Ângela Leite
Ana Kelly
Uma saga de amor e coragem
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Título: Ana Kelly – Uma saga de amor e coragem
Autoria: Ângela Leite
Revisão: Silvina de Sousa
Composição: SVS
em caracteres Sabon, corpo 11,5
Capa: Maria Manuel Lacerda / Oficina do Livro
Impressão e acabamento: Rolo & Filhos II, SA – Indústrias Gráficas
1ª edição: Julho de 2011
ISBN 978-989-555-771-4
Depósito legal n.º 328 902/11
Prefácio
As incursões napoleónicas em Portugal invadiram a literatura portuguesa com um quantioso exército de obras que
lhe são consagradas. De Arnaldo Gama, ou Camilo Castelo
Branco, a Pinheiro Chagas ou Rebelo da Silva, de Silva Gaio
a Mendes Leal ou Abel Botelho, do Conde de Ficalho a Júlio
Dantas, ou Raul Brandão, ou Pascoaes, de Malheiro Dias, ou
Tomás de Figueiredo, a Aquilino Ribeiro ou Branquinho da
Fonseca, muitos foram os autores, no século XIX e na primeira
metade do século passado, que recrearam a época agitada das
invasões francesas. Ainda mais próximo de nós, a temática ligada às campanhas militares francesas em território luso voltou a deixar marcas assinaláveis no campo do romance
histórico português. De Álvaro Guerra a Vasco Graça Moura,
de Mário Cláudio a José Marques Vidal (autor do recente e
excelente O Amor em Armas, que tem por pano de fundo o
Baixo Vouga), e vários outros ficcionistas, o filão napoleónico
não se exauriu. Até autores estrangeiros se interessaram pelo
tema. O primeiro de todos, Edward Quillian, portuense de
origem irlandesa, genro de Wordsworth, deixou um curioso
romance, recentemente traduzido, e muito justamente resgatado da escuridão em que estava sepulto, intitulado The Sisters of the Douro. Testemunha das invasões francesas, foi
obrigado pela ocupação do Porto pelas tropas do marechal
Soult a procurar refúgio, juntamente com a família, em Inglaterra. Mas também Conan Doyle, C. S. Forester ou Bernard
Cornwell não desprezaram este tópico. Sem falar dos numerosos historiadores, ensaístas e artistas plásticos que trataram
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também esta matéria, plasmada em pinturas, ilustrações ou
esculturas.
As celebrações do bicentenário das ambições frustradas
de Napoleão em Portugal foram pretexto para aumentar o
caudal evocativo. Ângela Leite, porém, não se inscreve nessa
fileira. Ligada à protagonista por relações familiares, tendo
herdado parte do solar onde se desencadeou a tragédia, em
Cedovim, a autora desta biografia romanceada sentiu-se compelida a voltar ficcionalmente ao seu Douro ardente, domínio
de Dionísio triunfante, como o evoca no seu livro de poesia
Metáforas Sobre o Amor, na composição “Douro II”. Crente
e praticante, sem deixar de ser irreverente, não podia ficar insensível ao profundo drama humano que esmagou Ludovina,
ela que na mesma recolha poética afirma, a propósito dos
Talibans do mundo, que a fé negou a razão, mas conclui o
poema proclamando que Graças a Deus / não s[abe] se Deus
existe!
Esta mesma afinidade está também presente em As Horas
de Penépole, outro livro de poemas, no qual Ângela Leite consagra a terceira parte à “Geografia dos Afectos” e onde, no
poema “Recordação”, o sujeito poético é uma menina só, que
apenas podia chamar por si própria, pois Não havia mãe por
quem chamar, situação que mutatis mutandis se poderá aplicar
a Ana Ludovina Teixeira de Aguilar e que, por projecção psicanalítica, não será absurdo estender à própria autora da biografia romanceada desta solitária e corajosa grande mulher.
Antes de delinear Ana Kelly, já Ângela Leite desenhara
nas páginas de dois romances, Os Homens de Kidina e …E um
Alfaiate em Hong Kong, duas dignas sucessoras da romântica
antepassada duriense, Kidina e Maria da Luz, também esta
última originária do Douro solar e do Douro luarento, que
requebra nos vales um ondular redondo / de ancas e de seios /
chamar de fêmea / vergastando os sentidos / desassossegando
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ANA KELLY
– UMA SAGA DE AMOR E CORAGEM
o sono, como o canta Ângela Leite na sua “Ode ao Douro”,
em As Horas de Penépole. Este telúrico apelo, frenético, deve
ter sido idêntico ao que desvairou o tenente irlandês e a jovem aristocrata de Cedovim.
Kidina e Maria da Luz são almas gémeas de Ana Ludovina, todas de grande carácter, decididas e lutadoras, invulgares, de rara autenticidade, mulheres de fortíssima
personalidade que a vida não poupa, mas sempre cheias de
enorme tenacidade, pagando muito caro a sua ousadia, rebeldes à frente do seu tempo, não se envergonhando de se renderem à alegria da festa carnal, como é dito a propósito da
entrega ao prazer da protagonista de Os Homens de Kidina.
A procura incansável da felicidade na vida, e sobretudo no
amor, já era um tema recorrente nos dois primeiros romances
de Ângela Leite, busca revisitada neste que ora se apresenta.
Como Kidina e Maria da Luz, Ana Ludovina luta ferozmente
pela sua felicidade e pela dos seus desprotegidos filhos, obstinada, à margem, ou mesmo em rebelião, contra as convenções sociais.
O realismo é uma marca forte destas três narrativas. As
duas últimas são baseadas em histórias de pessoas reais, sem
perderem o seu carácter fictivo, dada a grande capacidade
efabulatória da autora. Neste último romance, como nos precedentes, mas mais ainda em Ana Kelly – Uma Saga de Amor
e Coragem, Ângela Leite foi incansável na sua pesquisa, recorrendo a todo o tipo de documentos, preenchendo as lacunas
informativas com o recurso à sua fértil imaginação, sonhadora e romântica como a da protagonista. O efeito do real é
uma preocupação constante da narradora, na esteira dos
grandes cultores do romance histórico português, de Almeida
Garrett e Alexandre Herculano a Camilo Castelo Branco. Peguemos um só exemplo desta marca de realismo, no capítulo
que descreve o saque de Cedovim pelos franceses. Tentando
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ÂNGELA LEITE
desajeitadamente participar na defesa do seu solar, de arma
em punho, Ana dispara à toa, escreve a narradora, o que provoca a reacção dos soldados franceses, que lhe desfecham um
tiro que passa, felizmente, por cima da sua cabeça, e que foi
atingir o retrato pendurado na parede, de seu avô. Até aqui
temos a acção, mas de imediato a narradora insere este comentário autenticador, à maneira de Camilo, no Amor de Perdição, por exemplo, nas suas notas de rodapé: Ainda se
conserva em Cedovim com o buraco da bala.
A autora explora neste seu último romance, na senda dos
precedentes, a análise psicológica e sentimental das principais
personagens, abordando sempre a dicotomia entre a lógica
dos afectos e a lógica da razão. Perscruta o casamento e seus
impasses, as infidelidades e traições, suas comédias e seus dramas, construindo enquadramentos epocais e espaciais muito
sugestivos. Além da protagonista, Ângela Leite cria algumas
notáveis personagens secundárias que dão forte densidade à
trama romanesca. É o caso, por exemplo, da figura apocalíptica de Maria Louca, de vincado humanismo ou ainda o da
rica viúva-alegre de Maximino Moreira, que no seu envolvimento com o boticário Dr. Azevedo dá o ensejo à autora de
escrever algumas passagens de incontido erotismo.
As narrativas estão alicerçadas com um estilo vigoroso
e diversificado, com vários registos de linguagem, fugindo
muitas das vezes aos eufemismos, modelando as ficções com
muita imaginação e verosimilhança, num equilibrado doseamento dos diálogos e da narração, aliando linguagem directa e metafórica, consubstanciando um estilo límpido, não
procurando arrojadas inovações; estilo poupado, mas não bêbado, para utilizar os qualificativos cunhados por Brás Cubas,
criação engenhosa do incomensurável Machado de Assis.
A trágica vida de Ana Ludovina Teixeira de Aguilar é o
equivalente português da desesperada existência da filha de
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– UMA SAGA DE AMOR E CORAGEM
Victor Hugo, que acabou doida e internada num asilo de alienados, contada com grande mestria, em Adèle H, filme do
arauto da nouvelle vague, François Truffaut. Ana e o seu tenente irlandês Waldron Kelly viveram, meio século antes, uma
similar comédia de enganos e desilusões; drama romântico
que envenenou a amargurada vida de Adèle Hugo, loucamente apaixonada pelo tenente inglês Albert Pinson, atravessando o Atlântico para ir ingloriamente ao encontro do seu
cruel amado, tal como Ana abandonou a sua família e o seu
país no encalço do militar sedutor, acabando ambas náufragas do amor, vítimas do mais desesperante abandono.
Que Ana Ludovina encontre, para a encarnar na tela cinematográfica, a sua Isabelle Adjani, e o seu Truffaut, para a
fazer renascer, tal como Adèle por estes ressuscitada. Que a
biografia ficcionada de Ana por Ângela Leite seduza algum
outro Truffaut, ou algum Ruiz ou Almodóvar, ou ainda algum Leonel Vieira ou Manoel de Oliveira, que magicamente
dê a conhecer a um público mais vasto a figura excepcional
desta heroína duriense, que bem o merece; e mais ainda, talvez, do que a filha caçula do patriarca do Romantismo francês. Portugal também merece e precisa que se revisite e
divulgue a sua história e que este outro Amor de Perdição,
como também o foi o de Pedro e Inês, possa vir a alentar o
imaginário nacional e alienígena.
Sangalhos, 22 de Maio de 2011
Pedro Calheiros
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Aos meus filhos,
Maria Alexandra e Rui Miguel
Aos meus netos,
António Sancho e Francisca
Agradecimentos
Para a elaboração deste livro contei com o gentil e desinteressado apoio de muitos amigos. Nesse sentido, quero
expressar os meus mais sinceros agradecimentos a algumas
pessoas que me facilitaram uma tarefa que sem a sua colaboração seria muito mais difícil de levar a bom porto.
Em primeiro lugar, ao meu primo Comandante José António Teixeira de Aguilar e sua mulher Lídia Aguilar, o meu
inexcedível obrigado. Com justiça, posso dizer que construí
a casa, mas o meu primo ajudou-me a encontrar grande parte
dos tijolos, tendo partilhado comigo a alegria de cada descoberta.
Um agradecimento muito sincero a todos os amigos que
se apaixonaram por esta história e que das mais variadas maneiras contribuíram para a sua reconstituição, nomeadamente:
Dr. Alcides Santos; Conselheiro António Fernando Samagaio;
Professor Doutor António Pedro Vicente; às Senhoras Carla
Cruz, Isabel Cunha Rodrigues e Susana São João, técnicas do
Arquivo Histórico Municipal do Porto/Casa do Infante, que
com muito entusiasmo e grande profissionalismo me ajudaram na investigação feita naquele organismo; Dr. Carlos Torres; Professor Doutor Fernando Pinto do Amaral; Eng.
Francisco Aguilar Machado; General Francisco Cabral Couto;
General Gabriel Espírito Santo; Professor Doutor Gaspar
Martins Pereira; Presidente da Câmara Municipal de Oeiras,
Dr. Isaltino de Morais; Eng. João Melo Trovisqueira; Dr. João
Neto; Dr. João Ribas; Dr. José A. Damas Móra; Presidente da
Câmara Municipal de São João da Pesqueira, Senhor José
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ÂNGELA LEITE
Tulha; Dr.ª Luísa Lisboa; Sra. D. Luísa Olazabal; Dr.ª Maria
do Amparo Ferreira; Dr.ª Maria Fernanda Gomes; Professora
Doutora Maria José Moutinho; Padre Mário Pais; Dr. Rodrigues Trabulo; Coronel Rui Taveira; à Administração da Sogrape, que gentilmente permitiu o acesso aos arquivos da
empresa; e ao Senhor Tim Chambers.
Um agradecimento final ao Professor Doutor Pedro Calheiros, amigo que generosamente acedeu a escrever o prefácio deste livro.
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Nota introdutória
Quando há alguns anos recebi como herança parte do
Solar de Nossa Senhora da Conceição, em Cedovim, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, não imaginava vir a contar
a história escondida nas ruínas do edifício.
Com a morte do meu tio Ilídio Mariano Teixeira de
Aguilar, desaparecia um dos últimos netos dos morgados
de Cedovim, D. Bárbara de Noronha Teixeira de Aguilar e
D. António de Lemos Teixeira de Aguilar, cavaleiro da Casa
Real, par do reino e senhor de vastas propriedades.
Ana Ludovina Teixeira de Aguilar, irmã do morgado,
contrariando com singular coragem as determinações dos
pais, foi a protagonista de uma intensa história de amor.
Apaixonada por Waldron Kelly, um tenente irlandês que integrava o contingente britânico comandado por Wellington
chegado a Portugal para ajudar no combate às tropas napoleónicas, a jovem fidalga escapa-se certa noite do solar por
uma janela que nunca mais seria aberta, iniciando uma odisseia que agora se apresenta sob a forma de romance.
Para a construção deste livro socorri-me de vasta documentação familiar, nomeadamente epistolar, cuja ortografia
actualizei de forma a tornar mais confortável a narrativa
junto do leitor. O respeito pelos factos históricos constituiu
uma firme determinação, a única excepção foi, por uma questão de economia narrativa, a alteração da data da primeira
das cartas que integram esta obra.
Feitas estas considerações, caro/a leitor/a, espero que Ana
Kelly – Uma saga de amor e coragem, agora nas suas mãos,
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ÂNGELA LEITE
não só lhe proporcione agradáveis momentos de leitura como
contribua para um maior conhecimento da nossa História
contemporânea.
Oeiras, Maio de 2011
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ANA KELLY
Uma saga de amor e coragem
Quando tão pouco da vida lhe restava já,
Perguntou: «O trevo estará ainda florido?»
– Ai, meu amo e senhor!
Kon Myôgum
A família Teixeira de Aguilar
Corria o ano de 1799. Em Cedovim, no belo solar dos
Aguilares, o Abril quente e florido convidava a que se abrissem as janelas e se deixasse entrar o ar perfumado pelas flores
das laranjeiras.
D. Maria Ludovina estava sentada à mesa de trabalho da
sua sala, relendo a carta do pai, Bernardo de Carvalho e Lemos de Sousa Alvim, enviada de Santar.
Um grande canapé de madeira de cerejeira e palhinha,
com várias almofadas de seda verde malva e pérola, estendia-se do outro lado da sala. Na parede, dois enormes quadros a
óleo representavam cenas campestres. Perto da janela, para receber a luz do dia, havia uma cadeira baixa ao lado de uma
caixa de costura de pau-santo com embutidos de madrepérola.
Uma toalha de altar, trabalho de devoção da senhora da
casa, com bordado por terminar, estava pousada numa pequena mesa perto da caixa de costura. O retrato a óleo do
avô de seu marido, que fora alcaide-mor de Braga e embaixador em Viena e cuja história de vida orgulhava D. Maria
Ludovina, pendia por detrás da sua cadeira, legitimando-lhe
o poder e o mando.
Olhando para fora, avistava-se parte do imenso património da família: vinhas, searas, amendoais, olivais, hortas, matas, pastos, a perder de vista.
O povo dizia que se podia andar um dia e uma noite e
outro dia e outra noite sem sair das terras dos Aguilares.
D. Maria Ludovina tinha casado havia nove anos com o
seu primo D. Francisco Teixeira Rebelo Bravo Pacheco de
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ÂNGELA LEITE
Aguilar, cavaleiro da Casa Real, familiar do Santo Ofício, senhor dos morgados de Cedovim, Castro Daire, Falachos e
Braga. Com o casamento, acrescentara aos bens da família os
morgados de Ladário, São Miguel do Outeiro e Quinta de
Santo Estêvão em Viseu, que trouxera de dote.
Nobreza rural, bem alicerçada na terra, segura do poder que mantinha desde os recuados tempos de D. João I,
mercê dos serviços nunca regateados, à Igreja, a Portugal e
ao rei.
D. Maria Ludovina pousou a carta e foi até à janela, pensativa.
A frontaria do solar dava para o largo da vila. À esquerda ficava o pelourinho e a Igreja de Nossa Senhora da
Conceição, onde a família tinha uma capela. As traseiras
abriam-se sobre o jardim e os campos. Dali podia fiscalizar
os trabalhadores. Um moço de estrebaria passou com um
cavalo pela arreata. Ergueu os olhos para a janela e descobriu-se ao vê-la. D. Maria Ludovina levantou a mão, retribuindo o cumprimento. Ao fundo, junto do belo pombal
circular, meia dúzia de homens revolviam a terra à volta das
árvores e faziam as caldeiras de novo.
Cheirava a pão cozido de fresco. Uma vez por semana
acendia-se o forno para cozer um alqueire de trigo, que se
dava aos pobres. Todos os dias se fazia na cozinha do rés-do-chão um pote com 50 litros de sopa, que era distribuído com
uma fatia de pão à porta do solar. Este hábito manteve-se na
família até à altura em que se proibiu esta prática, com a justificação de que promovia a ociosidade. A partir daqui as ajudas passaram a ser entregues nas casas das pessoas e de forma
mais discreta e selectiva.
D. Maria Ludovina voltou as costas à janela e sentou-se
de novo à mesa. Puxou uma folha de papel cor de alfazema
clara, abriu o tinteiro de prata, pegou na caneta também de
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– UMA SAGA DE AMOR E CORAGEM
prata e molhou o aparo na tinta para começar a escrever. Hesitou. Estava com dificuldade em principiar.
Alguém bateu levemente com os nós dos dedos na porta,
que acto contínuo abriu. Levantou a cabeça. Era o marido.
D. Francisco era um homem alto, magro, a testa ampla,
o nariz bem delineado, típico dos Aguilares, o bigode aparado
de pontas reviradas a sombrear a boca. Um homem bem-parecido.
O casamento fora combinado pelas famílias como era
hábito, mas, para os padrões da época, qualquer mulher teria
querido casar com ele. D. Maria Ludovina não era particularmente bonita. Impunha-se especialmente pela elegância e pelo
porte altivo, que reflectia muito do seu carácter. Ao ver o marido, sorriu e a ruga entre as sobrancelhas desfez-se.
– Pareceu-me ver-te preocupada quando entrei...
– Estou efectivamente preocupada. Já te falei da carta
que Tomás de Campos Limpo me veio entregar da parte de
meu pai, durante a tua ausência no Porto. Gostava que a lesses e me desses o teu conselho.
D. Francisco tomou a carta e aproximou-se da janela
para ter mais luz.
Santar, 7 de Abril de 1798
Minha Ludovina e filha do coração:
Recebi a tua carta, e estimo saber que tu e o Francisco estão de saúde. A todos me
recomendo afectuosamente e o mesmo faz a tua mãe. Sinto que estejas inquieta
pela prisão do pobre Bizarro. O que é urgente é cuidar da sua libertação.
Escrevo a Pedro de Melo com todo o empenho como me recomendavas. Caso
não consiga do intendente a Ordem de Soltura, pois assim como ele a passou para
o prender, no que ele é bastante pronto, também a poderá passar para a soltura,
que seja Bizarro admitido a livramento, o que não pode deixar de ser concedido.
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ÂNGELA LEITE
Sei que há determinações sobre isso, no meio das muitas disposições despóticas
que o tal intendente costuma produzir.
Sobre o que me dizes de eu escrever a Lucas de Seabra, com boa vontade o faria
se considerasse que surtiria algum efeito. Ele está tão cheio de soberba que em nada
me atenderia.
O que me parece mais seguro é interessar-se o intendente em o mandar soltar assim
como o mandou prender. Nisso ele tem facilidade e, falando-lhe Pedro Melo ou Lucas
de Seabra, ele o mandará pôr fora.
Não se afronta o tal Manique.
Fico-te sumamente obrigado pelas meias, que são excelentes.
Fica com Deus.
Teu pai que muito te estima
Bernardo
D. Francisco afastou-se da janela e comentou:
– Teu pai tem razão. É preciso agir já. Usamos primeiro as
influências e só depois a lei. Até porque a justiça é morosa e
não se compadece com a nossa amizade e a nossa necessidade.
– É verdade. O Bizarro, mais que nosso procurador, é
nosso amigo. Devemos-lhe ajuda. As propriedades de Castro
Daire estão como loja com patrão fora. Enquanto estiveste
no Porto, os caseiros voltaram cá a pedir ordens. Os granjeios
não esperam. Disse-lhes que irias lá quando voltasses.
– Vou ter de levar alguém comigo para substituir o Bizarro até que ele possa voltar – e depois de uma pausa: – Devemos insistir com Lucas de Seabra. É desembargador do
Paço, e o intendente não vai deixar de atender um empenho
dele. Conseguirá resultados mais rápidos do que Pedro de
Melo. Além disso, Lucas de Seabra pode não atender teu pai,
mas a ti atende-te porque te deve favores. Escreve-lhe. Tens a
minha aprovação para o fazer.
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ANA KELLY
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– Sim, vou fazê-lo. Deus queira que Pina Manique aceite
o empenho.
Pina Manique era uma figura inultrapassável do poder
na época. Nomeado pelo marquês de Pombal superintendente-geral de Contrabandos e Descaminhos, era tão carismático
e controverso como o Marquês. Fora, contra as expectativas
gerais, confirmado em todos os seus cargos quando D. Maria
I subira ao trono, que, aos que já tinha, lhe acrescentou o de
intendente-geral da Polícia.
Nestas funções prosseguiu a sua «cruzada» de disciplina
social, que levou a cabo com uma crueldade sem limites e que
atingiu todas as classes sociais. Ainda no tempo de D. José,
estando nós em vésperas de um conflito com a Espanha e precisando o exército de ser reforçado, encarregou-o o marquês
de Pombal de capturar alguns desertores que se teriam escondido na Trafaria.
Corria o ano de 1766 e era Janeiro. Pina Manique reuniu
400 homens e cumpriu as ordens. Para abreviar, mandou lançar fogo à povoação e perseguir aqueles que fugissem. Acossadas, as famílias dos pescadores, mulheres e crianças
vaguearam desamparadas e seminuas pela praia durante vários dias depois de lhes terem sido queimadas as casas.
A opinião pública condenou vivamente este episódio,
mas Sebastião José de Carvalho e Melo veio em defesa do intendente, dizendo que só havia criminosos ali.
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À sombra do brasão antigo
Os trabalhos no campo começam cedo. Ainda é de noite
quando os criados se levantam. Apesar de os administradores,
caseiros, procuradores, feitores que tomavam conta das
muitas propriedades dos Aguilares, se levantarem cedo, estes também o faziam. A primeira a sair do leito conjugal era
D. Maria Ludovina. A cama do casal impressionava pela beleza e pelo luxo.
O quarto tinha o tamanho de um salão, e os móveis
eram enormes. Duas cómodas de castanho, com quatro gavetões, guardavam a roupa dos senhores. Um cofre vertical
de ferro, ornamentado com arabescos e uma águia de asas
abertas no topo da porta, mantinha seguros os documentos
importantes da família. Um biombo chinês ocultava o jarro,
a bacia, e o bidé de porcelana de Sèvres, para as abluções matinais. Do lado oposto, um oratório com um cristo crucificado e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição do
século XIII protegia a casa e dava o nome ao solar. Por baixo,
dois genuflexórios almofadados esperavam os joelhos penitentes do casal.
D. Maria Ludovina afastou os cortinados de damasco
verde-claro que pendiam do dossel de talha recoberta a folha
de ouro encimado pelo brasão da família, fez o sinal da cruz,
calçou os chinelos, lançou um xaile sobre a camisa de dormir
e dirigiu-se para o oratório. O dia começava assim. Depois
de fazer uma higiene sumária, que os tempos não eram de
grande exigência nesta matéria, vestia-se e estava pronta. Às
sete e trinta saía do quarto.
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