa e Castro e Tânia Brandão. Depoimentos de Marília Pêra, Amir Haddad, Guti Fraga, Zezé Silva, Caio Blat, Jonathan Haagensen, Babu Santana, Mar y Sheyla, e outros.
apoio
Pesquisa e preparação de texto Carla Mühlhaus e Luiza Pizarro
Projeto Gráfico Luiz Stein Design (LSD)
realização
Fotos especialmente clicadas para esta edição Bruno Veiga
Patrocínio BNDES / Lei de Incentivo à Cultura
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NÓS DO MORRO 20 ANOS