Ângela Leite Ana Kelly Uma saga de amor e coragem www.oficinadolivro.pt © 2011, Ângela Leite e Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda. uma empresa do grupo LeYa Rua Cidade de Córdova, 2 2610-038 Alfragide Tel.: 210 417 410, Fax: 214 717 737 E-mail: [email protected] Título: Ana Kelly – Uma saga de amor e coragem Autoria: Ângela Leite Revisão: Silvina de Sousa Composição: SVS em caracteres Sabon, corpo 11,5 Capa: Maria Manuel Lacerda / Oficina do Livro Impressão e acabamento: Rolo & Filhos II, SA – Indústrias Gráficas 1ª edição: Julho de 2011 ISBN 978-989-555-771-4 Depósito legal n.º 328 902/11 Prefácio As incursões napoleónicas em Portugal invadiram a literatura portuguesa com um quantioso exército de obras que lhe são consagradas. De Arnaldo Gama, ou Camilo Castelo Branco, a Pinheiro Chagas ou Rebelo da Silva, de Silva Gaio a Mendes Leal ou Abel Botelho, do Conde de Ficalho a Júlio Dantas, ou Raul Brandão, ou Pascoaes, de Malheiro Dias, ou Tomás de Figueiredo, a Aquilino Ribeiro ou Branquinho da Fonseca, muitos foram os autores, no século XIX e na primeira metade do século passado, que recrearam a época agitada das invasões francesas. Ainda mais próximo de nós, a temática ligada às campanhas militares francesas em território luso voltou a deixar marcas assinaláveis no campo do romance histórico português. De Álvaro Guerra a Vasco Graça Moura, de Mário Cláudio a José Marques Vidal (autor do recente e excelente O Amor em Armas, que tem por pano de fundo o Baixo Vouga), e vários outros ficcionistas, o filão napoleónico não se exauriu. Até autores estrangeiros se interessaram pelo tema. O primeiro de todos, Edward Quillian, portuense de origem irlandesa, genro de Wordsworth, deixou um curioso romance, recentemente traduzido, e muito justamente resgatado da escuridão em que estava sepulto, intitulado The Sisters of the Douro. Testemunha das invasões francesas, foi obrigado pela ocupação do Porto pelas tropas do marechal Soult a procurar refúgio, juntamente com a família, em Inglaterra. Mas também Conan Doyle, C. S. Forester ou Bernard Cornwell não desprezaram este tópico. Sem falar dos numerosos historiadores, ensaístas e artistas plásticos que trataram 7 ÂNGELA LEITE também esta matéria, plasmada em pinturas, ilustrações ou esculturas. As celebrações do bicentenário das ambições frustradas de Napoleão em Portugal foram pretexto para aumentar o caudal evocativo. Ângela Leite, porém, não se inscreve nessa fileira. Ligada à protagonista por relações familiares, tendo herdado parte do solar onde se desencadeou a tragédia, em Cedovim, a autora desta biografia romanceada sentiu-se compelida a voltar ficcionalmente ao seu Douro ardente, domínio de Dionísio triunfante, como o evoca no seu livro de poesia Metáforas Sobre o Amor, na composição “Douro II”. Crente e praticante, sem deixar de ser irreverente, não podia ficar insensível ao profundo drama humano que esmagou Ludovina, ela que na mesma recolha poética afirma, a propósito dos Talibans do mundo, que a fé negou a razão, mas conclui o poema proclamando que Graças a Deus / não s[abe] se Deus existe! Esta mesma afinidade está também presente em As Horas de Penépole, outro livro de poemas, no qual Ângela Leite consagra a terceira parte à “Geografia dos Afectos” e onde, no poema “Recordação”, o sujeito poético é uma menina só, que apenas podia chamar por si própria, pois Não havia mãe por quem chamar, situação que mutatis mutandis se poderá aplicar a Ana Ludovina Teixeira de Aguilar e que, por projecção psicanalítica, não será absurdo estender à própria autora da biografia romanceada desta solitária e corajosa grande mulher. Antes de delinear Ana Kelly, já Ângela Leite desenhara nas páginas de dois romances, Os Homens de Kidina e …E um Alfaiate em Hong Kong, duas dignas sucessoras da romântica antepassada duriense, Kidina e Maria da Luz, também esta última originária do Douro solar e do Douro luarento, que requebra nos vales um ondular redondo / de ancas e de seios / chamar de fêmea / vergastando os sentidos / desassossegando 8 ANA KELLY – UMA SAGA DE AMOR E CORAGEM o sono, como o canta Ângela Leite na sua “Ode ao Douro”, em As Horas de Penépole. Este telúrico apelo, frenético, deve ter sido idêntico ao que desvairou o tenente irlandês e a jovem aristocrata de Cedovim. Kidina e Maria da Luz são almas gémeas de Ana Ludovina, todas de grande carácter, decididas e lutadoras, invulgares, de rara autenticidade, mulheres de fortíssima personalidade que a vida não poupa, mas sempre cheias de enorme tenacidade, pagando muito caro a sua ousadia, rebeldes à frente do seu tempo, não se envergonhando de se renderem à alegria da festa carnal, como é dito a propósito da entrega ao prazer da protagonista de Os Homens de Kidina. A procura incansável da felicidade na vida, e sobretudo no amor, já era um tema recorrente nos dois primeiros romances de Ângela Leite, busca revisitada neste que ora se apresenta. Como Kidina e Maria da Luz, Ana Ludovina luta ferozmente pela sua felicidade e pela dos seus desprotegidos filhos, obstinada, à margem, ou mesmo em rebelião, contra as convenções sociais. O realismo é uma marca forte destas três narrativas. As duas últimas são baseadas em histórias de pessoas reais, sem perderem o seu carácter fictivo, dada a grande capacidade efabulatória da autora. Neste último romance, como nos precedentes, mas mais ainda em Ana Kelly – Uma Saga de Amor e Coragem, Ângela Leite foi incansável na sua pesquisa, recorrendo a todo o tipo de documentos, preenchendo as lacunas informativas com o recurso à sua fértil imaginação, sonhadora e romântica como a da protagonista. O efeito do real é uma preocupação constante da narradora, na esteira dos grandes cultores do romance histórico português, de Almeida Garrett e Alexandre Herculano a Camilo Castelo Branco. Peguemos um só exemplo desta marca de realismo, no capítulo que descreve o saque de Cedovim pelos franceses. Tentando 9 ÂNGELA LEITE desajeitadamente participar na defesa do seu solar, de arma em punho, Ana dispara à toa, escreve a narradora, o que provoca a reacção dos soldados franceses, que lhe desfecham um tiro que passa, felizmente, por cima da sua cabeça, e que foi atingir o retrato pendurado na parede, de seu avô. Até aqui temos a acção, mas de imediato a narradora insere este comentário autenticador, à maneira de Camilo, no Amor de Perdição, por exemplo, nas suas notas de rodapé: Ainda se conserva em Cedovim com o buraco da bala. A autora explora neste seu último romance, na senda dos precedentes, a análise psicológica e sentimental das principais personagens, abordando sempre a dicotomia entre a lógica dos afectos e a lógica da razão. Perscruta o casamento e seus impasses, as infidelidades e traições, suas comédias e seus dramas, construindo enquadramentos epocais e espaciais muito sugestivos. Além da protagonista, Ângela Leite cria algumas notáveis personagens secundárias que dão forte densidade à trama romanesca. É o caso, por exemplo, da figura apocalíptica de Maria Louca, de vincado humanismo ou ainda o da rica viúva-alegre de Maximino Moreira, que no seu envolvimento com o boticário Dr. Azevedo dá o ensejo à autora de escrever algumas passagens de incontido erotismo. As narrativas estão alicerçadas com um estilo vigoroso e diversificado, com vários registos de linguagem, fugindo muitas das vezes aos eufemismos, modelando as ficções com muita imaginação e verosimilhança, num equilibrado doseamento dos diálogos e da narração, aliando linguagem directa e metafórica, consubstanciando um estilo límpido, não procurando arrojadas inovações; estilo poupado, mas não bêbado, para utilizar os qualificativos cunhados por Brás Cubas, criação engenhosa do incomensurável Machado de Assis. A trágica vida de Ana Ludovina Teixeira de Aguilar é o equivalente português da desesperada existência da filha de 10 ANA KELLY – UMA SAGA DE AMOR E CORAGEM Victor Hugo, que acabou doida e internada num asilo de alienados, contada com grande mestria, em Adèle H, filme do arauto da nouvelle vague, François Truffaut. Ana e o seu tenente irlandês Waldron Kelly viveram, meio século antes, uma similar comédia de enganos e desilusões; drama romântico que envenenou a amargurada vida de Adèle Hugo, loucamente apaixonada pelo tenente inglês Albert Pinson, atravessando o Atlântico para ir ingloriamente ao encontro do seu cruel amado, tal como Ana abandonou a sua família e o seu país no encalço do militar sedutor, acabando ambas náufragas do amor, vítimas do mais desesperante abandono. Que Ana Ludovina encontre, para a encarnar na tela cinematográfica, a sua Isabelle Adjani, e o seu Truffaut, para a fazer renascer, tal como Adèle por estes ressuscitada. Que a biografia ficcionada de Ana por Ângela Leite seduza algum outro Truffaut, ou algum Ruiz ou Almodóvar, ou ainda algum Leonel Vieira ou Manoel de Oliveira, que magicamente dê a conhecer a um público mais vasto a figura excepcional desta heroína duriense, que bem o merece; e mais ainda, talvez, do que a filha caçula do patriarca do Romantismo francês. Portugal também merece e precisa que se revisite e divulgue a sua história e que este outro Amor de Perdição, como também o foi o de Pedro e Inês, possa vir a alentar o imaginário nacional e alienígena. Sangalhos, 22 de Maio de 2011 Pedro Calheiros 11 Aos meus filhos, Maria Alexandra e Rui Miguel Aos meus netos, António Sancho e Francisca Agradecimentos Para a elaboração deste livro contei com o gentil e desinteressado apoio de muitos amigos. Nesse sentido, quero expressar os meus mais sinceros agradecimentos a algumas pessoas que me facilitaram uma tarefa que sem a sua colaboração seria muito mais difícil de levar a bom porto. Em primeiro lugar, ao meu primo Comandante José António Teixeira de Aguilar e sua mulher Lídia Aguilar, o meu inexcedível obrigado. Com justiça, posso dizer que construí a casa, mas o meu primo ajudou-me a encontrar grande parte dos tijolos, tendo partilhado comigo a alegria de cada descoberta. Um agradecimento muito sincero a todos os amigos que se apaixonaram por esta história e que das mais variadas maneiras contribuíram para a sua reconstituição, nomeadamente: Dr. Alcides Santos; Conselheiro António Fernando Samagaio; Professor Doutor António Pedro Vicente; às Senhoras Carla Cruz, Isabel Cunha Rodrigues e Susana São João, técnicas do Arquivo Histórico Municipal do Porto/Casa do Infante, que com muito entusiasmo e grande profissionalismo me ajudaram na investigação feita naquele organismo; Dr. Carlos Torres; Professor Doutor Fernando Pinto do Amaral; Eng. Francisco Aguilar Machado; General Francisco Cabral Couto; General Gabriel Espírito Santo; Professor Doutor Gaspar Martins Pereira; Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, Dr. Isaltino de Morais; Eng. João Melo Trovisqueira; Dr. João Neto; Dr. João Ribas; Dr. José A. Damas Móra; Presidente da Câmara Municipal de São João da Pesqueira, Senhor José 15 ÂNGELA LEITE Tulha; Dr.ª Luísa Lisboa; Sra. D. Luísa Olazabal; Dr.ª Maria do Amparo Ferreira; Dr.ª Maria Fernanda Gomes; Professora Doutora Maria José Moutinho; Padre Mário Pais; Dr. Rodrigues Trabulo; Coronel Rui Taveira; à Administração da Sogrape, que gentilmente permitiu o acesso aos arquivos da empresa; e ao Senhor Tim Chambers. Um agradecimento final ao Professor Doutor Pedro Calheiros, amigo que generosamente acedeu a escrever o prefácio deste livro. 16 Nota introdutória Quando há alguns anos recebi como herança parte do Solar de Nossa Senhora da Conceição, em Cedovim, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, não imaginava vir a contar a história escondida nas ruínas do edifício. Com a morte do meu tio Ilídio Mariano Teixeira de Aguilar, desaparecia um dos últimos netos dos morgados de Cedovim, D. Bárbara de Noronha Teixeira de Aguilar e D. António de Lemos Teixeira de Aguilar, cavaleiro da Casa Real, par do reino e senhor de vastas propriedades. Ana Ludovina Teixeira de Aguilar, irmã do morgado, contrariando com singular coragem as determinações dos pais, foi a protagonista de uma intensa história de amor. Apaixonada por Waldron Kelly, um tenente irlandês que integrava o contingente britânico comandado por Wellington chegado a Portugal para ajudar no combate às tropas napoleónicas, a jovem fidalga escapa-se certa noite do solar por uma janela que nunca mais seria aberta, iniciando uma odisseia que agora se apresenta sob a forma de romance. Para a construção deste livro socorri-me de vasta documentação familiar, nomeadamente epistolar, cuja ortografia actualizei de forma a tornar mais confortável a narrativa junto do leitor. O respeito pelos factos históricos constituiu uma firme determinação, a única excepção foi, por uma questão de economia narrativa, a alteração da data da primeira das cartas que integram esta obra. Feitas estas considerações, caro/a leitor/a, espero que Ana Kelly – Uma saga de amor e coragem, agora nas suas mãos, 17 ÂNGELA LEITE não só lhe proporcione agradáveis momentos de leitura como contribua para um maior conhecimento da nossa História contemporânea. Oeiras, Maio de 2011 18 ANA KELLY Uma saga de amor e coragem Quando tão pouco da vida lhe restava já, Perguntou: «O trevo estará ainda florido?» – Ai, meu amo e senhor! Kon Myôgum A família Teixeira de Aguilar Corria o ano de 1799. Em Cedovim, no belo solar dos Aguilares, o Abril quente e florido convidava a que se abrissem as janelas e se deixasse entrar o ar perfumado pelas flores das laranjeiras. D. Maria Ludovina estava sentada à mesa de trabalho da sua sala, relendo a carta do pai, Bernardo de Carvalho e Lemos de Sousa Alvim, enviada de Santar. Um grande canapé de madeira de cerejeira e palhinha, com várias almofadas de seda verde malva e pérola, estendia-se do outro lado da sala. Na parede, dois enormes quadros a óleo representavam cenas campestres. Perto da janela, para receber a luz do dia, havia uma cadeira baixa ao lado de uma caixa de costura de pau-santo com embutidos de madrepérola. Uma toalha de altar, trabalho de devoção da senhora da casa, com bordado por terminar, estava pousada numa pequena mesa perto da caixa de costura. O retrato a óleo do avô de seu marido, que fora alcaide-mor de Braga e embaixador em Viena e cuja história de vida orgulhava D. Maria Ludovina, pendia por detrás da sua cadeira, legitimando-lhe o poder e o mando. Olhando para fora, avistava-se parte do imenso património da família: vinhas, searas, amendoais, olivais, hortas, matas, pastos, a perder de vista. O povo dizia que se podia andar um dia e uma noite e outro dia e outra noite sem sair das terras dos Aguilares. D. Maria Ludovina tinha casado havia nove anos com o seu primo D. Francisco Teixeira Rebelo Bravo Pacheco de 23 ÂNGELA LEITE Aguilar, cavaleiro da Casa Real, familiar do Santo Ofício, senhor dos morgados de Cedovim, Castro Daire, Falachos e Braga. Com o casamento, acrescentara aos bens da família os morgados de Ladário, São Miguel do Outeiro e Quinta de Santo Estêvão em Viseu, que trouxera de dote. Nobreza rural, bem alicerçada na terra, segura do poder que mantinha desde os recuados tempos de D. João I, mercê dos serviços nunca regateados, à Igreja, a Portugal e ao rei. D. Maria Ludovina pousou a carta e foi até à janela, pensativa. A frontaria do solar dava para o largo da vila. À esquerda ficava o pelourinho e a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, onde a família tinha uma capela. As traseiras abriam-se sobre o jardim e os campos. Dali podia fiscalizar os trabalhadores. Um moço de estrebaria passou com um cavalo pela arreata. Ergueu os olhos para a janela e descobriu-se ao vê-la. D. Maria Ludovina levantou a mão, retribuindo o cumprimento. Ao fundo, junto do belo pombal circular, meia dúzia de homens revolviam a terra à volta das árvores e faziam as caldeiras de novo. Cheirava a pão cozido de fresco. Uma vez por semana acendia-se o forno para cozer um alqueire de trigo, que se dava aos pobres. Todos os dias se fazia na cozinha do rés-do-chão um pote com 50 litros de sopa, que era distribuído com uma fatia de pão à porta do solar. Este hábito manteve-se na família até à altura em que se proibiu esta prática, com a justificação de que promovia a ociosidade. A partir daqui as ajudas passaram a ser entregues nas casas das pessoas e de forma mais discreta e selectiva. D. Maria Ludovina voltou as costas à janela e sentou-se de novo à mesa. Puxou uma folha de papel cor de alfazema clara, abriu o tinteiro de prata, pegou na caneta também de 24 ANA KELLY – UMA SAGA DE AMOR E CORAGEM prata e molhou o aparo na tinta para começar a escrever. Hesitou. Estava com dificuldade em principiar. Alguém bateu levemente com os nós dos dedos na porta, que acto contínuo abriu. Levantou a cabeça. Era o marido. D. Francisco era um homem alto, magro, a testa ampla, o nariz bem delineado, típico dos Aguilares, o bigode aparado de pontas reviradas a sombrear a boca. Um homem bem-parecido. O casamento fora combinado pelas famílias como era hábito, mas, para os padrões da época, qualquer mulher teria querido casar com ele. D. Maria Ludovina não era particularmente bonita. Impunha-se especialmente pela elegância e pelo porte altivo, que reflectia muito do seu carácter. Ao ver o marido, sorriu e a ruga entre as sobrancelhas desfez-se. – Pareceu-me ver-te preocupada quando entrei... – Estou efectivamente preocupada. Já te falei da carta que Tomás de Campos Limpo me veio entregar da parte de meu pai, durante a tua ausência no Porto. Gostava que a lesses e me desses o teu conselho. D. Francisco tomou a carta e aproximou-se da janela para ter mais luz. Santar, 7 de Abril de 1798 Minha Ludovina e filha do coração: Recebi a tua carta, e estimo saber que tu e o Francisco estão de saúde. A todos me recomendo afectuosamente e o mesmo faz a tua mãe. Sinto que estejas inquieta pela prisão do pobre Bizarro. O que é urgente é cuidar da sua libertação. Escrevo a Pedro de Melo com todo o empenho como me recomendavas. Caso não consiga do intendente a Ordem de Soltura, pois assim como ele a passou para o prender, no que ele é bastante pronto, também a poderá passar para a soltura, que seja Bizarro admitido a livramento, o que não pode deixar de ser concedido. 25 ÂNGELA LEITE Sei que há determinações sobre isso, no meio das muitas disposições despóticas que o tal intendente costuma produzir. Sobre o que me dizes de eu escrever a Lucas de Seabra, com boa vontade o faria se considerasse que surtiria algum efeito. Ele está tão cheio de soberba que em nada me atenderia. O que me parece mais seguro é interessar-se o intendente em o mandar soltar assim como o mandou prender. Nisso ele tem facilidade e, falando-lhe Pedro Melo ou Lucas de Seabra, ele o mandará pôr fora. Não se afronta o tal Manique. Fico-te sumamente obrigado pelas meias, que são excelentes. Fica com Deus. Teu pai que muito te estima Bernardo D. Francisco afastou-se da janela e comentou: – Teu pai tem razão. É preciso agir já. Usamos primeiro as influências e só depois a lei. Até porque a justiça é morosa e não se compadece com a nossa amizade e a nossa necessidade. – É verdade. O Bizarro, mais que nosso procurador, é nosso amigo. Devemos-lhe ajuda. As propriedades de Castro Daire estão como loja com patrão fora. Enquanto estiveste no Porto, os caseiros voltaram cá a pedir ordens. Os granjeios não esperam. Disse-lhes que irias lá quando voltasses. – Vou ter de levar alguém comigo para substituir o Bizarro até que ele possa voltar – e depois de uma pausa: – Devemos insistir com Lucas de Seabra. É desembargador do Paço, e o intendente não vai deixar de atender um empenho dele. Conseguirá resultados mais rápidos do que Pedro de Melo. Além disso, Lucas de Seabra pode não atender teu pai, mas a ti atende-te porque te deve favores. Escreve-lhe. Tens a minha aprovação para o fazer. 26 ANA KELLY – UMA SAGA DE AMOR E CORAGEM – Sim, vou fazê-lo. Deus queira que Pina Manique aceite o empenho. Pina Manique era uma figura inultrapassável do poder na época. Nomeado pelo marquês de Pombal superintendente-geral de Contrabandos e Descaminhos, era tão carismático e controverso como o Marquês. Fora, contra as expectativas gerais, confirmado em todos os seus cargos quando D. Maria I subira ao trono, que, aos que já tinha, lhe acrescentou o de intendente-geral da Polícia. Nestas funções prosseguiu a sua «cruzada» de disciplina social, que levou a cabo com uma crueldade sem limites e que atingiu todas as classes sociais. Ainda no tempo de D. José, estando nós em vésperas de um conflito com a Espanha e precisando o exército de ser reforçado, encarregou-o o marquês de Pombal de capturar alguns desertores que se teriam escondido na Trafaria. Corria o ano de 1766 e era Janeiro. Pina Manique reuniu 400 homens e cumpriu as ordens. Para abreviar, mandou lançar fogo à povoação e perseguir aqueles que fugissem. Acossadas, as famílias dos pescadores, mulheres e crianças vaguearam desamparadas e seminuas pela praia durante vários dias depois de lhes terem sido queimadas as casas. A opinião pública condenou vivamente este episódio, mas Sebastião José de Carvalho e Melo veio em defesa do intendente, dizendo que só havia criminosos ali. 27 À sombra do brasão antigo Os trabalhos no campo começam cedo. Ainda é de noite quando os criados se levantam. Apesar de os administradores, caseiros, procuradores, feitores que tomavam conta das muitas propriedades dos Aguilares, se levantarem cedo, estes também o faziam. A primeira a sair do leito conjugal era D. Maria Ludovina. A cama do casal impressionava pela beleza e pelo luxo. O quarto tinha o tamanho de um salão, e os móveis eram enormes. Duas cómodas de castanho, com quatro gavetões, guardavam a roupa dos senhores. Um cofre vertical de ferro, ornamentado com arabescos e uma águia de asas abertas no topo da porta, mantinha seguros os documentos importantes da família. Um biombo chinês ocultava o jarro, a bacia, e o bidé de porcelana de Sèvres, para as abluções matinais. Do lado oposto, um oratório com um cristo crucificado e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição do século XIII protegia a casa e dava o nome ao solar. Por baixo, dois genuflexórios almofadados esperavam os joelhos penitentes do casal. D. Maria Ludovina afastou os cortinados de damasco verde-claro que pendiam do dossel de talha recoberta a folha de ouro encimado pelo brasão da família, fez o sinal da cruz, calçou os chinelos, lançou um xaile sobre a camisa de dormir e dirigiu-se para o oratório. O dia começava assim. Depois de fazer uma higiene sumária, que os tempos não eram de grande exigência nesta matéria, vestia-se e estava pronta. Às sete e trinta saía do quarto. 28